Em 2021 irão comemorar-se os 10 anos da introdução em Portugal dos novos critérios de diagnóstico de Diabetes Gestacional. Neste artigo de opinião, apresenta-se uma revisão histórica crítica de como se obtiveram esses critérios e propõem-se alterações com base em novos dados científicos.
No início da gestação e dominando de um modo geral a primeira metade da gravidez, surge uma hiperinsulinémia provocada pela ação betacitotrópica da progesterona e estrogénios sobre os ilhéus de Langerhans. A insulino-resistência periférica surge sobretudo a partir da 24ª semana. Tal deve-se ao desenvolvimento da unidade feto-placentária, com aumento da secreção de progesterona, hormona lactogénea placentária, cortisol e prolactina, que antagonizam as ações da insulina1. Nos anos 90, fazia-se o rastreio de Diabetes Gestacional (DG) com o teste de O’Sullivan2 e, se positivo, a prova de tolerância à glucose oral (PTGO) com os critérios de Carpenter e Coustan3. Em 2005, o estudo ACHOIS4 concluiu que o tratamento da DG reduz a morbilidade perinatal grave e melhora a qualidade de vida relacionada com a saúde das mulheres. Em 2008, o estudo HAPO5 envolveu 25.505 grávidas, sendo a partir deste estudo que se passa a adotar a nova PTGO de 75g de glucose em 300 ml, entre as 24 e as 28 semanas de gestação, com os critérios conhecidos para o diagnóstico de DG. Por razões éticas e de segurança o estudo HAPO5 não incluiu as grávidas com uma glicemia plasmática em jejum (GPJ) >105 mg/dL.
Em 2009, o estudo retrospetivo de Riskin-Mashiah et al.6 transportou para o primeiro trimestre da gravidez os sete grupos de glicémias em jejum criados no estudo HAPO5. De uma população de 6.129 grávidas, 697 (11,4%) encontravam-se entre os 90-105 mg/dL (referentes aos três grupos de GPJ mais elevados). Nesta população, e no segundo trimestre, a estratégia para diagnosticar a DG foi o teste de O’Sullivan seguido de uma PTGO de 100 gramas. Observou-se que destas 697 grávidas apenas 66 (9,4%) tinham critérios de diagnóstico de DG. No total houve 173 grávidas com DG. A estratificação do risco para DG foi feita utilizando Odds Ratio (OR) de 1,0 para o grupo <75mg/dL (neste grupo apenas 1,0% tiveram diagnóstico de DG). O OR variou entre 1,0 e 11,92. Observou-se uma proporcionalidade direta entre os níveis crescentes de glicemia e o diagnóstico de DG. Este estudo, feito em Israel, concluiu que se verifica uma associação entre os níveis GPJ no primeiro trimestre e complicações adversas na gravidez como a DG, os fetos grandes para a idade gestacional e a macrossomia fetal.
A International Association of Diabetes and Pregnancy Study Groups (IADPSG) publicou em 2010 as recomendações para o Diagnóstico e Classificação das Hiperglicemias na Gravidez7. Aqui utilizou os critérios de diagnóstico de DG que derivam do estudo HAPO, e acrescenta uma referência à publicação de Riskin-Mashiah6, para justificar a recomendação de que uma GPJ na gravidez precoce ≥92 mg/dL também seja classificada como DG.
A Organização Mundial de Saúde (OMS), em 2013, elaborou o documento “Diagnostic Criteria and Classification of Hyperglycaemia First Detected in Pregnancy”8. Segundo a OMS o valor de GPJ ≥92 mg/dL em qualquer altura da gravidez é critério de diagnóstico de DG. Apesar disso refere que a qualidade da evidência é muito baixa e a força da recomendação é fraca.
Em 2011, a Direção-Geral da Saúde (DGS) em Portugal publicou a norma 007/20119 contendo os critérios da IADPSG. Em 2017, foi publicado o Consenso “Diabetes Gestacional” (uma revisão de 2011) que usa os mesmos critérios da DGS10. Nenhum dos dois faz referência ao estudo de Riskin-Mashiah.
Em 2012, Corrado F. refere: “Não houve uma correspondência completa entre a GPJ no primeiro trimestre e a PTGO de 2h com 75 gramas no diagnóstico de DG. Portanto, se a PTGO é o gold-standard para o diagnóstico de DG, então uma GPJ ≥92 mg/dL e <126 mg/dL, durante o primeiro trimestre de gravidez não deverá ser considerado um critério de diagnóstico de DG”11. Quando muito, a GPJ deverá ser considerada apenas um fator preditivo como outros marcadores, tal como DG prévia, macrossomia, obesidade, ou história familiar de diabetes.
Em 2013, foi publicado um artigo de Zhu W. et al., que demonstra qual a correspondência entre a GPJ no primeiro e no segundo trimestres12. Em 17.186 grávidas integradas num estudo de coorte, a DG confirmou--se, por PTGO de 75 gramas às 24-28 semanas, em 37% das mulheres com GPJ na primeira visita com valores entre 92-99 mg/dL. O diagnóstico de DG confirmou-se em 52,7% no grupo 100-109 mg/dL (engloba valores superiores a 105 mg/dL) e em 66,2% no grupo 110-125 mg/dL. Para valores <75 mg/dL o diagnóstico de DG foi de 9,6%. Uma das conclusões dos autores é que o uso do cut-off de 92 mg/dL como critério diagnóstico de DG em qualquer altura da gravidez levará a um maior número de mulheres diagnosticadas; isto não só iria sobrecarregar os serviços de saúde, mas também criar stress e um fardo psicológico nas pacientes, o que por si só poderia prejudicar o seu bem--estar geral durante a gravidez. Em 2014, as orientações para o diagnóstico e tratamento da DG na República Popular da China (RPC)13, referem no seu ponto quarto:” níveis de GPJ na gravidez precoce não estão recomendados para o diagnóstico da DG”. Em 2015, a International Federation of Gynecology and Obstetrics (FIGO)14, faz referência ao artigo de Zhu W. na contestação da GPJ no primeiro trimestre como diagnóstico de DG. Recomenda que na RPC uma GPJ no primeiro trimestre de 100-125 mg/dL seja considerada como DG (páginas S185-6).
Em 2015, foi publicado um estudo da Maternidade Dr. Alfredo da Costa com os seus primeiros dados de análise referentes aos critérios DGS-IADPSG, e em comparação com os critérios de Carpenter e Coustan15. Observou-se um aumento do número de casos referenciados, com redução dos RN macrossómicos, aumento dos recém-nascidos (RN) leves para a idade gestacional e diminuição do número de cesarianas. Não é feita uma distinção entre o critério de diagnóstico da DG no primeiro trimestre (que não faz parte do estudo HAPO), e os do segundo trimestre.
Em 2018, no estudo de Ferreira A.F. et al.16, da Maternidade Daniel de Matos, compararam os critérios de Carpenter e Coustan com os da DGS-IADPSG. A incidência de DG duplicou de 4,6% para 9,4%. As consultas de Obstetrícia e Endocrinologia para DG aumentaram 50% (de ≈2.000 para ≈3.000). O número de fetos macrossómicos diminuiu, mas duplicaram os RN leves para a idade gestacional, quadruplicaram os casos de hiperbilirrubinémia e aumentou em seis vezes o risco de hipoglicemias. Neste estudo, não referem a que trimestre de diagnóstico de DG estão relacionadas as complicações neonatais.
Concluindo, o estudo HAPO veio facilitar e antecipar o diagnóstico da DG no segundo trimestre da gravidez (24-28 semanas)5. O estudo de Riskin-Mashiah veio revelar um risco acrescido de DG proporcional ao aumento dos valores da GPJ no primeiro trimestre6. A IADPSG juntou ambos os estudos e traçou para critério de DG um valor de GPJ ≥92 mg/dL em qualquer altura da gravidez7. Este valor deriva de 1,75 OR da GPJ no estudo HAPO, mas foi adotado por convenção para o primeiro trimestre. O estudo de Zhu W.12 veio quantificar o risco de DG detetado por Riskin-Mashiah6.
Tendo em conta a estratificação de risco para DG no primeiro trimestre, sugerimos que no grupo de GPJ de 92-99 mg/dL se faça a PTGO no segundo trimestre. Porque é controverso tratar grávidas com diagnóstico de DG no primeiro trimestre com base num risco de 37%12, e há gastos e complicações potenciais já referidos15,16. Neste grupo referenciar para apoio diferenciado apenas as grávidas com PTGO alterada. Na prática, esta seria a única alteração ao consenso nacional. Nos casos de GPJ de 100-125 mg/dL estará indicado tratar como DG5,14 e a todas as grávidas elegíveis (sem diabetes prévia, sem história de cirurgia bariátrica) com GPJ <100 mg/dL recomendado fazer a PTGO de 75 gramas entre as 24-28 semanas. Em todas as grávidas recomendar as medidas higieno-dietéticas profiláticas, independentemente do risco de DG; até porque o maior número de diagnósticos de DG é feito em grávidas de baixo risco de DG. Deixamos aqui o desafio a todos os elementos que colaboraram no Consenso “Diabetes Gestacional”, a tarefa de rever todas as evidências, referências e bibliografia, e, esperamos nós, eliminar o diagnóstico de DG no primeiro trimestre, que nada tem de fisiológico, substituindo-o por fator de risco.