Introdução
Uma boa saúde mental é reconhecida como um ativo importante e um recurso fundamental para o bem-estar da população e para o desenvolvimento social e económico (Conselho Nacional de Saúde, 2019). Apesar disso, a pessoa com doença mental é vítima de estigma e discriminação. As atitudes negativas que a população em geral apresenta são partilhadas por profissionais de saúde e estudantes do ensino superior, em particular os que frequentam a área da saúde (Corrigan et al., 2011; Happell et al., 2019). Nos profissionais de saúde estas atitudes têm um impacto superior, pois representam uma barreira no acesso aos cuidados de saúde e à perceção e aceitação da doença por parte das pessoas com doença mental (Querido et al., 2020).
Os estudantes de enfermagem, antes de iniciarem o seu percurso académico, trazem consigo, na maioria das vezes, atitudes negativas e carência de conhecimento acerca da doença mental, que poderão influenciar o desenvolvimento das suas competências, com impacto na sua futura prática profissional (Martinho et al., 2014; Querido et al., 2020). Durante o curso os estudantes de enfermagem têm contacto e prestam cuidados a pessoas com doença mental através da realização do Ensino Clínico. Ramos (2021) acrescenta ao referido anteriormente, que cuidar de pessoas com perturbações na área da saúde mental acarreta exigências psicológicas que podem provocar desgaste emocional de quem cuida. Neste contexto complexo, os estudantes durante o ensino clínico nesta área, necessitam de uma supervisão que forneça instrumentos que lhe permitam lidar de forma apropriada com os sentimentos e emoções, como refletir sobre as suas atitudes perante a pessoa com doença mental. Tendo o docente/supervisor um papel fundamental na adequação das estratégias de ensino/aprendizagem aos conteúdos e oportunidades das experiências clínicas, e sejam promotoras de momentos de reflexão capazes de desmistificar ideias pré-concebidas neste âmbito (Ramos, 2021).
Embora em escassa quantidade, na literatura verifica-se que as atitudes perante a pessoa com doença mental têm sido alvo de estudo nos estudantes de enfermagem. O impacto das atitudes, a importância de aumentar a literacia em saúde mental e o combate ao estigma são temáticas pertinentes e prioritárias. Neste sentido, desenvolveu-se este estudo de investigação cujos objetivos foram conhecer as atitudes dos estudantes de enfermagem perante a pessoa com doença mental e verificar a correlação existente entre a frequência das unidades curriculares de Saúde Mental e Psiquiatria e as atitudes dos estudantes perante a pessoa com doença mental.
Enquadramento/ fundamentação teórica
Atualmente a sociedade aparenta estar consciente sobre o que deve ser feito, nas dimensões médica, psicológica e social, pelas pessoas com doença mental. Não obstante, permanecem ainda alguns preconceitos, estigmas e atitudes negativas contra estas pessoas (Ramos, 2021). A perspetiva da população em geral aponta para a pessoa portadora de doença mental como sendo perigosa, preguiçosa e imprevisível (Xavier et al., 2013 as cit. in Querido et al., 2016). Estas atitudes negativas estendem-se a profissionais de saúde, incluindo enfermeiros (Happell et al., 2019). A formação inadequada e a falta de preparação para trabalhar com esta população pode ser considerada uma das causas para as atitudes negativas dos profissionais de saúde (Ferreira, 2018).
Em Portugal, as perturbações psiquiátricas têm uma prevalência de 22,9%, colocando o país num preocupante segundo lugar entre os países europeus (Conselho Nacional de Saúde, 2019). A nível nacional, verifica-se a presença de forte estigma e discriminação associado à doença mental, pelo que urge a importância do desenvolvimento de políticas de combate ao estigma e promoção da saúde mental. O estigma em relação a pessoas com problemas de saúde mental consiste em atitudes de desaprovação social com base em certos aspetos pessoais, características, crenças ou comportamentos que estão em conflito com a norma social e cultural (Observatório de Estigma na Doença Mental, 2021; Programa Nacional de Saúde Mental, 2017).
Autores como Gronholm et al., (2017) descrevem o estigma como um fenómeno multifacetado, com grave impacto na discriminação experimentada e antecipada, em combinação, e com múltiplas consequências: acesso precário a cuidados de saúde mental e físicos, reduzida expetativa de vida, exclusão do ensino superior e de acesso a emprego, maior risco de contato com o sistema de justiça criminal, vitimização, pobreza e dificuldade no acesso a habitação. Tais consequências foram descritas, por algumas pessoas, como piores que a experiência da doença mental em si. Assim, assume-se a necessidade do combate ao estigma como uma preocupação significativa em saúde pública. As atitudes de atitudes negativas perante a pessoa com doença mental são consideradas fatores de previsão de comportamentos discriminatórios relacionados ao estigma (Ferreira, 2018). A escassez ou distorção da informação contribui para a manutenção destas atitudes e crenças irrealistas associadas à doença mental. O aumento de conhecimento acerca da doença mental, para além de contribuir para a redução do estigma, aumenta a literacia. O conceito de literacia em saúde mental, na atualidade, refere-se a: entender como obter e manter a saúde mental positiva; compreender transtornos mentais e os seus tratamentos; diminuir o estigma relacionado a transtornos mentais; melhorar a eficácia da procura de ajuda (saber quando e onde procurar ajuda e desenvolver competências destinadas a melhorar os cuidados de saúde mental e as capacidades de autogestão) (Kutcher et al., 2015 as cit in Loureiro & Freitas, 2020).
A aprendizagem em saúde mental visa não só a aquisição do conhecimento para a atuação nesse campo, mas, de igual modo, a desconstrução de ideias pré-concebidas e a criação de condições para que novos conceitos, conhecimentos e atitudes possam se desenvolver (Mendes, et al., 2018; Thongpriwan et al, 2015). Em Portugal, o estudo das atitudes perante a doença mental também tem sido alvo de investigação no público em geral, nas famílias das pessoas com doença mental, nos estudantes, particularmente em estudantes de enfermagem, bem como nos profissionais de saúde (Ramos, 2021; Marques et al., 2010; Querido et al., 2020; São João et al., 2017).
O estudo de Marques et al. (2010) comparou as atitudes face à doença mental dos diferentes estudantes de cursos de saúde, com recurso à escala Attribution Questionnaire (AQ-27) de Corrigan et al. (2003), revelando a presença de estigma acentuado, com predominância de estereótipos de pena, coação, perigosidade, evitamento, medo, segregação e ajuda. As atitudes estigmatizantes diminuíram com o decorrer do curso, aparentemente devido ao contato com pessoas com doença mental. A problemática em questão também tem sido estudada nos estudantes de enfermagem (Querido et al., 2020; Querido et al., 2016). Os estudantes de enfermagem trazem uma série de atitudes pré-concebidas em relação à doença mental, antes de iniciar o seu percurso académico. Numa fase mais inicial partilham de conceções estigmatizantes que poderão influenciar as suas aprendizagens, o desenvolvimento de competências e, futuramente, a prestação de cuidados enquanto enfermeiros (Martinho et al., 2014).
O estudo de Wedgeworth et al. (2019) confirma as perceções negativas dos estudantes de enfermagem em relação a pessoas com doença mental, o medo de interação com estes e a preocupação em aprender como comunicar. Contudo, estudos apontam que os estudantes de enfermagem que têm uma experiência pessoal de doença mental através de família ou amigos ostentam perspetivas e opiniões de maior aceitação (Granados-Gámez et al., 2017). Frequentemente, os estudantes de enfermagem, antes de iniciarem o ensino clínico em saúde mental, descrevem uma série de emoções tais como ansiedade, medo, inquietação e rejeição. Estas encontram-se relacionadas com mitos, estereótipos e atitudes negativas e ignorância ou ideias pré-concebidas sobre possíveis episódios de agressividade com que se podem vir a deparar (Estevez et al., 2017, as cit in Querido et al., 2020).
Embora alguns estudos enfatizam a importância da componente teórica na melhoria das atitudes perante as pessoas com doença mental (Happell et al., 2019), outros demonstraram que as atitudes com base na experiência direta são os determinantes mais importantes (Happell et al., 2019; Jingjing et al., 2013, as cit in Granados-Gámez et al., 2017). Markström et al. (2009) corroboram esta opinião ao concluir que os estudantes revelaram menores níveis de estigmatização após o ensino clínico em saúde mental; vão mais além, ao concluir que a componente prática, pode ter, até certo ponto, um efeito desestigmatizante nas atitudes. A investigação de Querido et al. (2016) revela uma correlação negativa significativa entre os anos de frequência do curso de licenciatura em enfermagem e o estigma. Com recurso à escala AQ-27, conclui que os estudantes finalistas apresentaram menos atitudes estigmatizantes comparativamente aos iniciados, relacionada, provavelmente, com a educação na Escola de Saúde e com o contacto com as pessoas com doença mental ao longo dos anos. Querido et al. (2020) salientam a importância de intervenções junto dos estudantes, associando a educação e o contato como uma estratégia mais eficaz no combate ao estigma. De acordo com os mesmos autores é fundamental lidar com atitudes negativas, sentimentos desagradáveis e ansiedade dos estudantes de enfermagem, relativos à pessoa com doença mental, antes do seu primeiro contacto com estas em contexto clínico, promovendo experiências educacionais que desenvolvam interesse e competência na área da prestação de cuidados em saúde mental.
Metodologia
Foi realizado um estudo quantitativo, descritivo, correlacional, transversal. A população selecionada englobou os estudantes de enfermagem de uma Escola Superior de Saúde da região norte e a amostra foi selecionada por um método de amostragem não probabilística de conveniência. Foram colocadas as seguintes hipóteses:
H1: Existe correlação entre a frequência das unidades curriculares de Saúde Mental e Psiquiatria e as atitudes dos estudantes de enfermagem perante a pessoa com doença mental;
H2: Existe correlação entre a familiaridade e contato próximo com pessoas com doença mental e as atitudes dos estudantes de enfermagem perante a pessoa com doença mental.
Considerando a finalidade deste estudo, o Attribition Questionnaire (AQ-27) criado por Corrigan et al. (2003) foi considerado o instrumento mais adequado, visto estar projetado para medir o estigma público em relação à doença mental, já estar traduzido e validado para Portugal, assim como, já ter sido utilizado em populações semelhantes à do presente estudo, quer na sua versão original, quer na versão portuguesa (tem apresentado boas propriedades psicométricas). Assim, a colheita de dados foi realizada através de um questionário de autopreenchimento, disponibilizado através da plataforma on-line Microsof Forms®, aplicado durante os meses de maio e julho de 2021. O referido questionário era constituído por duas partes: a primeira com questões sociodemográficas e a segunda com a versão Portuguesa do Attribution Questionnaire (AQ-27) (Corrigan et al., 2003), traduzido e validado por Sousa et al. (2008). A parte sociodemográfica recolheu dados relativos a: género, idade, estado civil, relação com a Escola Superior de Saúde, ano e semestre do curso, estatuto trabalhador estudante, experiência profissional na área da saúde mental e psiquiatria, se tem familiar ou não familiar com doença mental, relação com a pessoa e regularidade de contacto. O AQ-27 permite a avaliação das atitudes face à pessoa com doença mental, baseando-se em nove estereótipos relacionados com as pessoas com doença mental: Responsabilidade (pessoas com doença mental podem controlar os seus sintomas e são responsáveis por ter a doença), Pena (pessoas com doença mental são dominadas pelo seu próprio transtorno e, portanto, merecem preocupação e pena), Irritação (pessoas com doença mental são culpadas por terem a doença e provocam ira e irritação), Perigosidade (pessoas com doença mental não estão seguras), Medo (pessoas com doença mental são perigosas), Ajuda (pessoas com doença mental precisam de assistência), Coação (pessoas com doença mental devem participar na gestão do tratamento), Segregação (pessoas com doença mental são enviadas para instituições localizadas longe da comunidade) e Evitamento (pessoas com doença mental não vivem em sociedade) (Corrigan et al, 2003). O AQ-27 é composto por uma vinheta sobre um paciente com esquizofrenia, seguida de 27 afirmações que serão pontuadas numa escala tipo Likert de 9 pontos, em que 1 corresponde a “nenhum ou nada” e o valor 9 a “muito ou completamente”. Os autores associaram alguns destes construtos a atitudes discriminatórias (Responsabilidade, Perigosidade, Medo, Irritação, Coação, Segregação e Evitamento) e os outros a atitudes de proximidade e assistência (Ajuda e Pena). Cada um destes fatores tem uma pontuação possível de 3 a 27. Os itens nos fatores Ajuda e Evitamento recebem pontuação inversa. Os resultados são calculados considerando os valores médios (não a soma deles) obtidos para os itens que compõem cada um dos fatores (Responsabilidade, Perigosidade, Medo, Irritação, Coação, Segregação, Evitamento, Ajuda e Pena). Quanto maior a pontuação do fator maior a sua contribuição para o estigma. Considera-se um nível de estigma baixo se a pontuação obtida for inferior a 11, moderado em pontuações entre 12 a 19 e estigma elevado se os valores obtidos forem superiores a 20 (Corrigan et al., 2003). Este questionário contém várias vinhetas alternativas, correspondendo a variações nas características da doença mental avaliada, principalmente quanto à gravidade. Essas vinhetas alternativas permitem correlacionar o estigma com variáveis como a Perigosidade ou a Responsabilidade. Atendendo ao objetivo deste estudo selecionou-se a vinheta mais neutra e cuja finalidade se direciona apenas à avaliação do estigma, assim a utilizada foi a seguinte: "O José é um homem com 30 anos de idade, solteiro e com esquizofrenia. Às vezes ouve vozes e fica perturbado. O José vive sozinho num apartamento e trabalha como estafeta num grande escritório de advogados. Já foi internado seis vezes devido à sua doença".
Após a obtenção da autorização do Conselho de Direção da Escola Superior de Saúde onde foi realizado o estudo, procedeu-se à recolha de dados através do envio de email convite para participação no estudo e com a hiperligação para o questionário online em formato Microsoft Forms®. No sentido de garantir a proteção dos dados pessoais foi solicitada colaboração ao Conselho de Direção da Escola Superior de Saúde para a disseminação desse e-mail convite pelos estudantes. A introdução ao questionário integrou o consentimento informado, garantindo o tratamento ético dos participantes, a confidencialidade dos dados pessoais e respetivo anonimato, respeitando a Declaração de Helsínquia. A garantia da participação livre e voluntária foi obtida através da resposta a uma questão de carácter obrigatório, em que só acediam aos questionários os estudantes que respondessem afirmativamente considerando estar informados e aceitar participar no estudo. O estudo teve parecer favorável da Comissão de Ética de uma Escola Superior de Saúde (Parecer nº 026/2020) e encontra-se inscrito na Unidade de Investigação de uma Escola Superior de Saúde da região norte do país. A utilização do AQ-27 encontrava-se previamente autorizada pelo autor da tradução e validação para a população portuguesa.
Para a análise estatística dos dados utilizou-se o programa estatístico Statistical Package for Social Sciences (SPSS) versão 26, recorreu-se à estatística descritiva e inferencial. A normalidade dos dados foi avaliada pelo teste de Shapiro-Wilk. Para as correlações foi usado o teste paramétrico ANOVA, quando existe normalidade na distribuição da variável; quando não estavam cumpridos os pressupostos dos testes paramétricos (normalidade e homogeneidade) foi realizado o teste não paramétrico Kruskal-Wallis. O nível de significância foi estabelecido em p <0,05.
Resultados
Obtiveram-se 47 respostas aos questionários, o que correspondeu a uma taxa de resposta de 25,1%. Os dados de caraterização sociodemográfica dos participantes apresentam-se na tabela 1.
Variável | Operacionalização | % | n |
---|---|---|---|
Género | Masculino Feminino | 2,1 97,9 | 1 46 |
Estado civil | Casado Solteiro União de facto | 4,3 91,5 4,3 | 2 43 2 |
Idade | 18 - 22 anos 23 - 27 anos 28 - 32 anos 33 - 37 anos 38 - 42 anos 43 - 47 anos | 78,7 8,5 2,1 4,3 4,3 2,1 | 37 4 1 2 2 1 |
Semestre letivo | 2.º Semestre 4.º Semestre 6.º Semestre 8.º Semestre | 38,3 34,0 17,0 10,6 | 18 16 8 5 |
Estatuto trabalhador-estudante | Não Sim | 74,5 21,3 | 35 10 |
Em síntese, verificou-se que a maioria dos participantes eram do género feminino (97,9%, n=46) e 78,7% (n=37) eram solteiros. Em relação à idade, 72,4% (n=34) dos inquiridos apresentaram idade entre os 18 e 22 anos, sendo a idade média de 22 anos (DP=6,56). A maior parte dos participantes encontrava-se a frequentar o segundo semestre (38,3%, n=14). Da totalidade da amostra verificou-se que 21,3% (n=10) eram trabalhadores-estudantes. Verificou-se que cerca de 12,8% (n=6) dos participantes já tinham exercido funções na Área da Saúde Mental e Psiquiatria. Relativamente à questão se tem algum familiar com doença mental, 42,6% (n=20) respondeu afirmativamente, sendo o grau de parentesco com mais relevância o pai ou mãe (10,6%, n=5). No que diz respeito a “outra” relação familiar destaca-se o parentesco com a avó (4,3%, n=2) e a tia (6,4%, n=3). Dos que responderam ter algum familiar com doença mental, a maior percentagem (17,0%, n=8) referiu contactar diariamente com essa pessoa.
Por fim, à questão se conhece alguém, não familiar, com doença mental, 68,1% (n=32) respondeu afirmativamente, a maioria (31,9%, n=15) referiu que a relação com essa pessoa não familiar era de vizinho, seguida de amigo (17,0%, n=8), em que a maior percentagem (31,9%, n=15) referiu contactar raramente com essa pessoa e 10,6% (n=5) referiu semanalmente.
O AQ-27 avalia 9 dimensões das atitudes estigmatizantes, cujos valores globais revelaram a presença de um estigma moderado, apresentados na tabela 2.
Média | Desvio Padrão | Mínimo | Máximo | |
---|---|---|---|---|
Responsabilidade | 7,1277 | 0,40535 | 3 | 13 |
Pena | 17,4681 | 0,74616 | 5 | 27 |
Irritação | 6,8936 | 0,55522 | 3 | 18 |
Perigosidade | 8,1489 | 0,68415 | 3 | 23 |
Medo | 7,9149 | 0,70732 | 3 | 23 |
Ajuda | 23,3191 | 0,45835 | 16 | 27 |
Coação | 23,3191 | 0,45835 | 16 | 27 |
Segregação | 7,7447 | 0,68853 | 3 | 25 |
Evitamento | 18,8511 | 0,83015 | 8 | 27 |
TOTAL | 13,4208 | 0,614842 |
Na análise ao conjunto dos estudantes, ilustrada na tabela 2, verificou-se um menor estigma na categoria Irritação e maior estigma relativamente à Ajuda e Coação. Foram também observados níveis elevados de estigma na Pena e Evitamento, com valores mínimos de 5 e 8, respetivamente e máximos de 27.
De acordo com os valores do teste de normalidade de Shapiro-Wilk (p<0,05) verificou-se que não existia normalidade na distribuição das categorias Irritação, Perigosidade, Medo, Ajuda, Coação, Segregação e Evitamento, pelo que se procedeu à realização do teste de correlação não paramétrico Kruskal-Wallis.
Relacionando os níveis de estigma com o semestre de curso verificou-se que os estudantes numa fase inicial apresentavam valores superiores de estigma em todas as categorias. O teste de Kruskal-Wallis mostrou que há efeito do semestre do curso sobre as categorias Irritação [X2 (3)=14,416; P=0,002], Perigosidade [X2 (3)=11,650; P=0,009] e Medo [X2 (3)=12,523; P=0,006]. A comparações post hoc mostraram diferenças significativas nas categorias referidas entre o 4.º e o 6.º semestre.
Para as dimensões Pena e Responsabilidade, pela aplicação do teste de correlação paramétrico ANOVA, verificou-se existir efeito de semestre na Pena [F (3,43)=5,471; P=0,003] mas não na Responsabilidade. O teste de comparações post-hoc de Teste de Tukey mostrou que a dimensão Pena dos estudantes do 2.º semestre era diferente do 8.º semestre, assim como, entre os estudantes do 4.º semestre e do 8.º semestre.
Relativamente aos estudantes com experiencia prévia na área da saúde mental e psiquiatria, o teste de Kruskal-Wallis mostrou que há efeito do grupo sobre as dimensões: Irritação [X2 (1)=1,974; p=0,160], Perigosidade [X2 (1)=1,370; p=0,242], Medo [X2 (1)=1,967; p=0,161], Ajuda [X2 (1)=0,189; p=0,664], Coação [X2 (1)=0,189; p=0,664], Segregação [X2 (1)=0,597; p=0,440], Evitamento [X2 (1)=0,388; p=0,533]. Verificando-se uma redução significativa do estigma nestas dimensões, em relação aos que nunca trabalharam na área. A ANOVA mostrou que as dimensões Responsabilidade e Pena não sofreram efeito neste grupo.
O teste de Kruskal-Wallis mostrou que há efeito do grupo que tem familiar com doença mental na dimensão Irritação [X2 (1)=4,526; p=0,033] e que não existe efeito da regularidade de contacto em nenhuma dimensão. O mesmo teste mostrou não existir efeito de grupo que conhece alguém, não familiar, com doença mental em qualquer das dimensões.
Discussão
A amostra recolhida é limitada no que se refere à representatividade da população de estudantes de enfermagem, contudo as características sociodemográficas, à semelhança de outros estudos, revelaram um predomínio de indivíduos do sexo feminino, jovens adultos e solteiros. Os próprios estudantes de enfermagem compartilham estereótipos e conceções estigmatizantes sobre a doença mental que poderão influenciar as suas aprendizagens e o desenvolvimento das suas competências específicas para a prestação de cuidados de Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiatria. Para além disso, é uma das áreas menos preferidas por esses estudantes como possibilidade de carreira profissional (Mendes et al., 2018).
Na avaliação inicial verificamos a presença de estigma moderado por parte dos estudantes de enfermagem, em que a Ajuda e a Coação foram as atitudes negativas com maior relevância. Também a Pena e o Evitamento foram reveladores de estigma, o que é corroborado pelo estudo de Granados-Gamez et al. (2017) que utilizaram a mesma escala e obtiveram resultados idênticos.
A dimensão Pena, influenciada e relacionada com o cariz protetor, despoleta nos estudantes de enfermagem atitudes de simpatia e paternalismo, apoiada na ideia de que pessoas com doença mental são dominadas pela sua patologia, pelo que carecem de preocupação e pena (Querido et al., 2016). Este fato pode espelhar a baixa literacia em saúde mental da amostra, uma vez que esta atitude negativa é sustentada na literatura pela falta de informação.
Todavia, na análise dos dados obtidos, observa-se diferenças entre os níveis de estigma dos estudantes do 2.º ao 8.º semestre, o que poderá atestar a diminuição das atitudes estigmatizantes ao longo do curso. Verifica-se também uma redução na Pena entre o 2.º semestre e o 8.º semestre, bem como entre o 4.º e o 8.º semestre, o que pode ser explicado quer pela passagem pela teoria quer pelo ensino clínico na área da saúde mental, uma vez que, neste estabelecimento de ensino, a unidade curricular de saúde mental e psiquiatria é ministrada no 5.º semestre e o ensino clínico no 6.º semestre.
Ao analisarmos a influência do ensino clínico nas atitudes dos estudantes de enfermagem, verifica-se um decréscimo com predominância nos domínios Pena, Irritação, Perigosidade e Medo, resultados semelhantes aos encontrados nos estudos de Bingham & O’Brien (2017) e de Martinez-Martinez et al. (2019), com a aplicação da AQ-27 antes e após uma experiência educativa e clínica. De facto, segundo Querido et al. (2016), os estudantes finalistas expressam menos Pena, Perigosidade, Medo e Evitamento, aparentemente devido ao contato com pessoas com doença mental.
Estes resultados parecem-nos indicar que o ensino clínico contribui para uma perspetiva mais positiva, o que é corroborado por vários estudos, na medida em que o ambiente prático e a formação promovem uma mudança nas atitudes dos estudantes, afetando positivamente e de forma significativa as suas perceções e atitudes face à pessoa com doença mental (Querido et al., 2020; Querido et al., 2016). Particularmente, autores como Markström et al. (2009) concluem que, após a realização da prática clínica, os estudantes consideram as pessoas com doença mental menos perigosas do que julgavam ser.
Contudo, atitudes como a Ajuda, Coação, Segregação e Evitamento não sofreram alterações ao longo dos semestres, o que nos permite afirmar que o ensino teórico e prático não teve qualquer influência nestas atitudes negativas. Este fato poderá indicar, por um lado, atitudes de proximidade e assistência para com a pessoa com doença mental, mas, por outro, a permanência de estereótipos negativos, como o contágio, a imprevisibilidade do comportamento, a incompetência e a infantilidade, conduzindo ao distanciamento social destes indivíduos. Querido et al. (2020), que no seu estudo verificaram um aumento de estereótipo relativos à Ajuda e Coação, vão mais além e referem que tal pode indicar um sentimento de pena e de controlabilidade, influenciada pelos contextos clínicos, ainda estruturados nos modelos mais tradicionais e o desempenho do papel de supervisores de estudantes. A Coação foi outra dimensão que nos parece pesar nas atitudes negativas dos estudantes e que não sofreu influência dos semestres do curso. Acreditamos que tal facto pode dever-se à pressão dos estudantes de enfermagem sobre as pessoas com doença mental, no incentivo constante e permanente à adesão ao tratamento, pois, tal como referem Querido et al. (2016), é dado ênfase à importância da adesão ao tratamento ao longo do curso de enfermagem, como medida de obtenção de ganhos em saúde. Outro fator que poderá estar a influenciar os resultados nos domínios da Ajuda, Coação, Segregação e Evitamento seria a experiência que os estudantes tiveram nos contextos clínicos, as atitudes que observaram nos enfermeiros perante a pessoa com doença mental. Pode ainda ser reflexo do modelo hospitalocêntrico do cuidado à pessoa com doença mental e do próprio ensino de enfermagem. Poderá ser outro fator influenciador, o papel que os supervisores clínicos desempenharam no desenvolvimento do pensamento crítico-reflexivo e na desconstrução das ideias pré-concebidas dos estudantes no que se refere à assistência à pessoa com doença mental, a sua participação na gestão do tratamento, a necessidade de institucionalização destas pessoas e a sua integração na sociedade (Ramos, 2021) .
À semelhança do que acontece na prática, o ensino teórico na unidade curricular de Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica também parece influenciar as atitudes negativas dos estudantes. Se analisarmos o programa do plano de estudos praticado na escola onde decorreu o presente estudo, deparamo-nos com conteúdos programáticos específicos relativos à doença mental, como a exposição dos atuais problemas e necessidades em saúde mental, facilitando a redução do estigma, o que poderá ter contribuído para uma redução das atitudes de irritação, perigosidade, medo e pena. Para além disso, a alternância entre períodos de ensino na escola com aulas teóricas, teórico-práticas e práticas laboratoriais e períodos de ensino clínico constituem momentos privilegiados para o desenvolvimento de aprendizagens, consolidação de conhecimentos e reflexão sobre as práticas. Em concordância com a bibliografia, estudos demonstraram que os alunos tendem a ter atitudes mais favoráveis em relação à pessoa com doença mental quando têm mais horas de preparação teórica nessa área científica (Mendes et al., 2018). Contudo, a educação formal por si só pode não ser suficiente para conduzir uma mudança nas atitudes, pelo que a associação com a prática clínica potencia o desenvolvimento de necessidades pessoais com base no que foi experienciado na prática com pessoas com doença mental (Bingham & O'Brien, 2017).
Granados-Gamez et al. (2017) desenvolveram um estudo semelhante, também com recurso ao AQ-27, que contrapõem as hipóteses por nós colocadas, uma vez que revelou não existir redução de estigma em nenhum fator após o contato quer com a teoria quer com a prática clínica.
Relativamente aos resultados das atitudes estigmatizantes em função do nível de contato com familiar com doença mental, verifica-se uma redução apenas no fator Irritação. A literatura aponta que a familiaridade contribui, na generalidade, para atitudes mais positivas, em particular no que respeita à Pena, encontrando-se negativamente relacionada com sentimentos de raiva e medo (Corrigan et al., 2003). Os mesmos autores defendem que a familiaridade predispõe ainda a atitudes de Ajuda e Evitamento para com a pessoa com doença mental, diminuindo o nível de estigma quando a familiaridade aumenta.
Inversamente ao verificado na familiaridade, o contato com pessoas não familiares com doença mental não produz efeito no grupo em nenhuma dimensão, ao contrário do apontado em vários estudos (Granados-Gamez et al., 2017) e colocado por nós como hipótese. Resultados semelhantes foram obtidos no estudo de Ferreira (2018), ao apontar que a convivência com pessoas com doença mental por si só não parece constituir condição suficiente para produzir alterações nas atitudes.
Os estudantes com experiência profissional prévia em saúde mental apresentaram redução do estigma na maioria das dimensões, com exceção da Responsabilidade e Pena. Tal pode ser explicado pelo fato do contato em termos práticos surtir um efeito passível de mudar crenças e atitudes perante a pessoa com doença mental, conduzindo a uma melhor disposição para cuidar dessa população (Granados-Gamez et al., 2017). O estudo de Thongpriwan et al. (2015) aborda a questão da experiência prévia em saúde mental e revela que os estudantes que têm esta experiência apresentam melhor preparação e menor ansiedade em relação à doença mental, mas contrapõem os nossos resultados ao afirmar que não existem diferenças significativas no que respeita a estereótipos negativos em relação aos que não tiveram experiência prévia. O estudo levado a cabo por Martinez-Martinez et al. (2019) também contrapõe os nossos resultados, afirmando não existir influencia desta variável na redução do estigma.
Conclusão
Apesar das limitações do estudo foi possível conhecer as atitudes dos estudantes de enfermagem perante a pessoa com doença mental, assim como, a correlação existente entre a frequência das unidades curriculares de Saúde Mental e Psiquiatria e as suas atitudes perante a pessoa com doença mental. Assim, da análise dos resultados conclui-se que a influência de conhecimentos teóricos e práticos na área da saúde mental e psiquiatria foi a que se revelou mais significativa na redução das atitudes estigmatizantes dos estudantes.
O desenvolvimento de estratégias de redução de estigma numa fase precoce do curso de enfermagem, poderia impulsionar o autoconhecimento e a autoavaliação das crenças e atitudes dos estudantes de enfermagem, incentivando e proporcionando espaços de reflexão, com partilha de sentimentos e ideias. A integração de estudantes em programas de luta contra o estigma e envolvimento ativo em processos de mudança de atitudes, recentemente estimulados com a criação do Observatório de Estigma na Doença Mental, permitiria obter precocemente conhecimentos sobre a temática, bem como a proximidade com pessoas e grupos com doença mental em espaços abertos. Os resultados obtidos podem também refletir a necessidade de mudança do paradigma conceptual das unidades curriculares de Saúde Mental contextualizado com uma prática de luta contra o estigma e discriminação, assim como de mudança de representações e atitudes face à doença mental, que espelhe a centralidade na pessoa com doença mental e promova a redução de atitudes negativas, como a ajuda, coação, segregação e evitamento, como observado no nosso estudo. Para além disso, a influência que o enfermeiro supervisor exerce sobre os estudantes é fundamental na modificação de atitudes discriminatórias e estereótipos que os estudantes possam apresentar, uma vez que estes internalizam os valores e comportamentos a que estão expostos. Assim, acreditamos que a reflexão individual de cada enfermeiro possa influenciar os estudantes em contexto de ensino clínico.
Ao longo do estudo verificou-se que o número reduzido da amostra se revelou uma limitação, na medida em que poderá ter influenciado os resultados obtidos, admitindo também a possibilidade de erro estatístico. Para além disso, a distribuição não uniforme da amostra pelos vários semestres poderá ter condicionado os resultados. Acreditamos também que o preenchimento dos questionários on-line pode ter constituído uma limitação, na medida em que pode ter condicionado a própria motivação dos estudantes no seu preenchimento e, assim, limitado o tamanho da amostra. Os resultados desta investigação demonstram que apesar dos estudantes de enfermagem terem contacto com a área da Saúde Mental e proximidade com pessoas com doença mental em Ensino Clínico, só por si não é condição suficiente para a redução de estigma, podendo este influenciar o seu desempenho na prestação de cuidados. Considerando-se importante a implementação de estratégias de luta contra o estigma desde o início do curso de Enfermagem, no sentido de promover o desenvolvimento pessoal dos estudantes, reduzindo os preconceitos e receios sobre estas pessoas, aumentando a sua segurança e motivação na prestação de cuidados. Desta forma, sugere-se a continuidade de estudos sobre esta temática com inclusão de amostras mais alargadas e diversificadas, abranjam outros estabelecimentos de ensino, bem como outros cursos de saúde, a fim de se efetuar a comparação entre os estudantes das diferentes áreas da saúde, assim como, o desenvolvimento de projetos de luta contra o estigma e descriminação com integração curricular nos cursos da área da saúde, principalmente na Licenciatura em Enfermagem, com a respetiva avaliação de impacte.