A infeção pelo vírus papiloma humano (HPV) é a infeção de transmissão sexual mais frequente a nível mundial, sendo responsável pelo desenvolvimento de lesões benignas, pré-malignas e malignas, tanto na região anogenital como na orofaríngea.
Trata-se de um vírus DNA e na atualidade conhecem-se mais de 200 genótipos distintos, sendo que entre 30 a 40 têm capacidade de infetar a região anogenital. Os genótipos são classificados em grupo de alto ou baixo risco conforme o seu potencial carcinogénico. Os genótipos de alto risco (16, 18, 31, 33, 35, 39, 45, 51, 52 e 58) estão relacionados com o desenvolvimento de cancro cervical, vulvar, vaginal, anal e da orofaringe, enquanto os de baixo risco (6, 11, 40, 42, 43, 44 e 54) estão associados principalmente com o aparecimento de lesões benignas - verrugas/condilomas.
Os genótipos 16 e 18 estão associados a aproximadamente 70% dos casos de cancro do colo do útero, 90% do canal anal e, de forma variável e menos expressiva, com o cancro da vulva, vagina, pénis e orofaringe. Os genótipos HPV 31, 33, 45, 52 e 58 são os agentes etiológicos responsáveis por cerca de 20% dos casos de cancro do colo do útero1-3.
Aproximadamente 70% dos adultos com vida sexual ativa vão apresentar infeção pelo HPV durante a sua vida4. A maioria das infeções são assintomáticas e desaparecem espontaneamente, mas a persistência da infeção pode progredir para o aparecimento de lesões pré-invasivas (neoplasia cervical intraepitelial - CIN) e posteriormente de cancro.
Como estratégia de prevenção primária foram desenvolvidas várias vacinas contra o HPV que se distinguem entre si principalmente conforme o número de genótipos contra os quais protegem, mas todas cobrem os genótipos de alto risco 16 e 18. Atualmente, em Portugal, encontra-se disponível e comercializada a vacina nonavalente, autorizada na Europa desde o ano de 2015, que cobre adicionalmente os genótipos 6, 11, 31, 33, 45, 52 e 58 e tem uma eficácia estimada de 90% na redução da incidência de cancro associado a HPV5-7.
Mais de 124 países e territórios têm implementado um programa nacional de imunização contra o HPV8. Esta decisão tem por base a evidência científica que demonstra a eficácia e segurança da vacinação, mas também questões económicas de política de saúde.
Existe evidência científica que suporta a decisão de alargar a vacinação contra o HPV para além da idade estabelecida no Programa Nacional de Vacinação (PNV)?
Material e métodos
Foi consultada a literatura publicada na plataforma PubMed desde a sua criação até à presente data de elaboração desta revisão. Foram consultados artigos escritos em Inglês e Português que continham os termos “HPV”, “cancer and HPV”, “non-cancerous lesions and HPV”, vaccination HPV”. Para além desta fonte bibliográfica foi consultado o PNV e a plataforma de informação Globocan. Os estudos incluídos neste artigo incluíram revisões sistemáticas, meta análises, ensaios clínicos randomizados e estudos observacionais.
Programa nacional de vacinação em portugal
O PNV, implementado em 1965, é um programa universal, gratuito e acessível a todas as pessoas residentes em Portugal. É um programa proposto por um grupo de especialistas (Comissão Técnica de Vacinação) atendendo a aspetos epidemiológicos de diversas doenças e à disponibilidade de vacinas no mercado, sendo regularmente revisto e atualizado pela Direção Geral de Saúde (DGS).
O PNV foi atualizado em setembro de 2020 com a publicação da Norma n.o 018/2020 de 27/09/2020, e entrou em vigor a 1 de outubro de 20209.
Desde o ano de 2008 a vacina contra o HPV faz parte do PNV. A vacina nonavalente administrada aos 10 anos de idade no sexo feminino, em esquema de duas doses, substituiu a quadrivalente em Portugal desde o ano 2017.
Desde a última atualização em setembro de 2020 e após recomendações de várias sociedades científicas nacionais e internacionais, este esquema de vacinação foi alargado ao sexo masculino a partir dos 10 anos de idade, com coorte nos nascidos a partir do ano 2009.
Prevalência da infeção pelo hpv por grupos de idade
O estudo “CLEOPATRE” realizado em Portugal e publicado em 2011 é o maior estudo epidemiológico de prevalência da infeção pelo HPV a nível nacional e incluiu um total de 2326 mulheres entre os 18 e os 64 anos10. A prevalência de infeção pelo HPV na amostra foi de 19.4%, com a maior taxa no grupo entre os 18 e os 24 anos, traduzindo-se numa prevalência estimada da infeção na população feminina portuguesa de 12.7% (11.2-14.4%; 95% IC).
Os genótipos de alto risco foram responsáveis por 76.5% das infeções por HPV, o mais frequentemente encontrado foi o genótipo 16, sendo que em 36.6% dos casos se documentou infeção múltipla concomitante por mais de um tipo de genótipo. Em 32,5% das infeções foi detetado um dos genótipos 6,11,16 ou 18.
Incidência de lesões não malignas e malignas provocadas pelo hpv
Em Portugal, o estudo CLEOPATRE II11, estudou a prevalência da infeção HPV em amostras com evidência histológica de lesões CIN2, CIN3 e carcinoma. Das 582 amostras estudadas a prevalência da infeção por HPV foi de 97.9%, com maior expressão dos genótipos de alto risco, em particular o HPV 16. A infeção por múltiplos genótipos foi encontrada em 11.2% dos casos. A prevalência da infeção por HPV distribuída por tipo de lesão foi a seguinte: 95.5% em CIN 2, 99.4% em CIN 3 96.9% em carcinoma.
A proporção de casos de cancro associados à infeção por HPV não é homogénea na população mundial, estando dependente de fatores tais como a disponibilidade e acessibilidade a programas de vacinação, acesso a cuidados de saúde e universalidade dos programas de rastreio do cancro do colo do útero12.
Para a população dos EUA, estima-se que o HPV seja o responsável por 79% dos casos de cancros anogenitais ou orofaríngeos, sendo que no caso específico do colo do útero pode representar 91% dos casos13-14.
Um estudo multicêntrico que incluiu dados de 32 países europeus, estimou o número anual de novos casos de cancro atribuíveis à infeção por HPV cujos genótipos são cobertos pela vacina nonavalente15. Dos 53013 novos casos de cancro relacionados com HPV (inclui todos os genótipos), cerca de 90% são atribuíveis a genótipos para os quais a vacina nonavalente confere proteção (81% em mulheres e 19% em homens). Dos tipos de tumor estudados, o cancro do colo útero representa a maioria dos casos (58.7%) seguido dos tumores da cabeça e pescoço (12.8%), canal anal (11.6%), vulva (2.8%), vagina (2.6%) e pénis (2.1%) O número de novos casos de cancro relacionados com os genótipos contra os quais a vacina nonavalente confere proteção é substancial, tanto na população feminina como na masculina.
No geral, cerca de 90% dos cancros relacionados com HPV, 80% das lesões pré-malignas e 90% das verrugas genitais são atribuíveis aos genótipos para os quais a vacina nonavalente oferece proteção. Uma vez que estes dados se referem a um período (2003-2007) anterior à introdução da vacina na Europa, onde o rastreio do cancro do colo útero era a única forma disponível e generalizada de prevenção da doença oncológica relacionada com HPV, é plausível que os mesmos reflitam o potencial impacto da generalização da vacinação na prevenção de novos casos de cancro relacionados com o HPV.
Eficácia e segurança das vacinas em mulheres entre os 26 e 45 anos
A eficácia e segurança das diferentes vacinas contra a infeção pelo HPV foi reforçada pelo CDC no mais recente (2019) documento de consenso e recomendações para a criação de uma política de vacinação16.
A avaliação da eficácia de vacina contra a infeção pelo HPV tem em conta distintos aspetos: imunogenicidade da vacina e a marcadores clínicos indiretos da eficácia da mesma.
Relativamente ao primeiro aspeto - imunogenicidade - existem vários estudos realizados em adultos entre os 27 e 45 anos que revelam que a taxa de seroconversão para os genótipos incluídos em qualquer uma das vacinas após três doses é de 93.6-100%17-28, apesar de não se conhecer qual o nível mínimo de títulos de anticorpos necessários para conferir uma proteção eficaz29.
Relativamente ao segundo aspeto da avaliação da eficácia - marcadores clínicos - existem diversos ensaios clínicos randomizados em adultos entre os 27 e 45 anos que mostram que as vacinas protegem contra a persistência da infeção e contra o desenvolvimento de lesões benignas e pre-malignas ano-genitais26,30-32.
Castellsagué et al.26 realizaram um estudo aleatorizado com 3819 mulheres, dos 24-45 anos, com uma média de período de seguimento de 4 anos. Comparando o grupo de mulheres que recebeu a vacina quadrivalente vs grupo placebo a eficácia combinada foi de 87.7% para as vacinadas (eficácia de 88.8% na prevenção da persistência da infeção; de 100% na prevenção de condilomas genitais; e de 93.7% e 79.8% na prevenção de CIN1 e CIN2+ respectivamente).
No estudo aleatorizado de Wheeler et al31, foram incluídas 4407 mulheres com mais de 26 anos e foi estudada a eficácia da vacina bivalente, sendo a média do período de seguimento de 7 anos. A eficácia combinada foi 90.5% (90% na prevenção da persistência da infeção; 83.7% na prevenção de CIN1 e CIN2+).
Wei et al.32 descrevem num estudo aleatorizado com 3006 mulheres, dos 20-45 anos (1166 mulheres entre 26-45anos), para um período de seguimento de 6 anos, comparando o grupo de mulheres vacinadas com a vacina quadrivalente vs grupo controlo, a eficácia combinada foi de 90.6% (90% na prevenção da persistência da infeção; 100%na prevenção de CIN1 e CIN2+).
Neste três estudos não foram relatadas mortes relacionadas diretamente com a toma da vacina.
Mais recentemente foi publicado um estudo prospetivo de base populacional que demostrou a eficácia da vacina na diminuição da incidência de cancro do colo do útero33. Neste estudo foram seguidas durante onze anos uma população de 1 672 983 mulheres entre os 10 e os 30 anos de idade. A vacina quadrivalente reduziu de forma significativa a incidência cumulativa de cancro do colo do útero: 47 casos/100,000 no grupo de mulheres vacinadas em comparação com 94/100,000 no grupo não vacinado (taxa de incidência 0.51 [95% CI], 0.32- 0.82). A redução do risco foi mais acentuada nas mulheres vacinadas antes dos 17 anos de idade.
Discussão
A evidência científica disponível sobre a eficácia e segurança da vacinação contra a infeção pelo HPV determinou que organizações nacionais (DGS) e internacionais (CDC, OMS) recomendem a vacinação universal em programas nacionais de vacinação.
A autorização para a comercialização e utilização das vacinas quadrivalente e nonavalente em mulheres acima dos 26 anos advém destas manterem a sua eficácia no desenvolvimento de anticorpos (taxas de seroconversão > 99%) e na prevenção da infeção e desenvolvimento de lesões benignas, pré-invasivas ou cancro associadas ao HPV.
Em contraste, os estudos epidemiológicos também mostram que a eficácia das vacinas é maior quando administradas previamente à exposição ao HPV, ou seja, idealmente antes do início da atividade sexual. No entanto, mesmo para quem já tem uma vida sexual ativa e tenha sido exposto a infeção por algum genótipo de HPV, a infeção natural confere uma baixa proteção contra a reinfeção e pode não ter sido infetado pelos genótipos incluídos na vacinação.
O benefício da extensão da vacinação universal acima dos 26 anos parece ter um impacto mínimo a nível populacional: o NNT (número necessário para tratar) para prevenir 1 caso de lesão pré-maligna ou cancro passa de 22 e 202 para 800 e 6500, respetivamente, conforme se trate de mulheres até aos 26 anos ou incluindo mulheres 27-45 anos.
Apesar disso, existe benefício clínico a nível individual associado à vacinação neste grupo etário, devendo a decisão ter em conta outros fatores de risco associados à infeção. A principal dificuldade prende-se na subjetividade dos critérios para a indicação para vacinar que permitam a identificação, à priori, dos indivíduos que têm maior benefício, sobretudo porque não existe um teste serológico que determine se um indivíduo é imune ou suscetível a infeção por determinado genótipo do HPV. As vacinas têm um intuito profilático contra a infeção por HPV, mas não impedem progressão da infeção até doença, não diminuem o tempo de eliminação do vírus e não tratam a doença relacionada com HPV.
Em linha com as recomendações do CDC, a vacinação contra o HPV em mulheres acima dos 26 anos deve ser discutida individualmente com cada mulher e tendo em linha de conta fatores de risco passados (número de parceiros sexuais p.e), presentes (status imunitário p.e.) e futuros (expetativas da doente e a sua presunção sobre a eficácia na prevenção de cancro). A recomendação para a vacinação universal de todas as mulheres até aos 45 anos não está implementada, nem recomendada por nenhuma organização nacional ou internacional.
A análise do custo e efetividade da integração da vacinação contra HPV até aos 45 anos no PNV deve ter em linha outros aspetos tais como: o grau de acesso, cumprimento e implementação do rastreio; custos e disponibilidade das vacinas; história natural de outros cancros relacionado com HPV para além do colo do útero e em última instância, da própria finitude dos recursos financeiros e medidas de utilidade tais como Quality Adjusted Life Years (QALYs) eventualmente ganho com esta medida.
Conflitos de interesse
Os autores declaram não apresentar qualquer conflito de interesse na produção deste artigo.
O presente artigo surge na sequência da monografia final do Curso de Ginecologia Oncológica organizado pelo Colégio de Ginecologia Oncológica , com o titulo “ Justifica-se a vacinação contra o HPV nas mulheres para além do PNV”.