1. Introdução e metodologias: E se...
O minúsculo corpo de letra de uma extensa bula médica, cuja narrativa parece saída de um gabinete de advocacia, costuma dizer-se, ninguém lê. Perguntamo-nos então (retoricamente) porque, mesmo podendo alterar significativamente a nossa qualidade de vida, ninguém lhe presta a devida atenção? Trata-se de uma singela página em papel que pode traçar uma linha muito clara entre a vida e a morte. Também as instruções de segurança presentes a bordo de todos os aviões podem demarcar essa linha. Esta afirmação, parecendo insólita, realça um dado incontestável: a preguiça, displicência do passageiro ou simples “condição humana” não podem ser evocadas como panaceia para uma leitura desatenta.
Por uma questão de coesão textual optou-se no presente artigo por inserir a questão metodológica na introdução. A característica distintiva da linguagem visual das instruções de segurança levanta a hipótese de que terá transposto os limites da cultura aeronáutica para assumir um lugar de destaque na Cultura do Design e na Cultura Popular. A investigação centra-se no território nacional e na sua companhia de bandeira TAP Air Portugal como caso de estudo. Pretende estender-se uma temática que ficara em aberto e forçosamente pouco aprofundada na nossa investigação para doutoramento em design. Partindo do espólio do Museu TAP e de coleccionadores privados (como o autor) seguiu-se o mesmo desenho de investigação, tratando o caso de estudo como análise empírica, de matriz qualitativa e não intervencionista. O universo deriva do levantamento e catalogação de todos os exemplares disponíveis para estudo, numa sequência diacrónica. A amostra destaca cada evolução tipológica de composição ou recurso visual e cada nova matriz. O cruzamento com exemplares de outras companhias internacionais tornou-se inviável dada a extensão do universo, a dimensão do artigo e a dificuldade na obtenção de uma amostra representativa. Cingimos a análise a casos de estudo considerados originais que auxiliaram o enquadramento temático. A abordagem aos fenómenos da percepção visual não submergiu numa aprofundada análise semiótica mas socorreu-se pontualmente do sistema de leitura e descodificação sígnica.
O resultado da investigação deverá contribuir para as áreas da História do Design e da Cultura do Design.
2. Estado da arte: desde quando?
Nem a demonstração dada pelos tripulantes de cabina, nem o folheto fornecido parecem ser eficazes. [2] O “aprisionamento” do passageiro dentro de um espaço confinado coloca o seu destino nas suas mãos de outros, contudo por mais competente que lhe pareça a tripulação, esta poderá ficar incapacitada. Mesmo não sabendo, ou fingindo não saber, o passageiro deve assumir um papel activo no processo de implementação das regras de segurança de um voo. Este facto deve ser seriamente tomado em consideração quando o designer concebe o layout para estes procedimentos. As instruções de segurança são um bom exemplo de uma postura paradoxalmente “bipolar” a que as companhias aéreas estão sujeitas. Um acidente poderá tornar-se o inconfessável desfecho que deitará por terra todo o investimento para seduzir o passageiro a voar. As estratégias de captação funcionam mediante complexos mecanismos de promoção dos seus valores: qualidade, rapidez de ligação, simpatia do serviço (cada vez mais o preço) e sobretudo segurança. [3] Lidando com a ingrata (e diga-se remota) eventualidade de tudo poder acabar mal, as instruções constituem o anticlímax dessa “encenação”. Não esqueçamos que logo após a entrada a bordo o passageiro deverá assistir e lê-las, num curto espaço de tempo e sob a normal ansiedade que antecede a descolagem.
No desenvolvimento das instruções de segurança está bem presente a noção de que uma infografia correcta é crucial para o aumento dos índices de eficácia e sobrevivência (Schmidt & Kragg, 1987). [4] O desenho de instruções de segurança, independente do suporte ou do media, pela complexidade, deverá recorrer a designers familiarizados com as questões operacionais da aviação civil. A própria FAA reconhece-o quando conclui: “Production of briefing card materials would benefit from application of well-known educational principles and instructional techniques from outside aviation, whether produced by professional graphics designers or in-house airline cabin safety professionals” (Corbett & McLean, 2008). Não podemos neste artigo deixar de relativizar os factores que induzem alguma ineficácia de comunicação e que estão forçosamente associados e condicionados por variáveis tão díspares como idade, nível de estudos, ser passageiro frequente ou não, etc. De facto, a julgar pela passividade e displicência observada a cada voo, a maioria dos passageiros considera-os ineficazes em caso de acidente e uma pura perda de tempo (Muir & Thomas, 2004), um problema cuja solução, por mais que se altere e reconfigure suportes e modelos, suspeitamos, só se solucionará com ganhos significativos dos índices de literacia visual dos passageiros e sobretudo com a consciencialização de que o seu contributo poderá salvar vidas.
Os factores de comunicação associados à rápida e fácil descodificação, sobretudo ao nível da percepção cognitiva dos pictogramas e desenhos esquemáticos, têm sido incorporados pelo Design mediante uma cuidada gestão de sistemas de grelhas, cor e desenho. Como o enfoque semiótico nos mostrou, a eficácia da redução sígnica na ilustração de qualquer livro de instruções através de linha de contorno, obtém ganhos sobre a fotografia e sobre a modelação tridimensional informática. Ao longo da história da viagem aérea a excessiva profusão de atitudes gráficas originou um processo de refinamento e clarificação dos princípios de eficácia. Formatos com maior ou menor grau de síntese, com desenho de melhor ou pior qualidade, em monofolha ou desdobrável, atingiram uma estética própria, sintética e eficaz. Uma metafunção interpessoal onde qualquer sistema semiótico é capaz de relacionar o produtor de um signo (ou sistema complexo de signos) e o seu receptor. Uma mensagem na qual o significante se torna também significado, ou seja um signo distintivo e caracterizador da cultura visual da aviação.
Essa fórmula visual, tornando-se forçosamente estereotipada, conseguiu todavia integrar desenhos com interessantes particularidades locais em diversas companhias de aviação por todo o mundo. Nos EUA e.g. seguiu-se a lógica multicultural integradora e “politicamente correcta” ilustrando passageiros transversais a vários sectores da sociedade (e.g. negros, mulheres, crianças, idosos, etc.). Em função do tipo de rota foram desenhadas instruções para a sobrevivência em condições extremas de frio, como nos voos pioneiros sobre o Pólo Norte da Scandinavian Air System (SAS). Existem instruções de segurança para cockpit; exclusivas para a tripulação; para passageiros sentados nas saídas de emergência; com mobilidade reduzida e invisuais, etc. [Fig. 1].
O Não Lugar [5] do desenho estereotipado buscou assim um lugar de significação antropológica.
Seguindo a redução progressiva dos suportes físicos a que o design de comunicação está actualmente sujeito, as instruções de segurança de algumas companhias passaram a ser visionadas também em ecrãs. Muir e Thomas (2004) concluíram que através deste media se conseguem melhores índices de atenção e uma maior extensão da mensagem [6] (e.g. linguagem gestual). Chitaro, L. (2012), [7] mais ousado, propõem a introdução de lógicas de gamificação, [8] ou seja, o uso de videogames para obtenção de ganhos substanciais de eficácia e conhecimento das regras de segurança. [9] No nosso entender, parece-nos que esse media alternativo corre sérios riscos de diluição na categoria de entretenimento a bordo. Um certo “tecnofetichismo” da gamificação será assim tanto ou mais duvidoso como fora a adopção da fotografia ou da modelação tridimensional informatizada. Por uma boa razão a legislação não permite que o suporte físico seja abandonado. [10] A tendência geral do passageiro para não prestar atenção à demonstração dos assistentes de bordo, poderá assim mais tarde em caso de emergência ser revista e colmatada. O carácter de entretenimento do suporte ecrã e a qualidade da sua comunicação visual (quiçá gerando excesso de informação) indicia a pertinência da utilização do desenho e justifica porque os novos media devem complementar em vez de substituir.
Ainda hoje grandes companhias (como as de bandeira) possuem no departamento de operações quem se dedique ao desenvolvimento e actualização permanente das edições. Em pequenas empresas com estruturas menores optou-se pelo recurso a fornecedores externos. A complexidade deu origem a empresas especializadas na concepção de instruções de segurança que souberam aproveitar esse nicho, sendo pioneira a norte-americana Interaction Research Corporation, fundada que em 1971. [11]
Um dos primeiros exemplares de uma instrução de segurança data do início dos anos trinta do século XX, fornecido aos passageiros que atravessavam o Canal da Mancha entre Londres e Paris na Imperial Airways (Modig et al., 2002, p.11). Não existiam muitos exemplares semelhantes numa época em que não se legislava a sua obrigatoriedade. Uma amaragem seria, em muitos casos, a única opção realista de sobrevivência, situação que tinha forçosamente que ser desdramatizada sob pena de assustar os passageiros. A solução para o referido anticlímax passou pela preservação de uma aura glamourosa junto dos passageiros - das classes altas que podiam pagar o custo elevado das passagens - marcando a atitude gráfica na década de cinquenta. Uma tragédia assemelhava-se a outro momento elegante da viagem (Gentil-Homem, 2014).
Selecionámos dois casos sintomáticos de uma postura assente em ilustrações caracterizadoras do optimismo posterior à Segunda Guerra Mundial. Recorrendo a um desenho “descontraído” e caricatural, em caso de amaragem a icónica Trans World Airways (TWA) do magnata Howard Hughes (1905-1976) fornecia em 1952 um folheto, cuja capa mostrava não menos que um elegante cavalheiro, serenamente sentado numa balsa, fumando o seu cachimbo e bebendo um long drink [Fig. 2]. Nada parece abalá-lo numa balsa onde existe uma televisão, um candeeiro com abat-jour e até um vaso com flores. A narrativa no interior do folheto seguia a tendência relaxante e descontraída: como colocar um colete de salvação “de bom corte e com um lindo tom de amarelo” com o qual aparentemente se aguardava o salvamento em alto mar “em grande estilo”. Em 1960, já em plena era do jacto, ainda a Air India fazia uso dessa postura desenhando uma capa com a palavra “Serviço!”. Os assistentes de bordo servem a refeição num cenário de águas rasas semelhante a uma piscina infantil. Para a companhia indiana uma amaragem era apenas outra experiência da qualidade do seu serviço.
Constata-se assim que nas décadas de cinquenta e sessenta as instruções de segurança foram desenhadas de modo a aligeirar o medo de uma sociedade com pouca experiência de voo (Steinberg, 2011). Nas décadas seguintes a estratégia “descontraída” foi alterada, dissimulando a leitura no interior da revista de bordo. Contudo a importância extrema dos procedimentos de segurança levou no início da década de setenta, a que voltassem a ser autonomizados para a bolsa elástica do assento da frente, tal como conhecemos hoje. Uma pequena área que se tornou excelente território para peças gráficas com características visuais marcadamente aeronáuticas. Actualmente a “coreografia” fornecida pelos assistentes de bordo tornou-se, contrariamente ao pretendido, um momento lúdico, o clímax da “encenação” aérea, embora termine invariavelmente com um apelo à leitura cuidada do folheto.
Como vimos, os refinamentos introduzidos ao longo do tempo estereotiparam o desenho e criaram uma linguagem visual própria e distintiva: um contributo do design para a criação de uma (outra) cultura visual. Que o diga a Cultura Popular que recorre e.g. ao seu caracter para ilustrar ou satirizar sequências televisivas e/ou cinematográficas. Citemos como exemplo a cena do filme Fight Club (1999) [12] no qual o protagonista Tyler Durden (interpretado por Brad Pitt, n.1963) se depara com um exemplar estranhamente honesto, no qual os passageiros gritam e se esgrimem para abandonar um avião despenhado e em chamas [fig. 3].
Os exemplos de apropriação repetem-se, desde a alta-costura num evento promovido pela Air New Zealand na London Fashion Week de 2016 até a simples padrões para t-shirts, mochilas ou capas para smartphone. Do mesmo modo que as etiquetas autocolantes para bagagem de porão, com as características faixas laterais verdes e o código de três letras para o destino, a linguagem pictórica das instruções de segurança adquiriu igualmente um caracter mainstream. Como afirmaria Baudrilard (1978) passaram a assumir a condição de “Objecto” de fascínio, de investimento, de paixão. A síntese pictórica, paleta de cores e associação à ideia de viagem, geradoras de caracter de status, tornaram-se ao longo do tempo um sucesso junto de colecionadores que são hoje contributos fundamentais para o estudo sequencial destas peças gráficas. Nos EUA Carl Reese, conhecido no meio como “The King of the Safety Cards”, possui uma colecção com mais de 70,000 exemplares. Assumindo que a grande maioria foi obtida de modo pouco legítimo, não deixa de surpreender que à data da redacção do presente artigo estejam disponíveis para licitação na plataforma Ebay 5833 instruções de segurança.
3. Resultados: nós por cá todos bem
O panorama nacional não fugiu, nem se destacou do enquadramento global descrito, uma vez que não detectámos nenhuma característica intrinsecamente nacional.
O exemplar mais antigo que se conhece é constituído por uma pequena folha dactilografada fornecida aos passageiros da TAP com instruções relativas à utilização dos coletes salva-vidas. O documento não está datado, embora mediante análise estilística e tipológica, tenha sido por nós atribuído ao arco temporal compreendido entre 1947 e 1953 [Fig. 4].
Os exemplares TAP para o “Super Constellation” e “Caravela” romperam com o modelo anterior optando pela fotografia para ilustrar os diversos passos de cada procedimento, tipicamente: como agir em caso de descompressão súbita da cabina; onde se encontra e como colocar o colete salva-vidas; onde se localizam as saídas de emergência e como abri-las. Estas fotografias permaneceram depois de 1968 na paginação da revista de bordo, acompanhadas por extensos textos. A impressão a duas cores colocou problemas de leitura na relação figura / fundo. Cumulativamente a interpretação do conteúdo sensível tornaram este suporte e modelo refém da qualidade de impressão fotográfica e tipográfica. Os exemplares autónomos só regressaram à bolsa do assento da frente no início da década de setenta. Tratou-se neste caso de uma mera transposição para pequenas separatas em papel da informação anteriormente presente na revista [Fig. 5].
A eleição do desenho em detrimento da fotografia regressou à TAP a partir de 1972, num modelo em papel cartonado com ilustrações em linha de contorno. A “solução eficaz", que com diversos refinamentos de conteúdo e forma, chegou até aos dias de hoje. Os dípticos posteriores a 1972 foram impressos a três cores. O cuidado posto na sequência de imagens, na composição gráfica, e a supressão de textos, revelou melhorarias substanciais de eficácia comunicativa. Note-se e.g. como a ilustração relativa à postura corporal a adoptar em caso de emergência foi destacada por um fundo com recorte estrelado. A introdução da terceira cor permitiu distinguir cada modelo de avião auxiliando a reposição por parte dos serviços de terra [Fig. 6].
O modelo seguinte, introduzido em Maio de 1976, trouxe novas alterações na composição. Persistiram naturalmente os desenhos em linha de contorno, agora inseridos em molduras de cantos boleados abertas a branco sobre o fundo beije. A posição de emergência foi agora destacada através de uma seta vermelha de grandes dimensões. No interior, os desenhos orlados por molduras de cores distintas foram agrupados segundo a tipologia de cada porta de saída [Fig. 7].
A partir de 1983 e de 1992 respectivamente, os formatos tenderam (de acordo com padrões adoptados pela maioria das companhias aéreas mundiais) para o suporte em monofolha A4. O acabamento em verniz e mais tarde plastificado a quente conferiu-lhes resistência à dobragem, durabilidade e facilidade de limpeza. [fig. 8]
Também a TAP adoptou recentemente a projecção de vídeos demonstrativos dos procedimentos de segurança, aproveitando até em certas ocasiões para introduzir outros conteúdos. A concepção do suporte físico actual (2017) incorpora as boas práticas (grelhas, cores, caixas), apresenta uma sequência de leitura correcta e um refrescamento estilístico. A cor das caixas nos cabeçalhos varia consoante o modelo de aeronave e incorpora pela primeira vez um desenho de perfil para cada modelo de aeronave [fig. 9]. Embora com uma função estritamente gráfica, ou sem qualquer função prescritiva, consegue (intencionalmente ou não) incorporar e evocar outro tipo de linguagem visual característica da cultura aeronáutica: o “perfilismo”, geralmente associado aos desenhos para planespotters durante a Segunda Guerra Mundial. [13]
4. Por isso... concluindo
O caso de estudo das instruções de segurança da TAP Air Portugal revelou a adopção generalizada de soluções ortodoxas e por isso mesmo de pertença ao discurso visual estereotipado e tipificador desta cultura visual. Entendeu, e.g., no tempo certo e como as suas congéneres, a eficácia da solução desenhada sobre a fotografia e mais tarde sobre a projeção de vídeo.
O desenho característico das instruções de segurança, transpôs a esfera aeronáutica para se assumir na cultura visual contemporânea. A extrapolação para objectos de consumo, e a apetência por colecioná-las demonstra-o, associando-as a uma certa ideia de viagem, tal como o caracter ilegítimo da sua obtenção as havia ascendido ao patamar simbólico de objecto troféu. O permanente desenvolvimento e actualização do layout introduziu eficácia de descodificação cognitiva na tentativa de separar um cidadão comum de um passageiro informado (e seguro). A adopção de soluções baseadas nas boas práticas do Design conduziu as instruções de segurança a um lugar estereotipado, mas simultaneamente distintivo de uma Cultura do Design. Por sua vez a confirmada transposição iconográfica para a Cultura Popular, auxiliou a familiarização com regras cognitivas básicas, contribuindo para a literacia visual e consequentemente para a eficácia comunicativa com o passageiro.