Serviços Personalizados
Journal
Artigo
Indicadores
- Citado por SciELO
- Acessos
Links relacionados
- Similares em SciELO
Compartilhar
Nascer e Crescer
versão impressa ISSN 0872-0754versão On-line ISSN 2183-9417
Nascer e Crescer vol.26 no.3 Porto set. 2017
CASE REPORTS | CASOS CLÍNICOS
Exposição a violência em relações de intimidade a propósito de um caso clínico
Exposure to violence in intimate relationships – a clinical case
Jacinta Rodrigues FonsecaI; Catarina MaiaI; Sara MeloII; Lúcia RodriguesI; Márcia CordeiroI
I Department of Pediatrics, Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho. 4434-502 Vila Nova de Gaia, Portugal. jacintarodriguesf@gmail.com; catarinammaia@gmail.com; lucia.trindade.rodrigues@gmail.com; ovinho88@gmail.com
II Child and Adolescent Psychiatry Unit, Department of Pediatrics, Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho. 4434-502 Vila Nova de Gaia, Portugal. saramelo77@gmail.com
RESUMO
As crianças que vivem expostas a violência em relações de intimidade são muitas vezes consideradas vítimas indiretas e durante muito tempo foi difícil enquadrá-las em algum tipo de abuso. Atualmente considera-se que o abuso emocional inclui a violência interparental que é testemunhada pelos menores. Apresenta-se o caso de uma criança exposta de forma recorrente a violência física e emocional do pai dirigida à mãe. Pretende-se com o caso clínico alertar para a necessidade de desenvolver estratégias de sensibilização para o rastreio ativo ao nível da consulta de pediatria e dos cuidados de saúde primários de situações de abuso, nomeadamente de exposição a violência em relações de intimidade. A violência doméstica é um crime público e inclui as situa ções de exposição a violência nas relações de intimidade, sendo este um aspeto determinante na transmissão intergeracional deste tipo de comportamento. É urgente quebrar estes ciclos de violência e orientar quer as vítimas, quer os agressores.
Palavras-chave: Abuso emocional; crianças; violência interparental
ABSTRACT
Children who are exposed to violence in intimate relationships are often deemed indirect victims and for a long time it was difficult to fit them into a specific abuse category. Nowadays, emotional abuse includes interparental violence that is witnessed by minors. A case is presented of a child repeatedly exposed to his fathers physical and emotional violence towards his mother. This clinical case draw attention to the need of developing awareness-raising strategies to do active screening in pediatric appointments and primary healthcare in abuse situations, namely exposure to violence in intimate relationships. Domestic violence is a public crime and includes situations of exposure to violence in intimate relations, which is a crucial aspect in the inter-generational transmission of this kind of behaviour. It is urgent to break these cycles of violence and counsel both the victims and the aggressors.
Keywords: Children; interparental violence; emotional abuse
INTRODUÇÃO
As crianças que vivem expostas a violência em relações de intimidade são muitas vezes consideradas vítimas indiretas e durante muito tempo foi difícil enquadrá-las em algum tipo de abuso.1 Atualmente considera-se que o abuso emocional inclui não só a violência interparental que é testemunhado pelos menores, como também o facto de observarem o resultado dessa agressão ou ouvirem os relatos desses eventos.2-4
O abuso emocional não deixa marcas visíveis; no entanto, esta forma de vitimização causa mal-estar físico, psicológico, emocional, comportamental e relacional comparável ao impacto provocado pela experiência de outros tipos de abuso.1,5 Os efeitos negativos podem manter-se ao longo de todo o ciclo de vida, com impacto ao nível da saúde física e mental do adulto, nomeadamente no estabelecimento de relações afetivas estáveis.5
A violência doméstica constitui crime público em Portugal, desde o ano de 2000, ou seja, qualquer pessoa que tenha conhecimento deste crime pode denunciá-lo junto das autoridades competentes, não sendo possível retirar a queixa. É um crime de denúncia obrigatória para as autoridades policiais e para os profissionais que dele tomem conhecimento no exercício das suas funções e por causa delas. A exposição a violência em relações de intimidade faz parte do crime de violência doméstica (Artigo 152º Violência doméstica − Lei nº 59/2007, de 4 de setembro de 2007).4,6
O pediatra e os médicos de família têm um papel privilegiado e fundamental na deteção, sinalização e orientação destes casos. A identificação e o acompanhamento precoce desta problemática possibilita às crianças e suas famílias um apoio mais qualificado desde o início dos acontecimentos, e por isso, uma intervenção mais eficaz e segura.3
CASO CLÍNICO
Criança do sexo feminino, 11 anos de idade; família nuclear: pai de 39 anos, 9º ano de escolaridade, desempregado, sem rendimentos, dependente monetariamente da esposa, com episódios frequentes de intoxicação alcoólica, transtorno do jogo patológico, situações de autoagressão; mãe de 37 anos, com antecedentes de epilepsia e síndroma depressivo, licenciada em engenharia, a trabalhar na área.
A menina era seguida em consulta de reumatologia pediátrica por osteocondrose do polo inferior da rótula doença de Sinding-Larsen-Johansson, havendo também registo de múltiplas idas ao serviço de urgência por cefaleias e queixas articulares. Comparecia à consulta sempre acompanhada pelos pais, que se mostravam preocupados com o seu estado de saúde. Por suspeita de perturbação de hiperatividade défice de atenção (PHDA) foi referenciada a consulta de desenvolvimento, à qual compareceu apenas com a mãe, tendo a menor dado a conhecer de forma espontânea a situação de violência doméstica (situações de agressão física do pai dirigida à mãe e abuso emocional manifestado por insultos verbais, críticas, ameaças, controlo monetário). Foi orientada para a consulta de pedopsi quiatria e sinalizado o caso à Comissão de Proteção de Crian ças e Jovens em Risco (CPCJ).
Pouco tempo após a sinalização do caso à CPCJ, verificou-se novo episódio de ida ao serviço de urgência por cefaleias. Durante a colheita da história clínica a sós com a menor, esta mostrou receio de voltar para casa, revelando uma atitude parentalizada em relação à mãe em assuntos relacionados com a sua doença/medicação, assumindo um papel ativo na resolução dos problemas da mesma e verbalizando comentários depreciativos em relação ao pai. A CPCJ decidiu a aplicação de medida de apoio junto a outro familiar na pessoa dos avós maternos, com quem se encontra a viver atualmente, fazendo a mãe também parte do agregado familiar, uma vez que os pais se divorciaram. A mãe foi orientada para consulta de psiquiatria e o pai recusou qualquer tratamento ou orientação. De acordo com a regulação das responsabilidades parentais a criança tem contato com o pai um dia por semana e contacto telefónico pra ticamente diário. Houve boa adaptação à escola e transitou para o 7º ano. Confirmou-se o diagnóstico de PHDA, tendo iniciado medicação com metilfenidato. Mantém seguimento em consulta de pediatria e de pedopsiquiatria.
DIISCUSSÃO
O testemunho de violência interparental tem efeitos profundos na criança, dada a proximidade e continuidade da expe riência e a importância que o contexto familiar tem para o seu desenvolvimento.5
A forma como a criança pode ser afetada depende de fatores individuais e contextuais. Em relação à variabilidade individual, as características inatas de cada criança, o temperamento e o carácter, a idade e o nível de desenvolvimento, o género e o nível socioeconómico têm vindo a ser reconhecidos como elementos relevantes para a perceção e interpretação da violência. As variáveis contextuais correspondem às formas de manifestação da violência, à sua severidade, frequência e duração, e ao tipo de conflito, suas causas e resolução.1,2
Muitas crianças manifestam sintomas de internalização, quadros depressivos e/ou ansiosos e problemas somáticos e/ ou sintomas de externalização, expressos através de comportamentos agressivos, disruptivos e/ou autodestrutivos, e proble mas de socialização.2,4,7-9
Pelo facto de a revelação espontânea pela vítima de uma experiência de vitimização se revelar improvável, acentua-se o papel crucial dos profissionais que interagem com a criança ou jovem na deteção, sinalização e orientação destes casos.1,3
O rastreio ativo da violência doméstica deve fazer parte da consulta de vigilância de saúde infantil, através da identificação de fatores de maior vulnerabilidade familiar (abuso de álcool ou drogas, dificuldades socioeconómicas, doença mental, passado de abuso ou exposição a violência nos pais) e de questões simples colocadas à criança e aos pais, tais como: Como é que correm as coisas em casa? O que é que acontece em tua casa quando as pessoas não concordam umas com as outras? O que é que acontece em tua casa quando as coisas correm mal? O que é que acontece quando os teus pais se zangam contigo?.3,9 É essencial que estas questões sejam colocadas nas consultas de rotina, mesmo quando não são identificados fatores de risco.3,9 Uma vez detetadas, estas situações devem ser devidamente orientadas, quer para consultas mais específicas, quer para organizações de apoio à vítima (União de Mulheres Alternativa e Resposta UMAR, Formação Integração Social e Ofertas de Oportunidades de Trabalho FISOOT, Associação Portuguesa de Apoio à Vítima APAV), Núcleos de apoio às crianças e jovens em risco, CPCJ, Tribunal de família e menores, consoante cada caso.9
Pretende-se com o caso clínico alertar para a necessidade de desenvolver estratégias de sensibilização para o rastreio ativo ao nível da consulta de pediatria e dos cuidados de saúde primários de situações de abuso e exposição a violência em re lações de intimidade.
A violência doméstica é um crime público e inclui as situa ções de exposição a violência nas relações de intimidade. Esta exposição aumenta a probabilidade de repetição deste tipo de comportamentos favorecendo a sua transmissão intergeracional, pelo que é fulcral a interrupção do ciclo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Cunningham A, Baker L. What About Me! Seeking to Understand the Childs View of Violence in the Family. London ON: Centre for Children & Families in the Justice System. 2004. [ Links ]
2. Baker L, Cunningham A. Little eyes, little ears How violence against a mother shapes children as they grow. London ON: Centre for Children & Families in the Justice System. 2007. [ Links ]
3. Manual Crianças e Jovens vítimas de violência: compreender, intervir e prevenir. APAV. 2011. www.apav.pt/pdf/Manual_Criancas_Jovens_PT.pdf. Accessed in january 17th 2016. [ Links ]
4. Magalhães T. Abuso de crianças e jovens. Da suspeita ao diagnóstico.1st ed. Lisboa: Lidel. 2010. [ Links ]
5. Holt S, Buckley H, Whelan S. The impact of exposure to domestic violence on children and young people: a review of the literature. Child abuse & neglect. Aug 2008; 32:797-810. [ Links ]
6. Artigo 152º Violência doméstica − Lei nº 59/2007, de 4 de setembro de 2007. https://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/Legislacao_AreaViolenciaDomestica.aspx#I. Accessed in january 17th 2016. [ Links ]
7. Yoon S, Steigerwald S, Holmes MR, Perzynski AT. Childrens Exposure to Violence: The Underlying Effect of Posttraumatic Stress Symptoms on Behavior Problems. Journal of traumatic stress. 2016. [ Links ]
8. Moylan CA, Herrenkohl TI, Sousa C, Tajima EA, Herrenkohl RC, Russo MJ. The Effects of Child Abuse and Exposure to Domestic Violence on Adolescent Internalizing and Externalizing Behavior Problems. Journal of family violence. 2010; 25:53-63. [ Links ]
9. Violência interpessoal: abordagem, diagnóstico e intervenção. Direção-Geral da Saúde. 2014. https://www.dgs.pt. Accessed in september 5th 2016. [ Links ]
10. Fergusson DM, Boden JM, Horwood LJ. Examining the intergenerational transmission of violence in a New Zealand birth cohort. Child abuse & neglect. 2006; 30:89-108. [ Links ]
CORRESPONDENCE TO
Jacinta Rodrigues Fonseca
Department of Pediatrics
Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho
Rua Conceição Fernandes s/n
4434-502 Vila Nova de Gaia
Email: jacintarodriguesf@gmail.com
Received for publication: 13.07.2016 Accepted in revised form: 03.11.2016