1. Introdução
Bethielle Kupstaitis submete-se à experiência da cegueira como uma determinação para a prática do desenho. Ela abre a primeira série de seus trabalhos com um protocolo preciso, que passa primeiro pela cegueira total, induzida. Com o transcorrer da pesquisa prática, em uma segunda série, a artista começa a abandonar a radicalidade, permitindo-se então a uma visualidade relativa, para seguir desenhando de olhos entreabertos. E, finalmente, de olhos abertos, ela trabalha a ideia de um visível que carrega a marca da invisibilidade, e que torna-se a base para a criação de séries de fotografias, objetos e desenhos cujo conceito operacional é por ela denominado de “cegueira vidente”.
A artista assume o protocolo do não-ver como condição de visibilidade. Com seus desenhos e esculturas, ela procura refletir sobre a relação ver/não ver, relativizando a dualidade visão/cegueira e procurando mostrar que o visível não corresponde ao oposto do invisível, ou que a visão não é antagônica à cegueira. A visibilidade, portanto, teria como complemento seu seu suporte invisível. E que em realidade, o que nos é dado a ver seria não o visível, mas antes o invisível, abrindo o espaço onde, segundo o pensamento de Derrida, “uma certa noite vem cavar um abismo na própria apresentação do visível” (Derrida, 2011:399). Seus trabalhos trazem um comentário sobre a necessidade da escuridão, em uma dialética necessária entre a luz e a sombra, e sobre as condições de possibilidade do surgimento da imagem, assim como uma busca pela supressão, um apagamento ou escurecimento, para conservar o seu essencial: o silêncio.
O presente artigo parte das inquietações da artista para tratar das zonas limítrofes entre visualidade e imagem, e suas diferenças. Através do pensamento de Marie-José Mondzain (Mondzain, 2007) e de Jacques Derrida (Derrida, 2011), pretende-se refletir sobre o tipo de experiência que temos com a visualidade que se apresenta em nossos écrans midiáticos. E, desta maneira, abordar o tema da cegueira como uma crítica política nos dias de hoje, e pensar sobre a experiência da obscuridade, da sombra e do sentido de sublime na arte. Para Derrida, a condição do desenho e das artes visuais em geral depende da passagem por um processo de enegrecimento: “O movimento em que o desenho inventa, em que ele se reinventa, é um momento em que o desenhista é de algum modo cego”. (Derrida, 2011:71).
O objetivo é o de realizar uma escrita que remeta às diferenças entre visualidade e imagem, e pensar sobre a terminologia utilizada como antônimo de cegueira, como o enxergante, o visionário, o vidente e o clarividente, através de uma reflexão sobre a imanência e a transcendência no campo da arte. Seguremos à pergunta feita por Mondzain, ao se referir à imagem não apenas como ligada a objetos visíveis, mas a algo que surge, aparece, nem sempre especificamente através do olhar, apresentando logo a seguinte questão: “Estaria um cego, por isso, privado de qualquer relação com a imagem?” (Mondzain, 2007:28). Concluindo que o termo imagem, empregado pelos cegos, assim como o verbo ver, direciona à exploração dos demais sentidos. A conclusão versará sobre os conteúdos imagéticos que contém em si o invisível, o obscuro e as sombras através dos trabalhos da artista.
2. A cegueira induzida: os olhos bem fechados
A artista lembra que o significado da palavra cegueira, além de se referir a uma obsessão, perturbação ou ignorância, remete aos adjetivos escuro, obscuro e tenebroso, da sombra como encoberto e inescrutável. Podemos dizer que a artista trabalha sempre o entre: Entre a luz e a sombra, entre o esquecimento e a lembrança, entre o luto e sua negação, entre a palavra e o silêncio. Seu trabalho nos faz refletir sobre a forma de assimilação das imagens que nos cercam. O que nos leva a pensar que trabalhar com arte significa trabalhar com uma espécie de privação. Ou seja, em alguma condição de ausência, em uma noite. Iremos salientar e refletir sobre a necessidade do silêncio, para remeter a nosso próprio silêncio e necessário, onde é preciso deixar cegar-se para perceber e escutar as coisas que importam. Como entregar-se ao movimento do lápis, para que a arte possa surgir (Figura 1)
Assim como aquele que dorme e sonha, dobrar-se, redobrar-se em torno de si mesmo durante o sono remete a um gesto do corpo. A cegueira induzida nos trabalhos de Bethielle lembra esta dobra, esta noite como reserva interior. Por isso a própria artista se refere à cegueira não como uma falta, ou uma carência que deva ser suprida. Ao contrário, ela fala de uma cegueira propositiva, positiva, capaz de indicar caminhos para a visualidade; o silêncio necessário para que aprendamos a ouvir e a ver melhor o que interessa. A arte da visibilidade teria como suporte o seu contrário, a invisibilidade.
A sombra de uma imagem não poderia nos reenviar ao inverso dela própria, como acontecia no processo fotográfico negativo-positivo? Giotto, explica Stoychita (Stoichita, 1997) evocava a sombra como um método para modelar corpos, recuperando-os, dando encarnação. As funções fantasmáticas são comuns na sombra, como a anunciação de uma presença através da ausência, além de sua relação indiciária e de semelhança. Mas que apontam também para a superação, a completude, o restabelecimento de alguma coisa perdida, um positivo. Dante, no fim do Purgatório, já falava da primeira sombra como o sinal de também de uma primeira luz, um nascimento em negativo.
Em um trabalho de pesquisa em forma de tese (Kupstaitis, 2020), a artista adota por princípio esclarecer as sombras, na busca do conhecimento. Como pesquisadora, creio que ela realiza uma tentativa de esclarecer algo que estava naquela encruzilhada entre o ver e o não ver, tornando-a um encontro, um o sintoma da ausência que a provocara. Nesta via dupla, vejo os gestos e as palavras da artista a procurar e a fugir simultaneamente, num paradoxo entre buscar a fazer o elogio das sombras, ou esclarecê-las, dissolvendo seus mistérios.
O jogo de claro e escuro que se revela nas imagens da artista remetem ao comportamento de uma superfície fotossensível que pode ser manipulada no desenho. Ali o gesto é a tentativa de romper com os signos da separação e da ausência que marcam o luto da imagem, e a referir-se a si mesma, a seus desejos, como em um autorretrato.
A pesquisa de Bethielle lembra a fronteira entre e o desenho, a fotografia e a palavra, como entre vida e morte. Se a fotografia representa o luto da perda, o desenho e a palavra vem trazer a permanência.
O escuro e a sombra transformam-se então em instrumento de conhecimento, pois tem em si a força de excitar a curiosidade para um esclarecimento. Busco no trabalho da artista esta imagem latente, véu sombrio e invisível onde a criação artística transforma-a em fecundidade e em aparecimento. A arte, como diria Pascal Quignard, “não somente vê faltando, mas assume o controle da morte” (Quignard, 2007:229). Talvez ela desse sinais desta sombra nos primeiros desenhos, para poder encontrá-la em sua potência máxima em outro momento mais tarde. Como diria Blanchot, “A fuga é justamente esse tudo que se esconde e para onde ela nos atrai, repelindo-nos.” (Blanchot, 1998:47)
Jean Lancri, ao nos lembrar que “fotografar é não ver, é não saber realmente o que se captura em uma foto no momento da tomada fotográfica” (Lancri, 2019:68), nos leva a um paradoxo. Assim, criar corresponderia, a “não conhecer com exatidão o que se está criando” (Lancri, 2019:68) Jean Lancri lembra também que Marcel Duchamp trouxe a metáfora do artista como “portador de sombra”, (Lancri, 2019:15) em uma tarefa infinita de preencher as lacunas abertas.
3. Os olhos entreabertos- o apagamento e a oclusão parcial do olhar
Em uma segunda série de trabalhos, a artista abandona a experiência da cegueira radical e parte para a exploração de uma visualidade relativa, como uma analogia da visão semiaberta, ou seja, onde acontece uma espécie de defasagem do olhar, que não permite visualizar o que é feito no momento em que o trabalho acontece. Uma defasagem. Em uma exploração do preto em suas nuances, a artista trabalha sobre o papel preto com lápis pressionando uma interface- o filme preto de carbono- transferindo o desenho e eliminando o contraste mais radical. Ao anular cores e tons e retirar distinções de luz e sombra, a artista realiza um processo semelhante ao apagamento ou à veladura, nesta série denomonada Transferências. Ali ela trabalha em camadas, com operações da força empregada no lápis que buscam simplificar, em um método antiquado e arcaico de duplicação da imagem, como uma crítica da dominação dos meios tecnológicos da multiplicação da imagem. Em diferentes negros das marcas do grafite e do carvão, revelam-se gestos de presença/ausência e perda/permanência. Um visível que traz também nas sutilezas os amálgamas diferentes do carbono e do grafite. Um não ver que tem a marca da cegueira, mas que permite a revelação do desejo.
Em Émergences, ressurgences, Henry Michaux fala da violência do gesto do desenho sobre uma superfície qualquer como um processo de luto (Michaux, 1972). O gesto gráfico seria uma tentativa de objetivar o traço deixado pelo outro, em um processo de separação. Este no tempo da inscrição representaria esta tentativa de mise-en-scene das feridas infligidas por uma separação. É por onde o processo de luto pode começar. No exercício, a aceitação do fim de uma unidade dupla, como uma relação homem/mulher, pai/filha (o), o gesto gráfico é colocado a serviço do trabalho de luto. Uma repetição cíclica que marcaria a passagem da descoberta da ferida, àquela do prazer. É provável que no caso de Michaux, este trabalho também se transfira à palavra, à escrita, ou à ficção, neste processo de desdobramento. Nos desenhos negros de Bethielle Kupstaitis podemos localizar estes momentos de luto, de separação em camadas, e que buscam, na passagem por processos intermediários, o silêncio da imagem.
O negro do carbono, que absorve a luz nessas finas linhas, desenhado sobre um negro que reflete um pouco de luz do papel de fundo, quando observado sob diferentes ângulos de iluminação, são características do protocolo adotado para a série Transferências. Estas não apontariam, a meu ver, apenas à memória do Wunderblock de Freud, mas à “indestrutibilidade do desejo”, ou seja, à busca por uma luz redentora que vem do desejo. Esta força é algo que nos faria, segundo Georges Didi-Hubermann, “...em plena escuridão, buscar uma luz apesar de tudo, por mais fraca que fosse” (Didi-Hubermann, 2017:15).
Nestes processos de transferências, a artista escolhe imagens aleatórias de seu arquivo, com a intenção de dificultar a distinção de elementos e eliminar os contrastes. Há uma busca de aproximação do olhar do espectador, na descoberta das imagens que não se revelam à primeira vista. Kupostaitis relaciona esse processo à etapa de elaboração psíquica ligada à memória. A artista lembra Jacques Derrida, para quem “uma das alternativas para se criar na cegueira é recorrer à memória” (Derrida, 2011:55). E se refere a um entrelugar, entre percepção e memória. O filósofo, por sua vez, lembra o mito de Plínio para salientar que na prática do desenho e da pintura, a memória seria alçada como recurso para as representações, em que se substitui a percepção. Seria o lugar da memória afetiva, aquela que substitui o olhar no ato de registro do perfil sombra do amado que se ausenta (Derrida, 2011:56).
4. De olhos abertos
Ao chegar a esta última fase de trabalhos, a artista realiza um entrelaçamento das duas primeiras propostas: a invisibilidade total e a restrição parcial da visibilidade, para formular o que ela denomina de “uma cegueira como teoria” (Kupstaitis, 2020:153). A ideia desta cegueira vidente serve de pretexto e base para a criação de uma série de fotografias, objetos e desenhos que abordam certas zonas de invisibilidade e pontos cegos que se aproximam do pensamento de Derrida, salientando a invisibilidade como mistério e desejo, como noite e como silêncio.
Em Nautreza-morta com objetos-sombra, a artista parte de uma coleção de pequenos objetos enegrecidos com tinta para buscar sua forma essencial (Figura 2).
Maurice Blanchot, em uma obra intitulada Le pas au-delà, diz que só a separação, o apagamento e a destruição de algo dá acesso à mudança: “Apagar, reescrever sobre aquilo que já estava escrito, não somente recobre, mas restaura obliquamente ao descobri-la, nos obrigando a pensar naquilo que havia sido anteriormente.” (BLANCHOT, 1973:43). Por isso escrever é antes de tudo um processo infinito, porque é na própria dinâmica de seu apagamento que o novo aparece com clareza. Assim pode ser o desenho: nos escombros, na sua própria destruição (em negativo) ele se revela. Podemos relacionar aqui no trabalho da artista uma busca de separação entre a realidade visível e a representação, graças à utilização de materiais “pobres” como objetos encontrados, sombras e tinta preta, para opor opacidade ea transparência, cheio e vazio, em uma cena de teatro onde a palavra, o gesto e a imagem inscrevem o silêncio (Figura 3).
Em modos de cegar objetos, ela explora a atuação da mão sobre os objetos. Pintar, cobrir, adicionar, multiplicar, enterrar- são verbos que traduzem o protocolo de ações em busca de metamorfosear e remodelar esses objetos simples, do dia-a-dia. A artista refere-se à relação entre verbo e imagem, e da dialética que torna as coisas visíveis. Mas ela diz que entre verbo e imagem há a obscuridade. E lembra Blanchot, para quem a palavra e o gesto estão sempre “nos mantendo em suspenso entre o visível e o invisível, ou aquém de um e de outro” (Blanchot, 2007:70).
Conclusão
Em Sallinger, uma vida, Kenneth Slawensky relata um conto não publicado do autor de O apanhador no campo de centeio que se passa durante a guerra, intitulado The Magic Foxhole. A única figura viva na cena descrita é um capelão, que entre os mortos, engatinha procurando seus óculos. Por trás da angústia, da desesperança, podemos ler ali a busca da clareza da visão, em plena escuridão. Um princípio de esperança em tempos sombrios. Uma busca espiritual, como um desejo indestrutível. Já T.S. Eliiot, em Terra Arrasada, começa o poema buscando “misturar memória e desejo”, em uma visão ao mesmo tempo existencial e espiritual, para falar mais adiante de algo insólito: ‘’a sombra que medra uma rocha escarlate, e da tua sombra a caminhar atrás de ti, quando amanhece”. (Elliot, 2004).
Creio que a prática do desenho, acompanhada à reflexão teórica de Bethielle Kupstaitis nos transmite uma profunda experiência, elevando-a a este nível espiritual. Ela não nos conduz pela mão, para que cheguemos a um determinado lugar, nos levando através da escuridão. Ao contrário, chegamos à revelação por nosso próprio olhar, vivenciando impossibilidades de visão.
Por trás da escuridão aparente de alguns trabalhos, vemos, por contraste, uma luz reveladora. Uma energia que emana em direção à iluminação, algo próximo ao que Didi-Hubermann classifica como a “luz do desejo”, uma força que nos levaria em plena escuridão, nas palavras do filósofo, a “ultrapassar as trevas, atravessar a muralha”(Didi-Hubermann, 2017:15). A essência dos trabalhos da artista deve ser sentida não só com o olhar, mas com o coração, para ser experimentada totalmente.