Introdução
A Organização Mundial da Saúde (OMS), define qualidade de vida como a perceção do indivíduo sobre a sua posição na vida, no contexto da cultura e do sistema de valores nos quais vive, e em relação aos seus objetivos, expetativas, padrões e preocupações.1 A qualidade de vida dos indivíduos é influenciada pela sua condição de saúde. As doenças orais têm um impacto significativo na saúde geral, uma vez que contribuem para a diminuição das funções biológicas, mas também sociais, interferindo nas relações sociais quotidianas e tendo grande influência na qualidade de vida dos indivíduos,2-4 podendo levar a restrições físicas e psicológicas e influenciar as funções da alimentação, da fala e consequentemente o convívio social e a autoestima do indivíduo.5,6
As doenças orais, como a cárie dentária e a gengivite, apresentam uma elevada prevalência nas crianças e nos jovens,7,8 sendo consideradas um problema de saúde pública. No entanto, se prevenidas e tratadas precocemente, poderá existir uma melhoria da saúde da população, da qualidade de vida do indivíduo e uma consequente redução dos custos envolvidos no seu tratamento. Para a prevenção da cárie e da gengivite é importante a implementação precoce de comportamentos saudáveis relacionados com o controlo e redução do biofilme oral, nomeadamente a escovagem bidiária com pasta fluoretada, a utilização do fio dentário e a realização de uma dieta variada, equilibrada e pobre em alimentos cariogénicos. A consulta regular a um profissional de saúde oral é também importante, de modo a ser avaliado o risco individual de cárie dentária e realizado um aconselhamento profissional e/ou aplicação de medidas preventivas específicas.9
Os cuidados de saúde têm evoluído para uma perspetiva mais centrada no doente, tendo havido um crescente interesse no estudo da Qualidade de Vida Relacionada com a Saúde Oral (QdVRSO). Um dos instrumentos mais utilizados para avaliar a QdVRSO é o Oral Health Impact Profile (OHIP) desenvolvido por Slade em 1994.10 Mais tarde, o mesmo autor, desenvolveu uma versão mais curta, o OHIP-14, que inclui apenas 14 itens,11 em vez dos 49 da versão original. Estes 14 itens encontram-se divididos em sete dimensões que incluem a limitação funcional, o desconforto físico, o desconforto psicológico, a incapacidades física, a incapacidade psicológica, a incapacidade social e dificuldades. Os valores mais altos do somatório dos itens do OHIP-14 correspondem a uma pior QdVRSO.11 Existem vários estudos com o OHIP-14 que revelaram a existência de uma relação das doenças orais com uma pior QdVRSO.3,4,6,11,12
No III Estudo Nacional de Prevalência das Doenças Orais (III ENPDO) da Direção-Geral da Saúde (DGS), publicado em 2015,7 foram, pela primeira vez, introduzidas oito questões relacionadas com a qualidade de vida, questões estas baseadas no OHIP-14.11,13 Embora estas questões não possam ser consideradas, individualmente ou em conjunto, como um instrumento de estruturado de avaliação da qualidade de vida, as mesmas contêm informações úteis para analisar o impacto da saúde oral em aspetos funcionais, físicos, psicológicos e sociais da vida quotidiana dos indivíduos.
O presente estudo pretendeu relacionar as referidas8 questões utilizadas no III ENPDO com as características sociodemográficas, com os comportamentos de saúde oral e com o estado de saúde oral dos jovens de 18 anos da Região de Lisboa e Vale do Tejo.
Material e métodos
Para atingir os objetivos propostos, foi utilizada informação previamente recolhida no III ENPDO da DGS.7 Os dados para o III ENPDO foram cedidos pela Direção-Geral da Saúde, após apresentação do protocolo do presente estudo. O processamento dos dados foi sempre efetuado garantindo o anonimato dos participantes.
O III ENPDO incluiu uma amostra representativa dos jovens portugueses de 18 anos de idade, sendo estes selecionados de entre os que, durante o ano de 2013, se dirigiram às bases militares no âmbito do dia da defesa nacional.7
A recolha de dados do III ENPDO aplicou um questionário aos jovens e realizou uma observação intraoral. O questionário recolheu várias informações, sendo no presente trabalho utilizada a informação sociodemográfica (sexo, área de residência, nível de escolaridade, nível de escolaridade da mãe), a informação sobre alguns comportamentos relacionados com a saúde oral (tabagismo, escovagem dos dentes e visita ao profissional de saúde) e oito questões relacionadas com o impacto da saúde oral em aspetos funcionais, físicos, psicológicos e sociais da vida quotidiana (Tabela 1).
A observação intraoral realizada no III ENPDO recolheu informação sobre o estado de saúde oral, nomeadamente sobre cárie dentária e hemorragia gengival. Para o diagnóstico e deteção da cárie dentária foram utilizados os critérios do International Caries Detection and Assessment System II (ICDAS-II).14 A aplicação dos critérios ICDAS II permite o diagnóstico de lesões iniciais, no entanto estas lesões podem não ter grande impacto nas atividades quotidianas dos indivíduos. Nesse sentido, e tendo a DGS decidido que, para efeitos de comparação com outros estudos que utilizam os critérios da OMS, a linha de corte seria entre o código de cárie dentária “4” e “5”, neste trabalho, para o cálculo da prevalência de cárie foram apenas considerados os valores 5 e 6 dos códigos de cárie do ICDAS II (C5-6POD). Assim, o cálculo do C5-6POD incluiu os dentes com lesão de cárie atingindo claramente a dentina (códigos 5 e 6 do ICDAS II), os dentes perdidos e os dentes obturados. A prevalência de cárie dentária correspondeu à proporção de indivíduos que apresentavam um C5-6POD>0 (com presença de cárie).
Para avaliar a presença ou ausência de hemorragia (saúde periodontal), foi utilizado o Índice Periodontal Comunitário (IPC) de acordo com os critérios da OMS,15 sendo apenas registada a hemorragia gengival. Não foi realizada a medição de bolsas por a sua prevalência ser muito baixa em indivíduos de 18 anos.16
Tal como já referido, o presente trabalho utilizou os dados do III ENPDO referentes aos 157 indivíduos de 18 anos residentes na Região de Lisboa e Vale do Tejo. Os dados foram cedidos pela DGS, em formato Excel, sendo estes posteriormente codificados e transferidos para o programa informático Statistical Package for the Social Sciences - SPSS, versão 25 (IBM corp., 2017).
Uma vez que a escala de mensuração das variáveis testada era ordinal, a análise estatística incluiu os testes não-paramétricos de Mann-Whitney e de Kruskal-Wallis, com um nível de significância de 0,05.
Resultados
Nas Tabelas 2 a 9 apresentam-se a distribuição, a média das ordens e a análise da associação entre os fatores estudados e cada uma das oito questões (Q1 a Q8). Os indivíduos do sexo feminino (p=0,025), com um nível de escolaridade básico (p=0,047) ou com presença de cárie (p=0,018) referiram ter mais dificuldade em comer devido a problemas na boca ou nos dentes (Q1) (Tabela 2). Também se verificou que os indivíduos com presença de cárie relataram mais frequentemente dificuldades em mastigar ou cortar a comida com os dentes devido a problemas na boca ou nos dentes (Q2) (p=0,008) (Tabela 3).
O sexo feminino (p=0,048) e a presença de cárie (p=0,012) foram os fatores associados a uma maior frequência de dores de dentes, gengivas doridas ou feridas na boca (Q3) (Tabela 4). No que respeita à tensão causada devido a problemas na boca ou nos dentes (Q4) apenas se verificou uma associação significativa com o sexo, sendo maior a tensão sentida no sexo feminino (p=0,011) (Tabela 5).
A frequência de embaraço causado pela aparência dos dentes ou prótese (Q5), apenas teve uma relação estatisticamente significativa com a presença de hemorragia (p=0,003) (Tabela 6).
Como se pode verificar na Tabela 7 houve uma associação entre evitar conversar por causa da aparência dos dentes ou prótese (Q6) e os indivíduos com um nível de escolaridade mais baixo (p=0,037) ou para quem nunca visitou um profissional de saúde oral (p=0,031).
Nenhum dos fatores estudados se relacionou de forma estatisticamente significativa com o item “Nos últimos 12 meses, reduziu a sua participação em atividades sociais devido a problemas na boca ou nos dentes?” (Q7) (Tabela 8).
Por último, relativamente à dificuldade em estudar ou fazer os trabalhos de casa devido a problemas na boca ou nos dentes (Q8), verificou-se que esta questão apresentou um maior impacto nos indivíduos que nunca visitaram um profissional de saúde oral (p=0,010) e que tinham presença de cárie dentária (p=0,015) (Tabela 9).
Discussão
Os problemas relacionados com a saúde oral têm demonstrado ter um impacto negativo nas atividades quotidianas, provocando dor, sofrimento, constrangimentos psicológicos e privações sociais, podendo desta forma influenciar negativamente a qualidade de vida dos indivíduos.12,17,18 Pretendeu-se com o presente trabalho contribuir para o conhecimento desta temática.
A amostra foi constituída por indivíduos com 18 anos, pertencentes à região de Lisboa e Vale do Tejo, que se dirigiram às bases militares desta região no âmbito do Dia da Defesa Nacional. Sendo indicado no III ENPDO7 que a amostra é representativa de cada uma das regiões em causa, os resultados do presente trabalho podem ser extrapolados para a população-alvo de 18 anos da Região de Lisboa e Vale do Tejo.
Embora os dados utilizados no presente estudo tenham sido recolhidos em 2012/2013, portanto há cerca de 10 anos, são os dados mais recentes existentes, obtidos a partir de uma amostra representativa, pelo que se considerou que a sua análise era pertinente.
A maioria das oito questões apresentou uma alta frequência de “nunca” e uma reduzida frequência de “muitas vezes”, sendo estes resultados comuns em estudos realizados em populações de jovens adultos.4,12,17,19
No presente estudo verificaram-se diversas associações estatisticamente significativas entre as oito questões e alguns dos fatores analisados. Destacam-se, entre estes fatores, o sexo, o nível de escolaridade, a visita ao profissional de saúde oral, a presença de hemorragia gengival e a presença de cárie.
O sexo feminino apresentou piores resultados, nomeadamente nas questões Q1, Q3 e Q4. Estes resultados estão em concordância com o estudo de Palma, de 2013.20 Uma explicação para esta associação pode ser o facto das mulheres estarem mais atentas e preocupadas com a saúde oral e, ainda, devido ao facto de apresentarem maior experiência de sensibilidade à dor, referindo normalmente níveis de dor mais elevados e também episódios dolorosos mais frequentes e duradouros.21,22 Além disso, pode dizer-se que de um modo geral, as mulheres preocupam-se mais com a sua aparência do que os homens, podendo por isso apresentarem um maior impacto no desconforto psicológico.3
No que se refere à relação com o nível de escolaridade, neste trabalho verificou-se que uma associação entre um nível de escolaridade mais baixo e piores resultados, particularmente nas questões Q1 e Q6. Um estudo de Papaioannau,23 realizado em adultos da Grécia, verificou que à medida que a escolaridade aumentava havia uma melhoria dos valores de QdVRSO. O estudo de Baldani et al.24 indicou que indivíduos com um nível de escolaridade superior tinham tendência para melhores comportamentos de saúde oral, como a escovagem dentária bidiária, estando estes comportamentos de saúde associados a melhores conhecimentos sobre as doenças orais e sobre a sua prevenção e, consequentemente, a uma melhor QdVRSO. Também foi verificado, no presente estudo, que os indivíduos que referiram ter visitado um profissional de saúde oral apresentaram melhores resultados, nomeadamente nas questões Q6 e Q8. Estes resultados encontram-se em concordância com o estudo de Baldani et al.24 que verificou que os indivíduos que nunca recorreram a uma consulta de saúde oral ou que não recorreram frequentemente a esta consulta, apresentaram valores mais elevados do OHIP-14, valores esses que correspondem a um maior impacto na QdVRSO.24
Um estudo efetuado numa população universitária portuguesa, revelou que indivíduos que visitaram o médico dentista por motivos de urgência ou que não visitaram o dentista no último ano por razões económicas, apresentaram uma pior QdVRSO.12
Outro fator negativamente associado à qualidade de vida foi a presença de hemorragia gengival, evidenciando-se esta associação na questão Q5. Este achado clínico pode ser indicativo de gengivite, doença na qual as gengivas podem adquirir um aspeto edemaciado e avermelhado, podendo ter um impacto significativo na estética do sorriso, logo facilmente associado a um maior embaraço social.24 25 A associação entre doença periodontal e o comprometimento da QdVRSO é verificada em vários estudos.12,26
Por último, verificou-se que os indivíduos com experiência de cárie dentária também apresentaram piores resultados, à semelhança de outros estudos.11,12,27,28 A cárie dentária foi, dos fatores estudados, aquela que se encontrou associada a um maior número de questões, nomeadamente, à Q1, Q2, Q3 e Q8, demonstrando um impacto desta doença em aspetos físicos, funcionais e de incapacidade.
Os resultados encontrados no presente estudo demonstraram um impacto negativo da saúde oral na vida quotidiana dos indivíduos, interferindo com o seu bem-estar emocional, podendo levar a limitações funcionais como a diminuição da capacidade mastigatória, e estando associada a experiências dolorosas.
É por isso importante prevenir e intervir na fase inicial das lesões de cárie dentária e de doença periodontal, evitando dificuldades funcionais, alterações emocionais e sociais.
O estudo da qualidade de vida e dos seus fatores associados é importante para o conhecimento e monitorização do estado de saúde da população, podendo ser utilizado para a avaliação dos efeitos de medidas preventivas e de tratamentos dentários.
Conclusões
No presente estudo verificaram-se piores resultados nos indivíduos do sexo feminino, com um nível de escolaridade mais baixo, que nunca tinham consultado o profissional de saúde oral, com presença de hemorragia ou com presença de cárie dentária, indicando um impacto negativo destes fatores nos aspetos funcionais, físicos, psicológicos e sociais da vida destes indivíduos. Para a melhoria da qualidade de vida dos jovens adultos da população estudada, é importante um reforço das medidas preventivas, particularmente das relacionadas com a melhoria dos comportamentos de saúde oral e com o tratamento precoce das doenças orais.