1.Introdução
As políticas sociais na América Latina seguem um determinado processo político que permitiu a sua institucionalização logo na primeira metade do século XX. Esta institucionalização, dependente das dinâmicas políticas e socioeconómicas, teve, no entanto, processos e resultados diferenciados entre os diversos Estados latino-americanos. Este processo de institucionalização conta, primeiro que tudo, com o período entre guerras, segundo com a ascensão das ditaduras militares, terceiro a adoção de políticas liberalizantes e, finalmente, com o processo democrático (Filgueira, 1998, 2004; Mesa-Lago, 1994, 2012).
Paralelamente, assistiu-se à alteração de paradigma distributivo, passando-se de um sistema particularizado para outro universal e baseado em direitos (Solimano, 2005; Cortés, 2008; Hunter, 2014). Entendemos aqui o processo institucional como uma sequência descritiva e explicativa de determinados processos políticos ao longo do tempo e que podem apresentar diferentes expressões e impactos em diversos espaços. Neste sentido, as abordagens institucionalistas têm-nos ajudado a compreender como é que as organizações e as instituições estabelecem os seus objetivos e de que forma lidam com o contexto e a conjuntura (Peters 2005). A popularidade da análise institucional e do percurso histórico das instituições tem conhecido um forte desenvolvimento em diferentes disciplinas do saber.
2. Questões metodológicas
Historicamente, a análise institucionalista baseou o seu campo de ação nas dicotomias tradição-progresso e individualismo-coletivismo, espelhando tipos ideais através dos quais se descreve a evolução das instituições ou das macroestruturas (Rhodes, 2009). A análise de longos processos de adaptação tem demonstrado que as instituições tendem a dar continuidade a dinâmicas antigas mesmo em face de ruturas (Collier e Collier 1991; Hagopian 1996). Este é aliás o argumento central do institucionalismo histórico baseado na abordagem do caminho dependente. Para o institucionalismo histórico, o estudo das interações sociais acontece num contexto em que as estruturas são criações humanas e em que a vida expressa uma continuidade e um diálogo com as estruturas e o contexto envolvente (Sanders, 2009). Neste sentido, uma crise é entendida como uma confluência de eventos e de pressões que produzem novas formas de fazer e agir, sem que necessariamente se alterem as instituições, as tradições e os padrões organizacionais na sua totalidade (Collier e Collier, 1991; Peters, 2005). Esta abordagem institucionalista tem um historial teórico que remonta à falta de estudos acerca da fraca adaptação das instituições depois de largos anos de estabilidade, ou sobre o processo de adaptação das instituições perante os novos movimentos políticos e sociais das décadas de 1960 e 1970. Interessou ultrapassar-se as leituras pluralistas e behavioristas que entendiam as instituições públicas como caixas negras que processam exigências sociais e que respondem através de processos de decisão, contrapondo-as com a análise da construção, manutenção e adaptação das instituições.
Para lá do estudo dos interesses pelas abordagens da escolha racional, interessa ao institucionalismo histórico estudar a força mobilizadora das ideias dos indivíduos e grupos que pretendem alterar os esquemas institucionais (Sanders, 2009). É neste âmbito que Theda Skocpol (1992) estuda a ética cultural maternal e a organização de movimentos feministas por forma a compreender o sucesso das mulheres em influenciar o desenho das primeiras políticas sociais nos EUA. Uma vez implementadas as novas políticas e as instituições e organizações que as compõem, as coligações, as macroestruturas e os conflitos interclassistas são também eles transformados pela aplicação e interpretação do novo pacote de medidas. É neste sentido que o institucionalismo histórico tem tido um importante papel no estudo de políticas públicas, na sua continuidade e rutura, através da análise de tipo “caminho dependente” (Peters, 2005; Sanders, 2009).
O caminho dependente depreende que em períodos críticos as instituições e as organizações afetas a estas, debatem-se com a necessidade de alterar os seus valores, comportamentos e normas. No entanto, esta rutura não representa um corte total no passado. Uma nova organização que surge no lugar de outra, terá sempre presente o passado institucional e histórico daquela que a preside, mantendo muitas vezes os formatos organizacionais, as pessoas e os mecanismos de decisão. Este é basicamente o princípio do “Leopardo” de Giuseppe de Lampedusa para quem tudo muda para tudo ficar na mesma. Neste esquema não é alheio o estudo de sequências de políticas. Nestas teremos de incluir uma análise das continuidades e das ruturas presentes no desenho de políticas públicas, ou seja, teremos de definir períodos críticos que balizem as ruturas e que redefiniram políticas, normas, valores, instituições e organizações.
O estudo de sequências depreende a análise empírica da ordem cronológica das políticas públicas, tendo como objetivo compreender a sua adoção contextual e conjuntural (Abbott e DeViney, 1992). Para o esforço de sistematização e comparação do presente trabalho, teremos em conta a hipótese de que a sequência de políticas sociais na América Latina segue três modelos diferenciados mas intercruzados e interdependentes: (1) casos nacionais, (2) difusão regional e (3) processos de nível mundial (Abbott e DeViney, 1992). No primeiro modelo, as sequências são contextuais e demonstram diferentes conflitos nacionais. Nesta linha, Abbott (1984) considera que cada sistema apresenta as suas idiossincrasias, tendo a literatura clássica da política social identificado um modelo teórico sequencial de pacotes de políticas: (i) compensações para trabalhadores formais, (ii) benefícios de maternidade e doença, (iii) apoios na invalidez, velhice ou morte (iv) pensões familiares e (v) subsídio de desemprego. Para Abbott e Deviney (1992), este modelo é insuficiente na explicação de difusão regional e mundial de programas, principalmente quando empiricamente se observam picos e padrões na adoção de certo tipo de pacotes de política social.
A existência de padrões regionais ou processos de nível mundial demonstram o peso dos fatores de difusão de políticas bem-sucedidas entre Estados vizinhos ou a adoção de políticas e programas oriundos de organizações internacionais, não-governamentais ou supranacionais. No entanto, e contrariamente a Abbott e DeViney (1992), entendemos que estes três modelos de sequências podem coexistir tanto na implementação de novos programas, como na reformulação de outros existentes. Neste sentido, nesta secção pretendemos numa primeira fase introduzir o estudo de sequências de políticas nos casos brasileiro e uruguaio. A análise deste período permite-nos perceber quais as estratégias utilizadas no processo político que levou à adoção de políticas sociais, comparando-se os caminhos escolhidos em ambos os países. Importa perceber qual o caminho e as estratégias escolhidas nos dois países através da análise do diálogo entre a contestação social, a formação de grupos e a adoção de políticas sociais. Por forma a balizar os períodos críticos que levaram à alteração paradigmática das sequências de políticas sociais no Brasil e no Uruguai, teremos em conta quatro momentos históricos definidores de modelos de desenvolvimento (Filgueira, 1998, 2004; Patrício, 2012): o período entre 1930 e 1970 enquanto “idade de ouro” do desenvolvimentismo latino-americano, de 1970 a 1990 com a emergência e queda das ditaduras militares, 1990 a 2000 com a ascensão do neoliberalismo no subcontinente e, finalmente, a última década e meia e o período pós-Consenso de Washington.
3.Políticas sociais na América Latina: legado e continuidade
O estudo de políticas sociais tem partido de um consenso generalizado sobre a sua operacionalização conceptual. No entanto, o estudo de sequências de políticas, ou seja, o estudo da sequência da adoção de políticas sociais não tem sido devidamente feito, restando a dúvida sobre que tipos de políticas sociais são adotados em diferentes períodos e porquê (Abbott e DeViney, 1992). O estudo da consolidação de políticas sociais tem-se focado na identificação de regimes explicativos (Esping-Andersen, 1990), tendo em atenção não só o Estado mas também outros atores e instituições. Neste caso, os modelos de políticas redistributivas incluem uma série de arranjos institucionais com efeitos na estrutura do Estado (Evans, Rueschemeyer e Skocpol, 1985; Collier, 1999), na programática dos partidos e na ascensão e participação de movimentos sociais (Castles et al., 2010; Huber & Stephens, 2011).
As teorias sobre o desenvolvimento de políticas sociais têm-se concentrado, grosso modo, em três perspetivas: uma centrada na lógica da industrialização, outra no Estado e na sua capacidade de implementação de programas sociais, e uma terceira focada nos recursos e no poder dos grupos organizados onde se incluem partidos, sindicatos e movimentos sociais (Castles et al., 2010; Huber e Stephens, 2011). De entre as perspetivas teóricas adotadas na análise de políticas sociais, escolhemos, por um lado, a abordagem centrada no Estado com foco na capacidade de implementar e aprofundar programas sociais, e por outro, a abordagem nos recursos e no poder para grupos organizados e classes. Neste sentido, queremos perceber de que forma a consolidação de políticas sociais é demonstrada tanto pela resistência política e popular à mudança como pela formação de consensos políticos. A luta pelas políticas sociais, enquanto uma luta centrada na distribuição, demonstra a importância do poder organizacional dos grupos que irão beneficiar dessas políticas. Neste contexto, utilizamos uma abordagem teórica político-institucional que nos permita incluir a análise do polity e das determinantes políticas no processo de consolidação das políticas/programas sociais (Amenta, 2003; Hicks et al., 1995).
Na América Latina, a alteração das estruturas dos Estados, aliada ao processo de democratização, permitiu a ascensão de novos grupos e o estabelecimento de uma lógica redistributiva (Collier, 1999; Evans et al., 1985). Estes grupos de pressão possuem contestação autónoma e servem como intermediários políticos, tendo efeitos no esquema de partilha de poder e uma determinada orientação política, exigindo dos Estados o estabelecimento e a consolidação de políticas redistributivas com alcance para diferentes grupos sociais (Collier, 1999; Huber e Stephens, 2011). Os regimes de políticas sociais são configurações institucionais de esquemas de políticas sociais, ou seja, “os tipos e as estruturas dos programas que providenciam transferências de dinheiro ou ainda bens de forma gratuita ou subsidiada para a população” (Huber e Stephens, 2005, 2). Num regime de políticas sociais importa ressaltar a cobertura dos programas per capita, as regras que estabelecem os beneficiários, a magnitude dos benefícios e as formas de financiamento. Esta tipologia permite-nos classificar estes regimes sob o ponto de vista institucional, diferenciando-se dos regimes de Estado Social ou de bem-estar social, onde subsistem diferentes programas e onde a universalidade das políticas é limitada.
Para Huber e Stephens (2005), um regime de Estado Social é uma configuração institucional consolidada com um determinado legado de políticas e programas, variedade e cobertura universal, regras de aplicação universais, benefícios que permitam o combate à pobreza e uma base financeira segura ligada ao sistema de impostos. Paralelamente, os regimes de políticas sociais só podem ser compreendidos em sistemas políticos democráticos com estruturas capitalistas de distribuição de rendimentos, bens e serviços públicos. É neste âmbito que se têm estudado as origens políticas das políticas sociais (Skocpol, 1992).
Para a América Latina, Filgueira (2004) identifica três tipos de regime baseados no nível de cobertura e no princípio da universalidade: (1) universalista-estratificado incluindo os casos da Argentina, Chile, Uruguai e Costa Rica; (2) dual, com o Brasil, México e Peru; e (3) os de exclusão, existentes na Bolívia, Guatemala, Honduras, El Salvador e Nicarágua. Nos regimes universalistas estratificados, quase toda a população está coberta por um sistema de segurança social, com serviços básicos de saúde e acesso universal à educação primária. No segundo modelo, os sistemas de segurança social são mais restritivos cobrindo cerca de metade da população. Finalmente, no modelo de exclusão, os sistemas de segurança social oferecem cobertura a 8 cerca de um quarto da população e o acesso à saúde é bastante restritivo (Filgueira, 2004). A institucionalização de regimes de políticas sociais na América Latina encontra o peso dos fatores contextuais, sejam eles sociais, económicos ou políticos que enformam a constituição, a continuidade e as ruturas na formulação de políticas. Para uma discussão dos diferentes regimes de políticas sociais, utilizando-se os casos do Brasil e do Uruguai como ilustrativos, teremos em conta a seguinte classificação:
O regime corporativo (1930-1970): o período de institucionalização dos primeiros programas de caráter restritivo e direcionado para certos setores e classes;
O regime autoritário-reestruturado (1970-1995): coincidente com o período das ditaduras militares, a redemocratização e o caráter de reestruturação financeira dos programas;
O regime neodesenvolvimentista (1995- ): período de renovação institucional com tentativa de inclusão do princípio de universalidade.
4.Da institucionalização à reestruturação
A vigência do regime corporativo atravessa quatro décadas de um modelo de desenvolvimento cunhado de desenvolvimentista assente no modelo macroeconómico de substituição de importações (Ffrench-Davis, 2005; Patrício, 2012). Neste período, os países latino-americanos assentaram as suas políticas macroeconómicas num modelo desenvolvido por Raúl Prebisch e pela CEPAL, com o objetivo de aumentar a capacidade industrial e a diminuição das importações e da dependência externa de bens, serviços e capitais (Patrício, 2012). As primeiras políticas sociais remontam à década de 1890 e é logo na década de 1910 que o Uruguai estabelece o primeiro sistema de segurança social nos governos do Presidente Battle (1903-1907 e 1911-1916). Não é coincidência que o Uruguai tenha sido o primeiro Estado latino-americano com preocupações sociais, visto que é também o país com o mais longo percurso democrático da região (Huber e Stephens, 2005). Contudo é a partir da década de 1930 que as políticas sociais ganham corpo e formalização por via do Estado cobrindo uma série de grupos e classes profissionais do setor formal da economia. No Uruguai seriam estabelecidos vários programas de pensão baseados num sistema de segurança social incipiente, mas baseado num modelo ocupacional. Foram estabelecidas a caja escolar (1896), a caja civil (1904), a caja militar (1911), a caja de empleados de servicios (1919), a caja de empleados del Jockey Club (1923), a caja de empleados bancarios (1925), a caja de industria y comercio (1928), a caja de industria, comercio y servicios públicos (1934) (Pribble, 2013). Estes diferentes sistemas correspondiam a diversos eleitorados e a classes profissionais em regimes coletáveis de impostos o que tornava simples a forma de subsídios e pensões.
Apesar de em 1919 se ter aprovado a lei nacional de pensões de velhice, apenas em 1967 a Constituição institucionalizaria o Banco de Previsón Social, criado para aglomerar os diferentes esquemas e programas de segurança social mais numerosos. O Uruguai atingiu ainda neste período uma cobertura de cerca de 90% na segurança social especialmente porque a média de ocupação no setor informal do mercado de trabalho manteve-se nos 25% e porque o desemprego urbano rondou os 7% em média durante estas quatro décadas (Mesa-Lago, 2012). Com esta configuração o sistema de financiamento permitia uma maior sustentabilidade, tornando-se o Uruguai, a par da Argentina, o Estado latino-americano com melhor performance social (Filgueira, 2004; Huber e Stephens, 2005). Paralelamente, o sistema uruguaio cobria subsídios de doença e maternidade, pensões, doença no trabalho e subvenções familiares, sendo que entre 1960 e 1970 as pensões ocupavam cerca de 70% (Mesa-Lago, 2012).
No caso do Brasil, o regime corporativo não apresenta grandes diferenças, com os sistemas fragmentados por classe profissional. No entanto, o sistema de segurança social teve em 1930 uma reformulação com o primeiro governo de Getúlio Vargas em ditadura militar a suspender a Lei Elói Chaves de 1923 que estabeleceu as Caixas de Aposentadorias e Pensões, organizadas em torno de trabalhadores em esquemas formais. Os parâmetros das caixas eram dúbios, para além de não corresponderem às necessidades dos novos sindicatos corporativos estabelecidos pelo Estado Novo (Hunter, 2014). O governo transitório de Vargas (1930-34) estabeleceria os Institutos de Aposentadorias e Pensões, organizadas em filiações por categorias profissionais e não empresariais, mantendo-se o controlo corporativo sobre sindicatos e beneficiários em regime de trabalho formal e em contextos urbanos (Hunter, 2014)1.
Finalmente, em 1966 e já em nova ditadura militar, seria criado o Instituto Nacional da Previdência Social com o intuito de transformar o sistema de segurança social fundindo todos os institutos corporativos. O apoio dos setores do trabalho formal do mercado brasileiro, tal como no caso uruguaio, foi o modelo seguido para a sustentabilidade do sistema de segurança social. Pese embora as diferenças sociais e a composição do mercado de trabalho, com o trabalho informal a ocupar mais de metade dos brasileiros (Haggard e Kaufman, 2008). Neste sistema ficavam excluídos os mais pobres e a população rural, sendo que as pensões de velhice ou invalidez não existiam dentro do sistema. Este sistema permitiu a criação de redes informais e clientelares de bens públicos para populações em risco, grupos de trabalhadores em setores informais e populações rurais. Seria com os regimes autoritários que os sistemas de segurança social e os regimes de políticas sociais transformar-se-iam para acomodar o apoio aos mais desfavorecidos, apresentando um modelo de emergência neoliberal de acordo com as reestruturações económicas e com a crise das dívidas das décadas de 1980 e 1990 (Ffrench-Davis, 2005; Huber e Stephens, 2005; Cortés, 2008; Patrício, 2012).
O modelo de inserção internacional designado de Consenso de Washington teve um profundo impacto nas estruturas macroeconómicas da região, depois do falhanço das estratégias de substituição de importações do modelo desenvolvimentista (Abel e Lewis, 2002; Patrício, 2012). O Uruguai, que sofrera uma profunda crise económica em 1955, não resolveu as consequências que derivavam da sua dependência externa, tendo em 1973 e consequência da primeira crise do petróleo, iniciado uma ditadura militar-civil que perduraria até 1985. Num período de lento crescimento económico e com défice continuado da sua balança de pagamentos, o Estado impôs um programa de austeridade com os salários reais a caírem 49% (Huber e Stephens, 2005).
A primeira reforma no setor social do Estado foi o modelo de financiamento da segurança social com a introdução de capitais privados e participação do setor empresarial nas pensões e na saúde. No entanto, o país não foi tão longe na reestruturação do setor das pensões, inclusive estabelecendo a Dirección General de la Seguridad Social em outubro de 1979 por ato institucional. Apesar de logo em 1986 ter sido reimplantado o antigo Banco de Previsón Social, o esforço de quebra dos sistemas corporativos, levaria à inclusão de programas de urgência social, com o apelo do Banco Mundial e de outras organizações internacionais para a inclusão do microcrédito e outras soluções similares de emergência social.
Também no Brasil, a quebra do regime corporativo não foi total com as continuadas caixas de previdência social com origens classistas e profissionais, mantendo-se múltiplos sistemas de pensões de invalidez e velhice, mesmo depois dos esforços de unificação para poupança de recursos durante o período de reestruturação económica. Apesar dos apelos das organizações internacionais para a inclusão de programas de emergência baseados na esperança de um milagre económico baseado na lógica da reestruturação, as políticas sociais mantiveram a divisão entre profissionais encartados e trabalhadores dos setores formais. É disso exemplo o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social alargada a apenas os contribuintes dos setores formais da economia. Estabelecido em 1974, o Instituto tinha a seu cargo a prestação de serviços de saúde meramente em caso de doença e nem sequer funcionando como estrutura de diagnóstico. No entanto, o sistema passou a incluir programas sem base contributiva e fora do sistema de segurança social. Por um lado, estabeleceu-se em 1974 a Renda Mensal Vitalícia e que funcionava como subsídio complementar a cidadãos com mais de 70 anos ou que sofriam de incapacidade e que ganhavam menos de 60% do salário mínimo; ou ainda o Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural. O estabelecimento de direitos sociais e a inclusão do princípio da universalidade na Constituição de 1988 permitiu a criação do Instituto Nacional do Seguro Social e do Sistema Único de Saúde (Huber e Stephens, 2005; Hunter, 2014). Como grande novidade, a institucionalização do Sistema Único de Saúde através da Lei Orgânica nº 8.080 estabeleceu o direito público à saúde, contrariando os processos de privatização do setor e imprimindo o princípio da universalidade no atendimento. No entanto, o Sistema Único de Saúde não teria abrangência universal de imediato, permanecendo como norma e instituição sem processo político.
5.O regime neodesenvolvimentista entre rutura e continuidade
O modelo económico do Consenso de Washington rompeu com o modelo desenvolvimentista e com o regime corporativo de políticas sociais. No entanto, e tal como temos vindo a descrever, o novo regime autoritário-reestruturado (1970-1995) não quebrou com a estratificação dos sistemas de segurança social e pensões baseados por setor e classe profissional. A grande novidade do regime neodesenvolvimentista é a tentativa de reintrodução do princípio da universalidade, permitindo-se a abrangência de programas sociais e a tímida inclusão dos setores informais do mercado de trabalho (Huber e Stephens, 2005; Mesa-Lago, 2012; Pribble, 2013). Tal como explicámos, o regime corporativo encontrava-se baseado no apoio à velhice com pensões de reforma, sem subsídios para desempregados e sistemas de saúde apenas para quem estivesse coberto pelo mercado de trabalho formal. No entanto, logo na segunda metade da ditadura militar, os problemas financeiros, a hiperinflação, a dívida pública e a crescente pobreza intensificaram os desejos políticos de alteração institucional das estruturas sociais do Estado (Hunter, 2014). Com a redemocratização, surge a oportunidade de incluir um maior número de beneficiários, o que aliado à recuperação económica, o fim da crise das dívidas, o surgimento de novos movimentos sociais e a ascensão de governos de esquerda, permitiu a universalização de programas e políticas. A heterogeneidade de programas e de putativos beneficiários levou a uma gradual transformação do sistema de segurança para um modelo de assistência social (Solimano, 2005; Cortés, 2008).
No Uruguai, esta transformação acomodou uma continuidade dos gastos em políticas sociais em percentagem do PIB, tendo sido o Estado que na década de 1990 mais apostou em gastos públicos com o setor social (Huber e Stephens, 2005). Estes valores são reforçados com a continuidade do peso maioritário do mercado de trabalho formal, diminuindo-se a economia paralela e aumentando- se as formas de financiamento sustentáveis do sistema de segurança social. Apesar da crise económica que assolou o país na década de 1980, o Uruguai, contrariamente ao Chile, não avançaria com a total privatização das pensões, a par da mobilização de movimentos e partidos, levando à adoção de sistemas mistos (Pribble, 2013). A institucionalização de um sistema misto de segurança social deu-se em 1996 no arranque do regime neodesenvolvimentista e permitiu o financiamento do sistema. No entanto, o sistema continua a incluir sistemas especiais como os trabalhadores do sistema financeiro, universitários, notários públicos e polícias (Huber e Stephens, 2005). Seria ainda no setor da saúde que a onda de privatizações continuaria no novo regime.
Tal como na Argentina, as mudanças no mercado de trabalho uruguaio reduziram as percentagens de trabalhadores cobertos por esquemas mutualistas de seguros de saúde. Ao mesmo tempo, a baixa no financiamento público de infraestruturas e programas públicos de saúde levou ao aumento de soluções privadas (Huber e Stephens, 2005). As Instituciones de Assistencia Médica Colectiva ou mutuales entrariam em colapso financeiro na década de 1990, levando à multiplicação de respostas privadas desde unidades móveis de emergência a clínicas, hospitais e programas de seguros. A solução do Estado passou pela aplicação de um sistema de saúde baseado na diferenciação por rendimentos, onde os mais pobres têm acesso universal e gratuito. No entanto, o fraco financiamento e o baixo nível de transferências do Estado não permitiria a melhoria das infraestruturas, equipamentos e de respostas. A grande novidade do novo regime passaria pela adoção de programas de transferência de renda, primeiro para trabalhadores dos setores informais e depois como princípio de aplicação aos grupos mais desfavorecidos (Lavinas, 2013). Na década de 1990 os programas de transferência de renda cobriram em média apenas 15% dos desempregados do setor informal (Pribble, 2013).
No caso do Brasil, o regime neodesenvolvimentista trouxe uma alteração ainda mais profunda do que nos mostrou a experiência uruguaia. Esta transformação mais significativa deve-se ao mercado de trabalho, à diversificação e internacionalização da economia e à heterogeneidade da população ativa gradualmente integrada nos setores formais e que passaram a contribuir para o sistema de segurança social. O Instituto Nacional do Seguro Social criado em 1990 passou a alargar-se aos empregados por conta de outrem, aos empregados domésticos por conta própria ou de outrem, os trabalhadores avulsos, os contribuintes individuais que trabalham por conta própria ou a segurados especiais como pescadores, agricultores e outros trabalhadores do primeiro setor (Huber e Stephens, 2005; Hunter, 2014). Em 1996 seria criado o Benefício de Prestação Continuada que substituiria a Renda Mensal Vitalícia, passando de programa suplementar a programa de transferência de renda equivalente a um salário mínimo mensal (Hunter, 2014). No entanto, os governos de Fernando Henrique Cardoso estabeleceriam diversas bolsas complementares em diferentes setores sociais, como a Bolsa Escola ou o Bolsa Gás, funcionando como programas de transferência de rendimentos. Face ao anterior regime de políticas sociais, estes programas são uma autêntica novidade, porquanto tinham o intuito de complementar a cesta básica das famílias brasileiras, permitindo o acesso a outros produtos, o aumento do poder de compra e o combate ao abandono escolar (González, 2015). A iniciativa do primeiro governo de Lula da Silva foi a de aglomerar estas bolsas no já famoso Bolsa Família criado em 2003. Esta iniciativa permitiu a extensão dos programas anteriores, alargando-se o espectro da luta ao abandono escolar, e incluindo o acesso a cuidados de saúde e a programas de vacinação (Hunter, 2014).
Paralelamente, com o estabelecimento do Sistema Único de Saúde como norma constitucional e princípio social, é criado em 1994 o Programa Saúde Família como iniciativa de universalização do acesso à saúde (Hunter, 2014). Por forma a alargar-se o programa foram estabelecidas parcerias com os municípios, sendo que em 2013 cerca de 95% destes já o tinham adotado. No entanto, este programa é apenas eficiente nos cuidados primários, não tendo alcance de grandes infraestruturas e equipamentos hospitalares.
6.Sequências de políticas sociais e processo político: os casos do Brasil e do Uruguai
Nos dois países, as sequências de políticas sociais seguem o mesmo modelo: (i) compensações para trabalhadores formais, (iii) apoios na invalidez e velhice, (ii) benefícios de maternidade e doença, (v) subsídio de desemprego e (iv) pensões familiares. Esta sequência (i-iii-ii-v-iv) repetida em ambos os casos, reforça o argumento da difusão regional, conquanto é visível a adoção de tipos de políticas sociais semelhantes (Abbott e DeViney, 1992). Contudo, esta adoção não corresponde a períodos históricos bem balizados, especialmente por causa dos diferentes contextos autoritários (sendo que o Uruguai apresenta um período mais longo de democracia e menos curto de ditadura militar), e o Brasil especialmente durante o Estado Novo (1930-1945) apresenta caraterísticas mais acentuadas de corporativismo devido à influência ideológica do regime, o que teve consequências na manutenção de sistemas clientelares e paralelos de distribuição de bens públicos e a necessidade de controlar os trabalhadores formais organizados em sindicatos estatais (Hunter, 2014). Este cenário faz-nos crer que as hipóteses “casos nacionais” e “difusão regional” convivem nos dois primeiros regimes de políticas sociais.
No entanto, a introdução de programas sociais e de soluções políticas oriundas de organizações internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, a partir da década de 1990, acolhe a introdução da hipótese dos “processos de nível mundial”. A introdução de programas de transferência de renda no Brasil e no Uruguai seguiu não apenas o efeito de difusão regional através da leitura sociodemográfica aproximada, como teve também apoio político, administrativo e financeiro de organizações internacionais por forma a introduzir-se princípios de universalidade, transparência administrativa na aplicação e aplicação dos objetivos de desenvolvimento do milénio, cruzando-se o acesso à escola, aos programas de vacinação e a cuidados de saúde (Huber e Stephens, 2005; Solimano, 2005; Hunter, 2014).
Paralelamente, os processos de transição democrática de tipo pactada e negociada (Mainwaring et al., 1992; Collier, 1999) permitiram a continuidade de certas políticas e a difusão regional de processos políticos. Nisto é exemplificativa a continuidade de políticas sociais entre o regime autoritário-reestruturado e o regime neodesenvolvimentista, especialmente nos programas de emergência e inclusão social e nos programas de transferência de renda. Também foram introduzidos mecanismos de aglomeração e reestruturação de políticas e programas no regime autoritário-reestruturado, que se manteriam e seriam alargados e flexibilizados no atual regime. Disto é claro exemplo a introdução do Bolsa Família como forma de aglomerar diversos esquemas de apoio à economia familiar, poupando-se nos gastos administrativos e permitindo o controlo mais efetivo das transferências. Também no setor da saúde, muitos dos programas não apresentam o caráter efetivo da universalidade, com poucos gastos públicos na construção de infraestruturas e equipamentos. No entanto, grande parte dos programas foram alterados como o Benefício de Prestação Continuada no Brasil que introduziu um sistema de transferência de renda substituindo o princípio do apoio suplementar da Renda Mensal Vitalícia (Hunter, 2014). Estes novos programas de transferência de renda e o alargamento de sistemas de segurança social e de subsídios de desemprego, como no Uruguai, são também ilustrativos da tentativa de introdução de mecanismos universais, estabelecendo-se princípios transparentes de elegibilidade, contrariando-se os programas sociais baseados em redes clientelares.
Outro exemplo flagrante é o da continuidade dos sistemas público-privados de segurança social acompanhada pela unificação dos sistemas e dos programas contributivos. As alterações demográficas com o envelhecimento da região e o peso dos grupos sociais e profissionais favorecidos desde a década de 1970, tem importância vital na continuidade de políticas entre regimes. O problema do Uruguai prende-se com o enfoque nas pensões de velhice e invalidez, o que dificulta a transferência para programas de inclusão social e subsídios de desemprego. Este foco no sistema de pensões de velhice é uma continuidade do regime corporativo e que tem peso político, de tal forma que os governos de Tabaré Vasquéz e José Mujica não alteraram o foco das suas políticas sociais (Pribble, 2013). A importância deste eleitorado e a mobilização de grupos de reformados de diferentes setores profissionais têm um peso fundamental na formatação do regime neodesenvolvimentista de políticas sociais no Uruguai. Tal como consideram Huber e Stephens (2005), no país emergiu uma discrepância geracional de pobreza. A isto acresce o facto de que são tradicionalmente os reformados, os empregados dos setores formais e a classe média que mais se mobilizam na defesa dos seus direitos, mantendo pressão para a manutenção dos programas e das políticas. A mobilização destes grupos encontra eco nos partidos altamente fragmentados que não conseguem mobilizar coligações suficientes para integrar os sistemas privilegiados no sistema geral de segurança social (Huber e Stephens, 2005).
No Brasil, também as novas políticas de transferência de renda obtiveram suporte de todos os partidos, sendo hoje consensualizadas inclusive entre candidatos presidenciais. O reforço internacional destes programas e o sucesso nacional destes permitiu a sua difusão regional, o que é hoje uma panaceia política. No entanto, o caso brasileiro é demonstrativo de uma acomodação de elites, que leva ao estabelecimento de barreiras na aplicação do atual regime neodesenvolvimentista de políticas sociais (Hunter, 2014). Mesmo as políticas sociais de Lula requerem recursos fiscais modestos, oferecendo um limitado potencial de desenvolvimento humano e de alteração das estruturas macrossociais e do modelo de acumulação de capitais por grupos sociais. É também na aplicabilidade destes programas e nos programas de saúde que o Brasil demonstra um universalismo básico (Hunter, 2014) que não rompe totalmente com o regime autoritário-reestruturado, que aliás também não rompeu com o regime corporativo. Tal como no caso uruguaio, a universalidade não atinge também a segurança social que apresenta diversos sistemas sem coordenação e pertencentes a diversos grupos, especialmente reformados com longas e sucessivas mobilizações. A formação de coligações partidárias, muitas vezes heterodoxas ou até mesmo paradoxais do ponto de vista ideológico e social, cria também dificuldades à formação de coligações em torno de diferentes grupos sociais para o rearranjo e universalização dos sistemas. Em jeito de conclusão, ambos os regimes, apesar do reforço da sua componente estatal-protecionista, mantêm a estratificação - por via da proteção de determinados setores formais da economia - e a segmentação de políticas - por via da criação de programas altamente direcionados.