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Análise Social
versão impressa ISSN 0003-2573
Anál. Social n.171 Lisboa jul. 2004
Rui Ramos, João Franco e o Fracasso do Reformismo Liberal (1884-1908), Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 2001, 222 páginas.
A ingénua crença do positivismo historiográfico oitocentista de que era possível descobrir a verdade «histórica» ou a «verdade» acontecida plasmada em documentos manuscritos e únicos, cuja heurística, crítica interna e externa e hermenêutica rigorosa constituíam as pedras de toque metodológicas da «escola» erudito-metódica com sólidas e perenes raízes no meio académico português, foi facilmente desmontada ao longo do século XX pela crítica certeira de pensadores e de historiadores lúcidos e atentos para os quais a mediação narrativa dos factos era uma construção mental e subjectiva. Era, em suma, o reconhecimento da impossibilidade de uma «verdade pura e externa» ao sujeito — o sujeito que ingloriamente a procurava e que, afinal, inevitavelmente a (re)construía.
Mas, ao mesmo tempo que essa crítica se desenvolvia e afirmava, o grupo dos Annales e a subsequente Nouvelle histoire, sob a forte influência do marxismo, edificaram uma abordagem neopositivista de base quantitativa e nomotética empenhada em explicar deterministicamente a evolução do social (nas suas facetas mais mensuráveis: a económica e a demográfica), relegando o indivíduo e o acontecimento (elementos nobres da antiga história política) para a arca das «velharias inúteis ». Uma posição que tendeu a ser hegemónica nas décadas de 50, 60 e 70 do século XX, sofrendo a partir de então uma contestação associada ao retorno da narrativa baseada na compreensão enquanto forma ou meio de interpretar o passado. E, como sublinhou Rui Ramos em artigo publicado em 1991, o retorno da narrativa, do singular, do modo descritivo e da compreensão, significou então que alguma «nova» nova história se estava a reaproximar do ponto de vista político 1.
Na «hora dos retornos», a história política saía do banimento e regressava ao palco por duas vias — a «cientificação» do político sustentada por René Rémond e seus seguidores e a apologia da narrativa histórico- política. Em defesa desta escreveu Maria de Fátima Bonifácio um sugestivo ensaio em que se distancia criticamente dos resultados decepcionantes (a expressão é dela) do programa teórico-metodológico de René Rémond e em que destaca as características fundamentais desta opção discursiva e hermenêutica, sublinhando a dado passo: «Esta passagem — dos actos individuais para a história de conjunto — fá-la a narrativa sem o recurso a proposições explicativas gerais ou abstractas, pelo motivo de que nenhum facto ou acontecimento, enquanto resultante da acção humana, é explicável por uma proposição geral e abstracta — ao contrário dos factos físicos ou naturais, que são explicados por referência a uma ou várias leis gerais. [...] É por isso que a verdadeira história política, além de envolver algo mais e diferente de uma teoria da acção ou uma teoria psicológica, só pode ser escrita sob a forma narrativa: trata de acções, e portanto de acontecimentos, cujo significado apenas podemos apreender na sua relação com outros acontecimentos ulteriores, todos eles irredutíveis, pelas razões apontadas, a qualquer narrativa 2.»
Linhas de força de uma concepção da «nova» nova história (re)valorizadora do político através de uma assumida e desenvolta utilização da narrativa e com a qual o autor de João Franco e o Fracasso do Reformismo Liberal (1884-1908) está em sintonia — o recurso a um género discursivo solto e sugestivo é, aliás, patente da primeira à última página do ensaio, mas a preocupação de compreender a figura em seu contexto espácio-temporal ressalta por de mais evidente e prefigura uma preocupação de cientificidade possível em história e ciências sociais acompanhada, necessariamente, por algumas prevenções metodológicas contra a tentação do relativismo historiográfico que faz do (re)interpretar à outrance meio e fim absolutos. Sobressai, porém, uma ou outra fragilidade decorrente do paradigma adoptado que deixaremos para o final.
Mantendo a desconfiança em relação às teorias explicativas a priori, posição típica de uma história compreensiva, o autor, ao escolher João Ferreira Franco e Freire Pinto Castelo Branco (1855-1929) e o franquismo (1906-1908) como caso específico de estudo, não foi certamente alheio à complexidade e sobretudo à controvérsia que desde a sua génese se desenvolveu, predominando e prevalecendo até agora uma interpretação «forte» e linear urdida por adversários políticos, por historiadores republicanos e por outros de formação marxista, que consiste na identificação do franquismo com o salazarismo, ou seja, na sua condição de fenómeno precursor das ditaduras de entre guerras. Uma leitura simples(ista) e aparentemente óbvia que tem servido para outros casos e situações, mas que não pode escapar mais a um rigoroso exame crítico.
Rui Ramos empreendeu, globalmente com sucesso, esse imperativo científico. E, ao contrário de José Miguel Sardica 3, investigador munido, também ele, de preceitos e de preocupações de rigor interpretativo, que autores precedentes, como Rocha Martins, Lopes de Oliveira, Alfredo Pimenta ou Rodrigues Cavalheiro, manifestamente não seguiram, soube e pôde explorar criticamente toda a informação primária usada a ponto de refutar a «lenda negra» mantida, no essencial, pela recente historiografia desde a História de Portugal de A. H. de Oliveira Marques, onde se diz que João Franco foi adepto de um novo tipo de monarquia, assaz despótica 4, até ao ensaio sinóptico de Amadeu Carvalho Homem, que acentua a tentação ditatorial e bismarckiana do franquismo 5.
Na opinião de Rui Ramos, «a mais recente história académica do franquismo consistiu, em geral, na adaptação das teorias marxistas sobre o fascismo. Os historiadores marxistas entenderam a democracia como uma conquista das massas e o fascismo como a reacção da antiga classe dirigente a essa conquista. Franco foi identificado como o representante de uma oligarquia ameaçada pela revolta da massa urbana, supostamente guiada pelo Partido Republicano. Logo, Franco só podia ser pré-fascista. Para este tipo de explicação, as intenções e ideias de Franco, bem assim como as circunstâncias e detalhes da sua vida política, eram irrelevantes» (p. 18). E acrescenta de imediato: «O que distingue o presente ensaio não é a diferente valorização da figura de Franco, mas a metodologia empregada no seu estudo: trata-se de compreender a vida política de Franco até 1908 no quadro das tradições da monarquia constitucional, em que ele se formou como político, e não do mundo saído da primeira guerra mundial» (p. 19).
Claramente sintonizado com a tese de Maria de Fátima Bonifácio, sucintamente expressa na obra dirigida por Roberto Carneiro e Artur Teodoro de Matos Memória de Portugal 6, de que a governação franquista (de 20 de Março de 1906 até três dias após o regicídio, em 1 de Fevereiro de 1908), nascida de uma intervenção pessoal de D. Carlos I (1863-1908), não visou abolir o sistema parlamentar, mas tão-somente reformá-lo, Rui Ramos deixa bem vincada no final do primeiro capítulo, sugestivamente intitulado «A lenda negra do franquismo» (pp. 15- -29), a hipótese que colocou e que procurou demonstrar no ensaio em foco: «Franco se manteve fiel, do princípio ao fim, à tradição do liberalismo da monarquia constitucional, mas os seus actos acabariam por perder-se no caos político donde finalmente sairia a república radical de 1910» (p. 29). E ainda adverte oportunamente que o franquismo pode, não obstante isso, ter aberto horizontes para além do Estado liberal, porquanto «os actores históricos são guiados pelas suas perspectivas, mas os acontecimentos não são o simples resultado de premeditação: são antes o desenlace de múltiplas acções contraditórias, de modo que a situação final pode não ser a desejada por nenhum dos agentes ou sequer a que melhor serve os seus interesses» (p. 29).
Sem pretender apresentar uma biografia histórica de João Franco, apesar de o livro aparecer editado pelo Instituto de Ciências Sociais na colecção breve «Biografias», o autor não descurou a detalhada e variada informação biográfica que nos ajuda a situar Franco no seu tempo e na sua trajectória específica de vida, com origens numa aldeia do Fundão (Portugal quase raiano e profundo), no seio de uma família nobre alinhada politicamente pelo Partido Regenerador do carismático Fontes Pereira de Melo e marcado, até sair de Coimbra com o diploma de Direito, por um conjunto de preferências e valores em que pontificaram a educação liberal e os ensinamentos práticos de seu pai (cacique local ao serviço de Fontes), a necessidade da acção como princípio de utilidade e o positivismo jurídico como matriz comum a toda a sua geração e às seguintes. Rui Ramos desenvolve, aliás, muito bem os aspectos essenciais da formação de Franco para bem demonstrar que, sendo ele filho de seu tempo e de suas circunstâncias particulares, o peso deste factor nos três momentos considerados fundamentais da sua vida política — a «ditadura» de 1895, a «cruzada moral» de 1903 e a «ditadura» de 1907 — foi decisivo e impeditivo de actos pioneiros ou antecipadores da mundividência política dos anos 10 e 20 do século XX.
No capítulo III, «As reformas políticas de 1895» (pp. 65-103), no IV, «O franquismo na oposição (1901- -1906)» (pp. 105-136), e no V, «O franquismo no poder (1906- -1908)» (pp. 137-169), Rui Ramos tece num estilo cronístico muito do seu agrado e agradável para o leitor comum (não especialista) a narrativa da demonstração historiográfica da sua hipótese oportunamente formulada. Franco, quer na importante, ainda que efémera e frustrante, experiência governativa como ministro do Reino do gabinete regenerador de Hintze Ribeiro (22 de Fevereiro de 1893 a 7 de Fevereiro de 1895), quer na «travessia do deserto» de 1901 a 1906 após a sua saída do Partido, onde desde sempre militara, com um punhado de amigos que haveriam de ajudá-lo a fundar o Partido Regenerador Liberal, quer na fase vertiginosa e atribulada em que ascendeu, finalmente, ao poder pela mão do rei, o seu lema e o seu fim tanto no discurso como nas suas propostas de reforma político-administrativa exibem uma coerência e uma continuidade de propósitos que o articulam com todos os que no seu partido e noutros quadrantes (progressistas e até republicanos) propugnavam por uma correcção de vícios e de fragilidades do sistema monárquico-constitucional.
Num sexto e último capítulo, «Franco depois do franquismo: o apoliticismo liberal» (pp. 171-181), antes das «Conclusões» (pp. 183- -193), o autor sublinha o facto, para ele incontornável, de João Franco se ter limitado a exercer uma autoridade que lhe vinha directamente do rei — morto este, findara, por completo, a sua capacidade e legitimidade de intervenção política, exilando-se para a Riviera francesa, onde digeriu o fracasso da sua experiência reformista e não mais voltou à vida política activa, limitando-se a preparar para a posteridade o seu testemunho memorialístico, de que se conhece apenas a compilação de cartas que D. Carlos lhe escreveu. E a elogiosa carta dirigida em 1929 a António de Oliveira Salazar (1889-1970) após ter apreciado o relatório que este elaborara como ministro das Finanças, convertida na grande prova da afinidade do franquismo com os regimes ditatoriais do séc. XX, não representou a adesão ao Estado Novo, ainda nem sequer nascido, mas apenas a preocupação de um moribundo (Franco morreria pouco depois) pelo estado da res publica portuguesa.
Nas «Conclusões», Rui Ramos centra-se em dois tópicos fundamentais. Debate, no primeiro, a pretensa relação, postulada pela historiografia até hoje, entre a «ditadura» de 1907 e as ditaduras surgidas após 1918 em países como a Itália, a Rússia e Portugal, para concluir que não pode confundir-se o «autoritarismo» de Franco com a rejeição do liberalismo, porque «as origens do espírito reformista que animava Franco não estavam na rejeição do liberalismo, mas sobretudo na tentativa de realizar as soluções para que apontava o debate liberal. Politicamente formado na intersecção do radicalismo universitário e da esquerda constitucional com o oportunismo fontista, Franco era, social e culturalmente, um membro da elite liberal, preso às ideias e aos costumes dessa elite» (p. 184). No segundo, tenta explicar o fracasso do reformismo liberal, avançando com três tipos de razões: a primeira consiste em argumentar que, por um lado, os liberais queixavam-se de estarem sozinhos no país rodeados por bárbaros e indiferentes e, por outro, não se consideravam em perigo; a segunda deriva da anterior e consistiu na manifesta falta de cautela na disputa de preeminências e privilégios a que a elite liberal se entregou de forma infrene e assanhada; a terceira decorre da posição delicada de Franco, que começou por governar com o apoio dos progressistas de José Luciano de Castro para, em 1907, ao entrar em «ditadura», ter permanecido «no poder unicamente porque o rei, no âmbito das suas prerrogativas constitucionais, assim o decidiu» (p. 191), tendo sido este o seu grande trunfo e a sua maior fragilidade.
Uma «Cronologia» sucinta, mas muito oportuna e esclarecedora, e uma «Bibliografia» completa e útil rematam o ensaio, que merece, para concluirmos, uma apreciação global fixada em algumas breves notas.
E a primeira nota a destacar respeita à estratégia discursiva usada pelo autor, que lhe permite agarrar bem o leitor através de um vasto naipe de imagens e de outros efeitos literários, mas não serve com igual eficácia a demonstração cabal e científica da hipótese formulada logo no início do estudo. Um recurso mais extensivo e frequente à citação de fontes variadas e reveladoras da mentalidade, do temperamento e dos vectores essenciais da acção política de João Franco daria uma consistência maior a uma hipótese bem concebida e bastante verosímil.
Uma segunda nota traz à colação a tese do reformismo liberal que pode ser, em nossa opinião, substituída, com maior proveito de inteligibilidade, pelo reformismo democrático e autoritário para significar que o segmento da «elite liberal» a que João Franco se associou já não se limitava a reproduzir a matriz liberal de vintistas e de cartistas e ia mais longe, apostando num claro reforço da democratização do sistema monárquico- constitucional à luz do binómio positivista da ordem e do progresso — o mesmo, aliás, que fundamentou a aposta revolucionária e regeneradora do republicanismo português da geração activa, ou geração de 90. E esta inflexão democrática e até socializante (socialismo utópico/filantrópico e orgânico) não foi, nem tinha de ser, incompatível com tácticas e derivas autoritárias que convertessem o Executivo em motor indispensável de modernização política, económica e social de Portugal. Paul Deroulède, no último quartel de Oitocentos, na França da III República, proclamara que se podia ser democrata sem ser parlamentarista. Proclamara a possibilidade doutrinária de uma democracia autoritária (comparável, mutatis mutandis, ao presidencialismo norte e sul-americano). Os republicanos viriam a ser bastante contaminados por este desiderato, apesar de nunca o terem assumido completamente, salvo em raros e efémeros episódios — a governação de Pimenta de Castro com a cumplicidade de Manuel de Arriaga e a República Nova de Sidónio Pais 7 —, mas sempre patente, desde o manifesto de 1890 do Partido Republicano Português (PRP) a configurar um partido único de vanguarda revolucionária até à praxis do PRP/Partido Democrático liderado por Afonso Costa (1911-1918). João Franco esboçou sinais de que lhe agradaria esse caminho, mas não tinha perfil psicológico, nem bojo ideológico suficiente, nem tão-pouco um bloco coerente de apoio que o impulsionassem decididamente por aí.
Uma terceira e última nota para sublinhar que as razões apontadas por Rui Ramos para o fracasso do suposto reformismo liberal são muito específicas, insuficientes e perdemse no universo multifactorial (político, social, económico, psicológico, religioso, etc.) que entretece dinamicamente o processo histórico e para a explicação do qual se inventaram as noções operatórias de estrutura e de conjuntura, que, em nossa opinião, permanecem úteis, se bem usadas. Com efeito, há múltiplos factores estruturais e conjunturais que não podem deixar de ser tidos em conta e daí que nos pareça indispensável evoluir para uma síntese operativa dos aspectos articuláveis e complementares de diferentes achegas — a narrativa como base da história compreensiva praticada por Rui Ramos e outros historiadores; a historiografia total orientada para o político por René Rémond e seus colaboradores; a «erudito-metódica», utilíssima, se aplicada apenas à heurística e à crítica rigorosa das fontes. Não se trata, obviamente, de uma receita, mas de uma prevenção teórico-metodológica global face à quase intangível complexidade do humano e do social.
Armando Malheiro da Silva
1 Cf. Rui Ramos, «A causa da história do ponto de vista político», in Penélope, Lisboa, 5 (1991), pp. 27-47.
2 Cf. Maria de Fátima Bonifácio, Apologia da História Política: Estudos sobre o Século XIX Português, Lisboa, Quetzal Editores, 1999, pp. 71-72.
3 V. José Miguel Sardica, A Dupla Face do Franquismo na Crise da Monarquia Portuguesa, Lisboa, Edições Cosmos, 1994.
4 Cf. A. H. de Oliveira Marques, História de Portugal desde os Tempos mais Antigos até ao Governo do Sr. Pinheiro de Azevedo, vol. 2, Lisboa, Palas Editores, 1977, 4.ª ed., pp. 110 e ainda 112-114.
5 V. Amadeu Carvalho Homem, Da Monarquia à República, Viseu, Palimage, 2001, pp. 125-134.
6 V. Memória de Portugal: o Milénio Português, dir. Roberto Carneiro e Artur Teodoro de Matos, Lisboa, Círculo de Leitores, 2001, p. 477.
7 V. Armando B. Malheiro da Silva, Sidónio e Sidonismo: História e Mito, dissertação de doutoramento, 2 vols., Braga, Universidade do Minho, 1997.