Introdução
A doença arterial periférica (DAP) é uma doença sistémica, com afeção de múltiplos territórios e que, por consequência, se manifesta em doentes com um risco cardiovascular (CV) globalmente elevado e muitas vezes submetidos a inúmeras intervenções. O tratamento endovascular da DAP, em virtude da sua natureza minimamente invasiva, surge como um método com bons resultados técnicos e clínicos, com menos complicações perioperatórias, e que se tornou já o goldstandard de tratamento de algumas lesões1-4.Todavia, lesões arteriais complexas, como oclusões longas com envolvimento de bifurcações do território infra-popliteo, permanecem um desafio técnico que classicamente culmina com a escolha de uma alternativa cirúrgica convencional. Atualmente, dadas as semelhanças de calibre arterial e de material necessário, a adaptação de técnicas utilizadas no tratamento de lesões de bifurcações coronárias para o território infra-popliteo tem permitido mudar
o paradigma de tratamento5.
Neste trabalho é apresentado um caso clínico de um doente com DAP complexa tratada com a técnica de double kissing (DK) crush.
Caso clínico
Um homem de 74 anos, hipertenso, fumador e com doença pulmonar obstrutiva crónica, recorreu à consulta por isquémia crónica ameaçadora de membro - Rutherford 4 - do membro inferior esquerdo.
Dos antecedentes cirúrgicos releva-se exclusão endovascular de aneurisma da aorta abdominal infra-renal e a safenectomia bilateral da veia grande safena.
A AngioTC pré-operatória demonstrou uma oclusão longa do setor femoro-popliteo (30cm) com reabitação ao nível do tronco tibioperoneal (TTP) - Fig. 1. Apesar da extensão e localização da lesão, com envolvimento de toda a artéria poplítea, os antecedentes cirúrgicos do doente, com múltiplas abordagens cirúrgicas femorais prévias e ausência de veia grande safena, fizeram com que o doente fosse proposto primariamente para tratamento endovascular utilizando a técnica de DK crush.
Através de um acesso percutâneo da artéria femoral superficial (AFS) ipsilateral, e após administração de heparina não fracionada, foi realizada uma angiografia diagnóstica, que confirmou as lesões evidentes na AngioTC pré-operatória bem como a existência de run-off por duas artérias de perna - peroneal e tibial posterior (TP). A lesão foi recanalizada e foi colocado um fio-guia hidrofílico 0.014’ na artéria TP (“vaso secundário”). Através deste avançou-se um catéter Berenstein até à emergência da artéria peroneal (“vaso principal”) e introduzido um segundo fio 0.014’ com posterior cateterização da mesma. A bifurcação do TTP foi pré-dilatada em kissing (1º kissing balloon) e foi colocado um everolimus drug-eluting stent (DES) expansível por balão (Xience Sierra® 3×18mm; Abbott Vascular, CA, USA) na TP. Posteriormente, ainda com o primeiro balão insuflado, foi colocado um segundo everolimus DES expansível por balão (Xience Sierra® 3.5×18mm; Abbott Vascular, CA, USA) na artéria peroneal, com término proximal cerca de 1cm acima do primeiro, e aberto com consequente crush da porção proximal do 1º stent.
O fio-guia da artéria peroneal foi removido até à bifurcação TTP e reintroduzido através das malhas dos stents na TP; também o fio-guia da TP foi removido e reintroduzido pelo stent do vaso principal, de forma a assegurar a sua permeabilidade. Realizado o segundo kissing balloon da bifurcação, sendo primariamente insuflado o balão da TP (vaso secundário) para garantir uma boa abertura das malhas do stent, com excelente resultado angiográfico. Por último, foi realizada angioplastia do eixo arterial proximal com colocação de DES auto-expansíveis Zilver PTX® (Cook Medical, Bloomington, Inc) nas artérias poplítea e femoral superficial em gradação crescente - Fig. 2. O acesso percutâneo foi encerrado com dispositivo de encerramento - FemoSealTM (Terumo, Tokyo, Japan).
O doente teve alta para o domicilio no 1º dia de pós-operatório, sob dupla antiagregação (AAS 100mg e Clopidogrel 75mg), que manteve durante 6 meses. Aos 9 meses de follow-up apresenta-se sem queixas, sob AAS 100mg, e com permeabilidade mantida de todo o eixo arterial, nomeadamente as artérias peroneal e TP, evidente em ecoDoppler de controlo.
Discussão
A utilização de estratégias endovasculares para o tratamento da DAP é já um método estabelecido com bons resultados técnicos e clínicos1-4.
Primariamente é importante refletir sobre o acesso selecionado. No caso descrito foi escolhido um acesso anterógrado pela AFS de forma a evitar o crossover através da endoprótese aórtica prévia bem como o tecido cicatricial ao nível da região inguinal resultante das abordagens femorais prévias.
Contudo, mesmo em doentes sem antecedentes cirúrgicos de relevo, quando se trata de lesões complexas, o acesso anterógrado deverá ser preferencial uma vez que permite a utilização do comprimento máximo do material e confere uma maior pushability para ultrapassar oclusões longas5.
Em relação à técnica utilizada, no que concerne ao território infra-popliteo, o tratamento com angioplastia simples com balão (percutaneous transluminal angioplasty - PTA) tem-se vindo a provar ineficiente principalmente quando se tratam de lesões arteriais complexas6. O recoil elástico ou as dissecções limitantes de fluxo pós-PTA são frequentes e normalmente requerem um tratamento adicional como a insuflação prolongada de um balão ou mesmo a implantação de um stent(5). Quanto à implantação à priori de stent, no estudo EXPAND (Primary Self-EXPANDing Nitinol Stenting vs Balloon Angioplasty With Optional Bailout Stenting for the Treatment of Infrapopliteal Artery Disease in Patients With Severe Intermittent Claudication or Critical Limb Ischemia) não se verificou uma diferença significativa, aos 12 meses de follow-up, tanto na taxa de doentes com melhoria clínica sustentada (74,3% versus 68,6%, p=0.60) como na percentagem de doentes sem necessidade de nova revascularização da lesão alvo (76,6% versus 77.6%, p=0.85) ou mesmo na taxa de eventos adversos major (65,6% versus 60,9%, p=0.65) nos doentes tratados primariamente com stent quando comparados com os doentes em que foi realizada PTA primária e utilizado o stent apenas como técnica de bailout7. Desta forma, atualmente, a colocação de stents neste território é utilizada on demand e, quando a sua implementação é imperativa, ao invés dos tradicionais bare metal stents (BMS), associados a elevadas taxas de oclusão, os DES coronários são utilizados como tratamento off-label preferencial dada a sua maior taxa de permeabilidade primária e secundária8-11.
Os territórios infra-popliteo e coronários assemelham-se não apenas pelo seu calibre mas porque as lesões com envolvimento de bifurcações são comuns em ambos. As técnicas de implantação de stents nestas condições, originalmente descritas para as artérias coronárias e aperfeiçoadas há décadas pelos cardiologistas, têm sido adaptadas, com sucesso, ao setor tíbio-peroneal. A abordagem ideal para o tratamento destas lesões permanece por esclarecer dentro da miríade de técnicas disponíveis atualmente. A técnica preferencial varia de acordo com as características anatómicas da lesão, nomeadamente o seu comprimento (focal/difusa), extensão ou não ao side-branch (SB) e calibre das artérias alvo.
No caso descrito foi utilizada a DK crush technique. As vantagens desta técnica incluem uma excelente cobertura do ostium do SB sem a necessidade de uma cobertura dupla de stents no vaso proximal (como acontece na técnica de culotte5) e a preservação da permeabilidade de ambos os vasos, mesmo quando a re-cateterização do SB através das malhas do stent não é possível. A re-cateterização pelas malhas do stent pode ser bastante trabalhosa mas pode ser facilitada através da utilização de DES da nova geração, com ligas de cobalto-cromo (como os stents utilizados neste caso), com malhas mais finas e células maiores, para facilitar a passagem do fio-guia5. Quando comparada com a técnica de crush “clássica”, a DK crush revelou menor incidência de trombose intra-stent (1.3% vs 3.2%), maior sobrevida livre de revascularização da lesão alvo (89.5% vs 75.4%, p=0.002) e uma menor taxa de eventos cardiovasculares major (11.4% vs 24.4%)13. Essa superioridade de resultados foi também comprovada em relação ao provisional stenting com implantação de um stent único e à técnica de culotte (DK vs cullote - revascularização vaso alvo: 18.8% vs 5.8%, p<0.001)14.
Apesar de todas as vantagens, existe uma crítica recorrente em relação à de DK crush relacionada com a sua complexidade das múltiplas etapas necessárias, o que a torna uma técnica dificilmente generalizável. Para além disso, embora da sua adaptação para o território infra-popliteo já não ser recente, existe uma lacuna importante na avaliação dos resultados destas técnicas, originalmente desenvolvidas e até ao momento apenas com sucesso terapêutico comprovado para a circulação coronária, no território infra-popliteo. É por isso urgente a realização de estudos que comprovem a sua eficácia de forma a poderem ser integradas com segurança no arsenal terapêutico disponível.