As relações internacionais e a agência não humana
Quer enquanto disciplina, quer enquanto praxis, as relações internacionais (RI) têm sido historicamente permeadas por um antropocentrismo e por um estatocentrismo que condicionam fundamentalmente a sua abordagem aos desafios que o mundo enfrenta, nomeadamente à crise ecológica1. Em consequência deste enviesamento, as RI têm desconsiderado o papel de seres não humanos como agentes políticos2. Esta atitude de distanciamento das RI em relação ao ambiente (cuja exceção se encontra nos estudos tradicionais de geopolítica) não lhes permite abordar a complexidade e a multidimensionalidade dos desafios ecológicos, o que leva autores/as como Joana Castro Pereira a apelar a uma reimaginação da área3.
Este apelo é partilhado por outros teóricos da área, como Anthony Burke e colegas, que afirmam que a Terra não é o «nosso» mundo, isto é, um mundo humano erigido sobre uma natureza inerte e passível de ser manipulada e controlada por interesses, instituições e práticas humanas - o que constitui a narrativa predominante das RI4. Ao invés, a Terra é um complexo de mundos partilhados, coconstituídos, criados, destruídos e habitados com inúmeros outros seres e formas de vida5. Burke et al. afirmam que as RI estão a ser desfeitas pela realidade do planeta, pois os espaços de ação relevantes na atualidade já não são unicamente o local, o internacional ou o global, mas sim o planetário. As RI estão académica, institucional e legalmente organizadas em torno do sistema moderno de Estados-Nação e não em torno dos sistemas ecológicos e socioambientais (e. g., biosfera, ecossistemas, biomas), nos quais a vida humana se desenrola em inter-relação com múltiplos outros seres e processos ecológicos6.
O retrato que as RI convencionais pintam do mundo é estatocêntrico, capitalocêntrico e antropocêntrico; retrato esse que deve ser radicalmente transformado num projeto de reconfiguração do global para responder ao planetário7. Efetivamente, devido às suas premissas ontológicas e epistemológicas, as RI reconhecem um conjunto de atores humanos ou de criação humana (e. g., Estados, organizações internacionais, sociedade civil) e negam ou desvalorizam a agência de múltiplos outros sujeitos que escapam à lente antropocêntrica8. É, por isso, essencial repensar e transformar as instituições e normas políticas hegemónicas, sobretudo no que diz respeito a quem é incluído ou excluído, a quem é ouvido ou silenciado - não só, mas também, para lá do humano9. Este projeto de criação de uma política planetária requererá amplificar vozes marginalizadas e criar novas formas de solidariedade e governação entre sujeitos10.
Rafi Youatt também identifica o antropocentrismo como característica prevalecente das RI11. As sociedades e os seres humanos estão constantemente a interagir e a relacionar-se com outras espécies e formas de vida. Dentro da modernidade ocidental, cujos pilares são o sistema de Estados-Nação e a economia capitalista global, estas interações e modos de relação com a natureza não humana têm sido dominados por perspetivas e normas (antropocêntricas) que encorajam e legitimam a exploração ilimitada da natureza e dos seres e recursos que a constituem12. O antropocentrismo não é, porém, inevitável, sendo que não se pretende escapar de uma perspetiva humana, mas sim promover uma transformação de molduras morais e políticas que orientam as nossas relações com as outras espécies13.
A crise ecológica (e. g., desflorestação, poluição de rios e oceanos, depleção de recursos hídricos, declínio global de biodiversidade, aquecimento global, degelo, fenómenos climáticos extremos), bem como a falha em mitigá-la, pode ser entendida como a manifestação mais visível deste antropocentrismo subjacente ao pensamento académico e às políticas ambientais a todos os níveis de governação14. Mas uma interpretação antropocêntrica do mundo, essencialmente radicada na separação entre a humanidade e a natureza, é profundamente contradita pela essência das crises que atualmente enfrentamos15. Os problemas ecológicos, que não obedecem a fronteiras nacionais e com os quais não é possível lidar de maneira autónoma ou independente, provam a necessidade de abordar a nossa condição atual através de uma perspetiva holística e multidimensional. Compreender a crise ecológica e desenvolver respostas eficazes e adequadas aos desafios que ela impõe requer que se rompa com a prática e o pensamento convencionais através de uma visão pós-antropocêntrica16.
De facto, é possível argumentar que estas crises são derradeiramente o produto de um paradigma dominante não só nas RI, mas, de modo mais abrangente, nas sociedades humanas modernas (ou industrializadas). Este ponto é fundamental, pois ajuda-nos a compreender a complexidade e a multidimensionalidade do desafio coletivo que enfrentamos: não se trata de um problema que diz respeito apenas às RI ou a outras disciplinas e práticas particulares, mas sim de uma narrativa dominante que permeia as estruturas políticas, económicas e socioculturais da modernidade ocidental. Esta narrativa surge do paradigma dualista cartesiano, que representa a crença na superioridade humana em relação a outras formas de vida, o que, por sua vez, legitima o seu controlo, transformação e exploração para lá de qualquer sustentabilidade socioecológica17.
O paradigma dualista acompanhou os processos de desenvolvimento do Estado e do mercado e expandiu-se para lá da Europa através do imperialismo e do colonialismo, materializando-se atualmente, de forma mais óbvia e destrutiva, através da economia capitalista global18. É, por isso, lógico assumir que as respostas à crise ecológica devem forçosamente envolver uma rutura com este paradigma dominante, nomeadamente através do reconhecimento de outras narrativas, outras práticas e outros modos de relação com a natureza não humana, que advêm de culturas e de povos não ocidentais e indígenas19. Mihnea Tănăsescu refere-se ao nexo descritivo-prescritivo para argumentar que a forma como descrevemos o mundo (descrição) tem impactos profundos na forma como agimos sobre ele (prescrição)20. Apesar de Antropoceno ser um dos termos mais populares da atualidade quando se fala das crises que vivemos, Tănăsescu sugere o termo Ecoceno para salientar que os processos ecológicos e as mudanças ambientais e climáticas estão a desafiar profundamente as organizações sociopolíticas humanas, o que exige que se considere a agência de seres não humanos e de processos ecológicos coconstituintes do mundo e da realidade. A questão que se coloca, naturalmente, é: como pode a agência não humana refletir-se politicamente (ou seja, em termos prescritivos)? Como deve a política responder a esta realidade?
As RI para lá do antropocentrismo
Nos últimos anos, têm surgido várias propostas - desde os campos da Teoria Política, da Teoria Crítica das RI, dos pós-humanismos e da ecologia política, entre outros - que podem ser entendidas como não antropocêntricas nas suas intenções ou conteúdo. Estas propostas sugerem formas de quebrar o condicionamento tradicional das RI e de considerar a subjetividade, a agência e os modos de comunicação de seres não humanos em processos socioculturais, políticos, económicos e ambientais21. Estas contribuições nascem da chamada «virada não humana» nas ciências sociais e surgem a par com novos projetos políticos e legais que pretendem transformar modos dominantes de relação com a natureza não humana, como é o caso do movimento internacional pelos direitos da natureza.
Os desafios que estas propostas não antropocêntricas colocam ao paradigma dominante dentro das RI ilustram o facto de que todos os seres vivos nascem e fazem as suas vidas dentro de comunidades multiespécies22. Isto significa que nenhum ser vivo (incluindo os humanos) existe em isolamento e que todos fazemos, pelo contrário, parte de redes de interdependência e mutualidade com animais, plantas, ecossistemas e elementos como a água nos mundos que partilhamos e cocriamos. Neste sentido, Youatt apela ao desenvolvimento de relações interespécies23.
Desde a proposta de Robyn Eckersley para o estabelecimento de democracias ecológicas que permitam representar os interesses e necessidades de seres não humanos e das gerações futuras através da designação de porta-vozes humanos24; à de Sue Donaldson e Will Kymlicka para a construção de sistemas políticos que reconheçam animais não humanos como membros da polis ou cidadãos das suas próprias sociedades soberanas25; até à de Anthony Burke e Stefanie Fishel para a criação de assembleias eco-regionais que permitam representar biomas e ecossistemas na política internacional26, todas têm em comum o objetivo de reorientar a forma como as sociedades humanas modernas se relacionam com o mundo não humano.
Este empreendimento é crucial se pretendermos encontrar respostas robustas e ade- quadas para a crise ecológica. Contudo, as propostas para uma reimaginação das RI que têm vindo a surgir nos últimos anos continuam a situar-se nas margens. É assim fundamental criar mais diálogos entre conceitos, movimentos e iniciativas, bem como fomentar uma crescente inter ou transdisciplinaridade para refletir sobre diferentes conhecimentos e práticas. A inter ou transdisciplinaridade é, afinal, uma das qualidades das RI, razão pela qual acredito que estas têm potencial para se reinventar e responder à realidade socioecológica em que vivemos; afinal, várias destas propostas não antropocêntricas nascem da política ou mesmo da Teoria Crítica das RI.
Pereira argumenta que a atual noção de «internacional» exige novas ontologias, epistemologias e metodologias27. Tal é sem dúvida necessário, embora seja também importante questionar criticamente o termo «novas», reconhecer e (re)valorizar ontologias, epistemologias e metodologias (muitas vezes ancestrais) que formam a base de múltiplas culturas e sistemas de conhecimento não ocidentais e indígenas, que foram (e continuam a ser) repetidamente silenciadas e apagadas durante os períodos imperialista e colonial e, mais recentemente, através do capitalismo global28. Este processo de recuperação e (re)valorização de outras narrativas, outras práticas e outros modos de relação com a natureza não humana deve igualmente acompanhar processos de obtenção de justiça para com os povos indígenas e não ocidentais, que foram e continuam a ser explorados pelo capitalismo colonial e antropocêntrico, juntamente com outras espécies e ecossistemas. A este respeito é também importante salientar que, apesar de constituírem menos de 5% da população humana mundial, os povos indígenas suportam a proteção e conservação de cerca de 80% da biodiversidade planetária29. Aqui, deparamo-nos com um ponto fundamental: a crise ecológica envolve inevitável e profundamente questões de justiça. Todavia, conceitos já existentes (como justiça ambiental ou justiça climática) não fazem jus à subjetividade e à agência da multiplicidade de seres e de formas de vida que estão entrelaçados em redes de vulnerabilidade, de perda e extinção, mas também de resiliência, de sobrevivência e de vida com os seres humanos30. Estes conceitos continuam a ser, acima de tudo, sobre humanos. Por conseguinte, introduziu-se o conceito de justiça multiespécies para reorientar diálogos políticos sobre justiça, particularmente no contexto atual31.
Em linha com a sugestão de Pereira para a criação de novas ontologias, novas metodologias e novas epistemologias, vejo o conceito de justiça multiespécies como uma dessas «novas» criações - baseada, apesar de tudo, em princípios e cosmovisões há muito existentes em diferentes culturas e geografias não ocidentais32 - com ramificações profundas aos níveis ontológico, epistemológico, metodológico e ético-político. Trazer este conceito para o universo das RI abre caminho a um diálogo não antropocêntrico que pode inspirar e promover o desenvolvimento de narrativas, de práticas e de modos de relação mais justos e capazes de responder à complexa realidade socioecológica em que hoje vivemos. Há duas razões principais pelas quais creio que este conceito é útil para as RI. Primeiro, porque questões de justiça são sempre inerentemente políticas, uma vez que dizem respeito a relações entre sujeitos, nomeadamente relações de poder, e ao modo como estas permitem construir ou destruir mundos comuns, incluir ou excluir determinados sujeitos, escutar ou silenciar determinadas vozes. Segundo, por- que a dimensão multiespécies é muito mais representativa do mundo (ou mundos) em que verdadeiramente vivemos do que uma perspetiva antropocêntrica que rejeita a subjetividade e agência não humanas.
Rumo a diálogos transdisciplinares: as RI, a política e a justiça multiespécies
O termo justiça multiespécies pretende chamar a atenção para o facto de que todas as formas de vida no planeta - humanas, animais, vegetais, rios, montanhas, florestas, oceanos, etc. - são inseparáveis e interdependentes. Isto sugere que os mundos que coabitamos são criados e transformados por uma série de seres e formas de vida com agência, dos quais apenas alguns são humanos, e que, consequentemente, num contexto de crescente perda, vulnerabilidade e injustiça como o da crise ecológica, falar de justiça nestes mundos partilhados deve necessariamente incluir os múltiplos sujeitos (humanos e não humanos) que os constituem.
Na sua base, a justiça multiespécies convida-nos a expandir o conceito de justiça para que este abranja um maior número de sujeitos, incluindo indivíduos de outras espécies (animais, plantas) e comunidades de sujeitos (ecossistemas como rios ou florestas)33. Para além do mais, representa não só uma nova agenda de investigação, mas também um projeto fundamentalmente normativo, baseado na rejeição da ficção do individua- lismo liberal em prol do reconhecimento da vasta e complexa matriz ecológica de relações que sustentam toda a vida34. A justiça multiespécies é também descrita como uma abordagem interseccional, a qual reconhece que múltiplas identidades e categorias de diferença e de desigualdades (e. g., género, etnia, classe, idade, capacidade, espécie, ser) existem simultaneamente e estão entrelaçadas em processos de opressão e injustiça35. Um dos principais objetivos da justiça multiespécies é, de acordo com Brandon Jones, a identificação de uma política para a composição de um mundo comum que considere as necessidades e os meios de subsistência de uma diversidade de vida humana e não humana36. Esta interpretação é especialmente importante, porque enfatiza o facto de a justiça multiespécies ser uma questão essencialmente política. Ela concerne às relações e estruturas de poder que existem não só entre sociedades e grupos humanos, mas também entre humanos e outros seres e formas de vida. Assumir uma posição não antropocêntrica que reconheça estas relações e estruturas encoraja-nos a refletir sobre dois aspectos centrais. Por um lado, sobre o modo como as nossas práticas e políticas afetam uma grande diversidade de sujeitos, humanos e não humanos, e como excluir os seres não humanos das nossas considerações ético-políticas é não só discriminatório e injusto, mas também conducente a modos de relação destrutivos ao nível socio-ecológico. Por outro lado, e em resposta a estes processos de discriminação e exclusão, sobre como será possível incluir e representar as perspetivas, os interesses e as necessidades de seres não humanos nos nossos processos de decisão política.
Estes dois aspectos centrais envolvem uma série de questões e desafios complexos. Uma questão central que se coloca é: o que significa (ou pode significar) a justiça multiespécies na prática? Afinal, é esse o eixo central das RI: trata-se de desenvolver relações ou modos de relação e de prática política. Por sua vez, esta questão conduz obrigatoriamente a um dos maiores desafios ou dilemas das várias propostas pós-antropocêntricas para a inclusão e representação política de seres não humanos: como saber realmente quais são as perspetivas, os interesses e as necessidades da natureza não humana?
Este desafio está, naturalmente, intimamente relacionado com questões de voz, de linguagem e de comunicação. Como qualquer debate sobre justiça multiespécies (e questões associadas) é extremamente complexo, na próxima secção apresento algumas ideias através do caso ilustrativo dos rios e de alguns movimentos e iniciativas que têm surgido para os proteger, conservar ou restaurar.
Justiça multiespécies na prática? O caso dos rios
Os rios são exemplos de sujeitos de justiça de acordo com a «nova» agenda político-normativa da justiça multiespécies. Constituem os principais recursos de água doce do planeta, cobrindo menos de 1% da superfície terrestre, mas (juntamente com outros ecossistemas de água doce) representando o habitat de aproximadamente 10% das espécies vivas37. Isto coloca-os entre os ecossistemas mais biodiversos do planeta38. Os rios são, de facto, cruciais não só para a subsistência de incontáveis comunidades humanas ribeirinhas, mas também para a sobrevivência de múltiplas espécies de animais e de plantas.
Contudo, os rios do planeta têm enfrentado cada vez mais desafios provocados pela conjugação de duas ameaças, nomeadamente a ação e a infraestrutura humanas (e. g., canalização, construção de barragens, poluição, extração excessiva de água e depleção) e os impactos da crise climática (e. g., períodos de seca prolongados; grandes inundações). Combinadas, estas ameaças têm vindo a afetar gravemente a qualidade da água dos rios ou o seu fluxo ambiental e colocam-nos entre os ecossistemas mais ameaçados do planeta. Desde os anos 1970, mais de 80% das populações globais de espécies de água doce foram levadas à extinção devido ao estado de crescente degradação dos rios39. É importante salientar que estes ecossistemas enfrentam uma conjugação de ameaças constituída por um paradigma dominante e antropocêntrico de gestão e governação de recursos hídricos, ou seja, por processos de transformação e industrialização cujos impactos são, por sua vez, exacerbados pela crise climática.
Ao longo da última década e meia, têm surgido várias redes, movimentos e alianças que buscam responder à degradação dos rios e protegê-los, conservá-los ou restaurá-los. Constituídas por diferentes grupos de atores humanos (e. g., comunidades locais e povos indígenas, organizações ambientais, juristas, cientistas, académicos), estas mobilizações focam-se em diferentes agendas, incluindo o reconhecimento dos direi- tos dos rios a nível local, nacional ou internacional. Esta última agenda é particularmente relevante, pois faz parte de um paradigma contra-hegemónico que tem vindo a ganhar popularidade nas últimas décadas, o dos direitos da natureza.
As campanhas e iniciativas em prol do reconhecimento dos direitos dos rios são frequentemente inspiradas por ontologias e cosmovisões indígenas, não ocidentais, que reconhecem e se relacionam com os rios como entidades vivas, como antepassados ou familiares sagrados, ou como comunidades multiespécies40. Os casos mais emblemáticos incluem o rio Whanganui em Aotearoa, Nova Zelândia; o rio Atrato na Colômbia; o rio Vilcabamba no Equador; os rios Ganges e Yamuna na Índia; e os rios Martuwarra/ Fitzroy e Muteshekau-shipu/Magpie na Austrália e no Canadá, respetivamente. Estes casos têm apelado ao reconhecimento de direitos específicos para os rios e seus guardiães humanos (e. g., direitos bioculturais no caso do rio Atrato) ou ao reconhecimento do estatuto de pessoa legal para os próprios rios (e. g., no caso do rio Whanganui). Estes movimentos salientam não só a subjetividade e agência dos próprios rios, mas também o facto de que eles são coconstituídos por uma multiplicidade de seres (humanos, animais, vegetais, minerais, espirituais) que participam ativamente nos seus processos socioecológicos. Nos últimos anos, têm sido publicados vários artigos académicos que exploram a agência de outros seres nos processos de transformação e preservação de rios: por exemplo, o papel que os peixes desempenham em debates sobre a remoção de barragens em rios41; a ação indireta das lontras em processos de restauração ecológica42; ou o trabalho dos castores na criação e transformação deliberadas de habitats ribeirinhos, o que tem levado engenheiros hidráulicos e ecólogos a nomeá-los como potenciais parceiros em processos de restauração de rios43. Estes trabalhos convidam-nos a pensar em ecossistemas como os rios enquanto territórios coconstituídos e transformados por múltiplos agentes e pelas interações e relações entre si, fazendo destes agentes políticos.
Os rios são um bom exemplo para ilustrar debates em torno da justiça multiespécies porque, por um lado, constituem mundos partilhados em que comunidades multiespécies vivem entrelaçadas em padrões de vulnerabilidade, de (in)justiça, de vida e de morte no contexto atual de crise ecológica; e porque, por outro lado, nos últimos anos, têm surgido estes casos que nos ajudam a pensar sobre como a justiça multiespécies pode ser materializada. Por exemplo, as comunidades pesqueiras do rio Magdalena, na Colômbia, cujas vidas e meios de subsistência estão intimamente relacionados com os peixes e outros animais que habitam o rio, praticam diariamente formas de comunicação interespécies através das quais as pessoas se referem às vozes e às canções dos peixes, ou à sua capacidade de prever o estado do tempo segundo o que os animais lhes dizem44. Durante uma entrevista, um pescador artesanal de uma das comunidades do rio Magdalena afirmou:
«Claro que os peixes têm voz. […] Um animal canta e eu já reconheço o som. Sentimo-nos acompanhados pelos animais e eles ficam ao nosso lado, os animais, os pássaros, os caimões babilla, quando começam a rugir. Não vais acreditar, mas os peixes também têm a sua canção»45.
Esta descrição é um exemplo de relação interespécies que - fundamentalmente para os propósitos deste artigo - também se reflete no desenvolvimento de critérios éticos para a pesca, que procuram salvaguardar populações e respeitar aspectos particulares da vida dos peixes (por exemplo, é proibido pescar nas zonas em que os peixes estão a dormir). Estas práticas são, no entanto, desrespeitadas por outras pessoas que praticam pesca intensiva ou que provocam poluição nos rios, nomeadamente através da mineração, e são desconsideradas por um sistema nacional de gestão e governação de recursos hídricos que tem levado a uma perda crescente de biodiversidade em ecossistemas como o rio Magdalena, e posto em risco a sobrevivência de animais e de plantas e a subsistência de comunidades humanas46.
O facto de os pescadores artesanais não serem reconhecidos como atores políticos no contexto colombiano significa que as suas perspetivas, práticas e ética não são consideradas pelo sistema dominante47. Isto prejudica não só os sujeitos humanos da região, mas também os vários sujeitos de outras espécies que estão interrelacionadas com eles e cuja sobrevivência depende também, indiretamente, destas comunidades humanas e dos modos de relação com a natureza não humana mais sustentáveis e justos que elas praticam. Num caso como este, justiça multiespécies poderia significar reconhecimento, inclusão e participação das comunidades de pesca artesanal em processos de decisão política sobre a gestão e governação do rio Magdalena, o que poderia promover também, indiretamente, uma melhor representação dos interesses e das necessidades de outros seres, como os peixes.
Este exemplo aponta para uma das possíveis respostas ao desafio da representação de seres não humanos em processos políticos: a designação de porta-vozes ou guardiães humanos48. Certos grupos e indivíduos humanos poderão estar melhor posicionados para representar perspetivas não humanas: por exemplo, povos e comunidades indígenas que vivem desde há milhares de anos em relações com a natureza não humana baseadas em princípios de cuidado, de interdependência, de respeito e de reciprocidade49; pessoas que estudam ou trabalham diretamente com animais, com plantas ou com ecossistemas (e. g., biólogos, ecólogos, geólogos, botânicos); académicos e juristas envolvidos em causas socioambientais, de direitos dos animais ou da natureza, ou com interesse em processos deliberativos e democráticos mais ecológicos; e cidadãs/ãos preocupados. Na maior parte dos casos, o desafio encontra-se em criar plataformas mais inclusivas, mais interseccionais e menos antropocêntricas, dentro dos limites de um sistema político hegemónico, que ainda é fundamentalmente antropocêntrico, capitalista e colonial.
O caso do rio Whanganui, em Aotearoa, Nova Zelândia, pode constituir aqui um exemplo inspirador. Conhecido como o primeiro rio do mundo a quem foi atribuído o estatuto de pessoa legal, em 2017, o Whanganui é reconhecido como entidade viva e antepassado ou parente sagrado das comunidades indígenas maori que têm vivido desde há múltiplas gerações ao longo das suas margens. O Ato Te Awa Tupua, que reconhece este rio como ser vivo e comunidade multiespécies, inclui linguagem maori representativa de princípios não antropocêntricos fundamentais (como a expressão Ko¯ au te A¯wa, ko¯ te A¯wa ko¯ au, «eu sou o rio e o rio sou eu») e estabeleceu um sistema de cogoverna- ção e cogestão do rio que envolve representantes maori e representantes pakeha (neo-zelandeses não indígenas)50. Embora haja críticas às hipóteses de real sucesso do Ato ou ao facto de ele poder constituir uma estratégia de «apaziguamento» de reivindicações territoriais e anticoloniais maori (não lhes devolvendo soberania efetiva sobre os seus territórios ancestrais)51, outras vozes argumentam também que, apesar de desafios e de tensões permanecentes, este caso representa um avanço positivo, nomeadamente em processos de reconhecimento de ontologias indígenas52. Como a ontologia maori reconhece a subjetividade e agência de seres não humanos, bem como a interdependência entre estes e os seres humanos, ligando-os através de relações baseadas em princípios de interdependência, de respeito, de cuidado e de reciprocidade, diria que este é também um caso de justiça multiespécies.
Como criar pontes entre as RI e a justiça multiespécies?
O contexto atual de crise ecológica em que nos encontramos exige uma profunda reestruturação do paradigma dominante no sistema internacional. Acima de tudo, o que se exige é uma transformação de narrativas hegemónicas sobre o mundo em que vivemos, e das práticas e modos de relação com seres não humanos que têm até agora (dentro das sociedades humanas modernas) levado a níveis crescentes de destruição socioecológica e a formas de injustiça multiespécies.
As RI não estão equipadas para responder de forma adequada e justa aos desafios que hoje vivemos, mas têm potencial para o fazer se se sujeitarem a uma reinvenção pós-antropocêntrica. O potencial nasce de alguns aspectos particulares. Por exemplo, o reconhecimento da existência de diferentes escalas ou níveis de ação dentro das RI (o local, o internacional e o global) pode ajudar a compreender a importância de agir simultânea ou concertadamente a vários níveis. Embora esteja de acordo com o apelo de Burke et al. para o desenvolvimento de uma política planetária, creio ser funda- mental agir também dentro dos níveis tradicionalmente reconhecidos pelas RI e o sistema político-legal atual. Como os exemplos do rio Magdalena e do rio Whanganui demonstram, práticas localizadas e processos políticos situados a nível local podem impactar profundamente modos de relação entre seres humanos e não humanos, contribuindo para uma maior sustentabilidade socioecológica ou proteção ambiental. Para além disso, iniciativas locais podem ter um impacto nacional ou internacional, como é o caso do rio Whanganui, cujo exemplo tem inspirado movimentos e campanhas pelo reconhecimento dos direitos dos rios um pouco por todo o mundo ao longo dos últimos anos.
Agir aos níveis local ou regional pode, também, ser mais acessível e exequível do que procurar desenvolver políticas ou estratégias globais e planetárias, sobretudo porque o sistema internacional ainda é regido por Estados-Nação que têm prioridades e agendas políticas diferentes, e que continuam a ser profundamente influenciados pela economia capitalista global. Neste sentido, estou de acordo com Robyn Eckersley, que afirma que não se pode partir do princípio de que o Estado deixará de ser um ator político particularmente poderoso no futuro mais próximo, o que requer, por um lado, que se procurem estratégias de transformação do próprio Estado e, por outro lado, estratégias de ação fora ou para além dele53.
Aqui situa-se a relevância das propostas pós-antropocêntricas que têm sido desenvolvidas em diferentes campos políticos e da própria Teoria Crítica das RI. Materializar estas propostas exige, também, práticas de negociação e de diplomacia que já fazem parte do âmbito das RI e que devem continuar a ser desenvolvidas, sobretudo através de uma perspetiva não antropocêntrica que se preocupe também em representar e negociar a favor de seres não humanos.
Finalmente, as RI devem recorrer à sua inter ou transdisciplinaridade para estabelecer e promover diálogos mais comprometidos e profundos com outros conceitos, outros movimentos, outras disciplinas e outros campos de ação; por exemplo, os que buscam formas de justiça multiespécies. Esta transdisciplinaridade deve manifestar-se não só através de um diálogo entre as ciências sociais e as ciências naturais, mas também através de um diálogo intercultural que reconheça diferentes sistemas de conhecimento (e. g., conhecimento ecológico tradicional, ciências e conhecimento não ocidentais e indígenas), que têm historicamente sido excluídos pela modernidade ocidental. Esta construção de alianças e de novas formas de solidariedade e de governação pode não só ser conducente a uma maior sustentabilidade socioecológica, mas também responder de modo mais eficaz, adequado e justo à crise ecológica.