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Sociologia, Problemas e Práticas
versão impressa ISSN 0873-6529
Sociologia, Problemas e Práticas no.68 Oeiras jan. 2012
https://doi.org/10.7458/SPP201268691
Desigualdades globais
António Firmino da Costa*
* ISCTE Instituto Universitário de Lisboa, Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-IUL), Lisboa. E-mail: antonio.costa@iscte.pt
Resumo
As desigualdades sociais voltaram a estar sob forte atenção pública e analítica. As perspetivas teóricas atuais das ciências sociais e a disponibilização de indicadores institucionais têm vindo a colocar em evidência o caráter global das desigualdades contemporâneas. O presente artigo examina vários aspetos das desigualdades globais. Partindo de algumas questões teóricas preliminares, aborda de seguida tópicos como as desigualdades de desenvolvimento humano, as relações entre desigualdades nacionais e globais, as novas classes globais, as desigualdades objetivas e subjetivas no mundo atual e, a concluir, a questão da justiça social e das políticas públicas à escala global.
Palavras-chave desigualdades sociais, desigualdades globais, justiça social, políticas públicas
Global inequalities
Abstract
Social inequalities have again become a strong focus of interest and analysis. The current theoretical perspectives in social sciences and the availability of institutional indicators have drawn attention to the global nature of contemporary inequalities. This article examines the various aspects of global inequalities. Following some preliminary theoretical questions, the topics addressed include the inequalities of human development, the relation between national and global inequalities, the new global classes, the objective and subjective inequalities in the world today and, finally, the issue of social justice and public policies at world level.
Keywords social inequalities, global inequalities, social justice, public policies
Inégalités globales
Résumé
Les inégalités sociales sont à nouveau au centre de lattention publique et analytique. Les approches théoriques actuelles des sciences sociales et les indicateurs institutionnels disponibles mettent en évidence la dimension globale des inégalités contemporaines. Cet article aborde plusieurs aspects des inégalités globales. En partant de quelques questions théoriques préliminaires, il aborde plusieurs points tels que les inégalités du développement humain, les relations entre inégalités nationales et globales, les nouvelles classes globales, les inégalités objectives et subjectives dans le monde actuel et, pour conclure, la question de la justice sociale et des politiques publiques à léchelle mondiale.
Mots-clés inégalités sociales, inégalités globales, justice sociale, politiques publiques
Desigualdades globales
Resumen
Las desigualdades sociales volvieron a estar bajo fuerte atención pública y analítica. Las perspectivas teóricas actuales de las ciencias sociales y la disponibilidad de indicadores institucionales han puesto en evidencia el carácter global de las desigualdades contemporáneas. El artículo presente examina varios aspectos de las desigualdades globales. Partiendo de algunas cuestiones teóricas preliminares, aborda enseguida tópicos como las desigualdades de desarrollo humano, las relaciones entre desigualdades nacionales y globales, las nuevas clases globales, las desigualdades objetivas y subjetivas en el mundo actual y, para concluir, la cuestión de la justicia social y de las políticas públicas a escala global.
Palabras-clave desigualdades sociales, desigualdades globales, justicia social, políticas públicas
Introdução
As dinâmicas sociais atuais voltaram a dar grande visibilidade às desigualdades, recolocando-as sob intensa atenção pública e analítica. A produção e disponibilização de indicadores a este respeito tem vindo a multiplicar-se, acompanhada por um número rapidamente crescente de estudos e pesquisas sobre diversos aspetos das desigualdades sociais contemporâneas. Esses indicadores, estudos e pesquisas têm vindo a ser elaborados por sociólogos, economistas e outros cientistas sociais, a partir de uma variedade de centros de investigação, institutos de estatísticas, associações cívicas e organizações internacionais.
No seu conjunto, estas análises recentes sobre o tema têm vindo a colocar em evidência a presença forte e o caráter transversal das desigualdades sociais contemporâneas, os diversos domínios em que elas se manifestam e as conexões que estabelecem com muitos outros aspetos da vida social, assim como a pluralidade complexa das suas causas e a ainda maior diversidade dos seus impactos, muitos deles com grande relevância social.
Em simultâneo, tem vindo a tornar-se também cada vez mais evidente a importância que, hoje em dia, as interdependências sociais globais (à escala planetária) assumem na configuração dos fenómenos contemporâneos de desigualdade social. Porém, essa importância do global nas desigualdades remete para vários fenómenos distintos, se bem que interligados, e para ângulos de análise diferentes, embora complementares entre si.
Assim, numa primeira formulação, e correndo o riso de simplificar muito, a noção de desigualdades globais pode aqui ser entendida como recobrindo os três seguintes planos: (i) o da presença crescente, nas múltiplas desigualdades observáveis em contextos locais e sociedades nacionais, de marcas e efeitos das relações sociais de âmbito global e suas assimetrias; (ii) o das desigualdades entre países, ou desigualdades internacionais, tal como elas se estabelecem e evoluem no mundo atual em profunda globalização; (iii) o das desigualdades sociais que se constituem à escala planetária, abrangendo ou atravessando a sociedade humana no seu todo, num contexto de interdependências sociais globalizadas.
Não seria possível, evidentemente, retomar aqui o conjunto virtualmente infindável de indicadores e estudos que, neste domínio, vão sendo permanentemente produzidos. Deste ponto de vista, poderá ser útil reenviar o leitor interessado para, por exemplo, o sítio eletrónico do Observatório das Desigualdades (http://observatorio-das-desigualdades.cies.iscte.pt/), com toda a informação que ele contém, em constante atualização, e com os links a outros websites que nele se podem encontrar, nomeadamente o da rede europeia Inequality Watch (http://inequalitywatch.eu/).
O artigo que se segue, não deixando de se apoiar na mais vasta e atualizada informação empírica disponível, concentra-se na identificação e discussão de alguns dos aspetos mais importantes, ou questões chave, dessa configuração global das desigualdades sociais contemporâneas.
Esse inventário analítico, necessariamente muito breve, foca-se em seis vertentes: (a) a multidimensionalidade constitutiva das desigualdades sociais em contexto de globalização; (b) as desigualdades de desenvolvimento humano numa perspetiva internacional; (c) as interligações entre desigualdades nacionais, internacionais e globais; (d) a constituição de classes sociais globais; (e) as relações entre desigualdades objetivas e desigualdades subjetivas no mundo atual; (f) a problemática da justiça social e das políticas públicas perante as desigualdades no presente contexto de globalização.
Multidimensionalidade das desigualdades em contexto de globalização
Entre as elaborações teóricas recentes que dão o devido relevo conceptual e analítico ao facto de as desigualdades sociais contemporâneas se inscreverem num contexto social em processo de globalização acentuada, destaca-se a desenvolvida por Göran Therborn, em Inequalities of the World (2006).
Integrando os contributos principais da análise sociológica a este respeito, Therborn sublinha com particular ênfase a pluralidade de desigualdades que caracteriza a configuração societal contemporânea crescentemente globalizada. Propõe, neste sentido, uma perspetiva teórica de caráter multidimensional alargado, identificando três grandes conjuntos principais de dimensões de desigualdade no mundo atual, que designa por desigualdades vitais, desigualdades existenciais e desigualdades de recursos.
O conceito de desigualdades vitais abrange as desigualdades perante a vida, a morte e a saúde. Indicadores como a esperança de vida à nascença ou a taxa de mortalidade infantil são alguns dos mais utilizados neste domínio, nomeadamente para analisar comparativamente desigualdades entre as populações dos diversos países ou para analisar evoluções no tempo dessas desigualdades vitais. Incluem-se também, neste conjunto, desigualdades como as relativas à prevalência de certas doenças, ou à vulnerabilidade a elas, e aos recursos de saúde disponíveis para as prevenir e enfrentar, ou as relativas à ocorrência de certas deficiências e às respostas sociais que lhes são dadas.
Estas dimensões da vida humana em sociedade, apesar de muito diretamente ligadas à constituição biológica dos seres humanos, não são socialmente homogéneas nem estáticas. Apresentam variabilidade considerável entre indivíduos, grupos e sociedades, constituindo dimensões frequentes de desigualdade social. São também dimensões nas quais podem ocorrer longas persistências históricas ou surgir rápidas mudanças sociais. Basta pensar no aumento extraordinário da esperança de vida ao longo do último século, em que praticamente duplicou (em termos médios, a nível mundial, passou da ordem dos 30 a 40 anos para a dos 60 a 70 anos). Por outro lado, verificam-se desigualdades gritantes de esperança de vida entre diversas populações do mundo atual. Recorrendo aos Relatórios do Desenvolvimento Humano, das Nações Unidas, é reveladora a comparação entre, por exemplo, as médias de esperança de vida à nascença dos países da África Subsariana (53 anos) e dos países da OCDE (80 anos) (UNDP, 2010).
As desigualdades existenciais reportam-se ao desigual reconhecimento dos indivíduos humanos enquanto pessoas (Therborn, 2006: 7). Mais concretamente, focam desigualdades de liberdade, direitos, reconhecimento e respeito de que os indivíduos e grupos podem usufruir em sociedade por oposição às opressões e restrições de liberdade, às discriminações, estigmatizações e humilhações. Fenómenos como o patriarcado, a escravatura ou o racismo são algumas das manifestações mais conhecidas das desigualdades existenciais na história das sociedades.
Existem hoje múltiplas versões dessas e doutras desigualdades existenciais, umas mais institucionalizadas, outras mais difusas socialmente. Algumas das mais importantes envolvem categorizações e interações inigualitárias entre indivíduos oriundos de diferentes partes do mundo (designadamente em percursos migratórios), entre conjuntos sociais direta ou indiretamente interrelacionados no contexto societal planetário (envolvendo, nomeadamente, preconceitos e discriminações de caráter nacionalista, religioso ou culturalista) ou entre grupos que se constituem à escala global (como as elites internacionais ou as classes globais de que se fala adiante).
Pelo seu lado, as desigualdades de recursos têm sido, mais frequentemente do que as anteriores, objeto de análise por parte da sociologia e de outras ciências sociais. Em sentido lato, incluem dimensões como as desigualdades de rendimentos e de riqueza, de escolaridade e de qualificação profissional, de competências cognitivas e culturais, de posição hierárquica nas organizações e de acesso a redes sociais. Como refere Therborn, uma das conceptualizações sociológicas mais conhecidas a este respeito é a de Pierre Bourdieu (1979), formalizada em termos das distribuições desiguais de capitais (económicos, culturais, sociais e outros) que estruturam o espaço social.
Uma análise teoricamente esclarecedora das desigualdades sociais no mundo atual requer, para além de uma especificação dimensional alargada das desigualdades relevantes, a caracterização dos principais mecanismos e fatores em jogo. Ainda segundo Therborn, os mecanismos de desigualdade incluem os de distanciamento (geração de desigualdades como resultado de processos de competição ou concorrência em sistemas de interdependência, nomeadamente mercados ou quase-mercados), de exclusão (geração de desigualdades por efeito de restrições seletivas que certos grupos colocam ao acesso de outros a recursos e oportunidades), de hierarquização (geração de desigualdades por efeitos de institucionalização de posições de superioridade ou inferioridade nas organizações formais) e de exploração (geração de desigualdades por efeito da apropriação assimétrica por uns de bens e valores produzidos por outros).
Por sua vez, nos mecanismos de igualdade contam-se os de convergência [catching-up] (abrangendo processos de mudança sistémica, igualização de oportunidades, políticas compensatórias e ações afirmativas), de inclusão (estado de direito, cidadania, serviços públicos, possibilidades de migração, direitos humanos), de compressão (ou encurtamento, das hierarquias institucionais e organizacionais, envolvendo processos de capacitação, empoderamento [empowerment], democratização organizacional ou associativismo) e de redistribuição (estado-providência, fiscalidade progressiva, políticas sociais, mutualismo).
É ainda de destacar, entre as principais componentes da perspetiva teórica proposta por Göran Therborn, a identificação de alguns fatores explicativos fundamentais, a tomar em conta na análise das atuais situações e dinâmicas de desigualdade à escala mundial: a história global (com destaque para as interações internacionais e para as sedimentações, institucionalizações e efeitos de percurso [path-dependency] por elas legados), as imbricações globais (entre estados e nações, por um lado, e movimentos e organizações transnacionais, por outro) e os fluxos globais (de pessoas, capitais, mercadorias e informação).
Outro aspeto fundamental do ponto de vista teórico na análise da multidimensionalidade inerente às desigualdades no presente contexto de globalização, sublinhado por autores como Charles Tilly (2005) ou Douglas Massey (2007), diz respeito às desigualdades categoriais. Algumas das formas mais frequentes destas desigualdades envolvem categorias de género e de idade, de raça e de etnicidade, de classe social e de nível educacional, de nacionalidade e de identidade cultural, entre muitas outras que se podem constituir na interação social e sedimentar institucionalmente e/ou culturalmente, persistindo de modo mais ou menos duradouro.
Como refere Tilly, as categorias sociais estão sempre associadas a diferenças, mas não necessariamente a desigualdades. Muitas vezes, porém, geram desigualdades sociais, dentro de um conjunto de circunstâncias e através de processos especificáveis. Segundo este autor, a formação de desigualdades categoriais está associada, em geral, a processos como os de encontro (entre grupos sociais antes separados que, quando entram em contacto, desenvolvem formas simbólicas de categorização recíproca), de imposição (por exemplo, de categorias discriminatórias, a conjuntos de indivíduos, por parte de outros grupos sociais), de negociação (de fronteiras, designações, práticas e interpretações, entre indivíduos e grupos em interação) ou de transferência (dessas categorias, fronteiras e relacionamentos, de certos contextos e grupos para outros). Nas diferentes sociedades que se foram constituindo historicamente, as desigualdades categoriais têm tido presença forte, formas variáveis e efeitos muito significativos.
Para Massey, na análise das desigualdades categoriais importa tomar sobretudo em conta as relações entre dois tipos de processos teoricamente identificáveis: os processos cognitivos de categorização e estereotipização e os processos sociais de competição, exploração e fechamento de oportunidades. Na interação social, estes processos conduzem com frequência à delimitação de fronteiras, à constituição de grupos e à formação de identidades coletivas, muitas vezes associadas a distribuições desiguais de recursos e oportunidades, em termos mais ou menos acentuados e duradouros.
Ambos os autores como muitos outros, aliás destacam a importância social destas desigualdades categoriais, na sua multiplicidade potencial, sendo por conseguinte relevante analisar quais permanecem, desaparecem ou emergem no quadro social globalizado atual, e quais acentuam, reduzem ou alteram a sua presença e os seus efeitos nesse contexto.
Resta ainda assinalar, neste breve inventário teórico, o tópico do sistema das desigualdades, na expressão de Bihr e Pfefferkorn (2008). Com efeito, se importa atender à pluralidade das desigualdades e às especificidades de cada uma delas, ou até às tendências por vezes divergentes que se observam entre diferentes tipos de desigualdades sociais no mundo atual, importa também não descurar as articulações e interdependências que se estabelecem entre as diversas dimensões de desigualdade, ou mesmo o caráter sistémico que no conjunto essas desigualdades sociais podem assumir. Este ponto é muito pertinente, mas convém não adotar uma posição apriorística ou rigidificante sobre o assunto.
Teorias clássicas como as de Marx, Weber ou Parsons, ou clássicas recentes como as de Bourdieu (1979) ou Wright (1997), apontavam já para essas interligações ou influências recíprocas, embora em registos teóricos diferentes. Nas abordagens atuais, o caráter sistémico das desigualdades é também em geral salientado, mas com ênfase e sentido um tanto variáveis. A obra de Bihr e Pfefferkorn (2008) acima mencionada destaca sobretudo a influência recíproca e a conexão estrutural entre as principais desigualdades sociais do mundo atual. Outros autores também já referidos, como Tilly (2005), Therborn (2006) ou Massey (2007), embora sublinhem igualmente as interconexões, não deixam de chamar a atenção para que a multiplicidade de dimensões, agentes e processos relativos às desigualdades sociais contemporâneas suscita um quadro complexo de dinâmicas, umas confluentes, outras divergentes.
Desigualdades de desenvolvimento humano
Para além de conceitos e teorias apropriadas, a análise das desigualdades globais requer a mobilização de grandes volumes de informação empírica, de abrangência mundial. Informação e procedimentos metodológicos de caráter qualitativo podem ser muito úteis e elucidativos. Mas, a esta escala, dificilmente se pode dispensar o contributo decisivo dos indicadores e medidas de desigualdade de caráter estatístico, suscetíveis de proporcionarem comparações internacionais e séries temporais a respeito de diversas dimensões de desigualdade.
Hoje em dia, as disponibilidades de informação a este respeito são já muito consideráveis. Entre os instrumentos fundamentais para a caracterização e análise das desigualdades atuais numa perspetiva global contam-se os Relatórios do Desenvolvimento Humano (RDH), publicados anualmente pela Organização das Nações Unidas (ONU).
O primeiro RDH foi publicado em 1990 pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). A iniciativa e a conceção foram dos economistas Mahbub ul Haq e Amartya Sen, inspirando-se nas conceções teóricas deste último sobre desenvolvimento, desigualdades e capacidades (capabilities).
A ideia básica que preside a estes relatórios e, em particular, à sua medida de desigualdades mais importante, o índice de desenvolvimento humano (IDH) é que o desenvolvimento e as desigualdades de desenvolvimento são multidimensionais. Logo, na medição e análise das desigualdades de desenvolvimento no mundo nomeadamente nas comparações sincrónicas entre países e nos estudos diacrónicos de séries temporais , não é informativamente suficiente nem analiticamente satisfatório focar apenas a dimensão económica nem usar apenas indicadores económicos convencionais, como o PIB per capita.
O IDH combina três dimensões fundamentais: vida, educação e rendimento ou, usando a terminologia do RDH 2010: vida longa e saudável, conhecimento e um padrão de vida digno. Para a operacionalização destas dimensões o IDH recorre atualmente aos seguintes indicadores: esperança de vida à nascença, para a primeira dimensão; média de anos de escolaridade e anos de escolaridade esperados à entrada da escola, para a segunda dimensão; rendimento nacional bruto (RNB) per capita (em PPC), para a terceira dimensão. Estes indicadores são combinados numa série de algoritmos que conduz ao cálculo dos valores do IDH para cada país em cada ano. Também são calculados valores do IDH para agregados de níveis de desenvolvimento e de grandes regiões mundiais.
As dimensões analíticas principais do IDH têm-se mantido as mesmas, mas os indicadores e as fórmulas de cálculo têm vindo a ser objeto de aperfeiçoamento progressivo. Além disso, os RDH têm vindo a incluir muitos outros indicadores, relativos a diversas dimensões adicionais, designadamente: o empoderamento (ou capacitação), a sustentabilidade e vulnerabilidade, a segurança humana, as perceções sobre bem-estar e felicidade individuais, o bem-estar cívico e comunitário, as tendências demográficas, o trabalho digno, a educação, a saúde, os fluxos e compromissos financeiros, a economia e infraestruturas e o acesso às tecnologias de informação e comunicação.
No RDH 2010, em acréscimo a várias atualizações de indicadores e fórmulas de cálculo, foram também introduzidos outros três índices agregados: o índice de desenvolvimento humano ajustado à desigualdade (IDHAD), que calcula a percentagem de perda nos valores do IDH decorrente das desigualdades internas (a nível nacional) em cada uma das suas três dimensões; o índice de desigualdade de género (IDG), que calcula a desigualdade das mulheres em relação aos homens considerando três dimensões, designadamente a saúde reprodutiva feminina assim como a capacitação (educativa e política) e a atividade económica (participação no mercado de trabalho) de mulheres e homens; e, ainda, o índice de pobreza multidimensional (IPM), calculado em função de um conjunto de privações das famílias, designadamente nos domínios da saúde (deficiências de nutrição e mortalidade infantil), da educação (ausência de qualquer grau de escolarização completa ou crianças em idade escolar não matriculadas no sistema de ensino) e do padrão de vida (carências graves, na casa, de eletricidade, água, saneamento, revestimento do chão, combustíveis para cozinhar, e em equipamentos de transporte e comunicação).
O RDH 2010 evidenciou um conjunto de padrões nas tendências de desenvolvimento humano registadas no mundo nos últimos 40 anos (20 anos de cálculo direto e 20 anos de cálculo retrospetivo). Verifica-se, desde logo, que os níveis de desenvolvimento humano aumentaram significativamente no mundo entre 1970 e 2010, de uma média de 0,48 do IDH para uma média de 0,68 o que é bastante significativo. Estes valores e os seguintes recorrem ao cálculo de um IDH híbrido, construído para permitir estas comparações diacrónicas (UNDP, 2010).
Este progresso verificou-se em praticamente todas as grandes regiões do mundo e na maioria dos países, embora a ritmos variados e com diferentes perfis dimensionais. As exceções são poucas, embora alguns países africanos não tenham melhorado o seu IDH neste período. As evoluções de grandes países asiáticos, nomeadamente a China, influenciam bastante estes resultados a nível mundial, mas mesmo sem elas o padrão geral é de melhoria significativa do IDH.
Um dos aspetos importantes a assinalar é que países com níveis de desenvolvimento económico semelhantes podem ter níveis de desenvolvimento na saúde e na educação muito variáveis. O crescimento dos recursos económicos é sempre importante, mas foi possível a variados países melhorarem bastante os seus níveis de desenvolvimento na educação e na saúde mesmo sem terem alcançado níveis de rendimento muito elevados. Outros, pelo contrário, apresentam níveis de saúde e educação menos elevados do que se poderia supor face aos seus níveis económicos casos que, em geral, correspondem a profundas desigualdades internas.
Verificaram-se neste período, aliás, efetivas reduções das desigualdades internacionais nas dimensões da saúde e da educação (convergência), embora na dimensão económica o processo seja diferente, observando-se grandes assimetrias e coexistindo dinâmicas importantes de convergência e divergência.
Por exemplo, a esperança de vida aumentou 13% entre 1970 e 2010 para o conjunto dos países desenvolvidos, sendo atualmente de 80 anos, enquanto para o conjunto dos países em desenvolvimento esse aumento foi de 21%, situando-se agora nos 68 anos. Do mesmo modo, as taxas de alfabetização subiram 2% nos primeiros, onde atingem hoje 99% da população adulta, enquanto nos segundos subiram 61%, atingindo atualmente 81% da população adulta.
As taxas de escolarização, nos vários graus de ensino, têm também vindo a aumentar, mas a ritmos diferentes, situando-se ainda a níveis muito desiguais para o ensino secundário e, sobretudo, para o ensino superior. No ensino primário as taxas brutas de matrícula tendem para os 100%, tanto nos países desenvolvidos como nos países em desenvolvimento (em termos médios para cada um destes dois conjuntos, apesar dos casos particulares em que tal ainda não acontece, em certos países, territórios ou etnias, ou nas populações femininas de alguns deles). As taxas brutas de matrícula no ensino secundário situam-se hoje igualmente na ordem dos 100%, em média, nos países desenvolvidos (há 40 anos era da ordem dos 75%), enquanto nos países em desenvolvimento se situam, em média, na ordem dos 65% (25% há 40 anos). Quanto à taxa bruta de matrícula no ensino superior, a desigualdade é por enquanto bastante maior: a média atual para os países desenvolvidos é cerca de 70% (25% há 40 anos), enquanto nos países em desenvolvimento está perto dos 20% (uns escassos 2% há 40 anos).
Já o rendimento cresceu 126% no conjunto dos países desenvolvidos, onde a média era em 2010 de 37 mil USD anuais per capita (em PPC, a valores de 2008), enquanto no conjunto dos países em desenvolvimento o crescimento foi de 184% para uma média atual de 5,8 mil USD. Nestes últimos, porém, as variações entre regiões são muito grandes por exemplo, entre um crescimento de quase 1200% na região da Ásia Oriental e Pacífico, hoje com uma média de 6,5 mil USD, um crescimento de 88% na América Latina e Caraíbas, com um rendimento médio atual de 11 mil USD, e um crescimento de 20% na África Subsariana, com um rendimento médio que não chega aos 1,5 mil USD.
Apesar dos padrões globais referidos, a variabilidade é muito acentuada entre grandes regiões e entre países, quer nos perfis multidimensionais, quer nos ritmos de mudança. Os RDH contêm a este respeito múltiplos exemplos. As comparações internacionais que se podem efetuar a partir deles proporcionam uma captação concreta e variada das desigualdades sociais multidimensionais no mundo atual e das desigualdades nas suas evoluções.
Relações de desigualdade num mundo globalizado
Pode dar-se um passo adicional na compreensão das desigualdades sociais no mundo contemporâneo examinando algumas relações chave entre desigualdades nacionais, internacionais e globais.
Recorrendo a propostas conceptuais e operatórias de Branko Milanovic (2007), é esclarecedor distinguir entre um conceito de desigualdade internacional não ponderada, um conceito de desigualdade internacional ponderada (pelo volume populacional dos países) e um conceito de desigualdade global. Os dois primeiros referem-se a desigualdades entre países; as fontes de informação são as estatísticas nacionais. O terceiro refere-se diretamente a desigualdades entre indivíduos, à escala mundial, e recorre, como fonte de informação, a inquéritos diretos às populações (indivíduos e grupos domésticos).
Usando o primeiro conceito, operacionalizado basicamente pelo PNB per capita de cada país, e recorrendo a medidas de desigualdade como o coeficiente de Gini, os dados disponíveis para séries de longo prazo permitem verificar que as desigualdades económicas internacionais isto é, entre países tenderam a registar um aumento contínuo e significativo ao longo de toda a segunda metade do século XX (passando o coeficiente de Gini da ordem dos 0,45 nos anos 1950 para a dos 0,55 na primeira década dos anos 2000).
No entanto, se se usar o segundo conceito, ponderando os valores do primeiro pela população de cada país, as desigualdades económicas internacionais revelam uma tendência continuada de diminuição, ao longo do mesmo período de meio século (passando o coeficiente de Gini da ordem dos 0,58 para a dos 0,50). Examinando com mais pormenor, verifica-se que quase todo este efeito decorre do forte crescimento económico da China nas últimas décadas e do peso que esse país tem na população mundial. Sem a China, a desigualdade internacional ponderada manter-se-ia, nesse período, aproximadamente constante (Gini um pouco superior a 0,50).
Usando o terceiro conceito (desigualdade global), os dados disponíveis mostram um grau de desigualdade económica na população mundial muito mais elevado do que o obtido com os outros dois. Foi possível calcular, para esta desigualdade de rendimentos global, em meados da última década, um coeficiente de Gini de cerca de 0,70 (Milanovic, 2011a). Isso decorre, em parte, de as fontes serem de tipo diferente (neste último caso, são inquéritos diretos às populações), mas corresponde, também, fundamentalmente, ao facto de abarcar não só as desigualdades entre países mas também as desigualdades dentro dos países.
Se se focar a análise nos países da OCDE, verifica-se que, nos últimos 20 anos, os rendimentos cresceram em média 1,7% por ano (OECD, 2011). Porém, atualmente, na OCDE, os rendimentos dos 10% mais ricos são, em média, nove vezes superiores aos dos 10% mais pobres. No entanto, a situação é muito variável de país para país. Por exemplo, nos EUA, o coeficiente de Gini das distribuições de rendimentos subiu, entre 1975 e 2008, da ordem dos 0,32 para a dos 0,38; na Alemanha a tendência também foi de subida, mas da ordem dos 0,25, nos anos 80, para cerca de 0,30, em 2008. Já na França, a tendência foi basicamente estacionária até 2008, situando-se um pouco abaixo dos 0,30. Nos países nórdicos (Dinamarca, Finlândia, Noruega, Suécia) a tendência tem sido crescente, mas os coeficientes de Gini das distribuições de rendimentos não ultrapassam a ordem dos 0,25. Na Turquia, em Portugal, na Espanha e na Grécia, as desigualdades de rendimentos diminuíram na primeira década deste milénio (mais especificamente, até 2008; depois, é ainda cedo para ter informação estabilizada), para coeficientes de Gini da ordem dos 0,40 e 0,35, nos dois primeiros, respetivamente, e pouco superiores a 0,30, nos dois últimos.
É sintomático que a própria OCDE (2011) sublinhe, na análise das causas deste aumento progressivo das desigualdades de rendimentos, a importância do fator alterações nas políticas públicas (em áreas como as da fiscalidade, do mercado de trabalho, das transferências sociais e dos serviços públicos), mais do que os fatores globalização, inovação tecnológica e alterações demográficas (efetivos, mas com peso menor, ou mesmo com efeitos ambivalentes).
Do mesmo modo, do ponto de vista das consequências das desigualdades e da sua intensificação, o relatório que temos vindo a referir (OECD, 2011) enumera como algumas das principais: a retração da mobilidade social ascendente, a acentuação das desigualdades de oportunidades, os impactos negativos na performance económica, o aumento do ressentimento social, a geração de instabilidade política e a indução de sentimentos populistas, protecionistas e antiglobalização. Nesse sentido, as recomendações da OCDE no domínio das políticas públicas vão para políticas de redistribuição mais efetivas, políticas de emprego inclusivas e, principalmente, reforço das políticas de educação e formação, designadamente na educação e formação de adultos com baixas qualificações e no acesso a formação superior ao longo da vida.
Ainda do ponto de vista das consequências das desigualdades nos países mais desenvolvidos (área OCDE), Richard Wilkinson e Kate Pickett, num estudo recente que se tornou referência obrigatória, The Spirit Level (2009), demonstram de maneira convincente, recorrendo a uma panóplia alargada de indicadores, que a gravidade relativa de todo um conjunto de problemas sociais tende a estar relacionada, não tanto com os diferentes níveis de rendimentos desses países, mas sobretudo com os diferentes graus de desigualdade nas distribuições de rendimentos prevalecentes em cada um deles. Essas consequências das desigualdades encontram-se em domínios tão diversos como os da esperança de vida, da mortalidade infantil, da obesidade, das doenças mentais, da toxicodependência e do alcoolismo, da gravidez na adolescência, do desempenho educativo das crianças, dos homicídios, das taxas de encarceramento, da mobilidade social ou dos níveis de confiança manifestados pelas populações.
Por outro lado, no contexto globalizado contemporâneo, o relatório da OCDE acima referido (OECD, 2011) não deixa de examinar a evolução das desigualdades de rendimentos nos principais países emergentes, evidenciando como, na generalidade deles, essas desigualdades têm também aumentado na última década e meia. Por exemplo, os coeficientes de Gini da China e da Índia subiram, nesse período, de cerca de 0,35 para cerca de 0,40. Uma das poucas exceções é o Brasil, em que este coeficiente desceu de cerca de 0,60 para cerca de 0,55.
É possível avançar analiticamente ainda mais examinando algumas relações chave entre desigualdades nacionais, internacionais e globais. Uma ilustração recente desse tipo de análises é apresentada pelo mesmo Branko Milanovic (2011b), comparando as distribuições de rendimentos atuais de cinco países: os Estados Unidos da América e os BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China). O autor analisa integradamente os três referidos tipos de desigualdades, confrontando as distribuição de rendimentos de cada país com as dos outros países e com a distribuição de rendimentos global (do conjunto da população mundial).
Uma constatação particularmente relevante é que toda a população dos Estados Unidos se encontra acima dos 60% na distribuição de rendimentos da população mundial. O mesmo não se passa nos BRIC, onde frações muito significativas ou mesmo largamente maioritárias das respetivas populações estão abaixo ou muito abaixo desse nível de rendimentos. As proporções das distribuições de rendimentos nacionais situadas acima e abaixo desse limiar variam muito, aliás, entre os diferentes países. Por exemplo, na Índia, a quase totalidade da população situa-se abaixo do referido limiar dos 60%. Já no Brasil, a distribuição da população atravessa toda a escala de rendimentos mundial, com segmentos da população nos níveis mais baixos dessa distribuição e outros segmentos nos níveis mais altos. Milanovic faz questão de sublinhar as enormes distâncias que, em termos de rendimentos, os segmentos mais pobres dos países altamente desenvolvidos estão dos segmentos mais pobres dos países em desenvolvimento assinalando ainda como essa situação está ligada a um conjunto de fluxos migratórios atuais ou, pelo menos, de aspirações e tentativas nesse sentido.
Numa análise das desigualdades sociais segundo uma perspetiva global convergente com a anterior, Korzeniewicz e Moran (2009) mostram como nos últimos séculos tenderam a estabelecer-se dois tipos de estruturas sociais em diferentes países: as dos países com equilíbrios de baixa desigualdade (correspondendo em larga medida aos países de níveis elevados de desenvolvimento) e as dos países com equilíbrios de alta desigualdade (praticamente todos os outros). Segundo os autores, os Estados Unidos da América constituem uma exceção, possuindo características híbridas entre aqueles dois ideal-tipos. Esses conjuntos de países não estão isolados entre si. Pelo contrário, têm vindo a influenciar-se reciprocamente, sendo que entre uns e outros se estabeleceram relações elas próprias de desigualdade.
Se se construir como fazem os autores uma tabela da distribuição dos rendimentos globais por decis (distribuição da população mundial segundo dez intervalos hierarquizados de níveis de rendimentos per capita), e se, em cada um desses decis globais, se localizarem os segmentos populacionais de cada país que têm esses níveis de rendimentos (em termos dos decis nacionais das distribuições de rendimentos de cada país), as inferências podem ser da maior relevância.
Verifica-se, por exemplo, que os decis de topo de alguns países ficam concentrados nos decis globais correspondentes aos rendimentos mais baixos, enquanto os decis de outros países se distribuem por um leque de decis globais intermédios e os decis de outros países ainda se encontram concentrados nos decis globais de topo (de rendimentos mais elevados). Alguns países apresentam distribuições nacionais que se estendem ao longo de quase todo o leque das desigualdades globais.
A localização dos decis nacionais nos decis globais é, pois, muito variável e a amplitude da sua distribuição pelos decis globais também. No conjunto, essa localização dá uma ideia esclarecedora das desigualdades mundiais e de como tanto as desigualdades intranacionais (dentro de cada país) como as desigualdades internacionais (entre países) fazem parte intrínseca da sua composição.
Essas distribuições traduzem também o facto de, na formação das desigualdades mundiais contemporâneas, atuarem mecanismos de exclusão seletiva e desigualdade categorial, tendo como base, especificamente, uma forma de status adstrita, a cidadania nacional. Segundo os autores, os efeitos inigualitários das fronteiras nacionais, longe de se terem desvanecido com a globalização dos mercados, coexistem com ela, tendo-se estabelecido na atualidade um sistema inigualitário de amplitude mundial, no qual um tipo específico de desigualdade categorial a cidadania nacional se tornou um fator e critério decisivo das desigualdades à escala mundial.
Deste modo, a mobilidade internacional surge hoje como via ambicionada, ou mesmo privilegiada, para uma mobilidade social ascendente relativamente rápida nesse sistema de desigualdades mundializado a par de, e comparativamente com, outras duas vias: a dos percursos de qualificação pessoal (visando propiciar o acesso individual a melhores posições nas hierarquias sociais) e a da participação em processos de desenvolvimento nacional (tendo como horizonte uma melhoria de posição relativa, nessas hierarquias, dos contextos sociais em que se está inserido).
Classes globais?
A análise das relações de desigualdades mundiais contemporâneas tem sido também colocada em termos da emergência de novas classes globais.
De certo modo, as análises de Robert Reich (1993 [1991]) sobre os analistas simbólicos ou de Richard Florida (2002) sobre a classe criativa inseriam-se já nesta problemática embora o caráter globalizado dessas novas classes não fosse tão central à argumentação teórica desses autores como à de outras propostas sociológicas mais recentes, como, por exemplo, as de Saskia Sassen (2005) e de Anne-Catherine Wagner (2007).
Para estas duas autoras, os processos de globalização financeira, económica, mediática e cultural entrecruzam-se com processos de recomposição social à escala mundial, incluindo a emergência ou a renovação de classes globais.
Nos atuais processos de globalização, como sublinha Wagner, as relações diferenciadas das classes sociais com o espaço global e com a mobilidade internacional são particularmente relevantes.
Anteriormente, eram já bem conhecidos tanto um certo cosmopolitismo das elites aristocráticas, religiosas, comerciantes, intelectuais e artísticas europeias (pelo menos desde o século XVI) como o projeto internacionalista do movimento operário tal como se afirmou na Europa do século XIX embora, como se sabe, um e outro entrecruzados, de maneira ambivalente, com vertentes opostas de caráter nacionalista.
Atualmente, segundo Wagner, as dinâmicas sociais, com o pendor acentuadamente globalizante que adquiriram, incluem processos de reestruturação da burguesia capitalista internacional que se traduzem num peso crescente da finança, num reforço de posições de famílias poderosas do mundo dos negócios e num protagonismo crescente de figuras que assumem papéis, com frequência intermutáveis, de grandes empresários, gestores de topo e investidores internacionais.
Da configuração atual das elites internacionais fazem parte modos de vida que envolvem elevada mobilidade internacional e um conjunto de capacidades linguísticas, redes de relacionamentos (capital social) e formas de distinção cultural altamente internacionalizadas, a que Anne-Catherine Wagner chama competências internacionais.
Ainda segundo esta autora, verificam-se também dinâmicas de globalização nas zonas médias e baixas das estruturas de classes. Os exemplos vão desde as redes transnacionais de migrantes aos movimentos sociais e organizações não governamentais que projetam a sua ação à escala global, passando pelas mutações de modos de vida que, abrangendo faixas cada vez mais alargadas da população mundial, incluem uma massificação tendencial do turismo internacional, dos estudos no estrangeiro e das experiências profissionais internacionais.
Pelo seu lado, segundo Saskia Sassen (2005), para além de famílias tradicionalmente detentoras de elevados capitais económicos inseridas em redes internacionais influentes, podem identificar-se hoje três novas classes globais: uma nova classe profissional transnacional, constituída por altos quadros dirigentes e profissionais altamente qualificados dos grupos empresariais, dos negócios e da finança; uma nova classe de altos funcionários de redes transgovernamentais, circulando entre Estados e organismos internacionais, com agendas renovadas como, por exemplo, a globalização económica, o ambiente, os direitos humanos ou o combate ao terrorismo; uma nova classe global de desfavorecidos, englobando uma miríade difusa de indivíduos, grupos, associações e redes nomeadamente migrantes, mas também não migrantes partilhando condições objetivas, atitudes subjetivas ou formas de ação de algum modo conectadas com as desigualdades que sofrem, ou a que se opõem, nas configurações de globalidade atuais (noutros textos, Sassen faz distinção entre uma nova classe global de ativistas e uma nova classe global de desfavorecidos, mas trata-as conjugadamente).
Para Saskia Sassen merece ainda destaque a conexão entre estas classes sociais e as cidades globais, como Nova Iorque ou Londres, São Paulo ou Hong-Kong. As novas classes globais têm relações diferentes com o espaço e a mobilidade. Os membros das duas primeiras deslocam-se internacionalmente com muita frequência, em geral entre cidades globais. Os da terceira deslocam-se muito menos, embora haja exceções; mesmo os migrantes, na sua maioria, não viajam internacionalmente muitas vezes ou tendem a circular apenas entre local de origem e local de destino.
Mas todos encontram nas cidades globais um tipo de contexto particularmente propício às atividades que realizam, aos modos de vida que cultivam, ao estabelecimento das redes em que se inserem e à prossecução de projetos ou à mobilização por causas que partilham domínios em que combinam as interações localmente contextualizadas com as interações à distância, em especial as mediadas pelos meios de comunicação eletrónicos.
Desigualdades e perceção das desigualdades
No quadro societal globalizado atual verifica-se que as desigualdades subjetivas podem não coincidir com as desigualdades objetivas, para usar a terminologia de Louis Chauvel (2006a).
Recorrendo a um conjunto de inquéritos internacionais (o World Inequality Databse e o Luxembourg Income Study, para as distribuições de rendimentos, e o International Survey Study, para as perceções e valorizações sobre desigualdades), este autor mostra que, se se compararem diversas sociedades nacionais, as relações que se encontram entre desigualdades sociais estruturais, por um lado, e perceções sociais das desigualdades ou julgamentos sociais sobre as desigualdades, por outro, não são relações constantes mas variáveis. Ou, colocando a questão ainda de outro modo, essas relações podem apresentar-se quer como congruentes, quer como incongruentes.
Por exemplo, nos Estados Unidos da América ou nas Filipinas, no início dos anos 2000, as desigualdades de rendimentos eram bastante elevadas. Mas enquanto nos EUA as perceções sociais prevalecentes entre a sua população tendiam a considerar as desigualdades económicas do país como baixas, nas Filipinas as perceções sociais consideravam as desigualdades económicas nacionais como altas. Pelo seu lado, a Noruega e a Hungria apresentavam baixos coeficientes de Gini nas distribuições de rendimentos, mas as populações desses países percecionavam as desigualdades económicas neles vigentes como baixas no primeiro caso e altas no segundo.
Voltando a dois países com graus de desigualdade de rendimentos muito elevados, os Estados Unidos da América e as Filipinas, em ambos só uma minoria das respetivas populações (na ordem dos 20%), agora já não em termos de perceção da situação existente mas de julgamento valorativo sobre ela, considerava essas desigualdades como excessivamente elevadas. Pelo contrário, em países como a França ou a Hungria, com graus de desigualdade de rendimentos muito mais baixos, a maioria das respetivas populações (na ordem dos 60% a 70%) avaliava essas desigualdades, em termos de julgamento valorativo, como excessivamente elevadas. Mas já na Alemanha ou na Noruega, com graus de desigualdade de rendimentos semelhantes aos dos dois países anteriormente referidos, apenas uma minoria das respetivas populações (na ordem dos 20%) considerava valorativamente essas desigualdades como excessivas.
Com base em dados como estes, Louis Chauvel propõe uma tipologia analítica das relações entre desigualdades objetivas e subjetivas. Quando num contexto de elevadas desigualdades objetivas se desenvolve uma forte recusa subjetiva das desigualdades, o autor classifica a situação social resultante como de sociedade de classes. Pelo contrário, quando nesse género de contexto de altas desigualdades objetivas a recusa subjetiva das desigualdades é de baixa intensidade, a situação social é tipificada como de alienação.
Se o contexto social for de baixo grau de desigualdades objetivas, outros dois casos ideal-típicos podem ocorrer: de forte recusa subjetiva dessas desigualdades, situação social caracterizada como de superconflitualidade, ou de fraca recusa subjetiva dessas desigualdades, situação social que o autor designa, recorrendo ao mesmo reportório terminológico, por sociedade sem classes.
Resta acrescentar que Chauvel assinala, neste e noutros estudos, que estes diferentes tipos de situações podem suceder-se no tempo num mesmo país, ou num conjunto de países, associados a mudanças históricas relevantes, mais repentinas ou mais graduais (Chauvel, 2006b).
Pode avançar-se ainda um pouco mais nesta problemática (das relações entre vertentes objetivas e subjetivas, ou socioestruturais e socioculturais, das desigualdades) analisando como as desigualdades sociais contemporâneas encontram hoje suporte cultural num conjunto de crenças que se têm vindo a disseminar socialmente.
Como defende Daniel Dorling (2010), tem-se assistido ao longo das décadas mais recentes à difusão de um conjunto de crenças (implicando valores) que suportam a emergência, a persistência ou a acentuação de algumas das mais notórias formas contemporâneas de desigualdade social. Essas crenças são particularmente características das sociedades mais desenvolvidas. Mas, com a influência que estas exercem, não surpreende ver tais crenças alastrar globalmente.
De certa maneira, estas novas crenças geradoras de desigualdades emergem das cinzas de anteriores formas de injustiça social que em grande parte foram superadas nos países com níveis de desenvolvimento elevados. Mas nem por isso as novas formas de desigualdade e as crenças que as suportam deixam de se revelar geradoras de situações relevantes de injustiça social.
Essas crenças (serão verdadeiramente novas?) podem sintetizar-se, segundo Dorling, nas seguintes expressões: o elitismo é eficiente; a exclusão é necessária; o preconceito é natural; a avidez é boa; o desespero é inevitável.
O autor toma por referência principalmente os Estados Unidos da América e o Reino Unido para apontar que, em sociedades como estas, onde antes a grande maioria da população não tinha acesso senão a níveis elementares de educação formal, se verificou ao longo do último século, e sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, uma expansão muito significativa dos níveis educativos médios e superiores. Essa expansão da educação foi abrangendo cada vez mais pessoas e os percursos educativos foram-se tornando cada vez mais prolongados, o que trouxe importantes benefícios de acesso ao conhecimento, à cultura e a capacidades de profissionalização por parte de camadas sociais da população incomparavelmente mais amplas do que antes acontecia.
Com este processo, porém, veio frequentemente de contrabando uma forma de elitismo que se tornou altamente influente, sobretudo a partir dos anos 80 do século passado. A proliferação de rankings de capacidades e realizações nos mais variados domínios; a tendência para a classificação social de escolas, cursos, vias de estudo ou percursos escolares segundo categorias fortemente estratificadas; a multiplicação de mecanismos e efeitos sociais inigualitários ou discriminatórios associados a essas hierarquizações; a secundarização do valor da cooperação relativamente ao da competição, constituída em modo privilegiado de ação, se não mesmo de existência social tudo isto está mais explícita ou mais implicitamente associado ao pressuposto elitista de que essas hierarquias são naturais e eficientes, isto é, de que na sua base estão atributos intrínsecos de superioridade ou inferioridade pessoal e de que a sua consagração conduz a uma otimização das recompensas individuais e dos resultados sociais. Segundo o autor, este elitismo tornou-se uma nova justificação da desigualdade (Dorling, 2010: 19).
Do mesmo passo, continuando a seguir este autor, onde o pensamento elitista conseguiu crescer mais fortemente, a exclusão social tornou-se mais alargada (Dorling, 2010: 20). As situações anteriores de carência extrema foram superadas nesses países, deixando as suas populações de ser afetadas por elas. Contudo, a partir dos anos 80, as situações de miséria deram lugar, nessas sociedades, a um alargamento cada vez maior das desigualdades de rendimentos, assim como ao crescimento dos níveis de desemprego. A exclusão social passou a estar associada em larga medida à pobreza relativa, traduzindo-se em grandes dificuldades de acesso quer a condições de vida consideradas socialmente como normais, nas diversas esferas da existência (trabalho, consumo, educação, cidadania, etc.), quer a oportunidades sociais efetivas, designadamente para as crianças nascidas em famílias colocadas nessas circunstâncias de exclusão.
Como fator decisivo para a persistência dessas formas de exclusão social encontra-se a crença na inevitabilidade de tais situações, atribuídas em última instância a defeitos de caráter dos que as sofrem, contrastantes com o merecimento virtualmente ilimitado atribuído aos que conseguem apropriar-se duma fração cada vez maior da riqueza, reservando, para si mesmos, prerrogativas como as de auferirem rendimentos elevadíssimos e beneficiarem de taxas reduzidas de contribuição fiscal (ou mesmo da sua inexistência, para algumas espécies de rendimentos e riqueza).
Na mesma ordem de ideias, o racismo e o sexismo institucionalizados deram em grande parte lugar a novas formas de preconceito, explícita ou implicitamente assentes em crenças na superioridade de uns e na inferioridade de outros, sendo estas (superioridade e inferioridade) agora frequentemente consideradas como de base genética, embora também de base sociocultural.
Em qualquer caso, esse recrudescimento do preconceito nos países mais desenvolvidos tem conduzido quer à intensificação das polarizações sociais, materializadas de diversas maneiras (desde as concentrações de altos e baixos rendimentos, como se referiu, até ao reforço da endogamia educacional ou da segregação residencial), quer à intensificação das manifestações de xenofobia e rejeição dos imigrantes (mais especificamente, dos imigrantes que alguns setores dessas sociedades, mais ou menos amplos, tendem a considerar como seres humanos inferiores).
A indigência a que largos segmentos sociais estavam votados em épocas anteriores foi também superada nestes países. Mas foi substituída por novas formas de privação mais especificamente, de privação relativa num contexto social em que, sobretudo a partir dos anos 80 do século XX, se acentuou a avidez de mais ganhos, mais consumos, mais símbolos de status, mais notoriedade pública ou posição social mais destacada.
Esta tendência está intimamente interligada com a crença não só na legitimidade mas também no benefício social das desigualdades e, por conseguinte, da avidez como atitude natural para triunfar nesse contexto por mais que os efeitos de excesso nuns tantos, os efeitos de dependência ou frustração em muitos outros e os efeitos de risco sistémico, como o colapso desencadeado em 2008 na esfera financeira e propagado a todas a outras esferas sociais, desmintam repetidamente essas supostas virtudes.
Além disso, tendo a doença física sido em larga medida controlada nesses países mais desenvolvidos, comparativamente com a situação de saúde que tinham anteriormente, as doenças mentais estão agora em expansão. Mais ainda, é atualmente notório o alastramento de formas difusas de desespero, socialmente experimentadas perante o crescimento das desigualdades, a intensificação da competição (em domínios fundamentais de existência social, como a escola, o emprego, os consumos, as relações pessoais, o status, etc.) e as perspetivas de futuro cada vez mais incertas ou ameaçadoras. Nestas circunstâncias, o desespero existencial tende a ser assumido como uma inevitabilidade.
Elitismo, exclusão, preconceito, avidez e desespero são, assim, segundo Daniel Dorling, cinco crenças fundamentais que, hoje em dia, sustentam a persistência ou mesmo a acentuação da injustiça social inerente às principais desigualdades que têm vindo a instalar-se nas sociedades contemporâneas, muito em especial nos EUA e no Reino Unido, mas com tendência a alastrar mundialmente.
Desigualdades e justiça social num mundo globalizado
Importa ainda examinar, de maneira muito sintética, a questão das relações entre desigualdades e justiça social à escala global.
No atual contexto de globalização, a injustiça social manifesta-se, segundo Nancy Frazer (2008), em três vertentes fundamentais: as injustiças económicas, as injustiças culturais e as injustiças políticas.
A teorização de Frazer assenta na conceção de que uma situação social de justiça requer formas de organização da sociedade que permitam a todos participar em paridade (como pares) na vida social. Combater as injustiças sociais significa, assim, desmantelar obstáculos institucionalizados que impedem alguns de concretizarem efetivamente, como parceiros a título pleno, essa participação na interação social.
Tais obstáculos podem consistir principalmente em desigualdades económicas, ocasionando injustiças distributivas. Face a essas injustiças socioeconómicas têm sido defendidas e desenvolvidas políticas de redistribuição. Boa parte dos movimentos sindicais do último século e meio situam-se nesta vertente, tal como as políticas do estado-providência ou estado social: impostos progressivos, legislação laboral, segurança social, educação pública, serviços públicos de saúde.
Por outro lado, os referidos obstáculos podem localizar-se sobretudo no domínio das hierarquias de valor cultural, levando a injustiças de reconhecimento nomeadamente, reconhecimento deficitário, distorcido ou estigmatizante de status ou de identidade. Face a essas injustiças socioculturais ganharam particular destaque, nas últimas décadas, as políticas de reconhecimento da diferença (ou melhor, de certas diferenças), ou do direito à diferença. Nelas estão envolvidos processos de mudança de sensibilidade cultural, movimentos sociais, alterações de quadro legislativo e políticas públicas de ação afirmativa.
Essas tomadas de posição e formas de ação visam obter respeito pela diferença e combater discriminações com base em atributos como o género, a orientação sexual, a raça, a etnia, a origem nacional, a deficiência, ou outros. Algumas dessas reivindicações, movimentos e políticas públicas remetem, de facto, para combinações de reconhecimento simbólico e redistribuição compensatória.
Um dos méritos do trabalho de Nancy Frazer é o de ter vindo a defender, consistentemente, que as desigualdades socioeconómicas e as desigualdades socioculturais não se reduzem umas às outras, mas coexistem nas sociedades atuais, gerando formas diversas de injustiça social. Nas situações concretas, essas formas de injustiça social e as ações que visam combatê-las surgem muitas vezes entrelaçadas, embora umas vezes reforçando-se mutuamente e outras vezes competindo entre si.
Outro contributo importante das análises de Frazer é a chamada de atenção para uma terceira dimensão das desigualdades globais, também ela geradora de injustiça social no atual quadro societal mundializado. Essa terceira dimensão das desigualdades é de caráter mais especificamente político e as injustiças que dela decorrem são injustiças de representação.
Num plano tratado mais habitualmente, incluem problemas de injusta representação política de certas categorias sociais (de género, região, etc.) nos parlamentos ou noutras instâncias dos estados-nação. Num segundo plano, mais diretamente conectado com o quadro societal globalizado contemporâneo, incidem sobre limitações ao enquadramento (framing) de pessoas, grupos, categorias e populações (por exemplo, estrangeiros, migrantes, refugiados) nos âmbitos de pertença nacionais ou globais e nas instâncias de definição de regras de relacionamento à escala global (levantando, como diz Frazer, problemas de metainjustiça global).
Face a estas novas injustiças sociopolíticas de caráter global, as políticas de representação têm sido protagonizadas por diversas forças sociais, designadamente por organizações não governamentais de caráter transnacional, por movimentos sociais globalizados e por instituições de regulação globais (em especial, a Organização das Nações Unidas, com as diversas entidades de intervenção especializada que dela dependem ou a ela estão associadas).
Segundo Frazer, as políticas de representação reportam-se fundamentalmente à definição de âmbitos de inclusão dos atores sociais, assim como à justa tomada em consideração desses atores sociais nas instâncias de decisão, nacionais e supranacionais incluindo no acesso às políticas de redistribuição e às políticas de reconhecimento. É uma questão cada vez mais premente, mas ainda largamente em aberto, à escala global.
Uma das dificuldades que se colocam à análise sociológica das relações entre desigualdades e justiça social consiste na multiplicidade de significados que essas noções assumem. De entre as teorias da justiça atualmente mais influentes, importa destacar duas, pelo uso alargado que delas tem sido feito nas análises sociológicas contemporâneas sobre a problemática das relações entre desigualdades e justiça social: a teoria da justiça como equidade (fairness), de John Rawls, e a perspetiva das capacidades (capabilities), de Amartya Sen.
Na sua obra fundamental, A Theory of Justice, Rawls elabora aprofundadamente uma conceção geral de justiça como equidade, a de que todos os bens sociais primários liberdades e oportunidades, rendimentos e riqueza, e as bases do respeito por si próprio devem ser distribuídos igualmente, a menos que uma distribuição desigual de algum desses bens, ou de todos, seja em vantagem dos menos favorecidos (Rawls, 1971: 303).
A teoria da justiça de Rawls incide sobre as estruturas institucionais fundamentais das sociedades, visando esclarecer em que medida elas são justas ou injustas do ponto de vista das suas consequências para as desigualdades sociais. É uma teoria de caráter abrangente, incluindo no seu âmbito dimensões relativas à distribuição de rendimentos e riqueza, assim como dimensões relativas à distribuição de liberdades, oportunidades e condições de dignidade pessoal (respeito).
Será esta conceção de justiça como equidade, elaborada para quadros institucionais nacionais, transponível para o plano internacional? Poderão os seus pressupostos encontrar equivalente ou extensão verosímil no âmbito global? O próprio Rawls apenas considerou de maneira muito limitada a possibilidade de justiça redistributiva à escala internacional (Rosas, 2011). No entanto, autores de inspiração rawlsiana mas de orientação cosmopolita encaram positivamente essa possibilidade. Embora explorando argumentos diversos, consideram que as desigualdades globais, e as injustiças correlativas, decorrem em larga medida de sistemas de interdependência de âmbito mundial que se estabeleceram nas relações entre agentes económicos e na esfera de ação de um conjunto de instituições de âmbito internacional (OIT, OMC, FMI, BM, etc.). Torna-se pertinente, pois, procurar a reconfiguração do quadro estrutural e institucional vigente a nível global, de modo a aproximá-lo da justiça como equidade, visando efeitos redistributivos relevantes (e outros efeitos equitativos).
Nesta ordem de ideias, Christopher Bertram (2008), entre outros, aponta exemplos de reformas institucionais que estão na ordem do dia, tais como: reformas no comércio internacional, consistindo no levantamento de restrições de países mais desenvolvidos à importação de produtos dos países em desenvolvimento; alterações nos direitos de propriedade intelectual, designadamente no sentido de viabilizar um acesso mais alargado a medicamentos por parte de populações pobres de países em desenvolvimento; impostos sobre utilização de recursos naturais e sobre transações financeiras internacionais, a canalizar para o desenvolvimento de países pobres ou para o rendimento de populações carenciadas.
Pelo seu lado, Amartya Sen tem vindo a propor uma teoria das capacidades (capabilities) que se relaciona diretamente com as problemáticas da justiça social e das desigualdades. Uma sua obra recente, The Idea of Justice (2009), retoma e desenvolve os seus trabalhos anteriores a este respeito.
As capacidades (capabilities) são entendidas por Sen em sentido amplo, segundo uma perspetiva baseada nas liberdades (freedom-based capability approach), como oportunidades efetivas de fazer escolhas e realizar ações visando objetivos que cada um tem razões para valorizar.
Nesta conceção de capacidades há, pois, tanto um elemento de pré-condições (meios) como um elemento de realizações (fins). Mas, mais importante ainda, há também um elemento decisivo de oportunidades efetivas (liberdades), estruturais e situacionais, para escolher e agir. Assim, não são só as distribuições de recursos que contam, nem só as realizações em si. Contam também as oportunidades efetivas de, em determinadas circunstâncias, poder escolher e fazer algo. Para este economista e filósofo, as capacidades não são mais, de facto, do que uma perspetiva nos termos da qual as vantagens e desvantagens de uma pessoa podem ser razoavelmente avaliadas (Sen, 2009, pp. 296-297).
Do ponto de vista das relações entre justiça social e desigualdades, a teoria de Sen distingue-se da de Rawls em vários aspetos. Desde logo, é de caráter ainda mais multidimensional. Todo o tipo de desigualdades pode em princípio ser relevante para a justiça social, desde as desigualdades de riqueza, educação, status e poder, passando pelas de género, idade, raça, etnia e naturalidade, até inúmeras outras desigualdades relativas não apenas a pré-condições gerais da ação mas também às mais variadas constelações de circunstâncias específicas.
Além disso, esta teoria das capacidades coloca-se sobretudo numa perspetiva situacional e não tanto numa perspetiva institucional. Para Sen, mais do que tentar desenhar abstratamente as instituições ideais de uma sociedade justa (como faz Rawls, na sequência de teorias anteriores do contrato social), importa cuidar das múltiplas situações de injustiça social concretas, associadas a diversas formas de desigualdade específicas, e procurar atenuá-las, corrigi-las ou mesmo eliminá-las.
Amartya Sen tem a preocupação de se distanciar das conceções unifocais da desigualdade, enfatizando a pluralidade alargada de bases potenciais de desigualdade. Chama também a atenção para que a igualdade não é o único valor que uma teoria da justiça precisa de tomar em conta. Sublinha ainda que a igualdade de capacidades constitui apenas uma parcela dos requisitos de justiça social.
No entanto, apesar destas relativizações, destaca dois pontos: (i) que há uma multiplicidade de dimensões e situações em que as desigualdades de capacidades têm consequências relevantes de injustiça social; (ii) que os esforços para reduzir as desigualdades de capacidades vão ao encontro de um objetivo fundamental de justiça social.
Neste sentido, a perspetiva das capacidades de Sen tem grande aplicabilidade à escala global. Sintomaticamente, é ela que está na base, como se viu em ponto anterior, da construção do índice de desenvolvimento humano e dos programas das Nações Unidas com ele relacionados.
A problemática dos direitos humanos tornou-se também uma componente destacada dos debates e das ações que tomam como objeto as desigualdades globais e a justiça global.
O tema dos direitos humanos não se sobrepõe linearmente ao das desigualdades sociais, mas tem interseções muito fortes com ele, nomeadamente se se olhar um e outro do ponto de vista da justiça global. Para o verificar, bastaria retomar a esclarecedora categorização dos direitos humanos proposta por Micheline Ishay (2008 [2004]): direitos relativos à universalidade da dignidade humana; direitos relativos às liberdades civis e outros direitos liberais; direitos relacionados com a equidade política, social e económica; direitos relacionados com solidariedades e identidades nacionais e comunitárias. Os domínios de incidência dos direitos humanos são também domínios de incidência das desigualdades vitais, existenciais e de recursos, tal como sistematizadas por Therborn.
Além disso, como assinala Ishay, nos grandes debates atuais sobre os direitos humanos têm vindo, em traços largos, a confrontar-se posições globalistas e antiglobalistas, multilateralistas e unilateralistas (nas relações internacionais), fundamentalistas do mercado e fundamentalistas religiosas. Com demasiada frequência, esses debates têm conduzido a impasses. Mas têm também permitido o surgimento e a afirmação de posições mais equilibradas e esclarecidas quanto à justiça global, particularmente atentas aos efeitos perversos de desigualdades relevantes que se estabelecem hoje em dia no mundo por exemplo, as distribuições fortemente desiguais de recursos económicos no plano global, as acentuadas assimetrias internacionais de poderes políticos e militares ou, ainda, as múltiplas desigualdades decorrentes de opressões e discriminações exercidas, num quadro de relações sociais globalizadas, em nome de pressupostos ideológicos ou tradições culturais.
Essas desigualdades e as injustiças a elas associadas têm sido alvo não apenas de debate mas também de movimentos sociais e mobilizações coletivas à escala global. O aspeto que mais se destaca nessas formas de ação coletiva é precisamente, como assinala Nicola Montagna (2008), a sua transnacionalização.
Segundo este autor, esses movimentos pela justiça global assentam num conjunto de elementos fundamentais. Um deles é a expansão das redes de organizações da sociedade civil, privilegiando laços e contactos horizontais, apoiados nas novas possibilidades de comunicação eletrónica. Outro, não menos importante, consiste no desenvolvimento de um quadro interpretativo abrangente, com capacidade para, nas ações por direitos humanos e contra desigualdades globais, interligar diferentes ideias provenientes, nomeadamente, da esquerda tradicional, de grupos religiosos e dos chamados novos movimentos sociais (feministas, ambientalistas, etc.).
Essas redes e conceções têm originado a realização de campanhas de protesto de âmbito transnacional, e mesmo transcontinental, incidindo sobre temas como a redistribuição da riqueza (por exemplo, através de taxas fiscais sobre as transações financeiras internacionais, como a taxa Tobin), a redução da dívida de países em dificuldade económica ou com necessidades de desenvolvimento, a canalização de recursos para populações em situação de pobreza, a preservação de recursos naturais, a defesa de minorias, a proteção de refugiados ou o protesto relativamente à ação de organizações internacionais (BM, FMI, OMC, G20, etc.), consideradas por estes movimentos como, em larga medida, responsáveis ou corresponsáveis pelas atuais situações de desigualdade e injustiça global.
Por outro lado, numa perspetiva institucional e de políticas públicas, importa registar que existe hoje um conjunto de organizações que podem ser caracterizadas como instituições internacionais de governação global (global governance) (Deacon, 2008). São constituídas a partir dos Estados nacionais, mas têm graus variáveis de autonomia face a eles. Formam hoje um conjunto alargado de atores globais.
Grande parte deles pertence ao complexo institucional da Organização das Nações Unidas (ONU) como a Organização Internacional do Trabalho (OIT), fundada anteriormente mas integrada depois no sistema das Nações Unidas, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), a Organização Mundial da Saúde (OMS), entre muitas outras agências e programas, como o Plano das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). O Banco Mundial (BM), o Fundo Monetário Internacional (FMI) ou a Organização Mundial do Comércio (OMC), atrás mencionados, também estão ligados às Nações Unidas, embora constituam organizações autónomas.
A maneira como estas organizações intervêm no domínio do que se pode designar por política social global dirigida à redução das desigualdades e à promoção da justiça social à escala global é muito variável entre elas. As orientações que tendem a predominar numas podem revelar-se bastante diferentes das de outras.
Sobretudo as organizações da área económica, como o BM, o FMI e a OMC, têm sido com frequência objeto de críticas por parte de movimentos de protesto como os atrás referidos, que acusam as suas intervenções de, muitas vezes, agravarem mais do que reduzirem as desigualdades e as injustiças globais.
Importa, no entanto, assinalar igualmente que essas organizações não são imutáveis, estando sujeitas, nomeadamente, às alterações mais ou menos drásticas, com efeitos convergentes ou contrapostos quer das posições relativas entre países altamente desenvolvidos e países emergentes, quer das conjunturas económicas, com destaque, atualmente, para a crise financeira desencadeada em 2008.
De qualquer modo, no contexto social globalizado atual, é possível, segundo Deacon, identificar diversos tipos de processos e projetos de política social global: de redistribuição global (transferências internacionais, ajudas ao desenvolvimento, fundos globais); de regulação social global (dos negócios internacionais, das transações financeiras e das condições de trabalho, entre outros aspetos); de direitos sociais globais (como os inscritos nos Objetivos do Milénio, das Nações Unidas, nas áreas da redução da pobreza, da educação universal, da autonomização social das mulheres, da redução da mortalidade infantil, da melhoria da saúde materna, da contenção das pandemias, da sustentabilidade ambiental e da justiça económica global).
Estas vertentes de uma possível política social global estão longe de se encontrar concretizadas na sua plenitude. Em vários domínios não conseguiram ainda, sequer, um grau razoável de consensualização. Mas constituem processos e projetos relevantes, em curso ou em debate no mundo contemporâneo, dirigidos à redução das desigualdades e à promoção da justiça social à escala global.
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