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População e Sociedade

versão impressa ISSN 0873-1861versão On-line ISSN 2184-5263

População e Sociedade  no.36 Porto dez. 2021  Epub 15-Set-2022

https://doi.org/10.52224/21845263/rev36v2 

Varia

Eduardo Lourenço - uma análise do destino português

Eduardo Lourenço - an analysis of the Portuguese destiny

Maria Ortelinda Barros Gonçalves1 
http://orcid.org/0000-0002-4629-9082

1Intercontinental - Ensino Superior de Aeronáutica e Naval, S.A., Espinho, Portugal.


Resumo

Como revela na sua obra O Labirinto da Saudade - Psicanálise Mítica do Destino Português, Eduardo Lourenço afirma que nenhum povo pode viver em harmonia consigo mesmo sem uma imagem positiva de si, considerando que qualquer povo constrói os seus mitos de referência. Identificando o "inconsciente coletivo" do Portugal que só tem existência autêntica até Alcácer-Quibir, Eduardo Lourenço sustenta que após D. Sebastião, Portugal é a "não-história", até bater à porta de uma Europa desencantada. Este trabalho pretende, assim, constituir uma reflexão sobre o entendimento sentido do percurso histórico do País e das representações construídas acerca do seu destino no contexto das nações.

Palavras chave: Eduardo Lourenço; Portugal; Identidade; Mitos; Trauma.

Abstract

As revealed in his work O Labirinto da Saudade - Psicanálise Mítica do Destino Português, Eduardo Lourenço states that no people can live in harmony with themselves without a positive self-image, considering that any people build their own referential myths. Identifying the "collective unconscious" of Portugal, which, according to the author, only has an authentic existence until the events of Alcácer-Quibir, Eduardo Lourenço defends that after King Sebastião, Portugal is "non-history", until it knocks on the door of a disenchanted Europe. This paper intends to constitute a reflection on the meaningful understanding of the country's historical path and the representations built around its destiny in the context of nations.

Keywords: Eduardo Lourenço; Portugal; Identity; Myths; Trauma.

Eduardo Lourenço - ele próprio - é um labirinto. Do centro a si a exatidão que se quebra e esta é a arquitetura do olvido. Onde o instante profundo e a consciência reúne o circulo ardente e magnífico? António Ramos Rosa, JL, ano VI, 6-14 Dez. 1986

"Nenhum povo pode viver em harmonia consigo mesmo sem uma imagem positiva de si” (Lourenço, 1998, p. 58), precisamente porque qualquer Povo constrói os seus mitos de referência. O autor de O Labirinto da Saudade - Psicanálise Mítica do Destino Português, em tom pessimista, ao jeito de Derrida, desconstrói a imagologia que Portugal construiu acerca de si próprio.

Eduardo Lourenço pretende, na obra em análise, identificar o "inconsciente coletivo" do Portugal que, segundo Eduardo Lourenço, só tem existência autêntica até Alcácer-Quibir para, depois, se tornar “póstumo”. Após D. Sebastião é a "não-história", até ao bater à porta de uma Europa desencantada.

Portugal existiu como protagonista da História. É esse Portugal que constitui o estrato mais profundo da sensibilidade portuguesa. Dos traumas que afetaram o destino de um povo que o é, sem consciência de sê-lo, o mais visível resulta de que a atual imagem de Portugal aos olhos dos portugueses, embora o melhor viver - é a do Portugal profundo, à deriva, sob os ditames de novo soberano.

Como interroga Eduardo Lourenço: "Para quando a nova viagem para esse outro desconhecido que somos nós mesmos e Portugal connosco?” (Lourenço, 1998, p. 62). Ao tentar examinar um Eu português em todos os seus aspetos, perfilha a ideia de descentragem dos Portugueses da sua própria realidade que miticamente idealizaram: "Poucos países fabricaram acerca de si mesmos uma imagem tão idílica como Portugal" (Lourenço, 1998, p. 73). No jogo da imagem, ao espelho, Eduardo Lourenço faz, nesta obra, o discurso psicanalítico do ser português.

A relação de Eduardo Lourenço com a cultura portuguesa é mediatizada pelo seu voluntário e longo exílio. Se, em Eça ou Jorge de Sena, essa mediação afastou, manifestando-se pela negatividade, no autor de Heterodoxia I e II aproximou, caracterizando-se pela afirmação e, de certo modo, pela simpatia: Simpatia que não se faz aplauso, mas vivência sentida e refletida do destino português; exílio que não se exprime em sentimento de saudade, justamente porque Eduardo Lourenço não saiu bem de cá. É de dentro do país que ele o sente e interpreta e não de fora e, mesmo que o fosse, vê-lo-ia como português.

O Labirinto da Saudade é exemplo paradigmático do entendimento sentido do percurso histórico do país e das representações construídas acerca do seu destino no contexto das nações. O exílio, de facto, não é nele uma forma de afastamento mas um modo vivo de o mais longe se fazer mais perto. Por isso repudia o epíteto de "estrangeirado". Esclarece: "Fico furioso. Fico desesperado. Vindo de pessoas que não gostam muito de mim, afeta-me menos, mas sobretudo vindo de pessoas que estão próximas de mim, essa coisa do estrangeirado desespera-me”. (...) “e não saí do País porque não pudesse radicalmente viver nele. Eu estou no estrangeiro fisicamente. E por esse mesmo facto estou excessivamente em Portugal” (Lourenço, 1986). No prefácio da obra que nos ocupa, o autor sublinha: "De qualquer modo, não escrevi estes ensaios para recuperar um país que nunca perdi, mas para o ‘pensar’, com a mesma paixão e sangue-frio intelectual com que o pensava quando tive a felicidade melancólica de viver nele como prisioneiro de alma” (Lourenço, 1998).

O Labirinto da Saudade é título tão rico quanto embaraçoso. Trata-se de uma "psicanálise mítica do destino português". O subtítulo é título do primeiro e mais extenso ensaio do livro que é reflexão coerente acerca do "irrealismo” da autoimagem nacional, e sobre uma imagologia, quer dizer sobre as imagens que os portugueses, enquanto povo - diga-se eleito -, construíram de si próprios.

Não se trata tanto de identidade mas de “definição”. Em O Labirinto da Saudade, o ensaísta interroga-se diretamente sobre o que é ser português, ou seja, sobre “a possibilidade mesma de nos compreendermos enquanto realidade histórica” (Lourenço, 1998, p. 15).

O nosso nacionalismo será um mal endémico, ressurgindo sempre que a insegurança psíquico-política se torne insuportável para os nossos brandos costumes?

O autor procede a uma "autêntica psicanálise do nosso comportamento global" que mergulhe na espuma dos dias. Categoricamente propõe que "o nosso surgimento como Estado foi de tipo traumático” (Lourenço, 1998, p. 16), significando isso que muito na cultura portuguesa sofreu sérias oscilações históricas que lhe recalcaram a capacidade de uma vivência integrada no padrão médio da existência europeia: ser sempre mais ou menos, superior ou inferior, vanguarda ou proscrito, príncipe ou gáfaro, fanfarrão ou humilde, não é certamente um modo equilibrado de vida.

Segundo o autor de Poesia e Metafisica (1983), através de mitologias diversas, o nascimento de Portugal como Estado sempre apareceu como da ordem do milagroso, do transcendente, do providencial: ao português estaria destinado ser o segundo povo eleito por Deus a fim de restaurar o Seu reino.

Foi nesse espírito fundador e no intuito salvífico, que Portugal se lançou na gesta das Descobertas e as fez com o risco de "inconsciência alegre" e "negro presságio". Nesta tarefa, Portugal ganhou prestígio e um direito a ser olhado como "grande", mesmo que esse esplendor não passasse de uma ficção. De facto, "…se excetuarmos talvez a Macedónia e Roma, poucas vezes um povo partindo de tão pouco alcançou (...) um direito tão claro a ser tido como grande” (Lourenço, 1998, p. 17). Estava criado o mito da origem, que mais não passava de mistificação da fragilidade de um povo efetivamente pequeno.

Em declaração sugestiva, Almeida Faria refere-se ao primeiro abalo no percurso: "O primeiro alarme suou após a rapaziada de Alcácer, quando um puto pretensioso e parvo nos deixou a apanhar bonés durante décadas: o último, com trancas à porta depois da casa arrombada, seguiu-se à caótica perda das colónias onde alguns viam o início do Império do Senhor Espírito Santo. Ilusão que Eduardo Lourenço vituperou recentemente nestes termos: Acontece apenas que uma certa maneira de nos perspetivar no meio das nações, numa certa incapacidade de avaliar a nossa situação real de pequena Nação, assim como o seu papel num passado recente como nação colonizadora por excelência, arrasta consigo, sob a sua forma mais inoperante e nefasta, o fantasma sempre insepulto (e só para nós, insepultável) do Quinto Império” (Faria, 1984).

A morte de D. Sebastião em Alcácer-Quibir (1578) e a anexação de Portugal por Filipe II (1580) fortaleceram a esperança mítica da revelação do Encoberto. "É que o Encoberto seria, afinal, o jovem rei, sumido nas plagas marroquinas! As Trovas de Bandarra adaptavam-se à maravilha aos anseios de todos quantos desejavam travar acontecimento que, de outra forma, se diriam, racionalmente, inelutáveis…” (Serrão, 1973). Essa trágica aventura, se constitui o segundo trauma do “labirinto” histórico português, contribui também para o surto e desenvolvimento do profetismo e messianismo do Padre António Vieira, para a visão do Quinto Império de Pessoa e para a utópica idade do Espírito Santo de Agostinho da Silva.

Este segundo traumatismo residiu na súbita tomada de consciência da pequenez nacional: a nulificação de Portugal com o desastre de Alcácer Quibir e a consequente perda de independência, contrariando essa "intrínseca e gloriosa" ficção expressa n' Os Lusíadas. A experiência do cativeiro filipino revelara que "éramos (também) um povo naturalmente destinado à subalternidade. Esta experiência constitui um segundo traumatismo de consequências mais trágicas que o primeiro” (Lourenço, 1998, pp. 18-19). De povo destinado à glória, tornámo-nos povo condenado à humilhação, e ambos, esplendor e vilipendiação, tornaram-se faces da moeda por que a nossa personificação cultural se inquieta pela perda do viver contínuo.

Como assinala o autor de O Espelho Imaginário (1981), "nesses sessenta anos o nosso ser profundo mudou de sinal. Como portugueses esperamos do milagre, no sentido mais realista da palavra, aquilo que razoavelmente não podia ser obtido por força humana”: o ciclo do sebastianismo representou a um só tempo, "o máximo de existência irrealista que nos foi dado viver; de um máximo de coincidência com o nosso ser profundo, pois esse sebastianismo representa a consciência delirada de uma fraqueza nacional, de uma carência, e essa carência é real” (Lourenço, 1998, p. 20). O paradoxo é manifesto: um povo eleito, com obra em terra e no mar, vê-se, de súbito, servil vassalo de ambicioso amo.

Tornava-se imperioso reaver o estatuto perdido e reanimar a consciência nacional, justamente porque "a nossa razão de ser, a raiz de toda a esperança, era o termos sido” (Lourenço, 1998, p. 20). De certo modo, é do reencontro da alma portuguesa que se trata. Por isso a prevalência de imagens e mitos enformadores do espírito do povo, destinadas a dinamizar a sua comparticipação nos objetivos da Restauração.

O Portugal imperial perdera-se no nevoeiro do Norte de África. Ao momento épico sucede o desastre, gerador de mitos e promotor de novos rasgos. Acresce, contudo, que nós, portugueses, construímos de nós próprios o conceito de boas pessoas, capazes de abrir horizontes e liderar o percurso da História. A ideia de que fizemos um império multiétnico e pluricultural, fez crer que demos um exemplo ao mundo.

O narcisismo, tornado emoção, quebrara o espelho ensombrado por desmedida ambição. É Eduardo Lourenço quem refere que em António Vieira "se operou, como em ninguém mais, a conversão da nossa longa ansiedade pelo destino pátrio em exaltada aleluia, a transfiguração do simples ‘cantar de amigo’ com que nos embalámos no alvorecer inquieto, em cantata sublime ao Quinto Império” (Lourenço, 1998, p. 21). Mais tarde, porém, em Oitocentos, de novo emergiu o cenário da subalternidade e recrudesceu o espírito de decadência. A Geração de 70, de Antero a Eça, pretendera mostrar que Portugal havia perdido uma certa forma de diálogo com a Europa, que lhe teria sido claramente benéfico.

Antero é bem claro na conferência que pronunciou em 1871: "Que é, pois, necessário para readquirirmos o nosso lugar na civilização? Para entramos outra vez na comunhão da Europa culta? É necessário um esforço viril, um esforço supremo: quebrar resolutamente com o passado. Respeitemos a memória dos nossos avós: memoremos piedosamente os atos deles: mas não os imitemos. Não sejamos, à luz do século XIX, espectros a que dá uma vida emprestada o espírito do século XVI” (Quental, 1996, p. 67). É seguro que os séculos XVII e XVIII não converteram Portugal numa espécie de "convento" isolado da Europa. Portugal continuou a sê-lo, mas foi o século XIX em que "os portugueses (alguns) puseram em causa, sob todos os planos, a sua imagem de povo com vocação, tanto no ponto de vista político como cultural” (Lourenço, 1998, p. 22). O Portugal na Balança da Europa de Garrett é bom exemplo de que a “decadência”, tal como a Herculano, não lhes fora “estranha”. Coube, aliás, aos “exilados”, como lhes chama Vitorino Nemésio, contribuir para denunciar a consciência do que nos separava da “orgiástica” civilização europeia e, paralelamente, aproximar-nos dela. A fim de escapar à imagem “reles” de existência diminuída, “arremedo grosseiro da existência civilizada” (Lourenço, 1998, p. 22), Portugal “descobre” a África, no esforço de reinventar uma alma “à século XVI”, para perder, ingloriamente, o Brasil.

O Ultimatum, porém, segundo o autor de Ocasionais I (s/d), constituiu "traumatismo-resumo de um século de existência nacional traumatizada” (Lourenço, 1998, p. 23) e, talvez, recalcada, porque o idílico Portugal monárquico - ferido pelas guerras entre legitimistas e liberais - se achava em lenta agonia, enquanto o espírito republicano ganhava corpo. Como "fénix renascida" e "percorrido até ao absurdo o labirinto sem saída da nossa impotência” (Lourenço, 1998, p. 23), eclode, de novo, o sentimento patriótico de Nação singular, de que o Saudosismo de Teixeira Pascoaes fora manifestação expressiva. Ele foi "a tradução poético-ideológica desse nacionalismo místico, tradução genial que representa a mais profunda e sublime metamorfose da nossa realidade vivida e concebida como irreal” (Lourenço, 1998, p. 23). O Saudosismo do poeta amarantino, que a Renascença Portuguesa promovera, visava a "refundação" de Portugal, o retorno ao húmus pátrio fundador.

Teixeira de Pascoaes propugna a "nacionalização" alargada da alma lusíada, acordando em cada cidadão o "espírito saudoso", entendido como particularidade idiossincrática dos portugueses.

O Saudosismo do poeta e pintor amarantino representou uma reação contra o processo de decadência que se avolumava para culminar, após a mordaça fascista, na perda do império. Pascoaes, polémico pelas suas posições religiosas e políticas, preocupava-se em elevar Portugal, não só através dos livros, mas sobretudo através do movimento Renascença Portuguesa, que tinha como objetivo primordial educar o povo português. Nesse sentido, como nota Eduardo Lourenço, "o presente dececiona. Então, o Homem volta ao passado ou faz uma fuga para o futuro. É natural que regressemos às coisas boas. É preciso, porém, ter em atenção que o futuro nunca está presente” (Lourenço, 2002). Explica-se, assim, que a Saudade se torne o princípio filosófico e deontológico constitutivo da essência humana, particularmente do homem português. Não se trata de passadismo, mas de sentimento que junta, pela memória do passado, o sentido do futuro. Para o poeta de Marânus, só o progresso espiritual eleva o homem a um estádio superior de realização. Porque "o português não quer interpretar o mundo nem a vida” (Pascoaes, 1990, p. 7), contenta-se em vivê-la exteriormente e, por isso, a desvirtua, tornando-se impotente - como foi o desígnio do Estado Novo - de "reajustar o País a si mesmo” (Lourenço, 1998, p. 24). Entre A Pátria de Junqueiro e Mensagem de Pessoa interpõe-se a Pátria-Saudade de Teixeira de Pascoaes. O seu verbo rasura a nossa pequenez objetiva, em que radicam todos os temores e tremores pelo nosso futuro e identidade, "instalando Portugal, literalmente falando, fora do mundo e fazendo desse estar fora do mundo a essência mesma da realidade” (Lourenço, 1998, p. 98). Com Pascoaes, a realidade faz-se poesia e, por isso, só o absolutamente real é real.

Poeta obscuro, fez do universo inteiro uma metáfora viva em contínua metamorfose que anima a Natureza e o Homem que lhe dá sentido. É do húmus da montanha que jorra o ardor poético que, da sombra, se faz luz.

O Estado Novo, ao pretender recuperar a "autoridade majestática do Estado”, na tentativa de "reajustar o País a si mesmo" fez do patriotismo nacionalismo, "forma de exaltação da realidade nacional, não ao serviço do suspeito "povo" de tradição rousseanista, mas de Nação como totalidade orgânica, pessoa histórica, dotada de direitos e deveres enquanto tal” (Lourenço, 1998, p. 25). Alicerçado no corporativismo, na cumplicidade com a Igreja Católica e no ruralismo subdesenvolvido, "o salazarismo foi o preço forte que uma nação agrária, desfasada do sistema ocidental a que pertence, teve de pagar para ascender ao nível de nação em vias de industrialização” (Lourenço, 1998, p. 25). Lembrar os Discursos é o mesmo que recordar os labirintos de um País atípico, com voz de poeta, orgulhosamente só, como “jangada de pedra” à deriva e sem âncora nem identidade.

Portugal, mesmo aí, continuava sem saber quem era e, talvez, sem saber o que fora. O povo “desertou” a monta para lá dos Pirenéus, enquanto da “jangada” partiam batalhões de gente moça para África, à procura da “arca perdida”. Em simultâneo, medrava o desconforto face à “lusitanidade” tão cara à segunda república. Os aparelhos ideológicos do Estado segregavam o maciço de um modelo de país exemplar no contexto das nações: "O Estado Novo voltou contra o sistema democrático um patriotismo que não soubera traduzir nos factos nenhuma das promessas que o haviam justificado nos finais do século XIX. Sob tão sólida peanha, o Estado Novo, mesmo cada dia mais envelhecido, podia durar indefinidamente” (Lourenço, 1998, p. 27).

A União Nacional, ao promover um lusitanismo "agressivo", teve de haver-se com a contramaré do neorrealismo de cariz substancialmente cultural, expresso em obras inalienáveis do património nacional. Nelas ecoa o estrondo marxista que, se se mostrou pseudocientífico, serviu de alavanca para a consciencialização da contradição entre o capital e o trabalho. É sob o "império" neorrealista "que se cria em relação à clássica imagem de Portugal como país cristão, harmonioso, paternal e salazarista, suave, guarda-avançada da civilização ocidental antimarxista, numa outra-imagem que não é exatamente uma contraimagem, mas uma complexa distorção desse protótipo que nalguns aspetos se apresenta como o polo oposto dela (sobretudo pela ‘ocultação’ do caráter repressivo de índole cristã)” (Lourenço, 1998, p. 28). O País, de facto, era e continua a sê-lo, embora noutro contexto, um País por cumprir, justamente porque sistematicamente idealizado.

A contracorrente, o surrealismo, fermentado no mosto do projeto neorrealista, contribuiu com revulsiva eficácia, para subverter os padrões do regime e os da vaga de fundo que o contestavam. A revelação das pulsões (“pressão literária”) “trouxe à superfície um Portugal - outro, anómalo” (Lourenço, 1998, p. 32), anacrónico. É, aliás, o que o autor sugere: uma fenomenologia diacrónica da autognose nacional de que a Mensagem de Pessoa se tornou paradigma do "sentido do ser português. E o aproveitamento foi fecundo: um nacionalismo feroz a que o Integralismo Lusitano deu corpo e o movimento da Filosofia Portuguesa pretendeu animar, ainda que se tivesse confinado a uma espécie de "seita", que teve em Álvaro Ribeiro, Sant’Anna Dionísio e Orlando Vitorino os principais corifeus.

Se o surgimento de Portugal foi de tipo traumático e dele jamais nos libertámos, foi mediante mitologias diversas, de historiadores e poetas. que "esse ato sempre apareceu, e com razão, como da ordem do injustificável, do incrível, do milagroso, ou num resumo de tudo isso, do providencial” (Lourenço, 1998, p. 16), "a "filosofia portuguesa" oferece de nós mesmos a mais articulada contraimagem cultural de tipo místico-nacionalista que se conhece” (Lourenço, 1998, p. 33). Em suma, significou a "esquizofrenia sublime" de uma Nação "predestinada à regeneração espiritual do universo” (Lourenço, 1998, p. 34) de que Agostinho da Silva fora epígono maior, sobretudo na propositura da utópica idade do Espírito Santo.

A apologia do que é português por ser português, do ponto de vista culturalista do imaginário nacional, só foi possível em função da vocação imperial que sempre enformou a "relação irrealista que mantemos connosco mesmo". "Pelo império devimos outros, mas de tão singular maneira que na hora em que fomos amputados à força (mas nós vivemos a amputação como ‘voluntária’) dessa componente imperial da nossa imagem, tudo pareceu passar-se como se jamais tivéssemos tido essa famigerada existência ‘imperial’ e em nada nos afetasse o regresso aos estreitos e morenos muros da ‘pequena casa lusitana’” (Lourenço, 1998, p. 36) agora pobre e frágil.

O problema da mitologia do isolamento ("orgulhosamente sós") e a matriz imperial ("para Angola, rapidamente e em força") redundaram na perda de um império nunca possuído. Esta "esquizofrenia sublime" é uma projeção mitológica de traumas nacionalistas: primeiro, o Brasil, a seguir Goa e, depois, as Províncias de África. É o grande terceiro trauma: a perda do império em 1974-75. Esta perda alterou radicalmente a imagem grandiosa, mas ilusória, que tínhamos de nós e devolveu-nos a uma espécie de maciço primitivo, de território original que, enquanto "imagem mínima de nós” (Real, 1988, p. 42), é e pode ser compensada com a ambígua integração na Europa.

Do Portugal moderno, já sem império ativo, que restará? "A questão de Portugal, a questão candente do nosso país tão permisso, tão "new age", é a de, apesar das aparências em contrário, se fechar por dentro. E para dentro, para aquele antro de privilégio cândido e de arrogância de direito divino, de libertinismo de sentido único e de liberdade e dignidade de "grau zero” (Lourenço, 1993) que "só" de uma maneira exterior o inquieta.

"Treze anos de guerra colonial, derrocada abrupta desse Império, pareciam acontecimentos destinados não só a criar na nossa consciência um traumatismo profundo - análogo ao da perda da independência - mas a um repensamento em profundidade da totalidade da nossa imagem perante nós mesmos e no espelho do mundo” (Lourenço, 1998, p. 40). A dor e sofrimento, que essa guerra provocou, geraram intenso ressentimento em militares e civis, significando quer a derrocada do "império", quer a queda do regime instituído.

Franco Nogueira e Rui Patrício bem se esforçaram, sem êxito, junto da ONU, para condenar os movimentos separatistas. A guerra colonial não resistiu à voragem de uma morte anunciada que, paradoxalmente, prenunciara o fim do Estado Novo, suportada pela União Nacional. O desígnio providencialista espuma-se, cadeira abaixo, e nem as Conversas em Família de Marcelo Caetano conseguiram erguê-lo. A resistência armada da rebelião africana conduziu a que um punhado de militares, num só dia, invertesse a "imagem imperial portuguesa", ajustando, em boa hora, Portugal a si mesmo.

Abril de 1974 representara "o fim de um ciclo histórico" que teve na "política de transporte" (António Sérgio) visível sustentáculo. Regressado penosamente a casa, e reduzido à estreita faixa atlântica que nunca lhe bastou, Portugal teve de rever-se noutra imagem: a da revolução pacífica, patamar primeiro da democracia em País europeu. Escreve o autor de O Complexo de Marx (1979) que: "As nossas possibilidades são modestas, como modesto é o nosso lugar no concerto dos povos” (Lourenço, 1998, p. 46) e à pergunta de Orlando Ribeiro, Portugal: Europa ou Atlântico?, a resposta, com Mário Soares ao leme, foi: “Europa!”. O que a Geração de 70 sugeriu torna-se facto a que, de novo, corresponde o "hábito de uma vida pícara que durou séculos e que uma aristocracia indolente e ignara pôde entreter à custa de longínquos Brasis e Africas” (Lourenço, 1998, p. 47).

Eduardo Lourenço, ao tentar psicanalisar um País, que diz ser o seu, descobre um povo que, ao longo da História, se transfigurou e remodelou. Povo de condição humilde, de ancestral paciência, típica da ruralidade de Santa Comba, transferida para S. Bento, de "inexpugnável credulidade” (Lourenço, 1998, p. 54), como Narciso, contempla-se na autoimagem de Povo "idílico, passivo, amorfo, humilde, e respeitador da Ordem estabelecida, que o 25 de Abril impugnou enfim, em plena luz do dia” (Lourenço, 1998, p. 55). Portugal, no entanto, continuou a fazer a sua vida, sempre com o mesmo dilema - que, sobre outras formas, é ainda o de hoje - de se aproximar dos modelos da Europa que vai sempre à sua frente.

Com a Revolução de Abril, Portugal perdeu o império, "o centro simbólico" do seu mapa: "Estávamos sem saber quem éramos e talvez mesmo quem tínhamos sido” (Coelho, 2002). A África e o Brasil, o norte de África e a Índia terão sido o espelho em que Portugal se vislumbrou e deslumbrou como povo eleito. O (des)encontro com a realidade de uma rebelião que, se põe em causa a história oficial da metrópole, despertou-o para o "princípio da realidade", "não apenas a morte em África, mas a nossa própria miséria, os nossos terrores sepultos” (Coelho, 2002). A partir de 1974, toda a tralha do império regressa a casa, desembarcando em Lisboa, numa história às avessas". Afinal, um país órfão!... Na palavra de António Lobo Antunes, ''todo o sucesso é um fracasso adiado" e, certamente, o autor de O Espelho Imaginário (1981) diria o mesmo.

Referências Bibliográficas

Coelho, Alexandra L. (2002, 17 novembro). Eduardo Lourenço e António Lobo Antunes: O labirinto a dois. Público. [ Links ]

Lourenço, Eduardo. (1986). Entrevista. Jornal de Letras. Lisboa. [ Links ]

Lourenço, Eduardo. (1998). O Labirinto da Saudade - Psicanálise Mítica do Destino Português, 3.ª edição. Lisboa: Círculo de Leitores. [ Links ]

Lourenço, Eduardo. (2002, 11 novembro). Entrevista, Das Artes das Letras. O Primeiro de Janeiro. [ Links ]

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Quental, Antero. (1996). Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, 7.ª edição. Alpiarça: Ulmeiro. [ Links ]

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Serrão, Joel. (1973). Do Sebastianismo ao Socialismo em Portugal. Lisboa: Livros Horizonte. [ Links ]

Recebido: 06 de Novembro de 2021; Aceito: 21 de Dezembro de 2021

Correspondência: Maria Ortelinda Barros Gonçalves Email: ortelindabarros@gmail.com

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