A Lesão Medular (LM) pode ser definida pela falta de funcionamento total ou parcial da medula espinhal em consequência de uma lesão abrupta, ferimentos, luxações, doenças autoimunes, infecções, lesões vasculares, malformações congênitas, processos degenerativos ou tumores (Chari et al., 2017; Machado et al., 2016; Pons et al., 2016).
Causa disfunções nos estímulos sensitivos e motores, funções sexuais, respiratórias, térmicas, excretores e circulatórios (Bydon et al., 2014). Sua ocorrência vem crescendo nos últimos anos, graças ao aumento de episódios relacionados à violência urbana, agressões por armas de fogo e acidentes de trânsito, fazendo com que este seja um sério problema de saúde pública (Ministério da Saúde do Brasil, 2015).
No mundo, a prevalência anual da LM varia entre 15 a 40 casos a cada milhão de habitantes. Já no Brasil, os números chegam a 8 mil novos casos por ano, onde 80% do total de vítimas são homens e, 60%, encontram-se em uma faixa de idade que vai dos 10 aos 30 anos (Ministério da Saúde do Brasil, 2015).
Os danos de uma LM não são limitados apenas a independência física e funcional, mas também exigem um extenso processo de reabilitação. Com isso, a LM podeter consequências sérias para o sujeito lesionado que irá necessitar de amparo familiar e social, visto que os danos acometem praticamente todos os aspectos de vida diária do indivíduo, fazendo com que seja redefinida uma série de novas prioridades para o alcance de uma vida digna (Pretz et al., 2016).
Segundo Hande et al. (2017), 60% dos pacientes com LM sentem dor crônica, que pode ser associada a distúrbios do sono, piora da qualidade de vida e sintomas depressivos. Por isso, 82% dos pacientes com LM relatam tomar pelo menos um medicamento para dor (Clark et al., 2017).
A dor crônica também está associada a situações debilitantes, dependendo do seu grau. A literatura indica que 11 a 94% dos indivíduos acometidos por LM relatam sentir alguma experiência dolorosa, e 63% relatam dor intensa. Dados como esse sugerem um elevado índice do uso de opióides nos pacientes com LM (Clark et al., 2017).
Conhecer o padrão de uso de medicamentos por pacientes com lesão medular pode facilitar a criação de estratégias que minimizem os riscos de possíveis abusos por meio do planejamento de ações voltadas a esta população. Frente a essa problemática, o presente estudo teve como objetivo investigar o uso indevido de medicamentos por pacientes com lesão medular, de acordo com a literatura.
Método
Trata-se de um estudo de revisão integrativa, realizado de junho a outubro de 2019, e que se caracteriza por possuir um caráter sistematizador no rastreio de artigos e na revisão dos diferentes resultados, almejando o entendimento do tema proposto, levando em consideração os diversos estudos selecionados pelo pesquisador (Botelho et al., 2011). Assim, o presente estudo busca responder a seguinte pergunta: Qual o padrão de uso de medicamentos por pessoas com Lesão Medular?
Os artigos foram selecionados seguindo as recomendações do PRISMA (Figura 1 e Figura 2) que costuma dividir o processo de busca em quatro etapas (identificação, seleção, elegibilidade e inclusão). Deste modo, na fase de identificação, buscaram-se estudos publicados nas bases de dados da MedLine, Scopus, Web of Science (WoF), Bdenf e Lilacs. Com o objetivo de captar um número maior de estudos, dois cruzamentos de termos foram realizados: “Analgesics, Opioid and Spinal Cord Injuries” e “Drug misuseand Spinal Cord Injuries”.
Também se optou por acrescentar estudos encontrados nas referências dos artigos selecionados, já que essa estratégia permite recuperar um maior número de publicações que estão dentro dos critérios pré-estabelecidos.
Na fase de seleção, a aplicação dos seguintes filtros foi realizada: idioma (inglês, português e espanhol) e artigos com até cinco anos de publicação. A terceira fase (elegibilidade) remeteu a leitura dos títulos e resumos dos artigos para seleção dos que respondiam aos seguintes critérios de inclusão: estudos realizados apenas com seres humanos; cujo público alvo foi composto por pessoas com lesão medular; e artigos cuja amostra não possuísse outras comorbidades associadas.
Dez estudos foram selecionados para a última etapa (fase de inclusão), na qual os artigos foram lidos na íntegra para que os seguintes critérios de exclusão fossem aplicados: estudos que não responderam à pergunta norteadora; e artigos repetidos em ambas as buscas e/o bases de dados.
A busca foi realizada por dois investigadores independentes durante todo o processo, seguindo as recomendações de duplo cegamento preconizadas pelo PRISMA. Em caso de divergências entre os pesquisadores, estas foram resolvidas por meio de um terceiro investigador que deu seu parecer final. Assim, dos 187 artigos encontrados inicialmente nas bases de dados, oito foram selecionados para compor o presente estudo, além de mais dois artigos selecionados na busca pelas referências dos artigos, totalizando uma amostra de 10 artigos (Figura 1).
O método utilizado para avaliar o nível de evidência dos estudos foi o Oxford Centre for Evidence Based Medicine, no qual, segundo a classificação, a recomendação A se refere a estudo consistente, controlado e com homogeneidade, o B: estudo controlado de menor qualidade, o C: menor qualidade, padrão de referência pobre e o D: inconsistentes e inconclusivos. Já o nível 1 corresponde a ensaios clínicos controlados e randomizados; revisões sistemáticas com homogeneidade, o 2: revisão sistemática de estudos de coortes, estudo de coorte (incluindo ensaio clinico randomizado de menor qualidade), 3: revisão sistemática de estudos caso-controle e estudo caso-controle, 4: relato de caso e o 5: opinião de especialistas, avaliação crítica explícita e pesquisa de bancada (Centre For Evidence Based Medicine, 2009).
Para a extração dos dados e fichamento dos artigos selecionados, exaustivas leituras foram realizadas pelos pesquisadores, sendo as informações processadas com base no instrumento elaborado e validado por Ursi, 2005. Este método de padronização permite minimizar erros na transcrição e/ou tradução, bem como garantir precisão na checagem das informações a serem registradas (Souza et al., 2010).
Resultados
Todos os artigos selecionados foram publicados na língua inglesa, de 2014 a 2018, dentre esses, nove foram realizados nos EUA e um no Canadá. Com relação aos principais instrumentos utilizados na coleta dos dados, destacam-se o Pain Medication Questionnaire (PMQ), o banco de dados online Thomson Reuters Market Scan, prontuários e questionários via correios (Quadro 1).
Quando analisado o Uso Indevido de Medicamentos (UIM) em pessoas com LM, os estudos apontam que este público específico é mais vulnerável ao abuso de medicamentos analgésicos, principalmente os opioides, que costumam causar dependência e trazer outros danos ao organismo. O Quadro 2 apresenta os principais achados dos artigos selecionados.
Discussão
De maneira geral, todos os artigos selecionados apontam para os efeitos negativos do UIM, principalmente os da classe opioide (Clark et al., 2016; Connelly & Wu, 2014; Hand et al., 2017; Hand et al., 2018; Krause et al., 2017; Krause et al., 2018; Krause et al., 2015; Rosenbloom et al., 2017; Urton et al., 2017). É interessante observar que as pessoas com LM parecem ser mais propensas ao risco de abuso medicamentoso, mesmo quando estes foram prescritos por profissionais da área de saúde, já que essas pessoas tem mais acesso a receitas de alguns tipos de medicamentos conforme indicam os estudos analisados (Clark et al., 2016; Hand et al., 2018; Krause et al., 2015; Krause et al., 2017; Rosenbloom et al., 2017).
A prevalência da dor crônica parece ser bastante expressiva entre as vítimas de LM, sendo constatada dor com intensidade moderada e até dores severas periodicamente (Clark et al., 2016). As crises álgicas também parecem ser mais acentuadas entre aquelas que sofreram lesões mais baixas (na região lombar ou sacral) devido a sensação dolorosa ser mais preservada (Hand et al., 2018). Assim, essa cronicidade dos episódios álgicos bem como sua significativa intensidade acaba por justificar os achados de Clark et al., (2016) e Krause et al., (2015), os quais indicam que os participantes faziam uso de medicações para dor diariamente.
A ampla frequência do uso de medicamentos analgésicos pode aumentar as chances do UIM acontecer, trazendo importantes implicações na vida das pessoas com LM. Soma-se a isso os altos scores do PQM, onde o percentual de indivíduos que estavam em risco de cometerem erros no uso de medicações para dor foi considerável. Além da presença de dor crônica, outros fatores parecem estar associados a ocorrência do UIM entre pessoas com LM, tais como ser negro ou não-hispânico, tabagismo, usar maconha recentemente, depressão, busca por sensação impulsiva, diminuição da mobilidade, diminuição da saúde física, intensidade da dor e auto senso para controle desta, sexo masculino, baixa renda e baixa escolaridade (Clark et al., 2016; Hwang et al., 2015; Krause et al., 2015; Krause et al., 2017; Krause et al., 2018; Rosenbloom et al., 2017).
Por outro lado, o aumento da idade, ter um alto nível de escolaridade e atividades apresentaram-se como fatores protetores para este grupo (Krause et al., 2015; Krause et al., 2018). Diferentemente de um estudo realizado em um Centro Médico dos Estados Unidos, onde se identificou entre os falecidos, que o aumento da idade, terem mais anos de lesão e baixa renda são predisponentes ao UIM (Krause et al., 2017).
Dentre os medicamentos mais utilizados no combate a dor crônica, maior atenção deve ser dada aos opióides, pois podem causar dependência e outros eventos adversos que trazem impactos negativos a saúde. Ainda que as doses sejam baixas, o uso prolongado desses medicamentos por parte das pessoas com LM acaba impactando diretamente no bem-estar físico e psicossocial (Hand et al., 2018) aumentando a probabilidade de óbito, se usado diariamente (Krause et al., 2017).
Em um estudo transversal realizado nos EUA, 42 participantes de um total de 159 relataram tomar rotineiramente dois ou mais tipos diferentes de analgésicos. Outro dado importante do mesmo estudo é que os antidepressivos estão entre os cinco medicamentos mais utilizados por pessoas com LM, sugerindo a necessidade de um acompanhamento mais multidisciplinar por parte dos profissionais que acompanham esse grupo (Hwang et al., 2015).
Além disso, complicações como overdose e interações medicamentosas, especialmente porque efeitos adversos parecem ser mais comuns nas pessoas com LM, devem ser levadas em consideração, sendo o uso de medicamentos alternativos aos opióides uma opção na hora de elaborar estratégias para o manejo da dor (Connelly & Wu, 2014; Hwang et al., 2015; Krause et al., 2018). No geral houveram taxas crescentes de óbitos por overdose não intencional devido a opioides analgésicos, pois o uso de medicamentos para dor pode causar depressão respiratória, tornando a mortalidade um preditor significativo (Krause et al., 2017).
É neste âmbito que a enfermagem pode ganhar destaque, promovendo ações de aconselhamento e promoção a saúde para empoderamento desta população específica. O acompanhamento do paciente com LM por parte da equipe de enfermagem é de vital importância e já se mostrou uma interessante estratégia para a educação em saúde e conscientização quanto ao uso inadequado de medicações analgésicas ou opioides. Ainda assim, apenas um estudo realizado em um Hospital Comunitário de Reabilitação, nos Estados Unidos, evidenciou o enfermeiro como relevante ator no tratamento da pessoa vítima de LM, o que mostra uma certa lacuna na literatura a ser preenchida (Urton et al., 2017).
Evidências preliminares de um ambiente hospitalar nos EUA sugeriram que uma intervenção interdisciplinar direcionada pode ser bem-sucedida na redução do uso excessivo de opióides e polifarmácia (Krause et al., 2018). Sugere-se, portanto, uma mudança na tomada de decisão para clínicos que trabalham com dor nessa parcela da população. Alternativas como fisioterapia, educação postural, ajuste de cadeira de rodas e antiespasmódico auxiliam na manutenção do bem-estar dessas pessoas (Hand et al., 2018). Assim, os esforços para prevenir e gerenciar prontamente as condições mutáveis na vida dessas pessoas são os meios mais práticos e eficazes para evitar o UIM (Hwang et al., 2015).
Por fim, dos dez estudos selecionados, três utilizaram o questionário PMQ, que apresentou estimativas válidas e confiáveis de UIM em pessoas com LM, permitindo inclusive identificar neste grupo quais indivíduos eram mais propensas a usar medicação para dor e quais tinham baixa probabilidade para uso abusivo de medicações analgésicas. Ainda que este questionário tenha demonstrado confiabilidade adequada para ser utilizado em pessoas com LM, ainda não foi traduzido ou validado para o português do Brasil (Hand et al., 2017).
Assim, cabe aos profissionais de reabilitação se utilizar de literatura científica para orientar a sua práxis, incluindo a modificação de práticas de prescrição, a implementação de estratégias alternativas que incluem intervenções não farmacológicas para tratar a dor e outras condições secundárias de saúde, bem como uma avaliação mais rigorosa e meticulosa do risco de lesões não intencionais e morte (Hwang et al., 2015; Krause et al., 2018).
Também se faz importante que os prescritores estejam cientes dos possíveis efeitos contributivos do uso de medicamentos para dor na mortalidade dessa parcela da população (Krause et al., 2017), de maneira que o planejamento das diversas práticas auxiliares e educativas deve ser sistemática e contínua a esse público, já que as pessoas com LM necessitam de cuidados por toda a vida (Hand et al., 2018).
A literatura aponta que o uso irracional de medicamentos por parte das pessoas com LM está acarretando uma epidemia global, e que as mortes intencionais ou não estão cada vez mais frequentes (Krause et al., 2018). Nessa perspectiva, percebe-se que o acesso ao auxílio médico e aos medicamentos não se configuram necessariamente em condições mais favoráveis para a saúde, pois a falha na prescrição, o uso inadvertido, os maus hábitos de automedicação acentuada e as falhas na dispensação são preditivos ao abuso de medicamentos e com isso, a tratamento ineficazes e inseguros.
Esta pesquisa analisou as produções científicas dos últimos cinco anos e concluiu que as pessoas com LM fazem uso indevido de medicamentos, sobretudo com excesso de analgésicos. Portanto, revelou-se a necessidade de uma atenção redobrada por parte da equipe multidisciplinar, pelo fato da condição debilitante e, por vezes, conveniente ao uso desse tipo de medicação. Também se faz necessária uma abordagem interdisciplinar alternativa com diferentes técnicas para amenizar a dor nos pacientes que compõem esse segmento social.