1. Introdução
Portugal é um dos países em que as pessoas mais confiam nas notícias. O Digital News Report Portugal 2022 (Relatório das Notícias Digitais Portugal 2022; Cardoso et al., 2022) assinala que 61% dos portugueses dizem confiar nas notícias, o valor mais alto da Europa do Sul e o segundo mais alto em toda a Europa, apenas atrás da Finlândia. A marca mais confiada é a televisão pública, a RTP. Além disso, os portugueses acreditam que as notícias em Portugal não são muito polarizadas - ou seja, que os média não tendem a exagerar as diferenças entre partidos e grupos políticos. Portugal tem o valor mais baixo do mundo de polarização percebida, a par com Singapura. Estes dados deixam entrever um país onde a relação de confiança entre os média e os seus públicos ainda não erodiu, ao contrário do que tem acontecido noutros países europeus e da América do Norte. É também um país onde a maioria das pessoas ainda consomem informação televisiva todas as semanas - 63% das pessoas veem notícias na RTP, na SIC ou na TVI pelo menos semanalmente, lê-se no mesmo relatório.
Tendo em conta a grande procura de informação televisiva e os níveis de confiança ainda encorajadoramente altos que o público tem nos média, surge como interessante estudar a qualidade do jornalismo que é produzido na televisão portuguesa, ao qual acrescentamos como possível ponto de comparação para entender quão generalizadas são as perceções em causa, o jornalismo radiofónico.
Ao longo das últimas décadas, técnicas e abordagens diferentes foram usadas para medir e avaliar a qualidade do jornalismo. Desde a análise de conteúdo com diferentes metodologias (Martins & Palacios, 2016; Palacios, 2011) ao estudo das condições existentes nas empresas mediáticas para a produção de bom jornalismo (Picard, 2000), passando por definições e medidas ligadas ao papel social e democrático do jornalismo (McQuail & Deuze, 2020), os especialistas propõem uma variedade de ângulos através dos quais estudar o tema. A pesquisa sobre a qualidade do jornalismo ainda é incipiente em Portugal, o que indica uma necessidade de se perceber melhor como os jornalistas e os públicos portugueses definem o jornalismo de qualidade e quais as avaliações que daí retiram.
O tema da qualidade também se torna particularmente premente num momento de crise financeira no jornalismo, que levou à redução do número de jornais e de jornalistas nas redações. Como assinalam tanto os jornalistas (Gómez Mompart et al., 2015) como as instituições (Esteves, 2020) e os académicos (Meyer, 2009; Silva, 2020), o jornalismo de qualidade não se faz sem investimento - seja nos recursos humanos, seja em tecnologias e meios técnicos.
Sendo assim, perante a deterioração das condições financeiras das empresas mediáticas em Portugal, como é que os jornalistas portugueses avaliam a qualidade do jornalismo praticado em Portugal e as condições que eles próprios têm para fazer “bom jornalismo”? Este artigo tem como objetivo responder a duas perguntas de investigação: (a) como é que os jornalistas de televisão e de rádio definem o jornalismo de qualidade?; e (b) como é que os jornalistas de televisão e de rádio avaliam a qualidade do jornalismo produzido em Portugal?
Nesse sentido, começamos por apresentar algumas guias teóricas acerca do estudo da qualidade do jornalismo e das perceções de qualidade dos jornalistas; oferecemos de seguida alguns pontos de contextualização sobre a evolução do perfil profissional da classe jornalística portuguesa, sobre a situação financeira das empresas mediáticas e sobre a situação laboral contemporânea dos jornalistas em Portugal. Depois apresentamos a metodologia deste estudos: entrevistas semiestruturadas conduzidas com 11 jornalistas de rádio e de televisão em Portugal. Finalmente, analisamos os resultados do estudo no seu contexto.
2. Enquadramento Teórico
2.1. O Estudo da Qualidade do Jornalismo
É frequente dizer-se que existe “interesse público” numa imprensa de qualidade, ou seja, que a imprensa cumpre tarefas importantes para a sociedade e que, por isso, a qualidade do seu trabalho é do interesse comum. Estes benefícios da imprensa para a sociedade são múltiplos, incluindo o escrutínio sistemático do poder, o estímulo a uma vida democrática ativa ou a criação de oportunidades para se expressarem ideias e perspetivas sobre o mundo (McQuail & Deuze, 2020). Existe uma visão normativa por parte dos profissionais que praticam o jornalismo sobre a qualidade que consideram ter a obrigação de atingir e existe uma expetativa por parte da sociedade de que a imprensa tenha um certo desempenho, em parte devido ao contexto histórico do jornalismo, cujo papel se foi definindo como elo de ligação entre as instituições políticas e a cidadania. A investigação sobre a qualidade da imprensa foca-se muitas vezes na sua capacidade de cumprir este papel normativo. McQuail e Deuze (2020) criam o conceito de media performance para falar sobre a qualidade do conteúdo jornalístico, com uma definição presa a cinco valores: liberdade, igualdade, diversidade, qualidade de informação e verdade e ordem social e solidariedade.
No entanto, nem todas as definições de qualidade do jornalismo se associam a estes conceitos de serviço público. Picard (2000), por exemplo, parte de um conceito mais economicista: “o conceito de qualidade envolve providenciar valor em troca do dinheiro ou do tempo gastos pelo consumidor para obter e usar um produto ou serviço” (p. 97). Para definir a qualidade do jornalismo, o autor propõe uma aproximação através do tempo passado pelo jornalista nos processos de trabalho e assinala sete categorias de atividade a serem principalmente quantificadas através do tempo passado a fazê-las. Por exemplo, contam-se aqui atividades como “entrevistas”, “estar ao telefone a juntar informação e marcar entrevistas”, “participação em reuniões de redação, discussões e formações” e, mesmo, “pensar, organizar material, e aguardar por informação e materiais” (Picard, 2000, p. 101).
Se Picard (2000) se foca no tempo, Lacy (2000) sugere medir a qualidade do jornalismo através do investimento financeiro. Uma ideia que surge inicialmente em 1986, proposta por Litman e Bridges, é a de que a medição da qualidade do jornalismo pode ser feita por sucedâneo através do investimento financeiro da empresa jornalística no produto. “Este conceito de performance não é uma avaliação do produto em si, mas dos recursos colocados por um jornal para produzir e entregar este produto de qualidade” (Litman & Bridges, 1986, p. 10). Lacy (2000) assinala que embora mais dinheiro não seja uma garantia de conteúdo de qualidade, nem o único fator, uma organização noticiosa necessita de sustento financeiro para o produzir:
pergunte a qualquer editor de um jornal se o dinheiro garante jornalismo de qualidade e o editor provavelmente negá-lo-á. No entanto, pergunte ao mesmo editor se o dinheiro o pode ajudar a melhorar a qualidade das notícias, e a resposta será “claro”. (p. 25)
Sendo assim, o investimento financeiro tem valor como ferramenta para medir a qualidade do jornalismo, argumenta Lacy (2000), porque o financiamento é crucial para a produção de conteúdo de qualidade de forma consistente ao longo do tempo.
Outros projetos procuram definir o jornalismo de qualidade com base nos critérios dos profissionais que o desenvolvem. Rosenstiel et al. (2007), como parte do Project for Excellence in Journalism, desenvolveram uma lista de critérios que definem um noticiário televisivo local de boa qualidade, com base em inquéritos e entrevistas com jornalistas que produzem esse tipo de noticiário. Os jornalistas questionados nesse projeto consideraram que um bom noticiário deveria cumprir sete critérios, nomeadamente, cobrir toda a comunidade, cobrir assuntos relevantes, demonstrar coragem, ser justo, ser rigoroso, demonstrar autoridade e não sensacionalizar.
São critérios que surgem em diversos projetos sobre o que é que os jornalistas valorizam nas notícias de qualidade, como, por exemplo, no trabalho de Gladney (1996). Os jornalistas no estudo de Gladney davam prioridade a certos critérios para a qualidade do jornalismo, incluindo “integridade, imparcialidade e independência editorial”, no que toca aos critérios da organização noticiosa, e “boa cobertura local, rigor e boa qualidade da escrita” (p. 327), nos critérios para o conteúdo em si. O autor procurou perceber se os jornalistas e os públicos valorizavam características semelhantes no jornalismo de qualidade e concluiu que, em grande parte, sim, os profissionais e os leitores tinham padrões parecidos para a excelência jornalística. Este estudo demonstrou ainda que os jornalistas parecem subestimar o interesse dos leitores em temas sérios e exagerar o seu “apetite pelo superficial”, enquanto os leitores são “mais discretos e controlados do que os editores ao decidir o que deve ser impresso” (Gladney, 1996, p. 328) - os leitores valorizaram mais do que os próprios jornalistas uma postura menos sensacionalista dos jornais.
Esta proximidade entre os critérios de qualidade jornalística identificados pelo público e pelos profissionais foi demonstrada em vários outros estudos, incluindo o de Odriozola-Chéné e Rodrigo-Mendizábal (2017) no Equador, onde os autores fizeram um inquérito às audiências e entrevistas a 40 jornalistas para perceberem quais os critérios mais valorizados e também quais as condições necessárias para o desenvolvimento do jornalismo de qualidade.
Os autores encontraram vários pontos de convergência, por exemplo, na importância dada à relevância, clareza e rigor da informação. “Cidadãos e jornalistas partilham uma série de valores no momento de determinar o que é importante”, escrevem os autores, e “a correta identificação das fontes contribui para que os cidadãos considerem que as notícias são representativas dos acontecimentos relatados” (Odriozola-Chéné & Rodrigo-Mendizábal, 2017, p. 186). No entanto, o público considera que a imparcialidade e a confiabilidade estão pouco presentes nas notícias equatorianas e os jornalistas justificam isso afirmando que existem condicionantes profissionais, hierárquicos e externos que dificultam a produção de jornalismo de qualidade. Para os jornalistas, a pressão política surge como a maior condicionante, seguida de outras pressões como, por exemplo, as expetativas da audiência.
2.2. As Perceções de Qualidade dos Jornalistas
Não só é relevante perceber quais os critérios que os jornalistas usam para definir o jornalismo de qualidade, mas também como avaliam o estado do jornalismo atual, inclusive o trabalho que eles próprios realizam. Escolhemos destacar três estudos (Gómez Mompart et al., 2015; Jenkins & Nielsen, 2020; Plasser, 2005) que avaliam a perceção dos jornalistas acerca da qualidade do jornalismo e que parecem pôr em evidência algumas tendências transversais.
Plasser (2005) comparou as perceções dos jornalistas da área política dos Estados Unidos e da Áustria sobre a qualidade das notícias e encontrou semelhanças “marcantes” (p. 64). De ambos os lados do Atlântico, os jornalistas colocavam em causa a boa qualidade das notícias de política: na Áustria, mais de 50% dos entrevistados acreditavam que tinha diminuído nos anos anteriores e apenas 19% consideravam que tinha melhorado. As causas destes problemas seriam as pressões do mercado e a hipercomercialização do produto jornalístico, algo que teria consequências inclusive na interação com as fontes. No entanto, embora os jornalistas políticos dos dois países fossem muito críticos em relação à qualidade das notícias, “não [havia] qualquer indicação de que [estivessem] dispostos a reduzir os seus padrões profissionais de recolha de informações e produção de notícias” (Plasser, 2005, p. 65).
Jenkins e Nielsen (2020) encontraram na Alemanha, França, Reino Unido e Finlândia semelhanças nas qualidades que jornalistas de jornais locais mencionavam como essenciais. Os entrevistados enfatizaram principalmente os valores da proximidade, serviço público e popularidade dos conteúdos. Tinham, porém, críticas a fazer: entre elas, a dificuldade de se produzir mais conteúdo com menos jornalistas, enquanto se procurava manter padrões elevados de qualidade editorial. Os editores e jornalistas entrevistados afirmaram que é cada vez mais difícil fazer uma cobertura das comunidades que providencie informação necessária para os leitores serem cidadãos ativos, devido às pressões de tempo do ambiente digital e à redução de lucros, de leitores e de jornalistas por redação. Certos elementos do jornalismo de qualidade e os recursos para o produzir encontram-se no limite. Jenkins e Nielsen (2020) encontraram assim um “ecossistema transnacional de jornalismo local” (p. 251), em que os jornalistas na sua generalidade procuram não baixar os seus padrões elevados para o jornalismo de qualidade, enquanto tentam manter a sustentabilidade dos seus meios com escassos recursos.
Em Espanha, Gómez Mompart et al. (2015) sondaram 363 jornalistas para perceber como é que estes avaliam a qualidade nos meios de comunicação onde trabalham, através de vários critérios, e encontraram uma insatisfação geral. Por exemplo, apenas metade dos jornalistas considera que a percentagem de informação relevante no seu meio de comunicação é suficiente, embora a relevância seja um dos critérios considerados fundamentais pelos próprios. O mesmo acontece com a capacidade de um meio de comunicação oferecer conteúdos originais.
Uma boa qualidade da informação requer um investimento financeiro que “as empresas não estão dispostas a assumir” (Gómez Mompart et al., 2015, p. 20), segundo 34% dos inquiridos. Muitos dos jornalistas assinalaram também a falta de estabilidade laboral - 28% dizem haver pouca estabilidade laboral na profissão e 34% dizem que apenas metade dos trabalhadores tem essa estabilidade. A perceção dos níveis de precariedade e dos níveis salariais varia em função da idade (aqueles que têm menos anos de experiência veem estas dimensões de forma mais desfavorável) e, também, em função do tipo de meio de comunicação (na televisão, os níveis salariais e de estabilidade são os mais elevados).
Gómez Mompart et al. (2015) encontram entre os jornalistas espanhóis uma tendência para atribuir às empresas a maior parte da responsabilidade pelos problemas de qualidade do jornalismo, “em especial no que toca à falta de investimento para melhorar as condições de produção” (p. 29). Outro problema assinalado, à semelhança do relatado pelos jornalistas do estudo de Jenkins e Nielsen (2020), é a exigência de rapidez, que dificulta os processos de verificação e aprofundamento dos temas.
2.3. A Evolução do Perfil do Jornalista em Portugal
Se é verdade que existem muitos traços comuns à profissão de jornalista a nível internacional, e que se diferenciam as correntes americana e europeia, também é indiscutível que o jornalista e o jornalismo portugueses se desenvolveram numa sociedade particular que os dotou de traços próprios. Como escrevem Correia e Baptista (2007), a profissionalização do jornalismo em Portugal ocorreu principalmente sob a ditadura, perante condicionalismos políticos que, no entanto, não impediram a criação de um ethos próprio para a profissão:
a independência, o rigor, a denúncia da injustiça e a busca da justiça social nunca abandonaram os discursos de legitimação da profissão, mesmo se a realidade imposta pela censura claramente desvalorizava e, em muitos casos, impedia as operações de escolha, seleção e interpretação essenciais para os efetivar. (p. 32)
Entre a década de 1950 e 25 de abril de 1974, muitas alterações iriam ocorrer dentro e fora das redações portuguesas no sentido de moldar a identidade profissional do jornalista português, um processo que continuaria para lá da revolução até aos dias de hoje. Se durante a década de 1950 os jornalistas não tinham formação específica em comunicação e se dava muito mais valor à aprendizagem do “ofício” em contexto de redação e junto dos colegas, a pouco e pouco começou a surgir uma tendência para a profissionalização que pedia uma escolaridade própria. Os jornalistas tinham um estatuto social baixo e houve resistência dentro da profissão à criação de cursos para a sua profissionalização: na época, muitos textos apenas reconheciam “a sala de redação como o espaço privilegiado e exclusivo das aprendizagens necessárias ao desempenho do ‘ofício’” (Correia & Baptista, 2007, p. 400). Só em 1968 é que o Sindicato dos Jornalistas conseguiu criar o primeiro curso de formação jornalística e ainda se estava muito longe de haver consenso entre os profissionais sobre a necessidade desta institucionalização.
Ainda dentro do período ditatorial, os jornalistas coordenaram esforços para uma melhoria das suas condições de trabalho a nível salarial e de carreira, e a crescente dignidade da profissão criou espaço para que se pudessem definir princípios éticos e deontológicos próprios e valores jornalísticos específicos: ganham mais palco os conceitos de “isenção” e “rigor” e a ideia de interesse público, mesmo ainda sob o jugo da censura (Correia & Baptista, 2007).
A caracterização dos jornalistas portugueses como grupo, no entanto, permaneceu incipiente até ao olhar de Paquete de Oliveira, que em 1987 realizou a primeira análise sociológica deste grupo profissional e publicou no ano seguinte o artigo “Elementos Para uma Sociologia dos Jornalistas Portugueses”. O conhecimento que hoje temos sobre a evolução da classe jornalística deve-se em grande parte aos inquéritos que fez aos jornalistas portugueses, realizados com José Luís Garcia, procurando não só conhecer as características sociológicas dos jornalistas, mas também as suas preocupações e objetivos na profissão (Crespo, Azevedo, & Cardoso, 2017).
Até ao final do século XX, a composição da profissão jornalística em Portugal continuaria a transformar-se: se em 1974 havia 700 jornalistas registados, em 1996 eram 4.300, escreve Fernando Correia (1997), que atribui com clareza o aumento à “diversificação e aumento dos média (revistas especializadas, novas estações de rádio e de TV)” (p. 42). Durante as décadas de 80 e 90, a profissão não só se rejuvenesce como também se feminiza e os esforços pela maior escolaridade também dão frutos: em 1992, 35% dos jornalistas tinham formação em comunicação social (Correia, 1997).
Em pouco mais de duas décadas, por altura do inquérito do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia - Instituto Universitário de Lisboa: “Os Jornalistas Portugueses São Bem Pagos? Inquérito às Condições Laborais dos Jornalistas em Portugal”, realizado em 2016, havia equilíbrio entre géneros, com homens e mulheres situados respetivamente nos 51,8% e 48,2%; e no que toca à escolaridade, os profissionais com formação específica mais do que duplicaram: cerca de dois terços dos jornalistas tinham um diploma do ensino superior em ciências da comunicação, comunicação social ou jornalismo (Crespo, Azevedo, Sousa, et al., 2017).
Inseparável da evolução do perfil sociológico do jornalista é o progresso da sua situação laboral - Paquete de Oliveira assinalava já em 1994 como o salário médio do jornalista era “claramente inferior aos salários médios auferidos por profissionais de profissões estabelecidas como médicos e advogados” (Garcia & Oliveira, 1994, p. 37). Correia (1997) escrevia mesmo que o facto de não ser um profissional liberal, mas sim um trabalhador por conta de outrem, estabelecia o jornalista como um profissional mais vulnerável, por exemplo, no caso de vínculos laborais precários ou mal remunerados, que interferiam tanto na sua vida pessoal como profissional e, também, na sua liberdade para seguir a deontologia e os princípios de ética profissional que o deveriam reger, tendo menos poder para resistir a pressões empresariais ou de chefias.
As situações laborais precárias e os baixos salários continuam a ser frequentes entre os jornalistas portugueses na atualidade. Miranda (2021) mapeia como as reivindicações de melhores condições laborais atravessam as conclusões de todos os quatro Congressos dos Jornalistas Portugueses. O autor também assinala que através dos diferentes congressos existe a mesma preocupação com “exigências ( ... ) à própria classe”, como uma preocupação menor “com a quantidade e rapidez, e mais com a qualidade e ponderação da informação” (Miranda, 2021, pp. 26-27). Miranda (2021) refere mesmo um quadro reivindicativo que inclui, através das décadas, “preocupações com a qualidade da informação e a sua regulação, ou juízos sobre boas práticas e modos de exercer a atividade” (p. 29).
Felisbela Lopes (2015) questionou uma centena de jornalistas portugueses sobre qual consideravam ser o maior fator condicionante da liberdade de imprensa. A autora descobriu que um dos fatores mais mencionados se prendia com as preocupações económicas e laborais, inclusive pelos mesmos motivos que Correia mencionava em 1997 - os impactos que a precariedade e baixos salários têm na própria produção e prática jornalística:
um dos maiores constrangimentos à liberdade de imprensa em Portugal reside na autocensura a que jornalistas precários, freelancers ou temerosos são obrigados a recorrer (por vezes de forma automática ou inconsciente) para se manterem no mercado de trabalho. - Andreia Azevedo Soares, do Público. (Lopes, 2015, p. 9)
Em 2017, dois terços dos jornalistas portugueses afirmaram já ter ponderado abandonar o jornalismo, sendo as razões mais frequentes os baixos rendimentos (21%), a degradação das condições de trabalho (20,4%) e a precariedade contratual (14,3%), marcando mais uma vez o quanto a situação laboral do jornalista português permanece preocupante (Crespo, Azevedo, Sousa, et al., 2017).
2.4. O Panorama Empresarial da Crise do Jornalismo em Portugal
Há mais de três décadas que as receitas de publicidade dos jornais têm estado em queda na maioria dos países desenvolvidos, se forem calculadas de acordo com a percentagem do produto interno bruto (Cagé, 2016). Em parte devido a uma redução dos fundos disponíveis, e também devido ao objetivo das empresas mediáticas de produzir receitas mais elevadas em relação aos custos (no caso da imprensa cotada em bolsa, por exemplo, que tem a obrigação de produzir lucro para os seus acionistas), os jornais diminuem em número e, nos que ficam, diminui o número de jornalistas. Entre 1997 e 2007, o número de pessoas a trabalhar na imprensa nos países da Organização Europeia de Cooperação Económica caiu entre 10% e 30% (Peters, 2010).
Em Portugal, em 2004, havia 2.089 publicações periódicas, mas em 2020 esse valor já estava reduzido a 886 (Pordata, s.d.). Nos últimos anos, verificou-se também uma redução no número de profissionais: o país perdeu 1.218 jornalistas em sete anos (entre 2007 e 2014), segundo a Comissão da Carteira Profissional do Jornalista (Morais, 2015).
A posição laboral daqueles que permanecem na profissão não é favorável. Segundo o relatório Jornalistas e Condições Laborais: Retrato de uma Profissão em Transformação (Crespo, Azevedo, Sousa, et al., 2017), mais de metade dos jornalistas inquiridos não progrediam na carreira há mais de sete anos. Quase 70% estavam insatisfeitos com “a evolução das condições de trabalho no setor nos últimos anos” (Crespo, Azevedo, Sousa, et al., 2017, p. 21). Dos 60% de jornalistas que afirmavam trabalhar mais de 40 horas semanais, 13% indicavam uma semana laboral de 51 a 60 horas e 9% trabalhavam mais do que 60 horas semanais. E, embora na maior parte dos casos os contratos prevejam entre 35 e 40 horas de trabalho, 63% dos jornalistas afirmavam que as horas extra de trabalho não eram compensadas, nem em dinheiro nem em tempo de descanso.
A situação só se tem agravado desde 2020 devido à situação de pandemia em que o planeta foi mergulhado. Em Portugal, durante os primeiros 14 meses da pandemia de COVID-10, foram despedidos mais de uma centena de jornalistas, de acordo com dados do Sindicato dos Jornalistas de Portugal (Lusa, 2021).
No seu relatório de 2020, Relatório de Regulação 2020: Análise Económico-Financeira do Setor de Media em Portugal (Esteves, 2020), a Entidade Reguladora para a Comunicação Social analisa a contração do mercado publicitário provocada pela pandemia de COVID-19. “O mercado publicitário contraiu-se globalmente 4,2%” (Esteves, 2020, p. 8), lê-se no relatório, que assinala, no entanto, que em Portugal esta continuou a ser a principal fonte de receitas das empresas de média. Por exemplo, nos casos da Impresa e da Media Capital, a publicidade representou cerca de 65% das receitas (em contraste, por exemplo, com a RTP, onde falamos de uma percentagem mais próxima dos 10%). O setor público acabou por ficar mais protegido da quebra nas receitas publicitárias, como é o caso da Agência Lusa e da RTP. Em abril de 2020, o Governo optou por apoiar a imprensa ao adquirir 15.000.000 € de publicidade institucional antecipadamente.
Um estudo da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista e do Sindicato dos Jornalistas em parceria com instituições académicas, intitulado Estudo Sobre os Efeitos do Estado de Emergência no Jornalismo no Contexto da Pandemia COVID-19 (Camponez et al., 2020), concluiu que a pandemia aumentou as tendências de precarização do trabalho dos jornalistas. Quase metade dos 799 inquiridos que desenvolviam o jornalismo como atividade profissional tinham um rendimento mensal inferior a 900 € e, também, “apenas cerca de metade estava em regimes de contrato de trabalho sem termo” (Camponez et al., 2020, p. 15). Por exemplo, olhando para os jornalistas freelancer, muitos dos inquiridos estavam nessa situação ou por dificuldade em obter um contrato de trabalho (35%) ou porque eram apenas trabalhadores independentes em termos formais (20%), visto que tinham “condições típicas de um trabalhador por conta de outrem” (p. 16).
Em Portugal, os cenários financeiros futuros para a comunicação social foram resumidos em quatro hipóteses por Cardoso et al. (2015): a primeira, uma evolução do jornalismo para se reconverter ao meio digital que gerará novas propostas de valor que sejam capazes de o sustentar; a segunda, a “gestão de curto prazo”, a solução “de sempre” de restruturar as empresas e os seus recursos humanos com despedimentos e alterações na estrutura de custos; a terceira, em que parte do valor do jornalismo seja pago por paywalls e por custos sustentados por agregadores de conteúdo como a Google; por último, uma solução que separe o jornalismo “enquanto realidade económica” do jornalismo “enquanto função social”, de forma a que o jornalismo deixe de depender da sua viabilidade económica e do lucro, sendo mantido por “formas não económicas de financiamento” como os donativos, o crowdfunding, os patrocínios e subvenções do Estado.
3. Metodologia e Questões de Investigação
Esta investigação propõe explorar os temas da qualidade do jornalismo da perspetiva de quem o produz, procurando assim responder às duas perguntas de investigação anteriormente referidas: (a) como é que os jornalistas de televisão e de rádio definem o jornalismo de qualidade?; e (b) como é que os jornalistas de televisão e de rádio avaliam a qualidade do jornalismo produzido em Portugal? Por um lado, queremos averiguar quais os critérios usados pelos jornalistas para definir “uma boa peça” de televisão ou de rádio, inclusive as características particulares que estes meios de comunicação exigem e saber quais as condições necessárias para produzir esta “boa peça”. Por outro lado, queremos saber como estes jornalistas veem a produção jornalística em Portugal em relação aos critérios que eles próprios estabelecem, incluindo o seu próprio trabalho e as condições sob as quais de facto exercem a profissão. Assim, traçamos um caminho entre as perspetivas normativas do que o jornalismo deveria ser e as perspetivas descritivas do que o jornalismo é na realidade.
Para explorar as questões da qualidade do jornalismo junto dos produtores da informação, como uma primeira abordagem ao tema em Portugal, optámos por realizar entrevistas semiestruturadas, apesar de artigos a nível internacional sobre este tema recorrerem frequentemente ao inquérito como técnica principal, como são os exemplos de Gladney (1996) ou Gómez Mompart et al. (2015). Em vez disso, como Jenkins e Nielsen (2020), optámos pela entrevista semiestruturada, não colocando de parte a hipótese de, posteriormente, utilizar o conhecimento recolhido neste processo para a realização de um inquérito mais alargado.
O guião de entrevista, com pequenas variações como é natural no caso da entrevista semiestruturada, é composto por seis perguntas, divididas em dois blocos: o primeiro explora as características que o jornalista atribui ao jornalismo de qualidade, a sua definição de “bom jornalismo” e as condições ideais necessárias para o elaborar; o segundo dedica-se à avaliação da qualidade do jornalismo televisivo ou radiofónico em Portugal, conforme a área de trabalho do entrevistado, e à avaliação das suas próprias condições de trabalho em relação às ideais que descreveu.
“Entrevistas são fundamentais quando se precisa/deseja mapear práticas, crenças, valores e sistemas classificatórios de universos sociais específicos, mais ou menos bem delimitados, em que os conflitos e contradições não estejam claramente explicitados”, explica Duarte (2004, p. 215). A entrevista semiestruturada permite ao entrevistado articular preocupações e necessidades específicas e ao entrevistador explorar melhor os temas sobre os quais ainda poderá ter conhecimento insuficiente (Williamson, 2018).
Foram realizadas 11 entrevistas entre 21 de março e 6 de abril de 2023. Cinco dos jornalistas entrevistados eram de canais de televisão: SIC (1), RTP (2) e CNN Portugal (2); e seis eram de rádios de informação: Antena 1 (3), TSF (2) e Renascença (1). Os jornalistas entrevistados tinham entre três e 22 anos de carreira. A maioria das entrevistas foi realizada através da plataforma Zoom, três delas por telefone e uma pessoalmente. A duração das entrevistas variou entre 12 e 53 minutos, sendo que o total dos registos resultou em 3 horas e 48 minutos de gravações. Uma das entrevistas não ficou gravada por erro técnico, dependendo a sua análise dos apontamentos tirados durante a conversa, pelo que não terá citações diretas.
As respostas dos jornalistas foram anonimizadas de maneira a não se identificar nem o nome do entrevistado nem o meio de comunicação onde trabalha. Os entrevistados foram informados desta anonimização no princípio do processo de entrevista. Esta decisão foi tomada especialmente devido às perguntas do segundo bloco da entrevista, uma das quais é: “considera que tem condições para praticar jornalismo com a qualidade que gostaria de atingir?”. Devido à dimensão limitada de redações em Portugal, acreditamos que a identidade dos jornalistas entrevistados seria decifrável se os seus meios de comunicação fossem associados aos seus anos de carreira ou às suas respostas, e, portanto, para não condicionar as críticas que pudessem pretender fazer, estas informações não serão associadas entre si.
Os entrevistados foram escolhidos inicialmente por conveniência - quatro dos jornalistas eram contactos pessoais - e, posteriormente, por bola de neve ou referência por cadeia, em que os entrevistados iniciais referenciaram colegas no mesmo e em outros órgãos de comunicação. Para procurar incluir jornalistas de todos os meios de comunicação noticiosos de âmbito nacional nos campos da televisão e da rádio, houve a tentativa de contactar jornalistas da CMTV e da Rádio Observador. No entanto, dentro do prazo definido para elaborar este artigo, não foi obtida resposta destes jornalistas para poder elaborar entrevistas que melhor complementassem este trabalho.
Na nona, 10.ª e 11.ª entrevistas, as respostas começavam a não trazer informação nova em relação à registada anteriormente, chegando a um ponto de saturação teórica (Thiry-Cherques, 2009), pelo que se optou por limitar aí a recolha e principiar a análise dos dados.
Na fase da análise dos resultados das entrevistas, as respostas às questões dadas por cada entrevistado foram organizadas numa tabela para a realização de uma análise qualitativa. As respostas foram analisadas tanto do ponto de vista do conjunto das palavras de cada entrevistado, como das respostas de todos a cada questão. Foi assim possível encontrar convergências e divergências nas perspetivas partilhadas sobre cada tema e identificar padrões.
4. Resultados e Discussão
Os 11 jornalistas entrevistados para este trabalho demonstraram avaliações variadas da qualidade do jornalismo praticado em Portugal, mas opiniões comuns sobre o que é uma peça jornalística “de qualidade”. Questionados sobre “as características fundamentais no jornalismo de qualidade”, os entrevistados dividiram-se entre aspetos deontológicos ou de serviço público e características formais. Seis dos jornalistas mencionaram o rigor e a isenção, e dois entre esses referiram especificamente o respeito pelas regras deontológicas da profissão, mostrando uma ligação ao ethos jornalístico que recua aos tempos em que os seus colegas trabalhavam sob a ditadura (Correia & Baptista, 2007). Quatro jornalistas falaram na importância da diversificação de fontes. Por outro lado, cinco referiram características mais formais do trabalho jornalístico, como a “qualidade da escrita”, com capacidade para “agarrar” o ouvinte ou telespectador, a linguagem clara e explicativa e uma abordagem original e interessante. Estas características formais também surgem na literatura como prioridades dos jornalistas, por exemplo no trabalho de Gladney (1996).
Sobre as características específicas do jornalismo televisivo e radiofónico de qualidade, quase todos os entrevistados mencionaram a qualidade da imagem e do som, como seria de esperar, mas outros pontos foram apresentados. Um dos jornalistas de rádio abordou a forma como a rádio, por limitações de duração dos noticiários, tem de ser capaz de “ir mais ao osso” do que a televisão, sendo assim um meio que mais dificilmente cai em dinâmicas de infotainment (Jornalista 2). Uma das jornalistas de rádio (Jornalista 6) refere a importância de se usar o som para verificar os factos que são apresentados, incluindo testemunhos e outros sons para lá da narração do jornalista. Um jornalista televisivo (Jornalista 11) assinala que é essencial fazer um “escrutínio dos vídeos e outros conteúdos amadores” que se apresentam na televisão, dando o exemplo do sismo na Turquia de fevereiro de 2023, na sequência do qual foram transmitidas imagens nas televisões que circulavam nas redes sociais, algumas das quais não estavam associadas ao acontecimento em questão e tinham datas ou localizações erradas (Almeida, 2023).
Relativamente às condições necessárias para um jornalista poder praticar bom jornalismo, dois temas são mencionados de forma generalizada: o tempo para trabalhar e as boas condições laborais, principalmente remuneratórias. Sete em 11 entrevistados falam sobre a importância do tempo: “tempo é a primeira condição” (Jornalista 1); “em primeiro lugar, o tempo, o recurso mais escasso no jornalismo” (Jornalista 8); “a equipa ser grande o suficiente para não haver pressões de tempo” (Jornalista 4); “acima de tudo, o tempo: fazemos tudo para ontem e os prazos dificultam saber todos os lados da notícia” (Jornalista 11). Tal como Picard (2000) evidencia, ao querer usar o tempo passado nas tarefas para medir a qualidade do jornalismo, os jornalistas justificam a necessidade de tempo com diferentes razões: ouvir diversas fontes, realizar investigações e reportagens, rever e verificar os factos. Dois casos (Jornalista 4 e Jornalista 8) identificam a razão da falta de tempo: a escassez de recursos humanos, que dificulta a libertação de um jornalista para trabalhar numa reportagem em vez de contribuir para as notícias da atualidade no dia a dia. Noutro caso, sublinha-se a pressão da concorrência e o imperativo de não se estar atrasado em relação aos restantes canais ou rádios. As pressões de tempo e da concorrência (que estão, afinal de contas, interligadas na necessidade de se ser o primeiro e obter “a cacha”) podiam já estar presentes nos anos 90, como escrevia Correia (1997), mas agravaram-se com o digital e surgem em grande destaque na bibliografia mais contemporânea sobre a qualidade do jornalismo, como, por exemplo, entre os entrevistados de Jenkins e Nielsen (2020). Em seis casos, os jornalistas falaram no entrave à qualidade jornalística que é a precariedade na profissão. A estabilidade profissional, como afirmam dois dos entrevistados, é importante não só pelas boas condições laborais para o jornalista, mas também porque se reflete no trabalho realizado. Por um lado, um jornalista com uma situação laboral precária é “menos livre”, ou seja, mais suscetível a pressões sobre o seu trabalho e pode temer “represálias”. Por outro lado, só com boas condições é que o jornalista “pode ter outras vivências e interagir com o mundo” fora da redação (Jornalista 4), onde encontrará histórias e temas que não encontraria de outra forma. Um dos jornalistas fala da importância de uma boa remuneração “para estarmos motivados e atrair bons profissionais” (Jornalista 9). “O jornalismo é cada vez mais uma profissão precária e isso afeta a qualidade do jornalismo que uma pessoa faz” (Jornalista 7). São testemunhos que não surpreendem, em parte por surgirem representados, embora pelo prisma da liberdade de imprensa em vez do da qualidade, em Lopes (2015), e em parte por serem, na verdade, preocupações que atravessam a história do jornalismo em Portugal, como vimos em Correia (1997). Neste caso, no entanto, a associação entre a qualidade do trabalho jornalístico e a precariedade laboral é feita pelos entrevistados em linha reta.
Seis dos entrevistados referem ainda como condição essencial o papel de editores e chefias, que apoiem o trabalho independente do jornalista e ajudem no desenvolvimento das ideias e das histórias. As chefias ideais são qualificadas pelos jornalistas como sendo aquelas que concedem liberdade (e também o tão falado tempo) ao jornalista para poder trabalhar e que têm “visão para coordenar” (Jornalista 1).
Outras condições referidas pelos jornalistas incluem a preparação do próprio jornalista para o trabalho que vai realizar, a sua capacidade e oportunidade de se especializar em certos temas, o bom trabalho de equipa com técnicos e editores, os recursos tecnológicos, como gravadores e câmaras de qualidade, e os recursos financeiros para deslocações, e a liberdade e segurança em relação às pressões e interesses políticos ou de outras fontes.
Questionados sobre a qualidade do jornalismo televisivo em Portugal, os cinco jornalistas de televisão entrevistados têm perspetivas muito variadas. Um jornalista afirma que, em comparação com “outros países” como Espanha e Itália, Portugal tem jornalismo televisivo de boa qualidade, porque em Portugal os noticiários são os produtos de televisão mais vistos, o que “obriga a que haja um cuidado maior porque há muita gente a seguir” (Jornalista 10). Este jornalista fala de uma preocupação generalizada para se mostrar imagens bem filmadas e ter-se testemunhos gravados nas peças, algo que não identifica nos noticiários estrangeiros que conhece.
Os restantes jornalistas de televisão, em diferentes graus, mostram descontentamento com a qualidade do jornalismo televisivo. Um deles classifica-o em “6,5 de 10”, referindo apenas que “às vezes falta um bocadinho de inovação” (Jornalista 9) na grelha, sendo que os canais repetem os mesmos temas. Não foi o único: outro entrevistado diz também que “há produtos muito bons, mas era possível inovar mais” (Jornalista 11), visto que se trabalha numa lógica de audiências, em especial nos canais privados. Outra jornalista faz críticas mais severas: “temos muito mau jornalismo televisivo” (Jornalista 7), apontando a CMTV como a principal responsável, inclusive pelo mau jornalismo noutros canais, dizendo: “a CMTV nivela por baixo”. A CMTV é, afinal, líder de audiências em Portugal (“CMTV Líder na Informação com Melhor Resultado de Sempre em 2022”, 2023). “Há jornalismo muito bem feito, mas também há abordagens mal feitas e que envergonham o jornalismo”, acrescenta a Jornalista 7. Outra jornalista (Jornalista 4), de outro canal, faz a mesma crítica: “há um grande esforço pela qualidade e as pessoas fazem o melhor que podem”, começa, antes de criticar o sensacionalismo: “todos tentam ver o que a CMTV está a fazer para correr atrás”.
Então, e na rádio? Por um lado, mantêm-se as críticas à falta de inovação: “falta diversidade, fazemos todos o mesmo” (Jornalista 5), identificando-se o mesmo problema que dois dos jornalistas de televisão. Outra jornalista refere a falta de inovação no campo do storytelling, por exemplo nas reportagens áudio (Jornalista 6). Dois dos entrevistados, porém, referem que a qualidade é “salvo raros momentos, muito fraca” (Jornalista 1), em parte pelos constrangimentos de tempo no trabalho do jornalista. “Não há tanto tempo e recursos para fazer o que seria mesmo bom”, diz a Jornalista 8, embora reserve de seguida que na redação onde trabalha “não falta rigor”. Mesmo o jornalista (Jornalista 3) que afirma que “sim, sem dúvida”, o jornalismo radiofónico em Portugal é de boa qualidade, acrescenta, de seguida, a reserva de que as redações desfalcadas pelos despedimentos e com menos jornalistas do que antes têm a qualidade do seu jornalismo afetada. Mas as pessoas são esforçadas, nota, e querem manter a qualidade apesar da falta de pessoal.
Os resultados, apesar de se alinharem de forma geral com a sondagem dos 363 jornalistas de Gómez Mompart et al. (2015), são mais positivos do que os encontrados por esses autores: por exemplo, apenas metade dos inquiridos por Gómez Mompart et al. considerou que o seu meio de comunicação tem informação relevante suficiente. Talvez esta diferença se deva ao uso da entrevista em vez do inquérito, que poderá ter permitido aos participantes deste estudo expressar opiniões com mais nuance e, assim, serem menos críticos. Foi também perguntado aos jornalistas de televisão qual a sua televisão de referência. Três mencionaram a SIC, embora apenas uma entrevistada pertencesse à SIC, um mencionou a RTP e outra disse “nenhuma”. Os jornalistas de rádio dividiram-se equitativamente na sua rádio de referência entre a Antena 1 e a TSF.
Finalmente, a última pergunta do guião questionava aos entrevistados: “considera que tem condições para praticar jornalismo com a qualidade que gostaria de atingir?”. As respostas podem ser divididas entre aqueles que afirmam que “sim” e os que afirmam que “não”.
Perante a questão, seis dos entrevistados afirmam inicialmente que têm as condições necessárias para praticarem bom jornalismo. Quando falam dos pontos positivos, dois jornalistas (Jornalista 7 e Jornalista 2) referem que não existe “pressão nem condicionamento” ao seu trabalho. Apenas um sublinha as suas características pessoais, como a boa formação académica (Jornalista 3), formação essa que, como vimos, se tornou neste século muito mais especializada para a maior parte dos membros da profissão. “Acho que tenho condições, liberdade para fazer as peças de forma que entendo” (Jornalista 11), afirma ainda um dos jornalistas de televisão.
No entanto, mesmo entre os que respondem que sim, que têm as condições necessárias para o seu trabalho, todos exceto uma apresentam algumas reservas após a confirmação inicial. Assinalam-se a estagnação salarial “frustrante” (Jornalista 2), a limitação de orçamentos para reportagens e as equipas pequenas. Assim, embora seis dos entrevistados digam inicialmente ter condições para praticar o “bom jornalismo” que gostariam, cinco assinalam que essas condições poderiam, apesar de tudo, ser melhores - principalmente por condicionantes económicas nas empresas de média, que limitam o tamanho das equipas e o investimento nos trabalhos, ou pela sua própria situação laboral.
Cinco jornalistas respondem “não” à última questão deste guião, dizendo que não sentem ter as condições necessárias para praticar jornalismo de boa qualidade. Três entre esses voltam a mencionar as condições salariais e laborais desfavoráveis. “Há uma limitação geral que afeta a tua forma de estar, que é a situação salarial”, diz um dos entrevistados (Jornalista 10). Outra jornalista (Jornalista 4) refere que as condições salariais na sua redação não são atualizadas há quatro anos. Um jornalista (Jornalista 3) fala mesmo de um “estímulo à saída” no seu meio de comunicação, de onde muitos jornalistas saíram nos últimos oito anos, que desmotiva e dificulta o desenvolvimento do trabalho.
Três jornalistas falam também da falta de recursos humanos. Uma das entrevistadas, jornalista de rádio (Jornalista 6), menciona a falta de jornalistas com quem debater ideias e trabalhar histórias, assim como de produtores e técnicos. Outra entrevistada (Jornalista 8) refere que, por haver “falta de pessoas na redação para libertar jornalistas para reportagem”, não tem tempo para trabalhar os temas tanto quanto gostaria. Uma terceira afirma mesmo: “fazia-me falta que o meu meio de comunicação tivesse mais recursos, para eu não ter de acumular 17 funções” (Jornalista 4).
Sendo assim, dos 11 jornalistas entrevistados, apenas uma afirma (Jornalista 7) sem qualquer reserva ter as condições que desejaria para fazer jornalismo de qualidade.
5. Conclusões
Os resultados destas entrevistas estabelecem uma contribuição para o estudo da qualidade do jornalismo em Portugal, focando-se nas perspetivas dos jornalistas acerca das características fundamentais do jornalismo de qualidade, na sua avaliação do estado do jornalismo em Portugal e das condições existentes para o praticar. As perspetivas representadas estão alinhadas com os estudos internacionais apresentados na revisão da literatura, desde os jornalistas espanhóis que responderam ao inquérito de Gómez Mompart et al. (2015) que atribuem a responsabilidade da falta de qualidade do jornalismo na sua maior parte às empresas jornalísticas pela falta de investimento, que cria fracas condições para produzir, até ao relatado de forma generalizada, desde esse inquérito até às entrevistas de Jenkins e Nielsen (2020), sobre a dificuldade de se produzir conteúdos de qualidade com a rapidez que é exigida e no tempo que é fornecido para o fazer.
Tal indica que existem desafios transversais internacionais que se colocam à qualidade do jornalismo, incluindo a falta de investimento ou financiamento das redações, a resultante redução dos recursos humanos e a falta de tempo para dedicar ao trabalho jornalístico, que é em parte resultado dessa perda de mão de obra, e em parte motivada por dinâmicas de concorrência e da velocidade do meio digital.
No entanto, importa também sublinhar que estes problemas não são apenas contemporâneos. Tomemos como exemplo a reflexão de Crespo, Azevedo e Cardoso (2017):
se em 2017 as condições de exercício da profissão são muito questionadas, é importante perceber como são similares as questões levantadas por Paquete de Oliveira em 1994: “As condições em que a profissão é exercida são interdependentes daquelas que marcam a situação económica, política e social das empresas de imprensa em particular e da imprensa em geral no contexto do país” (Oliveira, 1994, p. 82). (p. 51)
Embora os entrevistados não sejam unânimes na sua avaliação da qualidade do jornalismo televisivo e radiofónico em Portugal, mesmo os mais positivos têm críticas a fazer e a maior parte dos jornalistas entrevistados considera que as suas condições de trabalho para produzir bom jornalismo ficam aquém do desejado. Os resultados sugerem que os jornalistas são capazes e estão dispostos a fazer avaliações negativas do próprio trabalho e a justificar essas avaliações com os fatores que provocam os resultados aquém do desejado, o que é prometedor para pesquisas futuras sobre a qualidade do jornalismo que se queiram focar nas perceções de quem o produz. É uma indicação promissora nesse sentido e que não segue a mesma linha, por exemplo, do registado nos estudos de desinformação, onde os jornalistas afirmam que os meios de comunicação em geral são responsáveis pela disseminação de desinformação (mais de 60% consideram que estes têm um papel pelo menos moderado neste processo), mas rejeitam que o meio de comunicação onde trabalham tenha responsabilidades a assumir (Miranda et al., 2023).
Uma fraqueza do estudo é não ter sido possível entrevistar jornalistas da CMTV nem da Rádio Observador, meios de comunicação que foram várias vezes mencionados pelos entrevistados como referências (referência negativa, no caso da CMTV), algo que deveria ser colmatado num próximo trabalho.
Os resultados deste estudo poderão informar próximos trabalhos sobre o tema da perceção dos jornalistas acerca da qualidade do jornalismo, por exemplo através de inquéritos, para se poder estabelecer ligações entre as preocupações expressas e o perfil do jornalista, o meio para o qual trabalha e os seus anos de experiência. Também consideramos que seria importante estudar as categorizações e classificações de qualidade do jornalismo na perspetiva da audiência em Portugal.