1.Introdução
A discussão sobre cidades mais sustentáveis1 tem ocupado posição importante entre os estudos urbanos e, cada vez mais, também no debate político. Embora bastante diversificado, este tema tem apresentado considerável convergência em torno da noção de que cidades mais densas e com uso do solo misto (dentre outras prescrições) são o caminho mais adequado para se enfrentar os problemas decorrentes da urbanização recente. Um dos indícios dessa convergência foi o congresso Habitat III, promovido pelas Nações Unidas em 2017, no qual as nações signatárias da Agenda Urbana resultante do evento se comprometeram a, dentre outras coisas, promover
51. (...) o desenvolvimento de estruturas espaciais urbanas, incluindo instrumentos de planejamento e desenho urbano, que apoiam a gestão e o uso de recursos naturais e do solo sustentáveis, compacidade e densidade adequadas, poli centralidade e usos mistos (...) (UNITED NATIONS, 2017, pág. 15, destaque nosso, tradução nossa).
Esses princípios, tomados em conjunto, têm sido referidos na literatura pela expressão Cidade Compacta2 e, como expressa a Nova Agenda Urbana da ONU, tendem a ser incorporados na prática do planejamento territorial das nações signatárias do documento. Diante desse cenário, é importante compreender como esse modelo urbano foi construído: o contexto para o qual originalmente foi pensado, seus principais pensadores e as etapas de sua evolução até a contemporaneidade. Para isso, apresenta-se aqui uma revisão de literatura (sem dimensão empírica) que objetiva compreender e consolidar como esse percurso foi desenvolvido e, em especial, destacar a contribuição do grupo inglês Townscape na gênese das ideias do conceito.
Entre os trabalhos que apresentam algum tipo de panorama sobre as origens do conceito de Cidade Compacta, nota-se forte ênfase (sobretudo no contexto dos estudos urbanos desenvolvidos no Brasil) na contribuição do pensamento da jornalista novaiorquina Jane Jacobs ou em certos estudos de caráter empírico, como os trabalhos de Newman e Kenworthy. Porém, mais de uma década antes da atuação de Jacobs, as críticas, pesquisas e proposições desenvolvidas pelo movimento inglês Townscape3 foram fundamentais para o desenvolvimento do modelo compacto - inclusive, a própria jornalista novaiorquina afirmou que a discussão desenvolvida pelo grupo exerceu influência na construção de seu pensamento e atuação política4.
Assim, este trabalho objetiva apresentar, em linhas gerais, o desenvolvimento do conceito de Cidade Compacta, pontuando as principais contribuições para sua formulação e o contexto no qual elas foram produzidas, com destaque para a crítica desenvolvida no âmbito da revista inglesa Architecture Review e do movimento Townscape. A partir da construção deste percurso, foi possível sistematizar a evolução da Cidade Compacta em dois períodos distintos: em seu nascimento, surgindo como uma alternativa à prática urbanística do entreguerras e marcado pela atividade intelectual e militância política iniciada com o movimento Townscape, na Inglaterra e, a partir da década de 1980, como solução, no campo do urbanismo, para os problemas ambientais (mas também, com ênfase menor, para problemas de ordem socioeconômica) decorrentes do modo de vida urbano.
Para apresentar a evolução do conceito, o artigo foi dividido em três seções: na primeira, são apresentadas as formulações teóricas que orientaram a prática do Urbanismo na primeira metade do século XX e o contexto no qual elas foram desenvolvidas; em seguida, o primeiro momento de formulação do conceito de Cidade Compacta, entre os anos de 1940 e 1970, com destaque para a contribuição do movimento Townscape; e, na terceira seção, é abordado o período atual de desenvolvimento da Cidade Compacta, iniciado na década de 1980. Ao final, o texto apresenta, de modo sintético, a evolução do conceito sob investigação conforme a perspectiva proposta para o trabalho e algumas considerações a partir das informações analisadas.
2.A Revolução Industrial e a ruptura da Cidade Tradicional5
Durante longo período, as cidades, em geral, foram entidades morfológicas bem definidas, estáveis e claramente diferenciadas em relação ao campo em termos de paisagem, modo de vida e função. Com a Revolução Industrial este quadro começou a ser transformado por meio de dois processos paralelos: de um lado, uma série de avanços em diversas áreas do conhecimento (medicina e agricultura, principalmente) contribuíram para um acelerado crescimento populacional que, direcionado pela industrialização, aglutinou muitas pessoas em algumas poucas cidades, tornando-as muito grandes e diluindo a tradicional distinção entre campo e cidade; ao mesmo tempo, a Revolução Industrial não apenas concentrou pessoas nos centros urbanos, mas introduziu profundas transformações no tecido social, econômico e político das sociedades que se industrializaram.
Tais transformações ocasionaram, por sua vez, o desenvolvimento de uma série de inovações jurídicas, tecnológicas e espaciais, reestruturando o sistema urbano para atender às necessidades da nova matriz produtiva e também para mitigar a profunda deterioração das condições de existência que a industrialização produziu em seus primórdios no território europeu, principalmente - superpopulação, epidemias, poluição, péssimas condições de trabalho, dentre outros (BENEVOLO, 1987, 1994; CHOAY, 2010; HALL, 2016; MUMFORD,
1998; ZUCCONI, 2009).
Em resposta a esses desafios, além das inovações legais, tecnológicas e arquitetônicas, foi posto em marcha, a partir da primeira metade do século XIX, um intenso processo de reflexão teórica e experimentação que, dentre outras coisas, daria origem à disciplina do Urbanismo6. Este período formativo pode ser dividido em dois grandes momentos: um que se estendeu até o terceiro quartel do século XIX, marcado pela atuação de generalistas (profissionais e pensadores que não eram arquitetos) e por seu viés fortemente politizado; e outro, entre fins daquele século e meados do seguinte, onde ocorre a consolidação do Urbanismo como uma nova disciplina acadêmica, dominada pela atuação de especialistas e se afastando, ao menos em teoria, do caráter politizado da fase anterior com o objetivo de posicionar-se como uma atividade técnica e científica (BENEVOLO, 1987; CHOAY, 2010; HALL, 2016; SECCHI, 2006).
Segundo a sistematização de Françoise Choay (CHOAY, 2010), boa parte das proposições do período podem ser agrupadas em duas categorias, chamadas por ela de modelo culturalista e modelo progressista7: o primeiro buscava na Cidade Tradicional, especialmente no burgo medieval, tanto o tamanho quanto os modos de vida rompidos pela era da máquina, propondo assim núcleos urbanos menores para favorecer relações interpessoais típicas das comunidades tradicionais - em geral, os culturalistas possuíam uma visão pessimista em relação à industrialização e à grande cidade; os progressistas, ao contrário, encaravam a industrialização e suas novidades de modo entusiasta, com uma atitude de aceitação e exaltação dos novos tempos, sendo a velocidade, a grande população e o racionalismo seus elementos fundamentais. Apesar das diferenças, culturalistas e progressistas compartilhavam uma atitude em comum: suas ideias não eram voltadas para a adequação das cidades existentes à era da máquina, mas posto que as consideravam inadequadas, ambos os modelos propunham a implementação de configurações urbanas totalmente distintas da realidade, seja por meio de modelos radicalmente distintos (como os progressistas) ou certas versões idealizadas do passado urbano europeu (culturalistas) e, não raro, com conteúdo fortemente utópico e ideológico (CHOAY, 2010; HALL, 2016).
Além disso, ambas as visões consideravam o fenômeno da dispersão urbana um problema. Surgida com o advento do transporte sobre trilhos no contexto da Revolução Industrial8, a dispersão era um mal a ser eliminado - seja pela limitação do tamanho das cidades proposta pelos culturalistas, seja pela intensa verticalização defendida pelos progressistas. Entre as exceções conhecidas, convém ressaltar, na Europa, a Cidade Linear de Arturo Soria y Mata, proposta em fins do século XIX, como uma alternativa que via na dispersão o caminho mais eficiente para a organização das cidades na era da máquina; décadas depois, Frank Lloyd Wright proporia sua Broadacre City (1932), um padrão de assentamento bastante disperso espacial e funcionalmente, a ponto de pouco parecer, do ponto de vista morfológico, a uma cidade. Inclusive, Choay classifica a proposta de Wright como a principal representante do Urbanismo Naturalista, um modelo que rejeita a noção de que a cidade industrial deveria ser um objeto claramente diferenciado espacial e funcionalmente em relação ao campo - um urbanismo antiurbano9 (CHOAY, 2010).
Após décadas de efervescência intelectual sobre a cidade industrial ideal, os anos que se estenderam do entreguerras até a década de 1970 foram férteis, por sua vez, em tentativas de materialização das ideias desenvolvidas anteriormente. Em especial, a Cidade Modernista (representante do modelo progressista) e a bucólica Cidade-Jardim (culturalista) tornaram-se as soluções dominantes em boa parte dos projetos de reconstrução de áreas destruídas pelas guerras, dos planos de renovação urbana, das expansões de cidades existentes ou mesmo para a criação de novas cidades em várias partes do mundo (HALL, 2016; TREVISAN, 2009).
Como expressão máxima da visão progressista, a proposta do Movimento Moderno, sintetizada na Carta de Atenas (1933) e na obra de Le Corbusier (figura 1), rejeitava a pequena cidade e suas baixas densidades, propondo cidades compostas por arranha-céus e recortadas por grandes eixos de transporte rápido, entremeados por abundantes áreas verdes e organizadas segundo zonas monofuncionais (CHOAY, 2010; CORBUSIER, 2009; HALL, 2016; LAMAS, 2011).
A Cidade-Jardim, proposta por Ebenezer Howard (figura 2) em fins do século XIX, buscava por sua vez combater a metropolização e a dispersão urbana por meio da criação de redes de cidades pequenas, fortemente integradas entre si. Seu espaço intraurbano é caracterizado pela presença abundante de áreas verdes e organizado de modo a separar rigidamente os diversos usos do solo10. Ainda hoje, subúrbios-jardins são populares em muitas partes do mundo devido às suas amenidades ambientais e ao efeito que a combinação pitoresca entre arquitetura historicista e grandes superfícies ajardinadas causa em boa parte das pessoas (CHOAY, 2010; HALL, 2016; HOWARD, 1902; LAMAS, 2011).
Em paralelo ao desenvolvimento teórico e às primeiras realizações concretas dos modelos progressista e culturalista, um grupo formado por britânicos (especialmente o escocês Patrick Geddes, idealizador da teoria) e norte-americanos (o grupo Regional Planning Association of America11- RPAA) desenvolveu a teoria do Planejamento Regional. Conceitualmente, defendiam a organização da sociedade industrial de modo descentralizado do ponto de vista político e espacial, combatiam a metropolização e propunham que a região deveria ser a unidade básica do planejamento territorial. Além disso, a teoria de Geddes trouxe importante contribuição metodológica para o Urbanismo, uma vez que a sistematização das etapas de planejamento desenvolvida pelo grupo permanece sendo empregada, em essência, até os dias atuais12 (CHOAY, 2010; HALL, 2016).
Se, do ponto de vista metodológico, o Planejamento Regional afastava-se dos modelos culturalista e progressista, a solução espacial que advogava era bastante próxima do ideário jardim, uma vez que propunham a eliminação das grandes cidades em favor de redes de pequenos núcleos permeadas por áreas campestres para produção de alimentos, extração de matérias-primas e também zonas de preservação natural13. Acima de tudo em solo britânico, os promotores do Planejamento Regional incorporaram quase sempre o desenho jardim em suas proposições, entendido como a solução mais adequada para combater a conurbação (termo criado por Geddes), o grande centro congestionado e a supressão da paisagem natural decorrente da dispersão espacial iniciada com a industrialização (HALL, 2016; MUMFORD, 1998; ZUCCONI, 2009).
Desenvolvidas desde a virada do século XX, essas três ideias (o Planejamento Regional, a Cidade-Jardim e a Cidade Modernista) tiveram que aguardar o período do entreguerras para ser implementadas de modo mais abundante na Europa, nos EUA e, em menor intensidade, nas outras regiões do mundo. A visão geddiana, ora em conjunção com o modelo jardim, ora com o modernista, passou a orientar muitos planos em escala regional, com destaque para aqueles voltados para o ordenamento das principais metrópoles industriais do período. Entre os casos mais emblemáticos, pode-se citar o plano para Londres e suas New Towns de desenho jardim (1943), o plano regional para Paris e suas Villes Nouvelles modernistas (na década de 1960). Não só para estruturar cidades existentes, mas também a visão foi empregada na criação de cidades novas, expansão de existentes ou mesmo para dinamizar regiões deprimidas econômica e socialmente - no Brasil, a criação de Brasília (1960) e suas cidades-satélites, assim como a criação de Goiânia (1933) e Palmas (1989), são experiências decorrentes de tais ideias (HALL, 2016; TREVISAN, 2011).
3.O Townscape e o desenvolvimento do conceito de Cidade Compacta (1940-1970)
À medida que tais projetos foram sendo realizados, as duas visões tornaram-se alvo, em ambos os lados do Atlântico, de fortes críticas. Em especial, denunciavam o caráter monótono, o desprezo pelo contexto e a internacionalização das realizações do Movimento Moderno, assim como a proliferação de repetitivos e também monótonos subúrbios-jardim nas periferias das cidades.
Estas críticas, por sua vez, foram acompanhadas pela proposição de princípios de desenho que, segundo seus proponentes, resultariam em cidades melhores que as produzidas pelo Movimento Moderno ou pela Cidade-Jardim. Assim, além desta postura crítica, foram iniciadas pesquisas relacionadas ao desenvolvimento de princípios para o projeto do espaço urbano que, em meados do século XX, dariam origem a um novo campo disciplinar: o Urban Design (Desenho Urbano). Foi neste contexto de revisão crítica das primeiras teorias do Urbanismo que a Cidade Compacta iniciou seu processo de desenvolvimento (BREHENY, 2005; CHOAY, 2010; HALL, 2016; JACOBS, 2011; PAVESI, 2013).
Na origem da evolução do conceito, encontra-se o movimento inglês Townscape, criado por um grupo de arquitetos, jornalistas e críticos integrantes do corpo editorial da revista Architectural Review (AR). Surgido ainda na década de 1940, o Townscape criticava duramente as realizações urbanísticas daquele momento, especialmente: o caráter muitas vezes árido, abstrato e impessoal dos conjuntos habitacionais modernistas; o excesso e o tamanho dos espaços livres propostos pela Cidade Modernista e pela Cidade Jardim e sua ruptura com o típico espaço público ‘fechado’ das cidades históricas14; o impacto dos automóveis no espaço urbano e a proliferação de subúrbios-jardins que, segundo o movimento, eram responsáveis pelo intenso processo de dispersão espacial daquele período, apagando a tradicional separação e distinção (visual, morfológica e funcional) entre campo e cidade15.
Dentre os formuladores do Townscape, destacam-se o editor e proprietário da revista AR, Hubert de Cronin Hastings (que usaria em seus artigos o pseudônimo de Ivor de Wolfe), o crítico de arte alemão Nikolaus Pevsner, os urbanistas britânicos Gordon Cullen e Elizabeth Denby, além de uma das vozes mais agressivas contra as reconstruções do pós-guerra na Inglaterra: o jornalista Ian Nairn - que se tornaria bastante influente no debate público inglês a partir da década de 1950 com a publicação de artigos onde denunciava os problemas, segundo a visão do grupo, causados pelas realizações urbanísticas do pós-guerra.
As propostas do Townscape almejavam, essencialmente, duas coisas: revisar a arquitetura de seu tempo (não eram contrários à linguagem modernista, mas propunham uma revisão crítica de seus postulados), especialmente eliminando seu caráter monótono, impessoal e desligado do contexto (histórico, social, cultural etc) para o qual era produzida; e, ao mesmo tempo, reverter a dispersão espacial e a dissolução da distinção campo-cidade causada pela proliferação dos subúrbios. Suas ideias, por sua vez, tinham como raiz o ideal do Pitoresco, herdado do romantismo britânico do século XVIII, via certos pensadores - sobretudo, John Ruskin e William Morris (do movimento Arts and Crafts), Edwin Lutyens e, já na AR, a publicação, em 1944, do artigo Exterior Furnishing or Sharawaggi: the art of making urban landascapes. Este, provavelmente escrito por Hastings, pode ser considerado o texto fundante do movimento Townscape, uma vez que defendia a construção de paisagens urbanas baseadas na reflexão sobre o Pitoresco (na prática, a Cidade Tradicional) - advogando pelas qualidades decorrentes do acidente, do irregular, da assimetria, da complexidade e de outros aspectos visuais contrários aos ideais clássicos relacionados aos conceitos do Belo e do Sublime (BREHENY, 2005; CULLEN, 1996; NAIRN, 1955; PAVESI, 2011, 2013).
Outros dois artigos ainda desse período inicial da atividade do grupo inglês, Townscape: a Plea for na English Visual Philosophy (1949) e Man Made American (1950), já diretamente teciam críticas às realizações do pós-guerra na Inglaterra e, no segundo artigo, à paisagem construída norte-americana - e, assim, já antecipando em cerca de uma década o pensamento e a atuação de Jane Jacobs (LAURENCE, 2016). Porém, foi a partir da década de 1950 que o movimento assumiria maior consistência, inclusive exercendo certa influência junto à opinião pública e à reflexão urbanística dentro e fora da Inglaterra. Em especial, destacam-se duas edições especiais da AR, ambas editadas por Nairn - uma em 1955 e outra no ano subsequente, cujos textos tornar-se-iam fundamentais para a consolidação de suas críticas e a influência de suas ideias nas discussões e teorias desenvolvidas nos anos de 1960 na Europa e nos EUA (período que, tradicionalmente, é apontado como o produtor dos fundamentos e origens do conceito de Cidade Compacta).
Na primeira publicação, de título Outrage (Ultraje, tradução nossa), Nairn atacou ferozmente a produção urbana do período, especialmente seu caráter repetitivo, a deterioração da paisagem urbana e rural por meio da instalação das novas infraestruturas urbanas (fiação elétrica, placas publicitárias) e, especialmente, o avanço da produção de subúrbios na Inglaterra, destruindo a paisagem natural inglesa e a própria identidade de suas cidades devido à excessiva semelhança que tais subúrbios tinham entre si - a este estado de coisas ele denominou Subtopia (junção das palavras subúrbio e utopia, mas também uma sub- utopia). Além das críticas, Nairn insinuou alguns princípios de planejamento oriundos do Townscape, com destaque para a proposta de conter o processo de suburbanização por meio da produção de cidades com densidades populacionais maiores e com nítida separação visual em relação ao campo. Na outra edição, de título Counter-Attack Against Subtopia (Um revide contra Subtopia, de 1956, tradução nossa), o destaque foi um artigo de Elizabeth Denby, de título Oversprawl (Super espraiamento, tradução nossa). Neste texto, ela não só atacava a suburbanização mas também conclamava o país a olhar para suas áreas industriais antigas, instaladas na parte histórica das cidades e que, segunda a jornalista, detinham caracteres de um habitat mais humano e sensível à cultura tradicional britânica (BREHENY, 2005; NAIRN, 1955; PAVESI, 2011, 2013).
Nas décadas seguintes, outras publicações em solo britânico iriam consolidar as ideias do Townscape. Em 1961, Gordon Cullen publica o livro Townscape (reeditado em 1971 como um outro livro: The Concise Townscape16). Nesta obra, Cullen reuniu uma série de artigos seus publicados entre 1951 e 1959 na AR, contribuindo para uma maior divulgação das ideias do movimento, inclusive em outros países - mais ainda, foi com a obra de Cullen que a visão do grupo foi convertida em uma metodologia analítica da paisagem urbana. Também, com as publicações de Cullen, é possível perceber outro aspecto fundamental das ideias do Townscape: a procura na cidade tradicional europeia, pré-industrial, por configurações espaciais e relações funcionais que, para aqueles pensadores, produziriam cidades melhores17 (CULLEN, 1996; PAVESI, 2015). Hastings (Ivor de Wolfe) também produziu publicações importantes: em 1963, o livro The Italian Townscape (no espírito de Cullen e Sitte) e, em 1971, um artigo na AR onde resumia as ideias de seu livro Civilia: the end of sub urban man, com forte crítica ao uso do automóvel particular e à dispersão espacial causada pelos subúrbios, propondo como alternativa a criação de áreas urbanas com densidades típicas das áreas históricas europeias, com sistemas de transporte coletivo de alta capacidade e polinucleadas (BREHENY, 2005; PAVESI, 2015).
Nos EUA, a principal crítica partiu da jornalista nova-iorquina Jane Jacobs. A partir de uma série de palestras na Universidade de Harvard na segunda metade de 195018, de sua militância política e de suas publicações, Jacobs influenciou fortemente o Urbanismo a partir dos anos de 1960, especialmente com a publicação de seu livro Death and Life of Great American Cities19 (1961), que se tornaria uma das obras de urbanismo mais influentes do século XX. Neste livro ela defendeu cidades mais densas e com uso do solo misto, elementos essenciais, segundo Jacobs, para que uma cidade possua vitalidade urbana - termo que ela empregou para designar o intenso encontro de pessoas e atividades em uma mesma vizinhança e as benesses decorrentes dessa condição. Não só isso, mas Jacobs também apontava para as vizinhanças tradicionais de Manhattan (onde ela mesma vivia) como referências para a criação ou renovação das áreas urbanas existentes - em forte ressonância com as publicações da AR, cuja influência sobre seu pensamento a própria jornalista afirmou na introdução para a edição de 1993 de seu Death and Life (JACOBS, 2011; LAURENCE, 2016).
Além de Jacobs e do grupo do Townascape, outros nomes se destacaram a partir da década de 1960 como teóricos do Desenho Urbano e que, em graus variados, foram relevantes para a evolução do conceito de Cidade Compacta. Em especial, destacam-se Kevin Lynch (A Imagem da Cidade, 1960), Aldo Rossi (A Arquitetura da Cidade, 1966), Robert Venturi e colaboradores (Complexidade e Contradição na Arquitetura, 1966; Aprendendo com Las Vegas, 1972), Colin Rowe (Cidade Colagem, em 1978, junto com Fred Koetter), Christopher Alexander (Uma Linguagem de Padrões, 1977), dentre outros. Estes, por sua vez, percorreram linhas de pensamento e ação distintas, porém em graus variados todos se afastaram das visões jardim e modernista, revalorizando a cidade pré-industrial e propondo um resgate do homem enquanto medida fundamental para o desenho de cidades: seja com reflexões relacionadas à percepção subjetiva (Lynch, Cullen, figura 3), à história da cidade (Rossi, Cullen, Rowe, Alexander), à participação da população na produção urbana (Alexander, Lynch), ao pitoresco e irracional (Venturi, Cullen, Alexander, Rossi) ou mesmo à valorização da produção urbana popular e comercial de seu tempo, desprezada pela academia (Venturi e colaboradores). Em paralelo, o surgimento do Pós-Modernismo na arquitetura, relacionado ao trabalho de muitos destes pensadores, fortaleceu ainda mais a procura pela forma urbana do passado e a rejeição das rupturas propostas pelo Modernismo (principalmente, mas também pela Cidade-Jardim).
Uma publicação menos célebre (em comparação com o livro de Jacobs ou mesmo com a sistematização de Cullen), mas bastante relevante para o que se persegue neste trabalho, foi o livro norte-americano de George Dantzig e Thomas Saaty, chamado Compact City: a Plan for a Liveable Urban Environment(1973)20. Provavelmente, foi onde pela primeira vez a expressão ‘Cidade Compacta’ foi utilizada para denotar um modelo espacial caracterizado por densidades relativamente altas, uso misto do solo, contenção da expansão horizontal, forte integração urbana por meio do transporte de massa e incentivo ao uso de bicicletas e caminhadas para os deslocamentos menores (BURTON; JENKS; WILLIAMS, 2005; DANTZIG; SAATY, 1973).
A importância do livro não se dá apenas por ter dado nome à ideia. Sua relevância reside no fato de ser uma espécie de síntese da crítica de todo o período anterior e por dar forma explícita e abrangente à ideia (na escala de uma cidade). No livro, o modelo é apresentado não só por meio de desenhos, mas em suas primeiras páginas a dupla discorre sobre os principais conceitos que alimentaram sua proposição (citam Jacobs e, em menor grau, modernistas e o movimento jardim)21. Saaty e Dantzig apresentam, na tradição dos pioneiros do Urbanismo, uma estrutura urbana completa, com croquis, números e diretrizes para organização das zonas funcionais, das tipologias habitacionais, do sistema viário e dos transportes (com multimodalidade), sem rejeitar a realidade industrial, os novos modos de vida ou a linguagem arquitetônica do século XX (figuras 4, 5 e 6). Ainda, o livro é interessante pois aprofunda a avaliação da realidade urbana do período, indo além da crítica baseada na observação que foi típica dos primeiros críticos, empregando dados e projeções estatísticas (demográficas, econômicas) a fim de caracterizar a problemática urbana de seu tempo (DANTZIG; SAATY, 1973).
Além da qualidade de sistematizador, o livro ainda se destaca pela inserção da problemática ambiental (recém-surgida na época de sua publicação), já introduzindo o problema do consumo dos recursos naturais e sua preservação para as gerações futuras. Em especial, merece destaque sua denúncia do alto consumo de combustíveis fósseis relacionado às cidades mais dispersas, demonstrando como a vida suburbana e o zoneamento monofuncional intensificam o uso do automóvel na realização das atividades diárias da população. Finalmente, a proposta apresenta o emprego de inovações tecnológicas para solucionar diversos problemas nas cidades: reciclagem de resíduos, ar e água, sistemas de eficiência energética e emprego de fontes de energia não poluentes - tudo isto, em 1973 (DANTZIG; SAATY, 1973).
Diante disso, pode-se afirmar que o modelo Compacto nasce como uma reação às realizações progressistas e culturalistas da primeira fase do Urbanismo, a partir de ideias originalmente desenvolvidas na Inglaterra, mas que ganharam amplitude e notoriedade principalmente por meio da militância de Jane Jacobs. Não apenas, mas é fundamental compreender que o conceito de Cidade Compacta foi consolidado no contexto revisionista e crítico de um movimento mais amplo, o Pós-modernismo, assim como a partir das pesquisas do recém- criado Desenho Urbano. Em fins da década de 1960, embora ainda não designado pela expressão Cidade Compacta, seus princípios já estavam propostos (uso misto, adensamento, compacidade, multimodalidade, diversidade tipológica, revalorização do pedestre etc).
No início da década seguinte, em 1973, o livro de Dantizg e Saaty realizaria importante síntese, dando nome ao conceito, sintetizando sua crítica e proposições, além de apresentar desenhos e esquemas ilustrativos da ideia. Ali, a dupla considerava toda a discussão anterior (via Jacobs), mas também reconhecia contribuições nas visões modernista (a linguagem arquitetônica, o transporte de massa, a unidade de vizinhança, o centro de negócios) e jardim (o controle do tamanho da cidade). Acima de tudo, a publicação pode ser tomada como uma sistematização do período formativo do conceito e, ao mesmo tempo, um prenúncio da etapa seguinte, uma vez que antecipou os novos elementos do desenvolvimento do conceito: o argumento ambiental, o emprego de pesquisas quantitativas e o uso de novas tecnologias para tornar o sistema urbano mais eficiente.
Tendo em vista a sistematização de Choay, a Cidade Compacta pode ser compreendida como uma intersecção entre os modelos progressista e culturalista, proposta no âmbito do que a autora chamou de Crítica de Segundo Grau22: de um lado, a aceitação da grande população, da industrialização, das novas tecnologias e dos novos modos de vida; de outro, o resgate de uma forma urbana e uso do solo mais próximos da Cidade Tradicional Europeia, uma vez que entende que tais características fomentam relações comunitárias mais sólidas, economia urbana mais dinâmica, um melhor aproveitamento das infraestruturas urbanas e uma relação mais harmônica com o ambiente natural.
4.A consolidação da Cidade Compacta (1980 em diante)
A partir dos anos de 1980, o caminho apontado por Dantzig e Saaty foi cada vez mais fortalecido. Isto se explica pelo fortalecimento do movimento ambiental que, nas décadas seguintes, conseguiria romper os limites da academia e alcançar os palanques do debate público. Na busca por mitigar certos problemas, especialmente a destruição de áreas naturais e a redução da poluição atmosférica, os argumentos por cidades mais compactas e que dependessem menos de automóveis particulares se tornaram bastante persuasivos. Em especial, um artigo publicado em 1989, intitulado Gasoline consumption and cities: A comparison of US cities with a global survey (NEWMAN; KENWORTHY, 1989b) apresentou dados que mostravam que, nas cidades pesquisadas, o consumo de combustíveis fósseis era maior quanto menor era sua densidade populacional. Essa constatação ofereceu importante argumento científico para o modelo compacto - ainda em publicações e eventos atuais não é incomum encontrar o consagrado gráfico de Newman e Kenworthy relacionando consumo de gasolina e densidade populacional (figura 7).
Assim, após um primeiro e longo momento de maturação teórica (do Townscape ao livro de Dantzig e Saaty), a década de 1980 inaugura uma nova etapa nas pesquisas sobre o tema, com uma série de trabalhos quantitativos buscando corroborar as afirmações da Cidade Compacta sobre seus benefícios para a economia, a sociabilidade ou, principalmente, para a preservação do meio ambiente. Porém, o novo período não foi isento de publicações de cunho teórico, aprofundando o desenvolvimento conceitual herdado do período anterior.
Diante disto, é possível sistematizar a literatura relacionada ao desenvolvimento do modelo compacto a partir dos anos de 1980 em dois grupos: i. trabalhos de natureza teórica e que propõem princípios para a produção de núcleos compactos, na tradição das publicações pioneiras do Townscape e da produção de Jane Jacobs e, ii. relatórios e investigações quantitativas que intentam comprovar os argumentos em prol da Cidade Compacta, na tradição do artigo de Kenworthy e Newman.
Entre o primeiro grupo, destaca-se a produção teórica do arquiteto britânico Richard Rogers, com destaque para o livro Cidades para um Pequeno Planeta (em parceria com Philip Gumuchdjian, em 1997). Nesta publicação, os autores reúnem argumentos sociais, econômicos e, acima de tudo, ambientais para justificar a produção de cidades compactas sustentáveis, conforme expressão empregada por eles (GUMUCHDJIAN; ROGERS, 2012). Ainda, Rogers tem desenvolvido papel importante na definição das políticas urbanas no Reino Unido, tendo sido apontado para conduzir um trabalho (o Urban Task Force) que sistematizou princípios de ordenamento urbano unificados para a Inglaterra no final do século XX, bastante alinhados com as ideias apresentadas no Cidades para um Pequeno Planeta23 (URBAN TASK FORCE, 1999).
Outro personagem conhecido é o dinamarquês Jan Gehl, cujas publicações, projetos urbanos e pesquisas vêm sendo desenvolvidos desde os anos de 1970 na cidade de Estocolmo, por meio de parcerias entre a academia e o poder público local. A popularidade das intervenções urbanas que Gehl desenvolveu lhe rendeu uma posição destacada mundialmente como consultor e urbanista. Entre suas publicações, destaca-se o livro Cidades para Pessoas (2010), onde enfatiza a importância da escala humana na produção das cidades e o papel que a compacidade e o uso do solo misto têm para que se consiga oferecer espaços urbanos mais agradáveis à população24 (GEHL, 2015).
Pode-se também incluir neste primeiro grupo boa parte da literatura que trata da proposição de princípios de urbanismo ligados à noção de sustentabilidade e eficiência energética (cidade sustentável, eco-cidade, cidade inteligente, urbanismo sustentável, eco-urbanismo, cidade regenerativa, cidade resiliente, smart growth e similares), como podem ser constatados nos trabalhos de Herbert Girardet (GIRARDET, 2015; GIRARDET; MENDONÇA, 2010), no livro de Douglas Farr (FARR, 2013), no movimento pelo New Urbanism (CALTHORPE; RYN, 1986; DUANY; PLATER-ZYBERK; SPECK, 2010; DUANY; SPECK; LYDON, 2009; KATZ, 1993), nas proposições de Peter Newman e colaboradores (BEATLEY; NEWMAN, 2013; KENWORTHY, 2006; NEWMAN; BEATLEY; BOYER, 2017; NEWMAN; ISABELLA JENNINGS, 2008; NEWMAN, 1999), ou na defesa da concentração espacial desenvolvida pelo economista Edward Ludwig Glaeser (GLAESER, 2011). É possível ainda considerar o princípio do Transit-Oriented Development25 (TOD), proposto nos anos de 1990 por Peter Calthorpe (no âmbito do New Urbanism), como uma variante do mesmo modelo, uma vez que propõe o desenvolvimento de cidades a partir do sistema de transporte de massas, com densidades variadas e uso do solo misto (embora sem necessariamente produzir a típica paisagem urbana europeia de edifícios de altura uniforme por toda a cidade)26. Mais recentemente, de um desdobramento do grupo original do New Urbanism, foram propostos, para além do já citado Smart Growth, outro conceito similar, o de Cidade Caminhável (SPECK, 2012).
No Brasil, a produção teórica em Urbanismo tem se concentrado na análise do fenômeno urbano brasileiro e, com grande ênfase, nos problemas causados pela relação entre o Estado e o capital imobiliário (favelização, especulação imobiliária, depredação ambiental, desigualdade socioespacial etc). A quantidade de trabalhos de natureza propositiva e que se aproximam do conceito de Cidade Compacta ainda é bastante inferior em comparação aos trabalhos relacionados à compreensão da urbanização no país. Esta tradição de pesquisa e de atuação técnica (e política) tradicionalmente se concentrou no estado de São Paulo e nos grupos de pesquisa universitários, especialmente no contexto da Universidade de São Paulo (USP)27.
Entre as investigações e práticas que mais se aproximam do conceito de Cidade Compacta, destaca-se a atuação do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC) que, a partir de um plano desenvolvido pelo urbanista Jorge Wilheim em 1966 e a atuação técnica e política de Jaime Lerner, estruturou a capital paranaense por meio de grandes eixos de transporte público, com alta densidade, multicentralidade e uso do solo misto. Com ênfase no aspecto ambiental, destacam-se ainda os trabalhos teóricos de Marta Adriano Bustos Romero e colaboradores (ROMERO, 2000) ou ainda a Biocidade28 de Luiz Alberto Gouvêa (GOUVÊA, 2002), ambas desenvolvidas no contexto da Universidade de Brasília e com graus distintos de proximidade com o modelo compacto.
Desde o início desta década, gradativamente têm surgido uma série de publicações no Brasil relacionadas com o conceito de Cidades Compactas, em geral relacionadas à ideia de sustentabilidade e associadas, mesmo que nem sempre de maneira explícita, Cidade Inteligente29. Entre as publicações mais conhecidas, destaca-se o livro Cidades Sustentáveis, Cidades Inteligentes: Desenvolvimento Sustentável num Planeta Urbano, de Carlos Leite de Souza e Juliana Awad, onde se vincula sustentabilidade, inovação tecnológica e o modelo compacto (SOUZA; AWAD, 2012).
O outro grupo de publicações se volta para a verificação empírica dos argumentos da Cidade Compacta, em geral buscando analisar o comportamento de certas variáveis em função do grau de dispersão espacial ou do padrão de uso do solo em uma dada área urbana. Nesta orientação destacam-se novamente os trabalhos de Peter Newman e colaboradores, com enfoque na relação entre urbanização, uso do automóvel e consumo de recursos naturais (NEWMAN, 2006, 2007, 2010; NEWMAN; KENWORTHY, 1989a, 1989b; NEWMAN; KENWORTHY; VINTILA, 1995) ou ainda a obra do geógrafo James Vance, que desenvolveu substancial reflexão sobre a relação entre morfologia urbana, transportes e a dimensão sociocultural das sociedades, com ênfase nos processos de suburbanização e metropolização norte-americanos, como em seu livro The Continuing City: Urban Morphology in Western Civilization, de 1990 (GODFREY, 1999). Especialmente sobre dispersão, destacam-se as pesquisas e a criação do Índice de Dispersão Urbana (IDU), desenvolvidos por Alain Bertaud e Stephen Malpezzi (BERTAUD; MALPEZZI, 1999, 2001, 2003), o qual também foi aplicado em regiões metropolitanas brasileiras em Ribeiro (2008). No contexto português, pode-se destacar trabalhos como os do geógrafo Álvaro Domingues, relacionados à análise e reflexão sobre urbanização contemporânea, como em Domingues (2010), ou a produção de José Alberto Rio Fernandes, com diversos artigos relacionados ao planejamento territorial na contemporaneidade, sobretudo em relação à cidade do Porto. Para além dos exemplos citados, o número de artigos produzidos neste sentido é significativo. Em Ahlfeldt e Pietrostefani (2017), estão listadas 300 publicações de natureza empírica, realizadas por autores de diferentes nacionalidades e todas voltadas para a verificação dos efeitos da implementação dos princípios do modelo compacto em diferentes contextos urbanos30.
Outra dimensão importante, é a das publicações e documentos de órgãos e instituições nacionais e internacionais ligados ao desenvolvimento econômico e social, como as diretrizes produzidas pelas Nações Unidas (UNITED NATIONS, 2017), pelo Banco Mundial (World Bank, 2010) ou pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OECD, 2012). Progressivamente, as legislações nacionais têm adotado tais princípios, seja por razões técnicas, seja porque as diretrizes acordadas em eventos internacionais passam a servir de agenda política para as nações signatárias dos documentos resultantes de tais encontros ou, cada vez mais, o acesso a fundos e créditos internacionais (BID, FMI) têm sido vinculados à presença de tais políticas nas nações que os desejam. No Brasil, destacam-se o Estatuto da Cidade e seu objetivo de produzir cidades sustentáveis, o Plano Nacional de Mobilidade Urbana, com forte presença dos princípios do modelo Compacto ou ainda a última revisão do Plano Diretor Estratégico de São Paulo, com a ênfase no uso do solo misto e o direcionamento do adensamento populacional em função de seu sistema de transportes (BRASIL, 2001, 2012).
Finalmente, convém destacar algumas realizações relevantes, marcadas pela implementação parcial ou total das estratégias propostas pelo modelo compacto, tais como: as ações realizadas na cidade canadense de Vancouver (o ‘Modelo Vancouver’), empregando estratégias de adensamento e de mobilidade sustentável; a reestruturação do zoneamento de Nova Iorque proposta por Amanda Burden, pensada no mesmo sentido do exemplo canadense; a cidade sueca de Malmo, onde têm sido aplicadas ações de redução da dispersão espacial, implementação de geração de energia limpa e uma especial atenção ao fortalecimento de suas vizinhanças; a cidade de Singapura, que, entre suas estratégias de desenvolvimento sustentável, está a implementação dos princípios de mobilidade propostos pelo modelo compacto; a implementação do sistema Transmilênio em Bogotá; as ações de descentralização dos serviços e equipamentos na cidade colombiana de Medellín; ou, por último, a recente mobilização para a reconstrução da cidade neozelandesa de Christchurch, devastada por um terremoto em 2011, cujo plano de reconstrução envolveu a consultoria de Jan Gehl e foi pautado por princípios defendidos pelo modelo compacto. Além dessas, outra experiência, apesar de pequena, interessa por se aproximar fortemente da paisagem, morfologia e sistema urbano idealizados na publicação de Dantzig e Saaty, a saber, Masdar City, localizada nos Emirados Árabes Unidos e projeta pelo arquiteto inglês Norman Foster.
5.Considerações Finais
Mesmo se tratando de uma investigação de natureza introdutória, é possível discernir por meio deste trabalho que o conceito de Cidade Compacta é devedor a uma tradição crítica que nasceu com a Revolução Industrial (com Camillo Sitte, especialmente) e foi motivada pelo romantismo inglês do século XVIII em sua valorização da morfologia urbana tradicional face às transformações que a industrialização produziu na forma urbana. Porém, não se pode localizar o início da Cidade Compacta no século XIX, pois o novo modelo seria desenvolvido apenas a partir da década de 1940, na esteira das críticas às realizações das teorias predominantes da primeira geração do Urbanismo.
A partir do entreguerras, progressivamente o continente europeu (mas não apenas esse) colocou em marcha um intenso processo de produção urbana orientada pelo novas ideias que os pioneiros do Urbanismo desenvolveram, especialmente os princípios relacionados à Cidade Jardim e ao Urbanismo Funcionalista. Ao longo da primeira metade do século XX, à medida que as novas ideias foram implementadas, fortes críticas apontavam problemas muito semelhantes aos que certos críticos da cidade industrial do século XIX levantaram: baixa qualidade artística das realizações, espaços com escalas desumanas, criação de paisagens monótonas, forte ênfase na circulação e recorrente desprezo pelo contexto social, morfológico e cultural dos lugares que transformavam.
Assim, foi neste contexto, a partir da década 1940, que diversas vozes na Europa e nos EUA iniciaram um movimento de revisão crítica das teorias urbanísticas dominantes que, no final de 1970, resultaria na construção de uma solução alternativa em relação à Cidade-Jardim e à Cidade Modernista - a Cidade Compacta. Este período (1940-70) deve ser considerado, portanto, como o momento formativo do modelo compacto, nascido como alternativa às primeiras realizações do Urbanismo e propondo um tipo de estrutura urbana devedora tanto a progressistas quanto a culturalistas: de um lado, não rejeita totalmente a nova linguagem da Arquitetura Moderna e nem os novos tempos da máquina, apostando em soluções tecnológicas e no centro urbano adensado como caminhos inevitáveis para os núcleos urbanos contemporâneos; por outro lado, dos culturalistas manteve a ênfase na contenção horizontal e a sua valorização da escala de vizinhança e da vida comunitária típicas da Cidade Tradicional.
Entre as principais fontes do modelo compacto, merece destaque a crítica pioneira do movimento britânico Paisagem Urbana (Townscape), divulgado por meio da revista Architectural Review, cujos integrantes principais foram Gordon Cullen, Ian Nairn, Elizabeth Denby, Nicolaus Pevsner e Hubert de Cronin Hastings (Ivor de Wolfe). Além deste grupo, a jornalista norte-americana Jane Jacobs também se destaca, desenvolvendo críticas bastante semelhantes àquelas do grupo inglês - além de propor princípios de projeto também muito próximos da visão daquele grupo. Como visto, apesar do fato que tais ideias tenham sido primeiramente aventadas pelo grupo inglês, foi por meio de Jacobs e seu Death and Life of Great American Cities que a defesa dos princípios que posteriormente integrariam o modelo compacto ganhou força acadêmica e, cada vez mais, política. Como mencionado, a própria Jacobs afirmou que suas proposições e críticas não eram novas, mas já vinham sendo desenvolvidas anteriormente pelo grupo britânico (apesar que em seu livro, no corpo do texto, não há menção ao grupo). As pesquisas ulteriores deste período, especialmente aquelas relacionadas à morfologia urbana pré-industrial, apenas reforçariam e aprofundariam a reflexão iniciada com o Townscape. Assim, a sistematização aqui apresentada, destaca a existência de certa lacuna na discussão sobre as origens do modelo compacto, pois em geral coloca-se como seu momento inicial a década de 1960, desconsiderando aproximadamente uma década de atuação intelectual (crítica e propositiva) desenvolvida no âmbito da revista AR, em solo inglês.
Além disso, é importante ressaltar que a Cidade Compacta nasceu de modo imbricado com discussões mais amplas relacionadas com a origem do Desenho Urbano e do Pós- Modernismo. É fruto da teoria do Desenho Urbano, uma vez que surgiu da investigação de princípios para a produção de espaços urbanos mais humanos; de outro, também é tributária do Pós-Modernismo, posto que a Cidade Compacta surge a partir da crítica ao Urbanismo Modernista e ao Movimento das Cidades-Jardim, questionando acima de tudo sua violenta ruptura com a história e a forma urbana tradicional.
Ainda na década de 1970, com destaque para a publicação Compact Cities em 1973, de Dantzig e Saaty, o conceito praticamente se consolida em sua forma atual, recebendo tanto o seu nome mais popular (Cidade Compacta) quanto uma expressão espacial total, propondo uma forma urbana muito próxima dos núcleos históricos europeus, mas com linguagem arquitetônica modernista e soluções de alta tecnologia para a viabilização de sua infraestrutura. A novidade, a partir desta década, seria que os princípios desenvolvidos na primeira fase da evolução progressivamente foram sendo associados a soluções voltadas para a recém-surgida problemática ambiental.
Desde então, na presente fase (1980 em diante) o desenvolvimento da Cidade Compacta tem sido caracterizado por uma abundância de pesquisas quantitativas (voltadas para a verificação das qualidades que o conceito afirma possuir) e de publicações direcionadas para a divulgação e argumentação em prol da Cidade Compacta. Como mencionado, este trabalho de persuasão tem sido bastante eficaz, uma vez que o modelo compacto foi eleito pelas nações signatárias da Nova Agenda Urbana da ONU como solução universal para as cidades contemporâneas, mesmo que no documento não se tenha empregado explicitamente a expressão ‘Cidade Compacta’31. Ao mesmo tempo, corroborando o cenário esboçado aqui, progressivamente os princípios do modelo vêm sendo aplicados em cidades localizadas nas diferentes regiões do planeta, com graus variados de intensidade e fidelidade à teoria.
Em suma, construído como alternativa às visões funcionalista e jardim, o modelo compacto surgiu a partir de discussões localizadas ainda nos anos de 1940 e voltadas para aspectos relacionados à vida comunitária e à paisagem construída. À medida que caminhou em direção ao final do século XX, incorporou argumentos econômicos e ambientais ao seu bojo, alcançado relativa proeminência nos dias atuais entre as estratégias de planejamento e gestão territorial, em especial no enfrentamento do fenômeno da dispersão espacial e na busca por níveis superiores de sustentabilidade.