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Análise Social
versão impressa ISSN 0003-2573
Anál. Social n.178 Lisboa 2006
Álvaro Garrido, O Estado Novo e a Campanha do Bacalhau, Rio de Mouro, Círculo de Leitores, 2003.
Nuno Estêvão Ferreira
Resultado de uma dissertação de doutoramento em História Económica na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (2003), a presente obra problematiza as evoluções verificadas no sector bacalhoeiro ao longo do Estado Novo. A questão orientadora da pesquisa situa-se na relação estabelecida entre o poder do Estado e a regulação que o mesmo Estado exerce sobre o abastecimento de bacalhau. A reorganização do comércio importador, o fomento da produção, a intervenção nos conflitos entre os interesses de armadores e armazenistas, encontram-se ao serviço do reforço do Estado e da estabilização do regime.
Uma questão prévia merece referência. Algumas das expressões utilizadas pelo autor podem gerar uma certa controvérsia por não estarem ancorados nas fontes, mas são devidamente justificadas pelo próprio. Também por isso as adoptamos. Referimo-nos à «campanha do bacalhau», em relação com a campanha do trigo (p. 135), «bacalhau político», por analogia com o «pão político», e ainda «bacalhau corporativo» (p. 424).
As obras de Manuel de Lucena, Howard Wiarda, Philippe Schmitter e, mais recentemente, Fátima Patriarca constituem referências maiores num campo ainda não suficientemente explorado. Apesar de não ser uma obra sobre o corporativismo, nem sequer sobre a organização corporativa das pescas, o conjunto de hipóteses colocadas e de explicações avançadas relaciona-a com aquela reduzida galeria. Acresce que será proximamente complementada por uma biografia política do «patrão das pescas», Henrique Tenreiro. A reabilitação do poder do Estado e a prevenção da sua erosão social como principais justificações para a edificação do complexo de organismos corporativos são os mais evidentes contributos desta investigação.
De início, um conjunto de constatações. Durante o Estado Novo, a pesca do bacalhau assume uma dimensão sem precedentes, do ponto de vista económico e social. Do programa de reorganização que é implementado resulta uma, igualmente extraordinária, relevância política por parte de actores e instituições do sector das pescas. A campanha do bacalhau acompanha a liderança política de Salazar, assim como os principais ciclos económicos do regime.
Centrada em torno da campanha do bacalhau, a obra é naturalmente balizada pelo seu arranque, em 1934, e termo, em 1967. Naquele ano é criada a Comissão Reguladora do Comércio do Bacalhau. Coordenar e fiscalizar, técnica e politicamente, todo o processo de abastecimento, compreendido entre a produção e o consumo, são os seus objectivos. Em 1967 são derrogados por portaria do secretário de Estado do Comércio os principais instrumentos proteccionistas do sector. O fim da tabela de preços e do condicionamento das importações representa a falência de uma obra de mais de trinta anos e com sinais de insustentabilidade há muito evidenciados.
Numa primeira parte, o autor percorre os antecedentes da campanha. O programa de fomento da pesca do bacalhau levado a cabo por Salazar contraria a posição que Portugal há muito ocupava no mercado internacional do produto salgado seco. Para além de o país ser caracterizado como um grande importador, também o sector não constituía internamente uma força manifestamente influente, pelo menos em comparação com o cerealífero. As razões para a importância que lhe vai ser conferida radicam, como resulta dos escritos universitários que o futuro ditador produz em 1918, na relação entre a questão das subsistências e o poder do Estado. As políticas de abastecimento serão concebidas como um instrumento decisivo para o fortalecimento do Estado. Localizada no campo da economia, a reelaboração do problema remete para um programa de manifesto cariz político e que tem como principal expressão a proposta do «Estado ditador de víveres» que é então formulada por Salazar.
A terceira parte é dedicada à extensa rede de instituições criadas, ao sentido que assume a organização no seu conjunto e às resistências verificadas. A primeira preocupação é a organização e o enquadramento do trabalho. Asseguravam-se, assim, as condições mínimas para que não fosse posto em causa o objectivo último do programa de fomento da produção, que, logo de imediato, teria outro passo decisivo com a agremiação dos patrões. Como elemento de continuidade ao longo de todo o período, a regulação vertical e subordinada a um organismo de coordenação económica. O edifício resultante contraria, em absoluto, a doutrina e o discurso oficial. A pirâmide corporativa é invertida. No topo, a todo-poderosa coordenação e o comércio. Na base, os frágeis organismos do capital e do trabalho relativos à produção. Ainda no âmbito dos contrastes do corporativismo português situa-se a criação de uma sociedade mútua de seguros e de um organismo cooperativo. Os rituais e as representações ideológicas que envolvem a campanha do bacalhau convergem no intuito de um projecto mobilizador. Entretanto, a organização da pesca e do bacalhau cresceu a um ritmo extraordinário, gerando um complexo de instituições administrativas com uma dimensão empresarial ainda mais assinalável e nem sempre susceptível de ser enquadrada num âmbito estritamente corporativo. No centro deste autêntico subsector do poder situa-se Henrique Tenreiro, que transformou uma delegação do governo junto dos grémios obrigatórios do sector numa espécie de ministério informal.
No passo seguinte da obra são analisados os principais indicadores económicos da campanha do bacalhau ao longo do tempo. Como resulta das séries apresentadas, homens, navios e capitais foram sujeitos a uma regulação fundamentalmente política, e não de acordo com critérios de eficiência económica. Se a produção nacional acabou por não substituir as importações ao nível do que havia sido prometido no arranque da campanha, o consumo foi pouco sensível a alterações nos factores conjunturais básicos. Será, obviamente, nos preços que é mais evidenciada a gestão política, sempre em nome da ordem social e da autoridade do Estado.
Perceptível e anunciado na quarta parte, o princípio do fim da campanha do bacalhau é problematizado no termo da obra. No pós-guerra é a regulação autoritária dos abastecimentos, como instrumento para reforçar a autoridade do Estado e garantir a paz social, que persiste como a preocupação central da economia política de Salazar. Durante toda a década de 50, os preços são administrativamente contidos. No sector do bacalhau são tão evidentes os impulsos reformistas como os seus bloqueamentos. Propostas a partir do Ministério da Economia, as reformas do sector começam por ser travadas pela poderosa organização que Henrique Tenreiro liderava e também não encontram receptividade na Presidência do Conselho. Bastaria uma alteração na oferta de provisões externas para que se verificasse a implosão do sector. Tal mudança ocorreria e tornaria insustentável a subvenção estatal dos preços. O fim da cartelização estatal das importações e a inevitável liberalização dos preços tinham de facto lugar em 1967. Mais do que a adesão à EFTA, que não se compadecia com o prolongamento do condicionamento das importações, ou do que os ímpetos reformistas que alguns tecnocratas tenham encetado, foram as finanças do Estado a ditar as medidas de 1967.
Aparentemente prosaico, o problema do bacalhau possuiu sempre uma determinante vertente de natureza política. Com ele podemos acompanhar a ascensão, a consolidação do poder e a queda de Salazar, da sua política económica e do seu projecto de Estado. O seu afastamento em 1968 não resulta das vicissitudes deste sector económico, que nem sequer deve ser confundido com as pescas. Resolução preventiva das crises de abastecimento, reorganização do comércio importador, a intervenção no sector das pescas implicou a construção de um vastíssimo e poderoso aparelho institucional que terá até excedido as intenções iniciais e constituiu uma das obras de auto-referência do Estado Novo.
A terminar, algumas observações de natureza formal, que, até por isso, não colidem com o interesse e a relevância da obra no âmbito da história contemporânea de Portugal, nem sequer os afectam. Algumas das opções gráficas e estéticas não facilitam a leitura e a interpretação. Não nos referimos propriamente às muitas fotografias, mas sim à apresentação da sistematização adoptada por partes e capítulos. Reportadas ao conjunto do trabalho, as conclusões (pp. 421-429) estão integradas no capítulo 5 da última parte. O interesse do índice onomástico é evidente, mas a profusão de abreviaturas ou siglas utilizadas requeria um desdobramento no início. Por outro lado, a importância deste trabalho poderia justificar uma difusão não circunscrita aos sócios do Círculo de Leitores.