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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.40 no.2 Lisboa abr. 2024  Epub 30-Abr-2024

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v40i2.13856 

Opinião e debate

A reforma dos cuidados de saúde primários em 2005: um problema de saúde pública

The primary care health reform in 2005: a public health problem

1. Médica de Família. UCSP Carnaxide. Carnaxide, Portugal.


Resumo

Discutem-se alguns dos problemas da reforma dos cuidados de saúde primários em Portugal, iniciada em 2005, nomeadamente os problemas derivados da gestão por agrupamentos, o impacto do pagamento por desempenho e as desigualdades na prestação de CSP criadas pelas diferentes tipologias de unidades funcionais.

Palavras-chave: Reforma; Cuidados de saúde primários; Desigualdades em saúde

Abstract

The authors address some problems created by the Portuguese primary care reform in 2005, namely management by Primary Care Trust like organisations, the impact of pay for performance, and the increase of inequality in delivering primary care across the country due to different types of practices.

Keywords: Reform; Primary health care; Health inequalities

Introdução

A Reforma dos Cuidados de Saúde Primários (CSP), iniciada em Portugal em 2005, nasceu com várias arestas por limar, que nunca chegaram a ser corrigidas ao longo dos anos e que se foram deixando avolumar até chegarmos aos dias de hoje a um verdadeiro problema de saúde pública, sobretudo na Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT), onde existe uma assimetria enorme na qualidade de prestação de CSP.

Vários objetivos da Reforma ficaram por cumprir. Obteve-se uma maior autonomia organizativa para algumas Unidades Funcionais (UF), nomeadamente pela possibilidade de escolha dos profissionais, mas parcialmente à custa de desnatar outras UF. Por outro lado, a Reforma deu um verdadeiro tiro nos pés ao perder a direção dos centros de saúde, substituída pela coordenação nas UF.

A criação de um sistema retributivo com o objetivo de premiar a produtividade, acessibilidade e qualidade, o chamado pay for performance ou P4P dos ingleses, foi parcialmente cumprida, mas com enormes distorções. Criou um espírito competitivo, que colidiu com a noção de serviço público abrangente e solidário. O foco passou a ser a lista de utentes e não a comunidade.

Esta Reforma também falhou na modernização organizacional. O modo arcaico como continua a ser feita a distribuição de tarefas e responsabilidades entre os profissionais promove a baixa produtividade. Mantém-se o subaproveitamento dos enfermeiros, apesar da sua excelente preparação profissional, bem reconhecida no estrangeiro, não acompanhando a evolução dos países do Norte da Europa que, desde há décadas, foram delegando cada vez mais competências nestes profissionais. É confrangedora a situação nacional, onde apenas um número reduzido de enfermeiros faz atos como colheitas para rastreio do cancro do colo do útero ou colocação de implantes contracetivos. Também a vigilância de doenças crónicas, como a diabetes mellitus e a hipertensão, poderia ser feita por estes profissionais, libertando os médicos de família para outras tarefas. No Reino Unido há décadas que as enfermeiras gerem parte dos cuidados preventivos e parte da vigilância das doenças crónicas (well women clinic, travel medicine clinic, asthma clinic, etc.).

Gestão por agrupamentos

Não é fácil perceber a lógica de introduzir mais um patamar de burocracia na gestão dos CSP, quando havia já gestão por agrupamentos noutras áreas a evidenciar problemas e sem demonstração efetiva de ganhos económicos. O Ministério da Educação é um exemplo como este tipo de gestão apresenta bastantes aspetos negativos, como a perda de autonomia de gestão das escolas do 1.º ciclo de escolaridade, sem que se vislumbrassem as vantagens.

Os Agrupamentos de Centros de Saúde (ACeS) nunca chegaram a ter verdadeira autonomia financeira e de gestão, nomeadamente dos recursos humanos. Têm limitações na contratação pontual de profissionais para suprir necessidades temporárias, ou seja, têm menos autonomia que qualquer minúsculo centro de saúde - single handed practice - que ainda subsiste no Reino Unido, tendo também grande dificuldade em resolver outros problemas (informáticos, equipamentos, etc.).

Com a criação dos Agrupamentos, os centros de saúde passam a denominar-se Unidade de Cuidados de Saúde Primários (UCSP), uma designação indescritível que pouca gente sabe o que significa, e Unidades de Saúde Familiar (USF), sendo os diretores substituídos por coordenadores. Conforme referido por Machado Gil e colaboradores, um diretor representa poder de decidir, há hierarquia e respeito. Um coordenador “contribui”, mas não decide e tem um papel pouco claro na organização.1 É frequente, nas UF, a confusão de designações do interlocutor administrativo e de enfermagem, a quem chamam por vezes coordenador administrativo/de enfermagem. Também não é raro ver estes profissionais a ultrapassar o coordenador da unidade e a articularem diretamente com a direção do Agrupamento.

Pagamento por desempenho

Premiar quem mais trabalha parecia fazer sentido. Já estava testado na indústria automóvel e resultava. Depois veio a experiência do Reino Unido, por quem temos uma deferência cega, ainda que indiscutível a nossa dívida a Bevan. Mas havia também já bastante literatura, nomeadamente inglesa, sobre o P4P, a referir que os incentivos financeiros não funcionam da mesma maneira nos serviços públicos, com profissionais altamente diferenciados. (2 Nestes há outro tipo de incentivos que podem ter impacto positivo - condições de trabalho, autonomia, reconhecimento, acesso a tecnologia, para além, claro, de uma justa remuneração. Nesse país, o pagamento por desempenho trouxe ganhos económicos com a prescrição mais racional de fármacos e MCDT, o que é indiscutivelmente importante. No entanto, já teve dificuldade em demonstrar ganhos clínicos, apenas tendo acelerado alguma melhoria que já se vinha a verificar anteriormente. (3 O National Health Service (NHS) introduziu, em 2004, o Quality and Outcome Framework (QOF), um esquema de pagamento por desempenho, mas passada pouco mais de uma década já este programa estava a ser questionado na Escócia, que o viria a abandonar em 2016. (4 Também em Inglaterra está a ser fortemente contestado, com apelos para suspender os microindicadores. (5

Como no Reino Unido, as USF modelo B, com o seu modelo de incentivos remuneratórios, evidenciaram ter uma prescrição mais racional de MCDT e fármacos. Também demonstraram ganhos na satisfação dos utentes - mas como não os haveriam de ter se os utentes têm médico de família, melhores rácios de enfermagem, administrativos selecionados e profissionais mais felizes por serem melhor remunerados?

Em Portugal, o pagamento por desempenho introduziu distorções salariais dificilmente aceitáveis - um jovem especialista que entrasse diretamente para uma USF modelo B, mesmo sem experiência, ganhava mais 25% que um assistente graduado em regime de 42 horas com exclusividade, com funções de chefia ou orientação de internos de especialidade.

Como já é hábito noutras áreas, é difícil encontrar dados fidedignos sobre custos e ganhos das diferentes tipologias de UF. Até mesmo a contagem de utentes inscritos em cada UF, denominador de muitos indicadores, continua a apresentar discrepâncias. Já em 2012 o então Ministro da Saúde, Dr. Paulo Macedo, se queixava da falta de qualidade dos dados no Ministério da Saúde. Talvez por isso, os sucessivos ministros das Finanças continuaram a arrastar os pés com a passagem para USF modelo B. Quando se fazem contas é preciso também saber o que custa a máquina administrativa e o tempo que se perde com toda a engrenagem, roubando tempo à prestação de cuidados (e.g., repetir consultas a utentes seguidos no setor privado para cumprir indicadores mal concebidos).

Mas estas decisões são sempre mais político-ideológicas que técnicas. Teria sido útil ir limando as arestas e corrigindo os problemas, o que não aconteceu em mais de década e meia.

Contratualização

Por forma a definir quem mais trabalha e a fazer o quê surge a contratualização. O processo de contratualização constitui um dos maiores problemas da Reforma de 2005 - por preguiça da Administração Central dos Sistemas de Saúde (ACSS), pela desconfiança crónica característica dos portugueses, por obstinação ideológica e por inércia de quase todos os profissionais. A ACSS acha melhor centralizar e uniformizar a contratualização em vez de a deixar adaptar às necessidades locais e depois avaliar os resultados. Também as direções dos Agrupamentos são geralmente passivas e pouco focadas na diminuição das distorções e desigualdades. Por facilitismo continuam a avaliar sobretudo indicadores processuais. Os indicadores de resultado clínico são mais complexos de implementar e têm de ser medidos, muitas vezes, nos hospitais (amputações por complicações de diabetes mellitus, internamentos e idas à urgência evitáveis, entre outros), mas isso afigura-se mais difícil de concretizar. É mais fácil medir clicks no SClínico. Os indicadores passam a ser o foco. Daí o pedido constante de diminuição das listas de utentes para cumprir os indicadores, quando precisamos de as aumentar para diminuir as desigualdades e melhorar a equidade.

A contratualização é fonte de baixa produtividade pela duplicação de tarefas dos médicos e enfermeiros e altamente disfuncional, obrigando as USF, por exemplo, a duplicar as consultas das grávidas e crianças seguidas no setor privado e, por outro lado, a enviar as grávidas e crianças da sua área geográfica para UCSP sem recursos e com elevadíssimas taxas de utentes sem médico/equipa de família.

Porque não contratualizar antes consultas domiciliárias de doença aguda a utentes de baixa mobilidade, pequenas cirurgias ou cuidados a utentes mais vulneráveis sem equipa de saúde?

Problema de saúde pública

Dezasseis por cento de utentes sem médico de família não seria dramático se estivessem distribuídos uniformemente pelo território. O problema é a sua concentração em algumas ARS, em alguns ACeS e em poucas UCSP. Há UCSP, como a UCSP Carregado, que não têm um único médico de família. Outras têm 70 a 80% de utentes sem médico. Aqui surge o problema de saúde pública, porque a vigilância destes utentes está entregue maioritariamente a médicos contratados, sem formação específica, sem qualquer apoio e sem qualquer controlo de qualidade, com consultas sucessivas sem resolver os seus problemas. Os utentes sem médico têm também algumas particularidades, nomeadamente uma maior percentagem de imigrantes precários, sem outras alternativas de cuidados de saúde. E os números não param de crescer.

Um exemplo deste impacto negativo é o aumento de IVG entre a população imigrante, que tem pior acesso a consultas de planeamento familiar. (7

O facto de existirem utentes sem médico de família é multifatorial e não deriva apenas da Reforma de 2005. Mas a Reforma, tal como foi concebida e não tendo corrigido os problemas ao longo de década e meia, veio agravar a desigualdade na prestação de CSP, criando situações muito preocupantes. O número de utentes inscritos nas USF tornou-se estanque, ao contrário das UCSP que poderiam continuar a aumentar sem limites com as “sobras” das USF.

Antes da Reforma, os centros de saúde eram responsáveis pelos utentes sem médico da sua área geográfica. Estes utentes eram atendidos por médicos contratados, mas também pelos médicos “do quadro”, que dedicavam algumas horas semanais ao atendimento destes utentes, nomeadamente nas valências que os médicos contratados não faziam - saúde materna, saúde infantil e planeamento familiar. Isso acabou aquando da criação das USF, onde os utentes sem médico de família são residuais.

Os utentes que já não têm vaga nas USF são encaminhados para as UCSP, cada vez em menor número, cada vez com menos médicos “do quadro”, cada vez com menos capacidade de dar resposta e de se reorganizarem.

Na ARSLVT, a região mais problemática do país, há mais de um milhão (29,5%) de utentes sem médico de família. (6 Não será a possibilidade de passar de UCSP diretamente para USF modelo B que vai resolver o problema na ARSLVT. Aqui as UCSP estão completamente exaustas, com os profissionais desmotivados e revoltados.

Considerações finais

Infelizmente a crise do Serviço Nacional de Saúde não é uma crise isolada, nem sequer esta é uma crise só dos serviços públicos na área da saúde - veja-se o problema da falta de professores em inúmeros países europeus. “NHS staff are disheartened. Vacancies are at an all-time high, morale is declining, and retention is worsening”. (8

Há, contudo, pequenas medidas que podem ter um impacto significativo, mesmo sem qualquer alteração legislativa e que poderiam ser aplicadas de imediato. Sobretudo o que não precisamos é de uma nova Reforma ou de outra década a “reinventar a Reforma”!

A contratualização deste ano deveria ser substancialmente diferente em algumas ARS. É preciso contratualizar o que é de facto necessário e adaptado a cada ACeS e UF. Como foi já sugerido anteriormente, o primeiro item a contratualizar às USF deveria ser a prestação de dez horas semanais (com alguma flexibilidade e em função da sua dimensão) de apoio a grupos de risco de UCSP carenciadas, assegurando, por exemplo, vigilância a diabéticos ou a doentes com maior número de comorbilidades da população sem médico de família. O mesmo poderia ser feito com a saúde infantil, a saúde materna e o planeamento familiar. São situações a que os médicos contratados têm grande dificuldade em dar resposta.

Uma atualização atrativa da Portaria n.º 410/2005, de 11 de abril (subsídio adicional mensal em função do número de utentes inscritos), poderia incentivar um aumento imediato de algumas listas de utentes das USF modelo A e UCSP.

As UCSP, apesar dos seus gravíssimos problemas, têm um enorme potencial formativo para os internos de medicina geral e familiar do 3.º e 4.º anos, permitindo treinar mais intensivamente determinadas competências, ver mais patologia, alargando a base populacional e praticar exercício clínico em situações diversas e adversas. A realização de estágios programados em UCSP, onde possam ter um tutor de estágio, pode ter um benefício mútuo para os internos e para as UCSP com elevadas taxas de utentes sem médico de família. Até recentemente, estes estágios têm sido geralmente irregulares, mal preparados e muito subaproveitados.

Têm ainda surgido algumas experiências de sucesso que poderiam ser reproduzidas noutros Agrupamentos, como a Via Verde Seixal, que tem como objetivo prestar cuidados de saúde primários de qualidade aos residentes no concelho do Seixal que não têm ainda médico/enfermeiro de família, através de equipas de médicos e enfermeiros especialistas, médicos reformados e internos.

Conflito de interesses

A autora declara não possuir quaisquer conflitos de interesse.

Referências bibliográficas

1. Gil VM, Ribeiras R, Pinto FJ, Baptista JM. Medical leadership: different perspectives. Acta Med Port. 2022;35(6):409-10. [ Links ]

2. Weibel A, Rost K, Osterloh M. Pay for performance in the public sector: benefits and (hidden) costs. J Public Adm Res Theory. 2010;20(2):387-412. [ Links ]

3. Campbell SM, Reeves D, Kontopantelis E, Sibbald B, Roland M. Effects of pay for performance on the quality of primary care in England. N Eng J Med. 2009;361(4):368-78. [ Links ]

4. Roland M, Guthrie B. Quality and outcomes framework: what have we learnt? BMJ. 2016;354:i4060. [ Links ]

5. British Medical Association. Let GPs do their job [homepage]. BMA; 2023 Jul 04. Available from: https://www.bma.org.uk/news-and-opinion/let-gps-do-their-jobLinks ]

6. Serviço Nacional de Saúde. Transparência [homepage]. Lisboa: Ministério da Saúde; 2024. Available from: https://www.sns.gov.pt/transparencia/ [ Links ]

7. Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. Conselho Nacional de Ética apreensivo face ao aumento de 8,7% de interrupção da gravidez entre mulheres não portuguesas [homepage]. Lisboa: CNECV; 2022 Jul 22. Available from: https://www.cnecv.pt/pt/noticias/conselho-nacional-de-etica-apree [ Links ]

8. Dobson J. Time is running out to resolve the NHS workforce crisis. BMJ. 2023;380:p681. [ Links ]

Recebido: 24 de Julho de 2023; Aceito: 02 de Dezembro de 2023

Endereço para correspondência Isabel Cortez E-mail: icortez@doctors.org.uk

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