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Análise Social
versão impressa ISSN 0003-2573
Anál. Social n.177 Lisboa out. 2005
Luísa Schmidt, Ambiente no Ecrã. Emissões e Demissões no Serviço Público Televisivo, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2003, 465 páginas.
Eduardo Cintra Torres
Retomando a dissertação de doutoramento da autora em 1999, esta obra baseia-se num amplo levantamento temático de um media: todas as notícias, num total de 1374, e todos os programas, num total de 9155, sobre temas ambientais na RTP desde 1957 a 1995. Foram visionados «cerca de 786» itens. Raramente se encontra um trabalho na área dos media com um tão extenso corpo de material empírico. Este levantamento permitiu à autora criar séries integrais e, através delas, estabelecer uma periodização histórica da atenção do único e depois principal canal de televisão nacional aos temas ambientais.
O percurso histórico dos temas e a sua representação mediática podem, por isso, almejar um grande detalhe, que atinge até o desnecessário, como as estatísticas acerca das famílias de animais mais ou menos exibidas na programação televisiva (as aves, os animais aquáticos e os mamíferos marinhos...). As séries estatísticas revelam que, em geral, a televisão aborda os temas quando eles se tornam social e mediaticamente relevantes noutros países e com repercussões em Portugal, seja a propósito da crise energética, da poluição ou da globalização dos problemas ambientais com as grandes catástrofes. Um dado surpreendente é o da quase total desatenção mediática com o ambientenos primeiros anos depois do 25 de Abril, com quebra relativamente ao período anterior, indicando que o novo espaço público democrático e a construção da sociedade civil não passavam pelos problemas ambientais (p. 403). O tema ambiente só se «banaliza» a partir de 1980 (p. 157).
Partindo de uma «articulação vivaz» (p. 33) entre o ambiente e os media, a obra estabelece a correlação entre a sociologia do ambiente e a sociologia da comunicação (p. 17), mas parte da televisão para chegar ao ambiente: sendo a base fundamental do trabalho as representações televisivas do ambiente (cotejadas ainda pela informação num media escrito, a revista Vida Mundial até 1973 e depois o Expresso), a autora assume o ambiente como uma construção cultural. A «realidade» entrevista é a «realidade» cultural acerca da «realidade» factual: citando Mauro Wolf, a autora afirma que a «cultura telemitida» assume um papel essencial como «núcleo central da produção simbólica na sociedade actual» (p. 54). A escolha da articulação entre as duas sociologias, do ambiente e da comunicação, através da análise da televisão fica justificada com a asserção de Luhmann «a sociedade é certamente um sistema sensível ao ambiente, mas só o observa mediante a comunicação» (cit. p. 64).
A partir daí, a reflexão da incidência informativa sobre o ambiente foi feita através de «três níveis de articulação» entre ambiente, media e opinião pública: a perspectiva da agenda-setting function; a «perspectiva construtivista», que considera os problemas ambientais, «acima de tudo», uma construção dos media; a «perspectiva interaccionista», que toma em conta a relação entre os diversos agentes de produção mediática (p. 65).
A focagem da investigação nos materiais mediáticos fez incidir o desenvolvimento deste trabalho nas duas primeiras perspectivas, embora, quanto à terceira, a autora mostre a evolução da presença dos vários actores da informação ambiental (políticos, associações, «outras vozes», etc.). A abordagem do ambiente a partir de uma perspectiva exterior aos media teria permitido fechar o círculo desta ampla investigação mediática. Como a própria autora refere, «só compreendendo e enquadrando o ambiente num contexto mais vasto é que ele ganha um sentido específico nos tempos actuais» (p. 280).
Ao analisar a incidência das questões ambientais no universo simbólico da televisão pública, a autora estabelece uma cronologia acertada dos seus vários momentos ou «lanços», que constituem, como noutros países, um elemento caracterizador do clima social e cultural no mundo ocidental nas últimas décadas do século XX. Fica plenamente estabelecido o objectivo da investigação: «trabalhar a dimensão social das questões ambientais por via da sua expressão mediática, mais particularmente as metamorfoses por que foram passando as representações e valores ambientais na televisão portuguesa» (p. 95). É possível que a dimensão histórica e as ferramentas da história pudessem ter contribuído para darem uma outra profundidade de análise ao material recolhido, em simultâneo com a sociologia do ambiente e a sociologia dos media.
A autora procura ultrapassar a ausência de uma análise «exterior» aos materiais mediáticos considerando a televisão em simultâneo «grande espelho da realidade social» e «janela» que se abre como mundo diferente daquele que conhecemos (pp. 24 e 47), quer dizer, como lugar de ocorrência de factos sociais em formato cultural.
Nesse domínio, fica plenamente provada a desatenção continuada da sociedade portuguesa às questões ambientais, espelhada nas «demissões» do serviço público e na tentativa de recuperação de um noticiário ambiental de proximidade apenas quando tem a concorrência dos canais privados, a partir de 1992-1993: «serão as novas televisões privadas [...] que vêm dar grande projecção mediática a todo este conjunto e sobretudo alterar a forma de abordagem dos problemas ambientais, catapultando-os para o palco das preocupações políticas e públicas» (pp. 412-413).
A alteração da cobertura televisiva dos temas ambientais com a chegada das privadas, que fica ilustrada com este trabalho, permitiria uma reflexão mais aprofundada sobre a questão do «espelho»: até onde espelhou a RTP as questões ambientais nas décadas anteriores? Até onde se verificou nesse período uma articulação equilibrada entre os media, a sociedade e os seus actores?
A «demissão» da RTP1 nas quatro décadas observadas é o «insistente desfasamento» entre a realidade ambiental degradada e a imagem de um país «limpo e lindo». A «dimensão ambientalista» só entra na RTP «por contaminação», e «não por cultura própria». Constitui, assim, um «caso tenaz de autobloqueio» com «vinte anos de ausência do discurso ambiental na televisão portuguesa» (pp. 423-425). A esta conclusão de fundo, a autora acrescenta, porém, que, se, por um lado, a televisão pública é palco de «demissões», por outro, tem dado um «contributo decisivo» para a compreensão da opinião pública sobre o ambiente (p. 20). Pelo que, pode dizer-se, o media é, em simultâneo, fomentador e inibidor do desenvolvimento do espaço público que em si mesmo contém.
Ultrapassando essa constatação, a autora parece esperar da televisão do Estado que tivesse sido ou seja ainda mais do que espelho e também ainda mais do que janela, pois considera que ela deveria reflectir preocupações ambientais que não eram ainda do seu tempo na política, na administração, no Estado, na sociedade, isto é, que a TV pública deveria assumir-se como uma espécie de vanguarda ideológica do país: «a televisão pública acabou por não dinamizar uma cultura ambientalista consistente, articulando o local com o global e fazendo a extrapolação cívica e política necessária a uma responsabilização individual e colectiva» (p. 427). Seria importante debater até que ponto se pode esperar de um media neste caso com particulares responsabilidades por ser público e «hegemónico» que espelhe o que a sociedade e as suas estruturas, a começar pelo Estado, ainda não incorporam, neste caso os problemas ambientais enquanto problemas sociais. Em que circunstâncias podem ou devem ser ou são os media não só «espelhos» e «janelas», mas também a própria luz que permite aos seus públicos e audiências ver o que o Estado e mesmo as restantes elites ainda não vêem? Esta obra fornece material suficiente para um debate posterior.