A imagem impressa, mais notadamente a gravura, instalou-se equivocadamente em nossas memórias como uma arte de ofício, vista grosso modo como utilitária e, portanto ,ligada a aspectos mecânicos e técnicos de disseminação de informações. É possível afirmar que esses aspectos foram potencialmente excludentes em outros contextos históricos para a percepção da gravura como uma linguagem artística independente. Em um “regime da comunicação” como é o sistema da arte contemporânea, segundo Cauquelin (2005), podemos inferir que a gravura estabelece um trânsito entre o documental e o artístico transformando-se, por assim dizer, em uma espécie de dispositivo rizomático.
Nesse contexto, muitos artistas entendem a gravura e os processos gráficos por uma condição historicizada de valor intrínseco e simbólico. Sua força na contemporaneidade reside, portanto, naquilo que o sistema da arte moderna (Cauquelin, 2005) observava como sendo um problema para a condição aurática da obra. A gravura abarca questões relativas à reprodutibilidade técnica que se constitui na tradição artística pela sistematização de edições que resultam em cópias fieis à gravação feita na matriz. Ao longo do tempo foram desenvolvidas formas de controle sobre as tiragens, sendo as mais recentes pautadas por um sistema de numeração, com provas de estado, provas de autor, provas de impressão etc., bem como a anulação da matriz ao final do processo para se evitar cópias fora da edição oficial.
Livros, revistas, documentos e impressos sequenciais que necessitam de uma regulação seguem também essa lógica baseada nesses sistemas editoriais. Em contraposição, alguns tipos de impressos comerciais têm maior flexibilidade ou simplesmente carecem de limitações nas questões de tiragem, pois nesses casos, a importância da reprodução reside na quantidade disseminada de sua mensagem visual ou textual.
Com as possibilidades praticamente inesgotáveis de novos processos digitais que são constantemente apresentados a um número cada vez maior de usuários, os procedimentos de impressão e sua enorme gama de variações, sejam materiais e/ou formais, empreenderam uma forte reconfiguração dos modos de se pensar as técnicas tradicionais da gravura, o que permitiu, entre outros fatores, aos artistas contemporâneos exercerem uma quebra de paradigmas com os modelos rígidos de edição.
Podemos pensar que a recusa ou a aceitação da realização de múltiplos idênticos não é mais uma questão passiva, um elemento inquestionável, pois se trata agora de uma estratégia poética que redimensiona as formas dispostas pela cultura e pela tradição, em que questões técnicas passam a operar como um dispositivo e não como uma norma.
Desse modo, é possível ao artista propor uma obra gráfica na qual a questão de realização de uma edição numerada e assinada seja superada ou propositalmente abandonada para dar lugar às distensões e diferenciações entre as cópias, compondo um conjunto de impressões, que podem constituir um objeto, ou dimensionar uma ação performática ou ainda definir a construção de uma instalação. Essa abordagem específica pode ser percebida na produção da artista portuguesa Graciela Machado por meio de muitas de suas obras. Abordamos aqui especificamente a instalação “Folhas da Espera” (Figura 1), apresentada na exposição coletiva “Mais que palavras ditas” em outubro de 2019 na Sala Comum da Reitoria da Universidade do Porto e que se constituiu por um “diálogo” com a obra de Agustina Bessa-Luís.
O trabalho de Graciela evoca a reprodutibilidade técnica de modo a caracterizar um processo formativo, ou seja, “um tal fazer que, enquanto faz, inventa o por fazer e o modo de fazer” (Pareyson, 2001: 25).
A instalação é construída por sucessivas impressões litográficas derivadas de experimentações com as matrizes, rompendo-se, portanto, a ideia de tiragem ou edição sistematizada. Os papéis utilizados pela artista dão a sensação de terem sido escolhidos aleatoriamente, no entanto, são suportes minuciosamente resgatados de outros lugares, não propriamente artísticos, mas relacionados à escrita de documentos, folhas guardadas e em desuso, carregadas de memória.
A questão dialógica com a obra de Agustina Bessa-Luís em “Folhas da Espera” é vivificada por processos autográficos, que rememoram os manuscritos da escritora. Não são cópias de sua escrita, mas demonstram o fascínio estabelecido pelo modo como Bessa-Luís em seu processo transpunha o pensamento quase sem correções para a folha:
Nos manuscritos de Agustina são muito poucas as palavras riscadas ou emendadas, como se todo o enredo estivesse bem definido antes de ser passado ao papel. Na sua escrita nada é arbitrário, o único acaso que ali acontece é a própria vida. (Pinheiro, 2009)
Assim, a instalação de Graciela Machado determina o processo de impressão como uma emulação do processo de escrita (Figuras 2 e 3).
No trabalho da artista observamos uma abordagem atenta às materialidades e à história das técnicas que evidenciam as relações com a memória, em especial na escolha da escrita cursiva como elemento visual para provocar um diálogo com a obra de Agustina. Ao fazer uma referência implícita aos manuscritos da escritora, Graciela parece não querer delimitar simplesmente uma peculiaridade discursiva, mas evocar a complexidade do processo poético em sua pesquisa gráfica.
Essa complexidade reside na necessidade de experienciar e de se observar cada detalhe, considerando que a elaboração de sentido está enredada em uma tessitura que se encontra em permanente movimento, ou seja, trata de uma condição premente da vida onde se compõe o acaso.
[…] os acasos que podem redirecionar o processo. Assim, a pesquisa desenvolve-se em duas direções opostas e complementares: o pensamento estruturado da consciência e um afrouxamento das estruturas inconscientes. A superfície e a profundidade, consciência e inconsciência, estabelecem, durante a pesquisa, um processo dialético, efetuando trocas na elaboração de procedimentos, na pesquisa com materiais, na execução de técnicas, na reflexão e na produção textual. (Rey, 2002: 127)
Para perceber o trabalho da artista nessa rede, é preciso também ressaltar diversos outros aspectos ligados à materialidade da litografia, pois o processo em si apresenta-se como “uma dupla injunção do papel da memória na constituição subjetiva” e, ao mesmo tempo em que há uma necessidade de manutenção de certas condições técnicas historicizadas na “preservação de uma memória histórica”, há também “um desejo de sua violação” pela qual as coisas já vistas ou existentes se constituirão “por um novo olhar, o que torna cada gesto singular e irrepetível, ainda que condicionado pela história” (Andrade; Almozara, 2016).
Técnica e poética: os percursos entre o transitório e o perene
A litografia está baseada na realização planográfica da matriz que gera uma mancha gráfica impressa por meio da repulsão entre água e óleo, o que é um dado importante se pensarmos nas proposições metafóricas que podem ser viabilizadas a partir disso.
Por sua vez, a porosidade da pedra litográfica e as possibilidades de se imprimir em diversos tipos de materiais conferem a esse procedimento amplas formas de aplicação que historicamente foram importantes para as áreas artísticas, comerciais e científicas. Sendo assim, temos um indício narrativo que amplia a força poética da utilização de um procedimento como o litográfico.
Além disso, outros atributos estão subentendidos na e pela configuração do uso de uma matriz em pedra, que passa por um processo de preparação em que uma fina camada de calcário é retirada da superfície para dar lugar a uma nova imagem. A pedra-matriz é assim reutilizada indeterminadas vezes até que o desgaste de sucessivas operações de granitagem comprometa sua integridade física. Antes do ponto crítico de ruptura, a pedra pode ser colada em um granito para que seu uso seja prolongado, pois as reservas naturais desse calcário estão esgotadas e as pedras existentes nos ateliês ao redor do mundo são as únicas fontes para se obter esse tipo de matriz.
Enfim, as peculiaridades desse material permitem per si inúmeras elucubrações sobre os elementos mnemônicos, que estão presentes nas relações: do apagamento, do desgaste consentido que dá lugar a uma nova imagem, do compartilhamento que a matriz está sujeita pela impossibilidade de renovação das fontes naturais, da limitação de mobilidade imposta pelo peso e tamanho das matrizes, e também nos vestígios que podem ser percebidos pela porosidade da pedra, fósseis que são revelados nas entranhas do calcário, composições minerais que se insinuam em depósitos inesperados na matriz.
Esses fatores que estão implicados no trabalho de Graciela Machado permitem destacar que seu processo está relacionado a uma disposição, mesmo que subjetiva, de se deixar contaminar por situações relacionadas aos acasos técnicos e materiais, bem como às descobertas de conexões conceituais históricas, para que estas provoquem desdobramentos na operacionalização e, consequentemente, na instauração das imagens impressas.
Nas impressões realizadas para “Folhas da Espera” observa-se a cumplicidade para com a sensação da porosidade e fissuras das pedras, da textura de granitagem da superfície da matriz, com ações pontuais na construção da imagem (Figuras 3 e 4), em especial com o uso da autografia, que consiste em uma técnica de reprodução de documentos, desenhos e fotografias por meio de papel transporte aplicado sobre a matriz.
Historicamente, o uso do papel transporte é conhecido desde o início da litografia e foi referenciado pelo próprio Alois Senenfelder (1771-1834) em sua obra A Complete Course of Lithography (1819). Isso foi um avanço significativo para a indústria gráfica do século XIX, um processo facilitador da técnica para a reprodução de documentos, conferindo maior agilidade e precisão ao processo como um todo.
Com o papel transporte é possível escrever, desenhar, compor de maneira habitual, pois com a passagem da imagem do papel para a pedra e da pedra para o substrato final obtêm-se naturalmente o espelhamento da imagem para que o posicionamento da mancha gráfica fique de acordo com a composição pretendida pelo artista.
Ao se valer dessa técnica, Graciela cria uma transposição da escrita, que percorre esse caminho de sucessivas viragens da imagem inicial que em seu caso não é meramente para um fim utilitário ou facilitador, mas trata da preocupação da artista para com uma questão sígnica, na qual a transposição, ou o ato de transpor uma imagem irá impregná-la das reminiscências ou das referencias sobre uma memória gráfica que vai se sucedendo por entre as ações praticadas no processo.
[…] No silêncio da pedra polida vertem-se palavras. Uso a autografia, e regresso à pedra de calcário, suave densa. De uma pedra soltam-se dezenas de folhas. Impressas e reimpressas. A necessidade da escrita sobre uma espera permanente. (Machado, 2019)
Conclusão
Podemos estabelecer a partir do trabalho de Graciela Machado uma relação da técnica e da poética como elementos indissociáveis na construção de um trabalho artístico autoral. A técnica é transitória, é informação acumulada, condicionada às situações de cada época e que pode e deve ser alterada para cumprir o desígnio imposto pela poética que se reveste como uma “instauradora de linguagens”, uma manifestação perene “que se comunica na não pela configuração formal e semântica da obra de arte” (Rey, 2002: 130).
Ao investigar processos, metodologias e suportes específicos de produção da gravura e seu relacionamento com outros suportes midiáticos, Graciela, como artista e professora na Faculdade de Belas-Artes na Universidade do Porto, demonstra seu interesse pelos processos tecnológicos e seus materiais, para consolidar uma expressão artística pessoal e subjetiva, enfatizando que as escolhas técnicas estão imbricadas às construções poéticas e delas não podem ser apartadas sob o risco de se constituírem como meros exercícios técnicos.
Seu trabalho evoca, portanto, um diálogo que dispõe relações sobre a memória material-histórica, pessoal-coletiva e um trânsito entre as potencialidades técnicas e poéticas da imagem impressa, para uma construção que dialoga com as fissuras, contaminações e redescobertas na e para a gravura contemporânea.