1. Introdução
Pessoas são desafiadas a passar por mudanças ao longo da vida. Uma das mudanças que desafiam significativamente as pessoas é a perda, principalmente, quando relacionada à morte. Depois de se acostumarem a viver com alguém ou algo, as pessoas têm dificuldade em compreender, aprender e adaptar a continuidade da sua vida sem o que se perdeu (Van Brussel & Carpentier, 2014). Esse processo de reação e adaptação à perda costuma ser chamado de luto (Bousso, 2011; Freud, 2009). Apesar de o luto normalmente estar relacionado à morte de uma pessoa querida, ele também pode estar associado a animais com os quais se desenvolveu uma relação de afetividade (Vieira, 2019; Podrazik et al., 2000). Isso acompanha novos papeis que animais têm desempenhado na sociedade (Policarpo, 2020).
O processo de luto permite que o enlutado manifeste e reconheça o sofrimento causado pela perda, elabore seu significado, reinterprete suas relações com o ente falecido e consiga adaptar a continuidade de sua vida sem aquele que faleceu (Bousso, 2011; Parkes, 2010; Stroebe & Schut, 1999). Este processo requer esforço do enlutado para “enfrentar a dor a fim de chegar a um estado de restauração emocional” (Freud, 2009, p. 129). Ele pode durar pouco tempo ou se estender por anos sem um fim muito claro (Massimi & Baecker, 2011).
(Gray & Coulton, 2013) apresentam uma visão geral histórica de estudos na Psicologia sobre o enfrentamento do luto. Uma das abordagens mais aceitas na Psicologia atualmente é a do Modelo Dual de Processamento do Luto (Stroebe & Schut, 1999). Neste modelo, o enlutado alterna ao longo do tempo entre dois modos de enfrentamento do luto: orientado à perda e orientado à restauração (Figura 1).
Nos momentos em que o enlutado se concentra na perda, ele trabalha o luto, se lembra do falecido, das experiências que tiveram juntos e da conjuntura da morte. Lidar com perda do falecido costuma envolver uma diversidade de emoções em diferentes intensidades. Nos momentos em que o enlutado se concentra na restauração, ele procura engajar-se em novas atividades, permitir-se vivenciar sentimentos diferentes da dor do luto, pensar em coisas diferentes do luto, repensar papeis desempenhados, identidades e relacionamentos entre o enlutado e o falecido. Esses são momentos onde o enlutado continua desempenhando suas atividades cotidianas, como trabalhar e estudar, por exemplo, enquanto aceita a necessidade de mudança, ressignifica a perda, redefine seu mundo e aprende a viver uma nova realidade sem o ente querido. É normal e saldável que o enlutado oscile entre esses dois modos de enfrentamento do luto. Assim, o enlutado tem condições de continuar vivendo, ao mesmo tempo que se adapta à perda (Stroebe & Schut, 1999).
Durante o enfrentamento do luto, as pessoas costumam desempenhar atividades como prestar homenagens ao falecido através de objetos e rituais estabelecidos culturalmente (velório, enterro, velas, flores, etc.) e preservar a identidade do falecido através de memoriais e outros objetos, por exemplo (Hallam & Hockey, 2001; Humphrey & Zimpfer, 2007; Kaunonen et al., 1999; Massimi & Baecker, 2010; Mims, 1998; Rebelo, 2007). O processo de enfrentamento do luto tem sido tradicionalmente investigado numa perspectiva psicológica. Mais recentemente, ele também vem sendo investigado em outras perspectivas, como, por exemplo, as perspectivas social (Myles & Millerand, 2016), econômica (Öhman & Floridi, 2017) ou comunicacional (Hajek et al., 2016).
Com o advento da informática e da internet, essas atividades também têm migrado para as tecnologias digitais (Bousso, Santos, et al., 2014; Campos et al., 2017; Carroll & Landry, 2010; Lopes et al., 2014; Massimi & Baecker, 2011; Riechers, 2013). Essa migração da prática do luto para o meio digital tornou-se ainda mais relevante em um contexto de pandemia da Covid-19, onde é necessário manter o distanciamento social para conter a propagação do vírus. As redes sociais virtuais de propósito geral, como o Facebook, por exemplo, têm sido utilizadas como espaço para enfrentamento do luto online (Bousso, Ramos, et al., 2014; Myles & Millerand, 2016). Elas têm sido o foco principal de estudos sobre luto online (Hajek et al., 2016; Maciel & Pereira, 2013). Entretanto, existem sistemas desenvolvidos especialmente para servir de espaços virtuais para vivência do luto, como os memoriais online, por exemplo. Apesar de memoriais online existirem no mercado desde pelo menos 1996 (Riechers, 2013), esses sistemas específicos têm recebido menor atenção de pesquisas científicas.
Diante da demanda por espaços virtuais de vivência do luto, por onde um designer, sem conhecimento e experiência no assunto, pode começar a abordar o projeto de interface de um memorial online? Como relacionar teorias sobre processo de enfrentamento do luto com a prática existente em memoriais online no mercado? Dentre as várias perspectivas relevantes, a perspectiva psicológica parece ser um bom ponto de partida para um designer projetar a interface de um memorial online. Esse primeiro passo se justifica em Interação Humano-Computador e em Design porque já existe uma tradição com base psicológica nessas áreas. Por exemplo, a Engenharia Cognitiva de Donald Norman (Norman & Draper, 1986) explica a interação usuário-sistema através da interface como sendo orientada por objetivos psicológicos do usuário. Outro exemplo é a abordagem de design dirigida por objetivos de Allan Cooper (Cooper et al., 2014). Abordagens de design como essas buscam relacionar objetivos na mente do usuário com as funcionalidades e informações do sistema que podem ser utilizadas através de sua interface.
Portanto, este trabalho apresenta uma interpretação sobre como memoriais online existentes no mercado podem apoiar pessoas a enfrentarem o processo de luto. Essa compreensão pode ser usada como ferramenta epistêmica (Souza, 2005) pelo designer por oferecer suporte inicial à sua reflexão durante o processo de design da interface de memoriais online. O estudo começou com a identificação de objetivos típicos das pessoas no enfrentamento do luto por uma revisão bibliográfica. Depois, foi realizada uma inspeção da interface de 20 sistemas de memoriais online para a identificação de funcionalidades e informações abordadas nestes sistemas. Por fim, relacionou-se esses objetivos típicos com funcionalidades oferecidas pelos memoriais online analisados.
2. Objetivos Típicos das Pessoas Durante o Enfrentamento do Luto
O comportamento humano pode ser interpretado como sendo um conjunto de ações motivadas por objetivos ou intenções das pessoas, sejam esses objetivos conscientes ou inconscientes (Diaper & Stanton, 2003). O enfrentamento do luto costuma conjugar objetivos estabelecidos pela cultura, religião, crenças pessoais, apoio familiar e por escolha individual do enlutado (Parkes, 2010; Stroebe & Schut, 1999; Van Brussel & Carpentier, 2014).
Foi realizada uma pesquisa bibliográfica para identificar objetivos típicos que as pessoas costumam ter durante o enfrentamento do luto. A intenção foi obter um bom conjunto de objetivos que auxiliassem o designer a ter uma compreensão inicial do luto na perspectiva psicológica, e não ter uma visão mais completa possível do estado da arte em diferentes perspectivas. Partindo-se de trabalhos de Maciel e Pereira (Campos et al., 2017; Lopes et al., 2014; Maciel & Pereira, 2013), especialistas sobre o tema na era digital, a pesquisa seguiu com uma metodologia de bola de neve, pela a busca por referências citadas nestes trabalhos e por outras publicações dos autores citados.
A Tabela 1 lista objetivos típicos durante essa difícil experiência, acompanhados de algumas referências bibliográficas onde foram abordados. Como as pessoas cada vez mais estão convivendo e cuidando de animais como fazem com outros seres humanos (Policarpo, 2020), os objetivos típicos de enfrentamento do luto têm semelhanças significativas quando uma pessoa ou um animal morrem (Vieira, 2019; Podrazik et al., 2000). Essa similaridade costuma existir, ainda que socialmente não exista espaço para vivenciar o luto de um animal da mesma forma que se vivencia o luto de uma pessoa.
Os objetivos identificados dizem respeito à perda, à memória e à comunicação para o falecido e para o enlutado. Sobre a perda de um ente querido, algumas pessoas sentem vontade de representar e compartilhar a ausência do falecido, bem como vontade de representar seu sofrimento pelo luto. Essas iniciativas costumam ser formas de o enlutado ganhar consciência da sua nova realidade e dos seus sentimentos para reorganizar e ressignificar a sua vida sem o ente querido. Também são importantes para marcar socialmente o estado de luto, inclusive com uma certa expectativa indireta de obter conforto e apoio social para aquele momento de perda.
Em relação à memória do ente querido, algumas pessoas se empenham em registrar, compartilhar e consultar representações do próprio falecido e de sua identidade ao longo do processo de luto. De certo modo, esses objetivos parecem ser uma tentativa de não deixar o falecido e seu legado caírem no esquecimento e desaparecerem. São tentativas de mantê-los presentes depois da morte. Algumas pessoas também dedicam esforços para registrar, compartilhar e consultar histórias ou memórias sobre o falecido, de forma isolada ou organizada em uma linha do tempo. Essas histórias permitem retomar experiências com o falecido para que sejam (re)organizadas mentalmente, reinterpretadas na nova realidade e consiga se imaginar a continuidade da vida do enlutado sem o ente querido. As histórias podem ser elaboradas por uma única pessoa, ou mesmo serem uma construção colaborativa de várias pessoas que conviveram com o falecido. Os relacionamentos com o falecido também merecem registro, lembrança e compartilhamento para algumas pessoas. Isso igualmente auxilia o enlutado a lidar com a perda, e ressignificar estes relacionamentos e a continuidade da vida com outra configuração. Tudo isso colabora e reforça a demanda por lembrar do falecido para pensar sobre ele de diferentes maneiras e propósitos ao longo do processo de enfrentamento do luto.
Em termos científicos, apesar de o falecido não poder participar ativamente de uma comunicação com o enlutado, algumas pessoas direcionam ao falecido expressões de homenagens, sentimentos e mensagens em geral, seja de forma privada ou compartilhada. Ainda que não obtenham retorno do falecido, esta é uma expressão útil ao enlutado para juda-lo a reconhecer e aceitar a perda, ressignificar o passado e redefinir o futuro. É uma forma do enlutado entrar em contado consigo mesmo durante o luto.
A comunicação direcionada ao enlutado é similar a outras comunicações entre pessoas com assunto e propósito definidos. As pessoas geralmente desejam se comunicar com o enlutado para confortá-lo e expressar seus sentimentos em relação à perda de um ente querido. Além disso, o próprio enlutado costuma controlar, e algumas vezes até evitar, suas participações em comunicações com outras pessoas durante o enfrentamento do luto. O enlutado pode limitar os canais de comunicação que atende, os grupos de pessoas a quem apresenta-se disponível, dentre outras formas de controle.
Com essa demanda explícita de objetivos típicos durante o enfrentamento do luto, esta pesquisa continuou com uma análise de memoriais online.
3. Análise de Memoriais Online
Memoriais online são sistemas web desenvolvidos para o enfrentamento do luto. Realizou-se uma pesquisa na internet que selecionou 20 deles: 10 de memoriais online para pessoas e outros 10 para animais (Tabela 2). Alguns destes estão associados a serviços funerários e de cremação.
Pessoas | Animais | |||||
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1. Virtual Memories | Inglês | link | 11. Pet Obituaries Online | Inglês | link | |
2. Never Gone | Inglês | link | 12. Critters.com | Inglês | link | |
3. Memories | Inglês | link | 13. Heaven’s Pets | Inglês | link | |
4. Remembered.com | Inglês | link | 14. MissUPet | Inglês | link | |
5. Keeper | Inglês | link | 15. I Loved My Pet | Inglês | link | |
6. InMemori | Inglês | link | 16. Pet Memorial | Português | link | |
7. In Memorium | Português | link | 17. Funerária Animal | Português | link | |
8. Memorial | Português | link | 18. Maracanã Assistência Funeral | Português | link | |
9. Memorial Vera Cruz | Português | link | 19. Anjo Pet | Português | link | |
10. Morada da Memória | Português | link | 20. Pet Condolências | Português | link |
Em outubro de 2020, os pesquisadores realizaram uma análise de conteúdo manual de cada sistema de memorial online para identificar as funcionalidades oferecidas e as principais informações abordadas. Não houve previsão inicial de encontrar nenhuma funcionalidade ou informação. Os pesquisadores interagiram de forma sistemática e abrangente com a interface de cada sistema por vez, experimentaram seus comportamentos e recorreram à ajuda online em caso de dúvidas. A intenção foi interpretar de forma indutiva informações e funcionalidades da interface e contrastar essas interpretações com os resultados apresentados por comportamentos do sistema decorrentes da interação. Depois de interpretar individualmente cada sistema, os pesquisadores também compararam suas interpretações entre memoriais. Informações e funcionalidades com significados próximos foram descritas com os mesmos termos. Se os significados eram distintos, foram descritas de modo diferente.
As Tabelas 3, 4 e 5 apresentam as principais funcionalidades encontradas nos 20 sistemas de memoriais online inspecionados. As funcionalidades foram agrupadas por requererem ou não login, e pelas principais informações manipuladas. O termo visitante foi empregado para indicar funcionalidades disponíveis sem a exigência de login. O termo usuário indica funcionalidades que requerem login.
A Tabela 3 enumera as funcionalidades para visitantes. O visitante de quase todos sistemas de memoriais de pessoas pode usar o nome do falecido para pesquisar por memoriais, exceto (6). O visitante também pode pesquisar memoriais de pessoas pela data de nascimento ou de óbito do falecido (1, 2, 7 e 10), pela localização do falecido (2, 8 e 10), e por alguma categoria, como criança e adolescente (1 e 7). Mecanismos de pesquisa de memoriais foram menos frequentes em sistemas voltados para animais. O visitante pode pesquisar memoriais de animais por: nome do falecido (11-15), data de nascimento ou óbito do falecido (13), localização (11 e 15), e por categoria, como gatos e cachorro (11 e 12).
O visitante tem acesso rápido a memoriais apresentados espontaneamente pelos sistemas, similar a um mural. Sobre pessoas, ele pode consultar memoriais criados recentemente (1-3 e 10), memoriais de heróis ou celebridades (1 e 2), e memoriais de pessoas nascidas ou falecidas em data próxima (1). Sobre animais, todos os sistemas apresentam ao visitante memoriais criados recentemente. O sistema (12) apresenta também memoriais de animais nascidos ou falecidos em data próxima e outros memoriais em destaque.
O visitante de quase todos sistemas pode consultar memorial público de uma pessoa. Apenas o (6) assume todos memoriais de pessoas como privados e requer compartilhamento explícito do autor para quem vai consultá-lo. Já para animas, todos os sistemas permitem consultar memoriais públicos.
Quem consulta algum memorial pode vivenciar o luto junto com seu autor, em alguma medida. Nessa experiência compartilhada, o visitante pode querer se manifestar em relação ao memorial consultado. Neste estudo, identificou-se 4 formas de participação colaborativa no luto: (1) construção de memórias ou testemunhos sobre o falecido, (2) homenagens ou tributos ao falecido, (3) mensagens em geral ao falecido ou aos enlutados, que costumam manifestar condolências e (4) comentários sobre memórias, homenagens e mensagens.
Em memoriais de pessoas, o visitante pode cadastrar uma memória apenas no (10). Ele pode cadastrar uma homenagem no (8 e 10). Já a possibilidade de ele deixar mensagem é mais frequente (1, 8-10). Apenas o (10) permite ao visitante denunciar memórias, homenagens e mensagens com conteúdos impróprios. Em memoriais de animais, o visitante pode cadastrar uma memória apenas no (11). Nenhum sistema permite o visitante cadastrar homenagens a animais, mas ele pode cadastrar mensagens em 3 sistemas (18-20).
As funcionalidades de gestão de um memorial online são apresentadas na Tabela 4. Essas funcionalidades requerem login. Por isso, o usuário precisa cadastrar, editar ou remover seu registro no sistema, para, então, efetuar login e logout. O usuário pode gerenciar seu registro em 8 sistemas para pessoas (1-7 e 10) e em 3 sistemas para animais (11, 12 e 15). Com login efetuado, o usuário pode criar, editar ou remover memorial de pessoas em 8 sistemas (1-7 e 10) e de animais em 6 sistemas (11-16). Quando o usuário não pode administrar memoriais, isso provavelmente é feito pelas empresas como parte de serviços funerários.
O usuário pode compartilhar memoriais de pessoas em 9 sistemas (exceto 9) e de animais em 6 sistemas (12, 15, 17-20). Ele possui formas de controlar privacidade de memoriais de pessoas em 7 sistemas (1-7) e em 3 para animais (11, 12 e 15). Os controles de privacidade para pessoas variam desde definir o memorial como público ou privado, até quais atividades podem ser realizadas por outros usuários/visitantes (adicionar fotos, criar memórias, etc.). Já para animais, pode-se configurar o memorial como público ou privado apenas.
A elaboração de memoriais pode ser uma atividade coletiva, principalmente quando existe a intenção de reunir memórias, experiências e sentimentos de pessoas que conviveram com o falecido. Assim, o usuário pode adicionar e remover colaboradores que podem administrar um memorial. Isso é possível em 5 sistemas (3-7) para pessoas e em nenhum sistema para animais.
O usuário pode desejar acompanhar a evolução de um memorial sob sua tutoria, seja por modificações realizadas por colaboradores ou mesmo mensagens, memórias, homenagens ou comentários criados por usuários/visitantes. Para isso, ele pode consultar atualizações de um memorial de pessoa em 3 sistemas (2, 4 e 7). Contudo, esse suporte não foi encontrado na interface de sistemas para animais. Não foi possível verificar como as atualizações são tratadas nos sistemas (8-10, 13-14, 16-20), pois não permitem cadastro gratuito de usuário.
Sobre representação do falecido, o usuário pode cadastrar, editar e remover foto do perfil, informações pessoais e biografia em quase todos sistemas para pessoas, exceto em (8 e 9). Isso também é possível em todos sistemas para animais. O usuário também pode cadastrar, editar ou remover fotos de memoriais de pessoas em 7 sistemas (1-7), e de animais em 6 sistemas (11, 12, 15, 17, 18 e 20). O usuário pode cadastrar, editar ou remover vídeos de memoriais de pessoas em 5 sistemas (2-5 e 7), e de animais em 2 sistemas (11 e 15). O usuário pode cadastrar, editar ou remover áudios de memoriais de pessoas em 2 sistemas (2 e 7), e de animais em 2 sistemas (15 e 18). As fotos, vídeos e áudios que representam o falecido nos memoriais são diferentes daqueles associados a memórias, homenagens e mensagens. No primeiro caso, eles apenas caracterizam o falecido de um modo geral, enquanto que no segundo, eles fazem parte de uma narrativa específica dentro de um contexto. O usuário também pode cadastrar, editar ou remover informações sobre funeral, sepultamento e cremação do falecido para pessoas em 3 sistemas (5, 6 e 10) e para animais em 1 sistema (18).
As funcionalidades de comunicação em memoriais online estão indicadas na Tabela 5. Em relação a memórias sobre o falecido, o usuário pode consultar, cadastrar, editar ou remover memórias em 7 sistemas (1-3, 5-7 e 10) para pessoas e em 4 sistemas (11-13 e 15) para animais. Apenas em (3), o usuário pode ordenar as memórias sobre pessoas em uma linha do tempo. Isso não é possível para animais. O usuário pode consultar, cadastrar, editar ou remover comentários de memória de pessoas em 2 sistemas (3 e 5). Apenas em (5), ele pode demonstrar empatia a uma memória e a um comentário de uma memória. Comentários não são possíveis nos sistemas para animais.
Em relação a homenagens, o usuário pode consultar, cadastrar, editar ou remover homenagens em geral para pessoas em 5 sistemas (2, 4, 7, 8 e 10). Esses sistemas também permitem oferecer homenagens de tipos específicos, como acender uma vela virtual, por exemplo, que fazem parte de práticas equivalentes offline. Nos sistemas 4 e 10, o usuário pode denunciar homenagens com conteúdos impróprios. Somente o sistema 5 permite ao usuário consultar, cadastrar, editar ou remover comentários sobre uma homenagem, bem como demonstrar empatia a uma homenagem e a um comentário de homenagem. Nenhum sistema analisado permite fazer homenagens a animais e ações relacionadas.
O usuário pode consultar, cadastrar, editar ou remover mensagens de memoriais de pessoas em 7 sistemas (1, 2, 5-8 e 10). Em (9), o usuário pode apenas enviar uma mensagem para o tutor do memorial. Quando se trata de animais, o usuário pode consultar, cadastrar, editar ou remover mensagens de memoriais em 4 sistemas (12, 18-20). Apenas o sistema 10 permite denúncia de mensagens com conteúdo impróprio em memoriais de pessoas. Nenhum sistema para animal permite denúncia equivalente. Nenhum sistema para pessoas permite comentários em mensagens, mas os sistemas (18 e 19) para animais permitem consulta, cadastro, edição ou remoção de comentários em mensagens. Nenhum dos 20 sistemas analisados permite o usuário demonstrar empatia a mensagens e a seus comentários.
Memoriais online permitem divulgar eventos offline relacionados ao enfrentamento ao luto. Em (4 e 8), há destaque para eventos próximos, como velórios, data de nascimento e de óbito de uma pessoa falecida. Nenhum dos sistemas para animais oferece este recurso. O usuário pode cadastrar, editar ou remover eventos de memoriais de pessoas em 4 sistemas (4-6 e 10), e de animais em 1 sistema (18).
As funcionalidades dos memoriais online oferecem uma compreensão do que o usuário pode fazer com apoio destes sistemas. Entretanto, ainda a falta entender melhor sobre o que essas ações incidem. A Tabela 6 apresenta as principais informações identificadas nas interfaces dos 20 sistemas, sobre: memorial, falecido, óbito, memórias, mensagens, homenagens, comentários e usuários.
4. Funcionalidades de Memoriais Online para Objetivos Típicos no Enfrentamento do Luto
Como abordagens de design de interação humano-computador fundamentadas na psicologia (Norman & Draper, 1986) costumam relacionar objetivos do usuário com o que está (informação) e acontece (funcionalidade) na interface, um suporte relevante para o designer de memoriais online é identificar possíveis relações entre funcionalidades encontradas nos memoriais online analisados (Seção 3) com objetivos típicos das pessoas durante o enfrentamento do luto (Seção 2). Assim, com base nos conhecimentos teóricos e práticos deste estudo, os pesquisadores utilizaram raciocínio abdutivo (Peirce, 2012) para enunciar relações plausíveis que as pessoas podem fazer entre seus objetivos pessoais durante o enfrentamento do luto e o uso de funcionalidades de memoriais online. A Tabela 7 mostra possibilidades que um designer pode considerar durante o (re)projeto de interface de sistema de memorial online. Isso pode servir de insumo e estímulo para a reflexão do designer durante o processo de design, similar ao que ocorre no processo de reflexão em ação discutido por (Schön, 1983; Schön & Bennett, 1996; Silva, 2010; Silva & Barbosa, 2012).
Essas possíveis relações não pretendem ser exaustivas, corretas ou aplicáveis para todas as pessoas durante todos os processos de enfrentamento do luto. Primeiro, porque os significados de algumas informações têm fronteiras sobrepostas. Por exemplo, nem sempre é simples diferenciar com segurança histórias, memórias, mensagens, homenagens, expressões de sentimento, demonstrações de empatia e comentários, principalmente em um contexto emocional complicado para os envolvidos. São conceitos que podem ser confundidos. É possível começar falando de um desses conceitos e terminar abordando outros. Numa visão mais abstrata, as pessoas parecem referenciar algum processo comunicativo nesses conceitos, cada qual com certas nuances que dependem da intenção e interpretação das pessoas envolvidas.
Segundo, porque o processo de interpretação humana é imprevisível, incontrolável e potencialmente infinito (Eco, 2002; Peirce, 2012), sendo influenciado por vários fatores como emoções, culturas e contextos, por exemplo. Pessoas diferentes podem ter interpretações distintas. Então, decidiu-se trabalhar com algumas intepretações possíveis, ainda que reconheçam como legítimas outras interpretações. A intenção aqui não foi apontar as intepretações corretas e erradas, mas sim apresentar interpretações com as quais o designer pode começar a trabalhar. Ao longo do processo de design, ele pode elaborar essas interpretações iniciais para enriquecê-las ou até suplantá-las com novas. Essa é uma evolução comum em Design (Lawson, 2006). Apesar de existirem outras interpretações coerentes e relevantes, as interpretações apresentadas neste estudo têm potencial para ajudar o designer a dar sentido e utilidade às funcionalidades de memoriais online no processo de enfrentamento do luto. Para um designer sem conhecimento e experiência sobre luto, é relevante conhecer possíveis caminhos motivacionais e interpretativos que podem guiar o usuário durante a interação com a interface de memoriais online.
Refletir sobre as possíveis relações da Tabela 7 pode auxiliar um designer a imaginar e raciocinar sobre processos psicológicos por trás do uso de memoriais online sendo projetados. Por exemplo, um designer poderia se perguntar: Por que alguém usaria um sistema para criar um memorial de um falecido? Como indicado nesta tabela, um designer pode considerar, por exemplo, que a intenção do usuário seja expressar a ausência de um falecido. Assim, o usuário terá condições de examinar essa nova realidade, muitas vezes indesejada e dolorosa, para depois continuar o processo de ressignificação de sua vida neste novo contexto. Em outra situação, um designer poderia se questionar: Por que alguém gastaria tempo e esforço em cadastrar uma memória sobre um falecido num sistema? Um designer pode pensar que a escrita de uma história sobre o falecido pode ser um momento de o usuário recordar situações vivenciadas com o falecido. Isso também permite o usuário manter uma representação para recordar depois e compartilhar com outras pessoas. Esse exercício mental pode auxiliar o usuário a aceitar que momentos semelhantes não serão possíveis novamente e que é necessário repensar a continuidade da sua vida sem o falecido. Reflexões como essas tornam as possíveis relações da Tabela 7 uma ferramenta epistêmica (Souza, 2005) para auxiliar o designer no processo de design reflexivo (Schön, 1983).
É possível considerar uma memória como sendo uma representação de uma situação vivenciada com ou relaciona ao falecido. Geralmente uma memória tem contexto e narrativa significativos. Uma homenagem, testemunho ou tributo costuma representar sentimentos de admiração, respeito, reconhecimento de valor ou relevância do próprio falecido ou do seu legado. Mensagens costumam ser utilizadas para expressar pensamentos e sentimentos após a perda, com alguma intenção comunicativa associada. Apesar de ser possível uma pessoa estabelecer e iniciar sua expressão com algum desses propósitos bem definidos, ou seja, com a intenção de enunciar uma memória, uma homenagem ou uma mensagem, não é raro uma pessoa misturar essas diferentes intenções na mesma expressão.
Como o processo de enfrentamento do luto é subjetivo e dinâmico, o designer precisa ficar atento a diversidades, mudanças e misturas de interpretações e intenções que os usuários podem ter quando utilizam a interface de memoriais online. O designer deveria evitar empregar informações sensíveis com significados restritos, como aquelas discutidas no parágrafo anterior, por exemplo. Parece mais promissor trabalhar com significados mais gerais e abrangentes nesses casos. O processo de interação também precisa ser flexível para acomodar toda essa variação.
O enlutado não conta histórias com pensamentos e emoções apenas para os outros. Antes, porém, ele conta para si próprio, para poder ressignificar o ocorrido em um novo momento e contexto após a morte de um ente querido. O conforto do luto também pode vir de estranhos, por isso mecanismos comunicação e compartilhamento devem ser bem pensados, mantendo o usuário no controle. Espaços online podem facilitar processos mais longos de luto, principalmente quando pessoas de convivência presencial do enlutado já não vivenciem mais o luto como inicialmente (Massimi & Baecker, 2011).
5. Considerações finais
Num contexto de pandemia da Covid-19, onde o distanciamento social e a morte fazem-se mais presentes, designers sem conhecimentos e experiências com o luto podem ter dificuldades para projetar a interface de sistemas de memoriais online. Em linha com abordagens de design de interação humano-computador baseadas na Psicologia (Cooper et al., 2014; Norman & Draper, 1986), este trabalho contribui com o enunciado de possíveis relações entre objetivos típicos de pessoas no processo de enfrentamento de luto e funcionalidades e informações encontradas em 20 sistemas de memoriais online. Essa associação entre conhecimentos teóricos e práticos, oferece ao designer iniciante nesse assunto delicado uma ferramenta epistêmica (Souza, 2005) para refletir sobre processos psicológicos durante a interação com a interface de sistemas de memoriais online. Com isso, o designer pode começar a refletir sobre questões como: Qual poderia ser a motivação do usuário enlutado que usa determinada funcionalidade em memorial online? Como uma funcionalidade poderia auxiliar o usuário no processo de enfrentamento do luto? Compreender melhor o processo de interação de enlutados com memoriais online pode auxiliar o designer a projetar e aprimorar a interface desses sistemas. Trabalhos futuros precisam investigar os efeitos da abordagem proposta no processo de design de memoriais online para designers iniciantes no tema.