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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.133 Coimbra mar. 2024  Epub 31-Mar-2024

https://doi.org/10.4000/11pr2 

Artigos

Cravos cor-de-rosa: notas para o lugar das dissidências sexuais e de género na história da Revolução

Pink Carnations: Notes on the Place of Sexual and Gender Dissidence in the History of the Revolution

Oeillets roses : notes sur la place des dissidences sexuelles et de genre dans l’histoire de la Révolution

1 Doutoranda no Instituto de História Contemporânea / IN2PAST - Laboratório Associado para a Investigação e Inovação em Património, Artes, Sustentabilidade e Território, Lisboa, Portugal, joanamatias@fcsh.unl.pt


Resumo

A história LGBTI+ em Portugal identificou um ponto de inflexão nas continuidades pré e pós-Revolução dos Cravos: a publicação do manifesto do Movimento de Acção Homossexual Revolucionária (MAHR) no Diário de Lisboa a 13 de maio de 1974, e a sua subsequente condenação na intervenção televisiva do general Carlos Galvão de Melo a 27 de maio do mesmo ano. Este momento é tido como ditando o fim do MAHR e a rejeição da legitimidade das questões LGBTI+ no foro político. Este artigo convida a disputar a tese de uma Revolução incongruente no que diz respeito às sexualidades. Procuro inserir este episódio na genealogia das várias rejeições da Revolução para contextualizar as condições históricas que o explicam, bem como aliar a história do género e da sexualidade à das grandes transformações políticas, ilustrando a sua potencialidade analítica como mais do que mero complemento.

Palavras-chave: género e sexualidade; história LGBTI+; homossexualidade; revolução portuguesa

Abstract

Scholarship on LGBTQI+ history in Portugal has identified a point of inflexion in the pre- and post- revolution periods: the publication of a manifesto signed by the Movement for Revolutionary Homosexual Action (Movimento de Acção Homossexual Revolucionária - MAHR) in the Diário de Lisboa on May 13, 1974, and its condemnation by general Carlos Galvão de Melo on national television on May 27. This moment is considered to have triggered the end of MAHR and led to the rejection of the legitimacy of LGBTI+ issues in politics. This article invites a challenge to the thesis of an incongruence in the revolution with regard to sexualities. My goal is to insert this episode into a genealogy of the revolution’s many rejections, as well as assert the importance of gender and sexuality as analytical lenses through which larger political transformations can be viewed.

Keywords: gender and sexuality; homosexuality; LGBTI+ history; Portuguese revolution

Résumé

L’histoire LGBTI+ au Portugal a identifié un tournant dans les continuités avant et après la Révolution des Œillets : la publication du manifeste du Mouvement révolutionnaire d’action homosexuelle (Movimento de Acção Homossexual Revolucionária - MAHR) dans le Diário de Lisboa le 13 mai 1974, et sa condamnation ultérieure durant l’intervention télévisée du général Carlos Galvão de Melo le 27 mai. Ce moment est considéré comme dictant la fin du MAHR et le rejet de la légitimité des questions LGBTI+ dans le forum politique. Cet article invite à disputer la thèse d’une Révolution incongrue en matière de sexualités. Je cherche à insérer cet épisode dans la généalogie des différents rejets de la Révolution pour contextualiser les conditions historiques qui l’expliquent, ainsi qu’à combiner l’histoire du genre et de la sexualité avec celle des grandes transformations politiques, illustrant son potentiel analytique comme plus qu’un simple complément.

Mots-clés: genre et sexualité; histoire LGBTI+; homosexualité; révolution portugaise

Portugal no número 164, de maio de 1992, da revista britânica Gay Times (Adams, 1992), que circulou igualmente em tradução no mesmo ano na congénere polaca Inacjek. A partir de entrevistas com os porta-vozes de duas organizações ativas nas décadas de 1980 e 1990, a Gay International Rights de Braga e o GayClub de Lisboa, é descrito como central à realidade dos homossexuais portugueses na democracia um desfasamento entre as promessas da Revolução dos Cravos e a relativa marginalidade em que continuavam a viver as comunidades queer no país.1 Esta desilusão fora longamente partilhada por outras vozes. Entre elas destacam-se a do jornalista Guilherme de Melo que, em 1982, escrevia no primeiro número dos Cadernos de Reportagem “Ser homossexual em Portugal”: “Quando se fala na ‘abertura’ verificada a partir do 25 de Abril, estamos simplesmente a confundir curiosidade com aceitação. [...] E é isso, na verdade, o que realmente se passa. Curiosidade e complacência. Nada mais” (Melo, 1982, p. 15). No mesmo ano, o Colectivo de Homossexuais Revolucionários distribuiu nos similarmente intitulados encontros “Ser (homo)sexual”, organizados pelo Centro Nacional de Cultura (CNC), um comunicado - posteriormente assinado por António Fernando Cascais para a revista Fenda - no qual se repetia que “se alguma libertação da palavra houve após o 25 de Abril, foi da palavra político-partidária, e até à exaustão” (Cascais, 1983, p. 17). Além da ausência das “poderosas organizações de homossexuais”, satirizadas pelo poeta Joaquim Manuel Magalhães em Os dois crepúsculos (de 1981), nem a descriminalização do sexo entre adultos do mesmo género, que se deu com a revisão do Código Penal em 1982, parece ter transformado fundamentalmente a relação entre pessoas lidas como homossexuais e os agentes da autoridade no espaço público (Matias, 2022, p. 138), muito embora a aplicabilidade da lei tivesse mudado consideravelmente (Cascais, 2006, p. 116, 2016, pp. 109-110).

Mais recentemente, os trabalhos académicos que tratam a história LGBTI+ em Portugal e as continuidades pré e pós-Revolução localizaram neste desfasamento um ponto histórico de inflexão: a publicação do manifesto do Movimento de Acção Homossexual Revolucionária (MAHR) no Diário de Lisboa a 13 de maio de 1974,2 e a sua condenação na intervenção televisiva do general Carlos Galvão de Melo a 27 de maio do mesmo ano (Afonso, 2019, p. 206; Brandão, 2008, p. 16; Cascais, 2006, p. 115, 2020, p. 167, 2021, p. 139; Cleminson, 2020, p. 217; Curopos, 2016, p. 11; Freire, 2016, p. 95; Gonçalves, 2015, p. 45; Vale de Almeida, 2010, p. 56, 2017). Este momento é tido como ditando o fim da ação do MAHR e a rejeição da legitimidade das questões LGBTI+ no foro político, que só se reafirmariam com sucesso a partir da segunda metade da década de 1990.

Através de uma análise do episódio em questão, este artigo convida a disputar a tese de uma revolução incongruente no que diz respeito às sexualidades. Apesar de servir como um poderoso apelo à reivindicação de um lugar onde a política não o permitiu, neste texto pretendo desdobrar as suas fragilidades e sugerir outras leituras. Rejeitando como heurística uma homofobia trans-histórica que apenas “renaturaliza o próprio fenómeno cultural que tenta explicar” (Chitty, 2020, p. 27), proponho pensar este episódio como parte da genealogia de várias rejeições da Revolução para evidenciar as reais condições históricas que o explicam. Pretende-se, também, uma maior amplitude de análise das relações entre Estado, família, género e sexualidade, ilustrando a potencialidade analítica dos dois últimos no estudo das grandes transformações do Portugal contemporâneo como mais do que mero complemento.

Olhemos, então, para a grande transformação em questão. Sabemos que o golpe militar que pôs fim à ditadura salazarista em abril de 1974 abriu um período tumultuoso no qual confluíram o desmantelamento das instituições do regime, a radicalização do conflito político-partidário-militar e a intensa politização do espaço público conhecido como o Processo Revolucionário em Curso (PREC), considerado encerrado com a crise de 25 de novembro de 1975.3 É assim que, menos de um mês depois da Revolução, um pequeno coletivo junta a sua voz à de tantas outras e entrega ao Diário de Lisboa um manifesto intitulado “Liberdade para as minorias sexuais”, que é publicado a 13 de maio, assinado pelo MAHR com a saudação “Viva a Homossexualidade, Viva a Revolução”.4

O texto abre com o anúncio de um cartaz no 1.º de Maio anterior, no Porto, com a frase “Liberdade para os homossexuais”, para argumentar que existiriam grupos políticos anteriormente reprimidos pelo fascismo e que “se identificavam com a libertação sócio-política do Movimento das Forças Armadas”. Avança que a segregação de género das instituições do regime provocou um “acréscimo na homossexualidade” que justifica a sua consideração política. Segue-se um parágrafo que estabelece a homossexualidade como “força mais destrutiva” da moral sexual burguesa, espaço de libertação do desejo fora da família que é a base do capitalismo; enquadra-se a libertação das sexualidades à libertação da repressão política, e detalham-se algumas das violências sofridas por homossexuais durante o regime. Por fim, o manifesto propõe sete reivindicações. As primeiras três remetem para a descriminalização da homossexualidade: abolição do artigo 71.º do Código Penal, segundo o qual é objeto de aplicação de “medidas de segurança” a “prática de vícios contra a natureza”; possibilidade de contestar juridicamente atos de chantagem, extorsão e perseguição; e “livre prática homossexual”. As outras consistem na liberdade de reunião, participação nos media, educação sexual nas escolas, e “livre compreensão da problemática inerente à homossexualidade”. O texto encerra com a asserção de que integra “mais de 1000 militantes no Porto e em Lisboa” e propõe três livros de referência, aos quais daremos mais atenção adiante.

No manifesto é identificado um conjunto de instituições persecutórias. A perseguição jurídica e policial é central às experiências das dissidências sexuais e de género durante o regime, e dessa forma produziu também as fontes mais ricas para a historiografia. O artigo 71.º do Código Penal identifica a “prática de vícios contra a natureza” como objeto de aplicação de “medidas de segurança” que constam do artigo 70.º: o internamento, a liberdade vigiada, a caução de boa conduta e a interdição do exercício de profissão. Ambos os artigos foram criados durante o Estado Novo, que apenas otimizou um sistema de condenação que existia desde o século xix (Afonso, 2019, p. 88; Cascais, 2016) e que acompanha a criação de forças policiais modernas nas metrópoles europeias para controlar os “excessos” das populações operárias urbanas - a sexualidade não-reprodutiva, mas também o trabalho sexual, a doença mental e a indigência (Bastos, 1997). Apesar das continuidades na lei entre a Primeira República e o Estado Novo, é igualmente possível observar, durante o período republicano, a influência dos ventos de fora a nível da experimentação da expressão de género na cultura e no espaço público. A polarização política dessas manifestações está patente na reação conservadora à “carnavalização queer do espaço público de Lisboa” (Klobucka, 2018, p. 117), que tem entre os seus porta-vozes futuros homens do regime. O Estado Novo desfaz a conquista republicana do divórcio e implementa uma ideologia de género assegurada por várias instituições: Constituição, censura, instituições juvenis fascistas, serviço público, meio escolar, entre outras. A diferenciação entre os sexos é entendida como central para a reprodução da família conjugal e forçosamente heterossexual, microunidade do Estado através do qual se perpetua uma ordem naturalizada, religiosamente fundamentada, do género (Pimentel, 2011). E embora algo de idêntico se passasse do outro lado da fronteira (Afonso, 2021; Mora & Huard, 2019), a escala da violência contra homossexuais - se é que pode ser mensurável - parece mais baixa no regime salazarista. Trata-se, possivelmente, da mesma estratégia de manutenção de um “ótimo de terror, e não um cru máximo de terror” praticada sobre a oposição política, como escrevia na década de 1960 desde o exílio o sociólogo Hermínio Martins (2006, p. 69), como forma de evitar a “intensificação dos meios de luta política”. Esta seria uma explicação para o desenvolvimento diferenciado de formas de intervenção política em torno da sexualidade após o final de ambas as ditaduras ibéricas.

O MAHR exemplifica a efemeridade que atravessa muito da história queer. Os registos contradizem-se nos detalhes: a veracidade do cartaz no 1.º de Maio no Porto cujas referências citam o próprio manifesto; a indicação de manifestações em paralelo à publicação do manifesto junto aos Clérigos (Almeida, 2010, p. 223), no Jardim da Cordoaria (Freire, 2016, p. 95), ou no Jardim da Alfândega (Gonçalves, 2015, p. 45), citando a mesma fonte, o último membro do movimento em vida, António Serzedelo - que mais tarde fundaria a associação Opus Gay, hoje Opus Diversidades. Mas como é próprio da ephemera, ela propaga-se, ainda que através de ecos inesperados. A menos efémera mas mais nebulosa organização de Braga, a Gay International Rights, que terá surgido em agosto de 1974 (Gomes, s.d., p. 211; Moita, 2001, p. 139) e se terá mantido ativa até meados da década de 1990, escreveu nas páginas do primeiro número do seu jornal The Gay ter conhecimento dos “homossexuais revolucionários” de Lisboa, mas não ter forma de os contactar. A mesma vontade expressa-se na carta de um leitor da revista gay canadiana Body Politic no número 20, de 1975, que lamenta a rapidez com que notícias na imprensa internacional sobre os “irmãos socialistas” de Portugal desapareceram, e que estando os membros certamente ainda vivos, urgia contactá-los. Através desta publicação, que reproduziu o manifesto no número 14 de 1974, consta que a existência dos “irmãos” fora igualmente noticiada nas publicações Gay News da Alemanha e Revolt da Suécia.5

Esta incipiente imprensa queer deu conta, igualmente, do reverso deste episódio: a intervenção televisiva do general Carlos Galvão de Melo a 27 de maio, tida como o momento concreto de rejeição da legitimidade do MAHR. Aliás, este momento parece ocupar um maior lugar na memória coletiva do que o manifesto em si, cuja publicação terá passado relativamente despercebida de acordo com testemunhos orais (Afonso, 2019, p. 208). Mais do que o maior alcance da televisão, é clara uma dimensão profundamente afetiva na lembrança desta intervenção como ditando que a Revolução “não se fizera para os homossexuais e prostitutas reivindicarem fosse que fosse!” (Serzedelo, 2019). É importante sublinhar que embora não tenham sido essas as palavras exatas empregues pelo general, foi assim que a posteridade as registou. Olhemos, contudo, para o discurso em si.6 Nele, o general afirma ter recebido uma carta de “um só português, [que] poderia ter sido escrita por todos os portugueses autênticos”. Posicionando-se como simples porta-voz, critica as ocupações e a saturação política dos meios de comunicação com o mesmo peso que a “ignóbil transcrição, em jornais que estão ao alcance de qualquer criança, do comunicado das prostitutas e dos homossexuais, numa demonstração de amoralidade sem precedentes em qualquer país em que a Família e a Moral existem ainda como valores!”. Não há nesta intervenção nenhuma outra referência ao manifesto, nem houve outra reação por parte do aparelho de Estado que conheçamos. No jornal Expresso, em junho, sob o título “Galvão de Melo na RTP provoca reações”, publicam-se duas opiniões refletindo a ambivalência pública face ao comunicado; numa delas, a jornalista Helena Vaz da Silva, que mais tarde integraria a organização dos Encontros do CNC em 1982, questiona: “Os comunicados das prostitutas e dos homossexuais seriam motivo de indignação. Porquê?”.

De facto, porque dita o discurso de um general o fim da ação de um grupo revolucionário, dada a natureza presumivelmente contestatária de qualquer movimento radical? Embora a tese pioneira sobre o contexto político subjacente à história das comunidades LGBTI+ no Portugal contemporâneo reconheça que o general, enquanto membro da Junta de Salvação Nacional, representa a ala conservadora da Revolução (cf. Cascais, 2006, p. 115), uma análise concentrada deste momento requer um retrato mais detalhado da complexa teia de forças que caracteriza os primeiros meses do processo revolucionário. Na sua génese, o golpe de Estado é “uma insubordinação contra a hierarquia militar” (Noronha & Trindade, 2019, p. 32) que vai ser imediatamente recalibrada com a criação da Junta, sete militares de alta patente mandatados pelo MFA para assegurar o poder até à nomeação do primeiro governo provisório. António de Spínola preside à Junta, e é por esta eleito Presidente da República a 15 de maio, chefiando o governo provisório. Mas a subalternização do MFA e a diluição do seu programa pela ala spinolista - cuja prioridade era “restabelecer a hierarquia no interior das Forças Armadas e recompor o aparelho repressivo do Estado, de forma a permitir a continuação das operações militares em África e assegurar a manutenção da ordem pública na metrópole” (Noronha & Trindade, 2019, p. 40) - inverte-se gradualmente ao longo do verão de 1974. É difícil não ler no discurso de Galvão de Melo em maio e na sua repreensão do “mau uso que se vem fazendo da Liberdade oferecida ao povo de Portugal”, a retórica polarizadora de apelo à “maioria silenciosa” que se concretiza, em 28 de setembro, na convocação de uma manifestação com o mesmo nome em apoio a Spínola e à Junta. A falta de adesão é prova última da sua crise: Spínola é substituído por Costa Gomes, reconhece o direito à autodeterminação dos povos colonizados, e deixa a Junta, juntamente com Galvão de Melo e os generais Jaime Silvério Marques e Diogo Neto.7 Os conflitos entre atores militares, partidários e movimentos sociais adensam-se até atingir o clímax no Verão Quente. Neste contexto, a leitura do discurso televisivo do general em maio de 1974 ganha outros contornos à luz de um aparelho de Estado profundamente fraturado e polarizado. Essa fragmentação explica em parte a instrumentalização da homossexualidade como um de tantos outros “excessos” do fervor socialista, mas seria um exercício infrutífero especular se a resposta do MFA seria outra, considerando o historial de setores significativos da esquerda neste período face às questões de género e sexualidade (Cascais, 1983, 2006). A questão, proponho, é menos a de um alinhamento político que poderia ser mais ou menos favorável a uma homossexualidade revolucionária, mas sobretudo as contingências de um processo revolucionário que abriu as portas a formas de militância política sem precedente cujo desfecho culminaria numa “vitória das instituições” e cuja representação posterior impede a reclamação de um lugar histórico (Noronha & Trindade, 2019, pp. 10-22).

Mais além da especificidade do processo revolucionário de 1974/1975 em Portugal, este insere-se num “ciclo global de lutas que atravessa as décadas de sessenta e setenta” (Carvalho, 2023). Os imaginários que irrompem não se materializam de súbito, mas já transitavam baixo a sombra da censura e da repressão política,8 e idealizam abordagens diferentes em torno de causas “hoje quase inimagináveis: a queda do capitalismo, a organização coletiva na construção do socialismo, a reinvenção da vida num mundo igualitário” (Noronha & Trindade, 2019, p. 22). A politização da homossexualidade como parte destas transformações expressa-se a partir de dois epicentros: os discursos da “homossexualidade revolucionária”, que surgem com o Maio de 68 em França, e os da “libertação gay”, filhos dos motins de Stonewall nos Estados Unidos em 1969. Do cartaz assinado pelo Comité d’action pédérastique révolutionnaire na Sorbonne em 1968, coalesce três anos depois a Front homosexuel d’action révolutionnaire (FHAR), composta de homens bem como de lésbicas do Mouvement de libération des femmes. Da primeira Gay Liberation Front que se organiza imediatamente após Stonewall - e cujo nome é uma referência direta à Frente de Libertação Nacional vietnamita - replicam-se inúmeras outras pelo território norte-americano e esfera anglófona.9 Estas duas gramáticas geram congéneres pelo mundo fora, consoante a maior exposição ora a um centro hegemónico, ora ao outro, bem como de forma híbrida.10

Estes trânsitos são, aliás, explícitos no texto do manifesto do MAHR. Como anteriormente referido, são recomendados três livros “fundamentais para a compreensão e reivindicações da homossexualidade”: Saint Genet de Jean-Paul Sartre, sobre o autor Jean Genet; Rapport contre la normalité, manifesto da FHAR cuja circulação na edição original em território português em 1973 é atestada pela sua inclusão nas listas internas da Direcção dos Serviços de Correios de publicações proibidas (Príncipe, 1979/2016, p. 133), depois traduzido em 1974 pelo membro do MAHR José António Fernandes Dias para a Assírio e Alvim; e Le désir homosexuel de Guy Hocquenghem, teórico maior da FHAR, igualmente traduzido em 1977 como Homossexualidade, opressão e liberdade sexual pela editora portuense Gráfica Firmeza. É clara uma maior familiaridade com o contexto francês dada a sua predominância como segunda língua no período em questão.

Mas se as duas gramáticas entendem a militância em torno da sexualidade como parte de uma revolução social mais ampla, há diferenças importantes na linguagem, nos temas, e especialmente na relação imaginada com o Estado. O MAHR herda da FHAR um posicionamento em diálogo com a esquerda e com a Revolução, antecipada no caso francês e concreta no caso português, enquanto que o horizonte de possibilidades do contexto norte-americano, particularmente impactado pela importância da causa antimilitarista, é menos claro. Em qualquer um dos casos, existe algo na linguagem da contestação que se desdobra de forma muito particular na relação de forças específica ao PREC, e que não tem réplica noutros contextos. Olhemos para o slogan da FHAR, “nous sommes un fléau social” (“nós somos um flagelo social”), bem como o mote da primeira marcha pelos direitos dos gays, lésbicas e transexuais em Espanha em 1977, “nos dejen vivir en paz” (“deixem-nos viver em paz”). Tal como do outro lado do Atlântico, é a representação da homossexualidade como ameaça à estabilidade da ordem política e social que lhe cede a sua “capacidade revolucionária” (Stoffel, 2022). Em contraste, a vontade expressa de colaborar ao lado de uma revolução em “andamento”, ela própria permitindo as condições de expressão da contestação, é o que encerra as condições de um futuro mais longevo para o MAHR.

A comparação entre uma política que não se chegou a fazer em Portugal e outros contextos geográficos, além de não dar peso suficiente à singularidade do momento político com o qual o MAHR se confrontava, peca igualmente por sobrestimar o impacto dos seus pares. Mesmo que projetos como a FHAR tenham deixado para a história um arquivo rico de intervenção no espaço público, nunca deixaram de ser fações marginais no movimento social mais amplo. E à diferença dos seus pares, o MAHR, ao que se sabe, não era composto de membros com experiência em estruturas partidárias de esquerda ou comunistas, algo que evidentemente teria sido difícil durante o regime, resultando numa falta de formação política.

Outra componente significativa parece-nos residir na referência do general ao “comunicado das prostitutas”. Vamos por partes. A reclamação de um lugar “igual a todos os outros”, consumado o ajuste mínimo que seria a plena integração da homoafetividade na ordem social, é também ela historicamente contingente. Ou seja: a leitura de uma incongruência na rejeição do MAHR estende uma transformação bem mais recente do significado político da homossexualidade a um momento histórico que lhe é alheio. O próprio manifesto define a homossexualidade como a “força mais destrutiva” da “moral sexual burguesa”, que, através da lente da reprodução social, pode ser entendida como a reprodução da família e da nação. Aplicações de teorias da reprodução social (por vezes abreviada como SRT, Social Reproduction Theory) são utilizadas em vários campos das ciências sociais, mas é na sua utilização na tradição marxista-feminista que as interpelamos aqui.11 Neste contexto, a reprodução diária e a longo-prazo das condições que fazem a vida - e por extensão, o trabalho - possível, não é um sistema paralelo à produção de bens, mas dois sistemas cointegrados. Dito de outra forma, a produção e a reprodução (social) são duas faces da mesma moeda. As relações de género são centrais nesta análise, uma vez que é identificada como uma inovação capitalista a separação das duas faces consoante o género: a produção ocupando o domínio público e a reprodução encerrando-se ao doméstico, transformada em função exclusivamente feminina, não reconhecida como trabalho. Nesse sentido, a ideologia de género não é um simples resultado de uma política estatal, ou do capitalismo em sentido mais lato, mas está fundamentalmente imbricada na manutenção e reprodução da formação social - central aos “processos de acumulação, expropriação e exploração através dos quais se produz mais valia” (Balani, 2023, p. 12).12 As condições históricas que permitem ou sustêm estas premissas podem transformar-se sem que os mecanismos centrais se erodam. A consignação do espaço doméstico à mulher, por exemplo, não impede que uma grande maioria realize formas de trabalho pago fora de casa durante a ditadura; mas o trabalho doméstico é da sua exclusiva e privada responsabilidade, justificado por formulações que o naturalizam.

Esta implicação entre o género, a família e a nação é explícita no fascismo. A diferenciação entre os sexos é entendida como central para a reprodução da família conjugal e forçosamente heterossexual, microunidade do Estado através da qual se perpetua uma ordem biologicamente determinada e religiosamente fundamentada do género. A homossexualidade feminina, como vemos na sua persecução relativamente menor - nas ditaduras ibéricas (Afonso, 2021) bem como na equiparação, no regime nazi, a outros comportamentos “antissociais” - é um problema menor, pois não impede significativamente o lugar da mulher tanto na reprodução biológica como social. Já a homossexualidade masculina constitui uma forma de reprodução que escapa mais significativamente ao poder: uma forma alternativa ou, no pior dos casos, uma incapacidade de organizar os apegos em torno da família que também abre espaço para relações interclasses perigosas (Chitty, 2020). As continuidades na visão da família entre o fascismo e a Revolução - transformada, mais flexível, mas ainda assim orientada para a reprodução biológica - são claras na legalização do divórcio em 1975 ao lado da acérrima oposição ao aborto. Afinal, também o Estado Novo fora tolerante da infidelidade masculina, uma elasticidade da família que não perturba fundamentalmente a ordem social.

A tolerância episódica para com o trabalho sexual durante o Estado Novo é outro exemplo desta elasticidade.13 O “comunicado das prostitutas” fora um manifesto publicado no Diário de Lisboa a 18 de maio de 1974, assinado por um coletivo de 469 trabalhadoras do sexo de Lisboa reivindicando a sua livre sindicalização (Freire, 2016, pp. 96, 309), um ano antes da célebre ocupação da igreja de Saint-Nizier em Lyon que daria origem ao atual Dia Internacional das Trabalhadoras do Sexo. A junção das duas demandas por parte do general não é confusão nem uma forma de “rebaixar” a homossexualidade ao nível da prostituição, como tem sido sugerido: a sua equiparação é revelatória, pois ambas colocam, mais do que um desafio retórico à família nuclear, formas de sociabilidade que escapam ao controlo do poder. No caso da homossexualidade, como vimos, a ameaça relaciona-se com formas de intimidade e comunidade em oposição direta à reprodução da família nuclear; no caso do trabalho sexual, a sua mercantilização visibiliza formas de trabalho que a mulher deve providenciar no âmbito da família de forma gratuita, tal como o trabalho doméstico. É por isto que homossexuais, trabalhadores do sexo, doentes mentais, e sem-abrigos são considerados “estados de perigosidade com medidas de segurança análogas” (Bastos, 1997, p. 222) e, pela mesma razão, não deixam de ser equiparados após o fim do regime.

Foi objetivo deste texto, primeiramente, desafiar a leitura de uma “incongruência” no conservadorismo da Revolução face às questões de género e sexualidade, e em particular nos moldes em que são apresentadas através do episódio do manifesto do MAHR. A leitura do fim do regime como uma rutura que, incompreensivelmente, deixou nós por desatar, elude as condições reais com que são confrontadas as várias intervenções sufocadas entre a revolução e a contrarrevolução. O jogo de forças único ao processo revolucionário apenas pode ser entendido colocando os contornos da sua própria representação de lado.

É apenas com as importantes transformações económicas e políticas da viragem neoliberal da década de 1980 que se transforma a gestão dos vários tipos de afinidade a que chamamos sexualidade, justificando-se a erosão dos velhos aparatos repressivos e a transição para um modelo focado no indivíduo em vez da família, da privacidade em vez da moralidade. As formas de intimidade que colocam ameaça ao bem comum deixam de ser as mesmas, um ajuste que é integral à função de acumulação capitalista e que permite, sustentado pela luta dos movimentos sociais, formas de cidadania conciliadas com (certos tipos de) expressões de género e sexualidade outrora marginalizadas.

O MAHR é semelhante aos seus modelos além-fronteiras, projetos radicais que servem de testemunho de fervorosos imaginários que ficaram, sem exceção, pelas margens, seja no mais amplo movimento social ou no de esquerda, seja nos movimentos pelos direitos LGBTI+ que lhes sucedem. Por outro lado, arriscamos ser difícil imaginar outra longevidade para o MAHR, para o protossindicato das trabalhadoras do sexo de Lisboa, para o Movimento de Libertação das Mulheres, ou para tantos outros, tendo em conta as continuidades entre os períodos pré e pós-revolucionários ilustrados através da atenção ao género e à sexualidade como ferramentas de análise para a história política (bem como o refluxo generalizado na década de 1980 de várias lutas galvanizadas na década de 1970).

Pensar o período revolucionário comporta este desafio: contemplar simultaneamente a excecionalidade e a contextualidade. Da mesma forma, fazer o balanço do que a Revolução deixou de lado implica fazer da prática histórica uma forma de pensar problemas políticos e, portanto, reconhecer que todo o argumento histórico é político. Aqui, a história de grupos marginalizados está particularmente bem colocada para responder a este exercício dialético, uma vez que ele é parte constituinte da necessidade de provar existências tanto contínuas como descontínuas.

Declaração de conflitos de interesse

A autora declara não existir quaisquer conflitos de interesse.

Financiamento

A autora é recipiente de uma bolsa de doutoramento financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) com referência SFRH/BD/08446/2020.

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Notas

1Uso queer no sentido da “malha aberta de possibilidades” que lhe deu Eve Sedgwick (1993, p. 8), como adjetivo que descreve expressões, manifestações e realidades vividas à margem da heterossexualidade e/ou da cisgeneridade não refletidas em termos estáticos como “homossexual” ou “transgénero”. Apesar de as fontes utilizadas neste artigo se referirem principalmente à homossexualidade (tipicamente, a masculina), na utilização do termo “homossexual” existe uma sobreposição histórica significativa entre a orientação sexual e a identidade de género, entendidas hoje enquanto realidades distintas (Stryker, 2008). A escolha de título deste texto pretende deste modo assinalar que parte dos arquivos da história trans portuguesa estão escondidos numa história “homossexual”. Chamo a atenção para um objeto contemporâneo do período em estudo: a reportagem de 1980 da RTP “Anos 70: imagens duma década”, na qual, sob o propósito de documentar “os travestis de rua” que “juntam a homossexualidade à prostituição”, se filmam possivelmente pela primeira vez duas pessoas transfemininas na televisão portuguesa a descrever as suas experiências na primeira pessoa (Furtado et al., 1980). Agradeço a indicação ao Sérgio Mangas.

2Uma versão parcial do mesmo manifesto terá sido publicada noutro jornal: no Diário de Notícias (Afonso, 2019, p. 207; Brandão, 2008, 2016; Gonçalves, 2015, p. 45; INDEX ebooks & CDGD, 2016, p. 28), hipótese não confirmada na fonte, ou no Diário Popular (Freire, 2016, p. 95), fonte não localizada.

3Para uma breve síntese dos debates em torno da historiografia do PREC, ver Rezola (2006, pp. 38-42).

4Além dos arquivos do Diário de Lisboa na Biblioteca Nacional, é possível aceder a uma versão digitalizada nos arquivos da plataforma Casa Comum (MAHR, 1974).

5Os arquivos da Body Politic estão digitalizados no catálogo dos arquivos LGBTQ2+ canadianos “The ArQuives”, disponíveis em https://collections.arquives.ca/.

6A transcrição do discurso está reproduzida em Gonçalves (1976, pp. 37-40).

7Já longe de cumprir o seu desígnio original de fiscalizar a transferência do poder, a Junta manter-se-á intacta até à sua integração no Conselho da Revolução a 14 de março de 1975.

8Exemplos de literatura em torno de questões de género e sexualidade cuja circulação está comprovada pela censura (Príncipe, 1979/2016): O combate sexual da juventude do sexólogo Wilhelm Reich, traduzido em 1972 pela editora Delfos, e a antologia portuguesa Igualdade radical para a mulher, de 1970. Alguma desta literatura - Reich, por exemplo - terá igualmente circulado na imprensa estudantil clandestina (Gomes & Ramos do Ó, 2023).

9Os motins de Stonewall em junho de 1969 não marcam o início do movimento pelos direitos das pessoas queer e trans nos Estados Unidos, que já contava com uma série de organizações e ações coletivas, bem como outras revoltas espontâneas (Stryker, 2008). Stonewall é mais produtivamente lido como marcando uma nova fase deste movimento, mais visível aos olhos do público e consolidando discursos e práticas inspiradas dos movimentos antiguerra, antirracista e feminista (ver D’Emilio, 1983/1998).

10Alguns exemplos deste cruzamento de referências são a Fuori! - Fronte Unitario Omosessuale Rivoluzionario Italiano, fundada, entre outros, pelo teórico Mario Mieli, que passara tempo na Gay Liberation Front londrina; e a Frente de Liberación Homosexual argentina (Simonetto, 2017).

11Para uma leitura de base sobre SRT, ver Bhattacharya (2017). Cinzia Arruzza (2013) identifica-a como a terceira e mais recente fase das várias teorizações marxistas-feministas sobre a origem da opressão das mulheres (sendo a primeira o resultado combinado do capitalismo com um “patriarcado” e a segunda um capitalismo “independente”, cuja atuação subsume todas as opressões à classe).

12Embora exceda os âmbitos deste artigo, remeto igualmente para Balani para uma síntese recente dos debates em torno da raça e do género como coimplicadamente produzidos a partir da reprodução social.

13O enquadramento legal do trabalho sexual em Portugal sofre mudanças constantes ao longo do século xx. Se houve longos períodos durante o Estado Novo em que era pretensamente legal e regulamentado, os trabalhadores eram, todavia, alvo de abuso policial, estigma e precariedade. Seria ilegalizado em 1963, com pouco efeito prático (Bastos, 1997).

Recebido: 03 de Agosto de 2023; Aceito: 25 de Janeiro de 2024

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