A obra de Gilder consiste numa revisão literária extensa sobre a evolução e as problemáticas inerentes às operações de paz contemporâneas levadas a cabo pela Organização das Nações Unidas (ONU). Esta obra traz elementos de clareza ao debate num momento em que se assiste ainda a um impasse ou ao início de um processo de transição do paradigma de paz liberal1. Tal foi acompanhado de um regresso ao conceito de estabilização, o qual pressupõe a ausência de uma solução política para o conflito, nomeadamente em cenários de conflito intra-Estado.
Gilder estabelece uma ligação relevante entre os conceitos de estabilização e de segurança humana. Depois de elaborar sobre a evolução histórica das missões de paz da ONU e sobre o enquadramento conceptual (parte I), a parte II é dedicada a três estudos de caso, nomeadamente as missões de operação de paz da ONU no Mali, na República Centro-Africana e no Sudão do Sul. Por fim, problematiza os mandatos atuais de operações ditas de estabilização2, incluindo a sua crescente militarização.
Na verdade, o regresso ao conceito de estabilização surgiu como alternativa pragmática ao paradigma de paz liberal largamente baseado na construção do Estado que dominou a década de 20003. Já o conceito de segurança humana reflete uma mudança de paradigma, do confronto armado para o direito, num contexto internacional em que as leis se aplicam mais ao indivíduo do que ao Estado4. Neste contexto, apesar do contraste entre ambas as abordagens, Gilder entende que as missões de estabilização da ONU têm o potencial de aspirar à segurança humana, uma vez que podem reforçar normas e direito existentes.
Estabilização no quadro das operações de paz contemporâneas da ONU
Em 1992, o relatório «Uma Agenda para a Paz», da autoria do secretário-geral da ONU, Boutros-Ghali, apresentou os instrumentos para a promoção da paz, da prevenção e da resolução de conflitos, entre os quais as operações de pacificação (peacemaking) e de manutenção da paz (peacekeeping). Todavia, a modalidade de manutenção da paz continuou ausente da Carta da ONU. Refletindo a Reforma Brahimi (2000), a Doutrina Capstone da ONU (2008) reforçou a não linearidade entre diferentes tipos de operações de paz, ou seja, dos instrumentos enunciados em 1992, e procurou salvaguardar os princípios de imparcialidade, de consentimento e de uso limitado da força.
«Estabilização» surge inicialmente, no final da década de 1990, como um conceito político, carecendo, até hoje, de uma definição no quadro da ONU5. O Conselho de Segurança autoriza missões de manutenção da paz no quadro da resolução pacífica de disputas (capítulo VI) e da imposição da paz (capítulo VII). Estabilização integra a modalidade mais larga de gestão de crise da ONU, não correspondendo a nenhum destes capítulos6. Gilder reconhece a implicação da robustez dos mandatos das missões de estabilização, colocando-as entre a manutenção e a imposição da paz.
Entre as tentativas de definição, «estabilização» é tida como um processo em que atores militares apoiam uma liderança civil, por exemplo, no âmbito de operações de apoio à paz e de contrainsurgência7. Na literatura académica, o conceito corresponde, por vezes, ao desenvolvido pelo Governo britânico8, estando na base da pesquisa de alguns autores9. Estes entendem «estabilização» como uma medida provisória com vista ao estabelecimento de um enquadramento e de um acordo políticos para um Estado estável, fundamentais para a realização de processos de paz, mas não necessariamente um estado final concreto10. Gilder reconhece precisamente a complexidade inerente a este tipo de intervenção, uma vez que torna a ONU numa das partes do conflito ao apoiar o governo do país recipiente.
Proteção de civis e segurança humana
A segurança humana conheceu uma institucionalização crescente a partir do estabelecimento da Comissão para a Segurança Humana da ONU em 2003, e culminou na resolução do Conselho de Segurança em 201211. O autor entende que o Conselho está numa posição única para mobilizar essa nova abordagem, embora reconheça que esta é primeiramente da responsabilidade dos Estados.
Gilder defende que os efeitos das operações de estabilização podem ser vistos na perspetiva da segurança humana, nomeadamente nas suas componentes civil e de desenvolvimento, priorizando os indivíduos e as comunidades. Esta abordagem vai de encontro ao questionamento do paradigma de paz liberal durante as duas últimas décadas, nomeadamente através da formulação de novos conceitos e práticas - por exemplo, o conceito de «paz positiva» associando paz e desenvolvimento12.
O autor procurou identificar o potencial de integração da segurança humana nas operações de paz da ONU. Enuncia três princípios fundamentais da segurança humana (núcleo vital, reconhecimento da vulnerabilidade, proteção e empoderamento), analisando-os seguidamente no âmbito dos três estudos de caso. Trata-se de uma abordagem marcadamente normativa, confundindo-se correntemente com direitos humanos13, e sujeita à interpretação do direito internacional. O núcleo vital implica a identificação pelos próprios indivíduos das suas necessidades de segurança, através de uma abordagem base-topo. Assim, o conceito de segurança é analisado num sentido mais lato, pressupondo, ainda, uma abordagem holística no quadro das diferentes intervenções.
As missões integradas ou multidimensionais14 - denominadas «de terceira geração» - tendem a incluir a proteção de civis e a construção da paz, da assistência humanitária ou da capacitação de atores estatais. Implicam uma estreita colaboração e coordenação com outros departamentos da ONU (entre os quais, os de desenvolvimento e assuntos políticos). O conceito de segurança humana, tal como desenvolvido por Gilder, tem, assim, uma base relevante para a sua operacionalização.
As missões da ONU no Mali e na República Centro-Africana centraram-se na restauração da autoridade do Estado. Todavia, o autor explica como a robustez do mandato da Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para Estabilização do Mali15 tinha uma natureza preventiva e dissuasora no quadro da proteção de civis prevista no seu mandato. Junta-se, ainda, a vozes que alertaram para o risco inerente à colaboração, direta ou indiretamente, com operações de contraterrorismo16. A Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para Estabilização da República Centro-Africana17 destacou-se por investir no (re)estabelecimento do Estado de direito, o qual consistiria no segundo passo do processo de estabilização. A seleção da Missão das Nações Unidas no Sudão do Sul18 como estudo de caso é justificada pela ênfase dada à proteção de civis e pelo seu carácter fortemente militarizado. Conclui, porém, que, na prática, mostrou menos robustez que as outras duas missões - estas apresentando uma abordagem mais holística - e que se afastou de uma natureza que se queria mais de prevenção do que de resposta com vista à proteção de civis.
Finalmente, Gilder explica como a intervenção da ONU favoreceu a aplicação do princípio da proteção de civis. Apresenta, ainda, recomendações com vista a uma maior integração da segurança humana na totalidade dos seus princípios. Todavia, a contestada aplicação do conceito de estabilização, numa fase em que o projeto de paz liberal requer uma transformação, implica um risco adicional às recomendações que faz para a operacionalização da segurança humana no quadro onusiano. Em suma, o volume oferece uma introdução completa sobre a complexidade inerente às operações de paz contemporâneas, incluindo uma explanação da sua evolução, sobretudo desde a década de 1990. Traz, ainda, um contributo importante para o debate sobre a operacionalização de um conceito complexo - segurança humana - nas intervenções da ONU, visando um objetivo raramente circunscrevido - a estabilização.