Conforme enfatizou seu criador Jacques Gauthier (Gauthier, 2012), a Sociopoética define um campo de pesquisa e atuação nas áreas de ciências humanas e sociais. Foi desenvolvida no Brasil nos campos da enfermagem, educação, psicologia e sociologia na década de 90. Numa visão do ser integrado em si próprio, unindo forças e fragilidades, e holisticamente, no ambiente (humano e não humano). O seu principal dispositivo - Grupo-pesquisador - favorece o “trabalho” entre sombra e luz, entre opressão e libertação, pela profunda solidariedade e responsabilidade dos integrantes no decorrer do processo de conhecer, cuidar e aprender.
A sociopoética segue cinco orientações básicas: instituição do grupo-pesquisador; valorização da cultura dominada e/ou de resistência; a importância do corpo como fonte de conhecimento; o papel da criatividade de tipo artístico na aprendizagem, no conhecimento e na pesquisa; a importância do sentido espiritual e humano na construção de saberes (Gauthier, 2012).
O Grupo-pesquisador - dispositivo fundamenta - é o dono da pesquisa, do cuidado e da aprendizagem, em dialogicidade com a comunidade ou instituição que nos acolhe, a qual tem direito de exigir retornos pela sua disponibilidade. Mas ele é ainda mais que isso: ele é um Pensador, um Filósofo coletivo, um Coletivo inteligente percorrido de afetos pré-individuais e supra-individuais rizomatizando em ambientes ampliados, conquistando sem prender, recebendo sem depender. Tomando forma de sujeito em processo de individuação, ele é percorrido de fluxos diversos, heterogêneos, de contradições ou conflitos, assumindo paradoxos e incertezas: seu pensamento é um devir e um filósofo coletivo, porta-voz do personagem conceitual1.
Um extremo cuidado com as culturas dominadas e/ou de resistência é a segunda orientação da sociopoética. Culturas indígenas, afrodescendentes, culturas de mulheres, de trabalhadores do campo e da cidade, culturas de crianças, culturas de moradores de rua, etc. Trata-se de dar passagem às práticas e às vozes dos corações daqueles que se expressam de outro modo, aprender a pensar de maneira mais ampla, menos “narcisista”, aberta à alteridade, diferença e heterogeneidade.
A terceira orientação da sociopoética é a exigência de produzir conhecimentos a partir de todas as potências do corpo, e não apenas a razão abstrata, que possui grande valor, mas não esgota nossa força cognitiva e criativa: a sensibilidade (no toque, no cheiro, na escuta e fala etc.), a emoção, a intuição, a gestualidade, a imaginação e, notadamente, a faculdade de pensar em imagens e até a razão prática (fazer ou dizer a coisa certa no momento certo) participam do que nos é oferecido com o nosso corpo para investigar o ambiente. É só ouvir as pessoas que vivem ao nosso redor para perceber o quanto elas são motivadas a compreender o mundo pelos seus afetos. E a intuição, também, tem um papel pouco estudado porque discreta, mas relevante, nas nossas orientações e tomadas de decisão. Os sociopoetas sabem se entregar com confiança a suas intuições, particularmente no momento do estudo dos dados.
A criatividade tem papel fundamental na Sociopoética. Artes plásticas, música, dança, teatro, contos e poesia são o caminho para que se expressem esses saberes do corpo, geralmente velados, subconscientes ou inconscientes. Com dinâmicas de inspiração artística, queremos que participe da pesquisa o inconsciente de cada um - aquilo que nunca seria expresso em entrevistas, por causa do autocontrole racional da fala do entrevistado por si próprio.
A importância do sentido espiritual e humano, das formas e dos conteúdos no processo de construção de saberes é o quinto princípio da sociopoética. Ressalta-se a responsabilidade ética, política, poética e espiritual do grupo-pesquisador, considerando a importância da partilha no processo de pesquisar, educar e cuidar. Esse princípio revela a necessidade de ter consciência de si e dos outros. Daí a possibilidade de nos conectarmos com nosso inconsciente e expressarmos seus saberes pela mediação de técnicas artísticas. O encontro das nossas noites, das nossas luas e estrelas, e também dos nossos tempos nublados, favorece a conscientização coletiva, a passagem de uma noite para outra, a conjugação das forças e fragilidades diversificadas dentro do grupo, para melhor entendimento e ampliação da compreensão. Nesta descoberta coletiva, somos um e múltiplos, tecemos alianças e podemos ter lucidez em relação aos nossos conflitos (íntimos e entre integrantes do grupo) ao encontrarmos novas maneiras, mais amorosas e criativas, de lidar com os ambientes e cuidar deles.
A experiência dos pesquisadores da sociopoética no campo da enfermagem, há quase três décadas, demonstrou que os princípios da Sociopoética são aplicáveis não só à pesquisa social e humana, mas também à pesquisa, ao ensino e ao cuidar em enfermagem. Em 2018, numa busca realizada nas bases de dados científicas (Tavares et al, 2018), encontramos mais de 60 artigos científicos relacionando sociopoética à enfermagem nos últimos 5 anos.
A Sociopoética contribui com a perspectiva estética da enfermagem, favorecendo a expressão de sentimentos, emoções, afetos e movimentos no cuidar. Ao considerar as dimensões físicas, afetivas, intelectuais e espirituais no cuidar/educar, o enfermeiro estabelece uma ponte para uma ecologia política do espírito, consolidando a solidariedade entre os seres humanos. A valorização do sensível, do emocional, do intuitivo e do criativo são modos de conhecer imprescindíveis para a compreensão integral do ser humano no processo de cuidar-educar-pesquisar em enfermagem.
Muitas são as ferramentas para o trabalho do enfermeiro em saúde mental na perspectiva sociopoética. A apropriação dos seus princípios possibilita intuir, nos mover em ambientes diferenciados, calar quando necessário, meditar, cantar e dançar nossas vidas, estando em consonância com o paradigma psicossocial de atenção em saúde mental.
O uso da criatividade, da experimentação estética e da imaginação é essencial para o desenvolvimento de práticas sociopoéticas. As práticas artísticas que incentivam a verbalização do imaginário e a expressão dos inumeráveis estados do ser são essenciais à humanização dos cuidados prestados a pessoa em sofrimento mental.
É por meio da experimentação estética, engendrada por dispositivos que permitam potencializar e intensificar a vida por um fluxo de descoberta e autoconhecimento, que se chega à criação no cuidado. Conforme Tavares (2016), a experimentação estética é um movimento de improvisação contínua, que implica em se jogar numa experiência, arriscar e criar uma nova forma de ser, sentir, inventar e forçar limites de existência.
É libertando os corpos de processos alienantes que impossibilitam ou dificultam os processos inventivos que produzimos saúde. Por meio da experimentação estética movimentam-se as capacidades emocionais, afetivas, imaginativas e intuitivas, favorecendo a invenção de modos de convívio e encontro dos corpos, promovendo criação no ato de cuidar.
O uso da experimentação estética sociopoética na realização de grupos com os usuários dos serviços de saúde mental permite valorizar a subjetividade do paciente a partir do grau perceptivo em que ele se encontra, propiciando ajuda mutua para acessar devires e intuições, expressar emoções, pensar com o corpo inteiro e desenvolver o autoconhecimento.
No modelo asilar, a assistência tendia a focalizar a doença do sujeito, seus sinais e sintomas, o que é condizente com uma perspectiva de cuida-educar-pesquisar tradicional e centrada no mentalismo, no funcionalismo e na técnica. Entretanto, no modelo proposto pela Reforma Psiquiátrica, a assistência está voltada para a inclusão social da pessoa, no desenvolvimento da autonomia do sujeito, na convivência e comunicação com o outro e na participação em grupo e comunitária.
Na área de saúde mental, com o surgimento dos serviços abertos, foi necessário reorganizar os processos de trabalho numa perspectiva interdisciplinar, criativa, colaborativa e comunitária. Nesse contexto, os enfermeiros devem assumir atitude terapêutica e crítico-reflexiva, numa perspectiva humanista e de autonomia profissional, aprendendo a lidar com novas formas de convivência em grupo, lançando mão da criatividade em suas ações e valorizando o relacionamento interpessoal, despertando potências, promovendo a criação de territórios habitáveis e ações comprometidas com a produção de vida.
O cuidado em saúde mental na perspectiva sociopoética é pós-demanda, valoriza as singularidades do ser ao potencializar as interações positivas da pessoa com o ambiente, com a percepção de si próprio, por meio de experimentações estéticas e uso da imaginação criadora. É compreendido como um entrelaçar sútil de fios, numa trama em continua atividade com a teia cósmica e social - ao mesmo tempo em que liberta, gera compromissos, engendrados por um movimento de descoberta e autoconhecimento.
O cuidado anticolonialista e contracolonial para com as culturas dominadas e de resistência nas suas práticas e compreensão do que é o cuidar, associando-as a todas as fases da nossa atuação, é de fundamental importância para minimizar as arrogâncias instituídas e abrir nossos corações para o novo e para recriação de modos de ser e cuidar em saúde mental, considerando nossas emoções, nosso corpo, sentidos e consciências além da nossas cabeças academicamente formatadas.
Nós, sociopoetas, estamos sempre aprendizes no cuidar, de si, dos outros e do ambiente, e somente através do agradecimento, da troca e da responsabilidade podemos crescer, grupal e individualmente. Por essa razão, não seguimos uma técnica específica em nossos processos de trabalho como pesquisadores, educadores e cuidadores, não reproduzimos modos de agir. Na sociopoética, cada situação é original, cada coletivo é singular, cada pessoa é única. A criatividade é nossa chave-mestra, que abre portais sempre imprevisíveis.
Por fim, além de método de pesquisa, a sociopoética é uma filosofia de vida. Adotá-la para o cuidar-educar-pesquisar em enfermagem de saúde mental requer mais do que compreensão e aplicação de seus fundamentos e princípios; exige a experimentação de novos modos de ser.