Introdução
Cada vez mais interagimos com a tecnologia através do toque, no uso do touchscreen há uma contaminação mútua entre a visão e o tato, múltiplas plataformas interpretativas que se concentram em um mesmo corpo. A produção de obras que questionam nossa relação com a estética háptica foi central na exposição recente Please [do not] touch da artista portuguesa Inês Norton, no MNAC (Museu nacional de Arte Contemporânea do Chiado) em Lisboa. A exposição apresentou possibilidades de interagir tatilmente ou não com objetos, imagens e vídeos, tornando elásticas as fronteiras do contato com o corpo no ambiente do museu. Em Intimate Encounter I, Touch Skin (2019) e Intimate Encounter II (2019) a artista propõe interações através da mão em superfícies lisas e polidas que podem remeter ao afeto, a sexualidade ou por vezes a solidão.
1. Conexões afetivas
Please [Do not] touch trouxe diversas obras em que o público poderia interagir com as mãos, mas não só. Há uma tentativa de questionar as possibilidades de como podemos, no presente e no futuro, fazer conexões entre inteligência artificial e inteligência emocional.
O escritor e crítico de arte José Pardal Pina ao descrever a exposição de Norton, comenta que a artista fala sobre pele sem usar nenhum material orgânico, dessa forma destaca o aspecto sensorial das peças em superfícies polidas e suaves: “Na era da compulsão visual e da dessensibilização do olhar, a pele é o órgão das emoções, o amplificador estésico dos grandes momentos individuais e até coletivos” (Pina, 2019).
Já as curadoras Adelaide Ginga e Emília Ferreira finalizam o texto de apresentação da mostra com o argumento que a exposição “sublinha a omnipresença da artificialidade e a necessidade de a questionar, lançando o alerta para a urgência de recuperar a plena consciência do corpo, sob pena de perdermos o essencial do que é ser humano” (Ferreira e Ginga, 2019).
Byung Chul Han (2016) no livro A salvação do belo traz o conceito de polido e liso, pois vivemos em um mundo de excesso de positividade que nos agrada por não causar nenhum incômodo ou dor. Já Sherry Turkle (2015) coloca que a conexão digital é mais um sintoma do que uma cura, que nos conectamos no desconforto da solidão ou mesmo criamos interrupções para evitar os sentimentos difíceis e os momentos constrangedores (Turkle, 2015: p 26-46).
Na obra Intimate encounter I (Figura 1 e 2) penetra-se em um pequeno ambiente circular onde se pode colocar as mãos sobre uma superfície rosa e lisa, feita de fibra de vidro polida, que vibra ao contato. O visitante pode ficar o tempo que julgar necessário. Quando a conexão tátil é cortada, ou seja, o sujeito se separa do objeto escultórico, este pára de propagar vibrações.
No oferecimento poético de Norton, vê-se dois atos iniciais que cabem ao público: penetrar em uma cortina de linhas rosadas, como o ambiente íntimo de um corpo e ser provocado pela marcação das mãos, como um convite ao toque e a sensibilização do corpo. Ao colocar dois pares de mãos na superfície interativa, Norton sugere não apenas a possibilidade de um momento coletivo, como também um vértice da intimidade possível com uma máquina vibratória. Os trabalhos de Inês Norton ao mergulharem nas discussões temporais, convidam a pensarmos como Bergson em Matéria e Memória. O presente como devir, porque está sempre em movimento, e o passado como ser, em constante processo de atualização da virtualidade das nossas lembranças (Bergson, 1995). Se o oferecimento ao toque de Norton interpola questões entre pele, afeto e sexualidade podemos relacioná-lo com as discussões trazidas pelo professor e teórico da área de new media art, Juan Martin Prada, que assim como Bergson, relaciona memória à afetividade.
And if on the one hand, communication technologies can in fact increase or create the conditions for new affective interactions, it is also true that they are potential resources for isolation, due to the addictive protection afforded by bodily distance, technical and telematic distance between bodies that interact in an ever frequent virtualisation (understood as bodilessness) of affectivity (Prada, 2005).
Desta forma nos questionamos: como criar máquinas que sensibilizem o sentimento de afeto? Em 2018, no texto Against Digital Art History, Claire Bishop comenta sobre o momento híbrido em que vivemos em meio a intercâmbios auráticos de tecnologias obsoletas:
Contemporary art, perhaps more than any other art form, is entirely embroiled in digital technology: it permeates the production of work, its consumption and circulation. It is noticeable that artists are increasingly turning to cut-and-paste methods to create work across a wide variety of media. Pre-existing cultural artifacts are remixed and reformatted, generating a mise-en-abyme of references to previous historical eras (Bishop. 2018: 128).
Em colagens heterogêneas, Antônio Fatorelli escreve que percebemos o mundo com o corpo em movimento e que a dimensão afetiva e criativa prioriza sua base sinestésica. Desse modo o tato é relevante para partirmos de uma estética ocularcentrista para uma estética mais enraizada na afetibilidade do corpo (Fatorelli, 2013).
Touch Skin (Figura 3) é uma composição entre uma peça de cerâmica no formato de um tablet e uma tela representada por pele de animal. Ao percorrer o objeto com os dedos, sentimos o pelo duro e grosso do bicho. Expandindo a sensação ao forçar o seu extremo alude ao cotidiano, um cabelo humano, um casaco ou mesmo um tapete. Nos perguntamos, no que mais tocamos hoje? Em corpos digitais ou orgânicos?
A colagem aqui é colocada como o substrato técnico para uma peça que remete à tecnologia por reproduzir um objeto costumeiro, porém sem utilizar nenhuma peça eletrônica. O objeto convida de forma tão intensa ao toque que acreditamos não ser necessário uma indicação de acesso. Com exceção, é claro, do ambiente do museu em seu cubo branco, tradicionalmente proibitivo à interação tátil.
2. A estética háptica
Entre as mais diversas formas de definir as experiências multissensoriais em objetos táteis e ambientes imersivos acreditamos serem pertinente as contribuições do autor Mark Paterson. Na sua linha de pensamento podemos buscar a origem do que o autor define como estética háptica, com destaque para o tato como um sentido relacional que pode promover intimidade e noção de co-presença.
Inicialmente abordado por Aloïs Riegl em um texto de 1901, o termo háptico em relação à arte e à representação espacial surge para diferenciar as imagens ópticas das hápticas em suas transições de técnicas temporais e territoriais. O uso da palavra háptico proporia uma maior proximidade do público com a experiência, diferenciando do estado contemplativo da visão, e é estudado posteriormente por teóricos como Walter Benjamin e Deleuze e Guattari. Cabe destacar aqui a diferença entre tato, que refere a sensibilidade da pele, e ao háptico, que é a conexão através do tato com outras partes, sentidos e pensamentos do corpo.
Mark Paterson integra o estético ao conceito, categorizando o espectro multimédia em que inicialmente vem o som, a imagem, e, por último, o tato. O autor destaca que as sensações da estética háptica distribuem-se em três categorias: a pele, relacionada à textura logo, à pintura; a carne, relacionada ao volume logo, à escultura; ao corpo, relacionado ao espaço e logo, à arquitetura (Paterson, 2007).
Acreditamos que os trabalhos de Inês Norton podem ser relacionados com as possibilidades hápticas, seja em uma sensação de tocar em um ipad de pele animal, ou em percorrer com o dedo a representação interior de um órgão humano como desenvolvemos no último trabalho referenciado neste ensaio.
3. Um sublime tecnológico
O italiano Mário Costa (1995), conhecido por sua teoria da estética da comunicação, desenvolve o conceito de sublime tecnológico. O autor coloca nossos corpos tecnologizados em um mundo em que o artista é um experimentador estético e o seu gesto transforma-se através da máquina. Um sublime que não é relacionado ao belo, mas tem raízes kantianas ao incorporar a ideia de natureza em um sublime ressignificado.
Tal conceito é pertinente nesta discussão pois abrange a expansão do prazer e do assombro trazido pela tecnologia. A tecnologia em nossa volta, afetiva ou não, pode vir a ser a soma do nosso maior vício com o nosso maior terror. Como diria Turkle, no mundo digital em que vivemos existem novas possibilidades de fala e novos formatos de silêncio (Turkle, 2015).
Logo, tal sublime só é possível por vivermos em tempos de excesso. De certa forma acreditamos que Norton transforma seus trabalhos em operadores discursivos ao trazer o objeto para o contato do corpo em superfícies rugosas ou lisas com suas adjuntas referências visuais.
A última obra aqui apresentada chama-se Intimate encounter II (Figuras 4 e 5). Mais uma vez o público adentra um espaço delimitado por uma cortina, desta vez em semicírculo e é convidado a tocar em uma tela de ipad. O movimento do dedo ativa uma animação que representa o interior de um órgão humano ou animal, uma experiência extremamente visceral. Unido ao toque há uma reação sonora, como se estivéssemos mexendo dentro de um corpo orgânico.
Aqui o encontro com o sublime tecnológico paira no ar, não é a obra que é própria do conceito, mas sim o que rememora ao pressionar a nossa exiguidade e a saltar para a atmosfera museológica, nos convidando a protagonizar, interagir, infiltrar e estranhar. É no fascínio de um desespero ansiogênico em relação à solidão, ao tempo, ao toque e ao outro que compartilhamos uma mesma vivência do mundo tecnológico.
Notas finais
As tatilidades apresentadas materializam-se em obras que conectam. Tais refletem uma conexão com o próprio corpo, com um pensamento, com um possível ensaio do que estamos nos tornando. Talvez hoje para nós o sublime que resta é este, o conectivo, o invisível, porém impulsionado pelo tátil.
Na visualidade das escolhas estéticas da artista vemos equilíbrio e composição. Nas propagações evocadas pelas sensações hápticas vemos questionamento, que desloca os corpos da zona de conforto. Se a arte que incita a tecnologia pode ser o pressuposto de um cotidiano hiperconectado, acreditamos que as obras recentes da artista, assim como outros artistas que tomam o toque como protagonista, podem nos levar a fruições que tornam a sinestesia individual, coletiva.