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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.183 Lisboa abr. 2007

 

Jon C. Pevehouse, Democracy from Above. Regional Organizations and Democratization, Cambridge, Cambridge University Press, 2005, 6 figuras e 24 tabelas, 248 (mais xiv) páginas, hardcover.

É sobejamente reconhecido que a democratização foi feita por vagas, no sentido em que determinados conjuntos de países sofreram transições de regimes mais ou menos em simultâneo. É também reconhecido que a democratização ocorreu de forma aglomerada, isto é, os países que experimentaram transições de regime situavam-se frequentemente junto de outros que estavam a atravessar o mesmo processo. As vagas põem em evidência a importância do tempo como factor causal, enquanto os aglomerados sublinham a importância da geografia.

Este livro debruça-se sobre esta última: o seu principal objectivo é demonstrar a importância da geografia, ou melhor, da geografia institucionalizada.

Diz-se às vezes que um bom indicador da probabilidade de um qualquer país ser uma democracia é a sua distância de Bruxelas. Não se quer com isto dizer que os flamengos ou os valões sejam portadores de uma doença contagiosa que venha espalhar o vírus democrático à sua volta. O chavão refere-se antes à correlação entre geografia e regime político, que, provavelmente, se deve a um artefacto internacional recente: a União Europeia (UE). Contudo, a UE não é apenas mais uma organização regional, mas o caso mais desenvolvido — e possivelmente único — de integração regional. É de notar a total ausência de referências a processos de integração no livro de Jon Pevehouse. A sua argumentação diz respeito a organizações regionais internacionais, independentemente de serem de cariz defensivo ou económico e independentemente do grau de vinculação dos seus acordos constitutivos. O que propõe, essencialmente, é que as organizações regionais podem facilitar as transições para a democracia, assim como a sobrevivência da democracia; e a variável determinante aqui não é o tipo de organização, mas a sua densidade democrática. Com este conceito, Pevehouse está a referir-se à percentagem de membros permanentes que são democráticos.

As dimensões internacionais da democratização foram relativamente descuradas no seminal e inovador livro editado em 1986 por O'Donnell, Schmitter e Whitehead. Aos poucos acabaram por reconhecer esta lacuna, procedendo a investigações suplementares que permitissem abordar um tema que depois do fim da guerra fria ganhou uma visibilidade acrescida. A réplica mais elaborada foi um livro editado por Whitehead em 1996 e aumentado em 2001. Nele, os capítulos escritos pelo editor e por Philippe Schmitter propunham quatro mecanismos mediante os quais os processos internacionais podiam afectar as transições domésticas: contágio, controlo, consentimento e condicionalismo. O único que se referia especificamente aos factores regionais era o contágio, enquanto os outros eram, por assim dizer, geograficamente cegos.

Pevehouse vai agora um pouco mais longe. No seguimento dos seus trabalhos anteriores, publicados ao longo dos últimos cinco anos sobretudo em revistas especializadas de topo, argumenta que as organizações internacionais podem exercer — e exercem — uma influência importante sobre os processos de democratização dos seus países membros. Para poder provar esta influência tem de mostrar que os efeitos atribuídos às organizações regionais não se devem nem ao contágio automático nem à exclusiva acção das grandes potências regionais. Além disso, precisa de demonstrar que não são de esperar efeitos semelhantes de organizações globais, tais como as Nações Unidas, ou de instituições financeiras internacionais, tais como o FMI. Fá-lo recorrendo a uma estratégia que combina métodos quantitativos e qualitativos. Primeiro efectua diversos testes estatísticos para mostrar que as organizações regionais estão associadas tanto a transições democráticas (mudança de regime) como à consolidação democrática (sobrevivência do regime). Fazendo um controlo das variáveis contextuais e testando também hipóteses rivalizantes, encontra um elevado grau de correlação entre a pertença — ou adesão — a uma organização regional e a primeira etapa de uma transição, designadamente a liberalização. A correlação também se verifica fortemente quanto à consolidação, mas não é tão expressiva na segunda fase de uma transição, nomeadamente na finalização (em que se passa de uma democracia parcial para uma democracia total). A segunda estratégia consiste em levar a cabo um conjunto de casos de estudo com o objectivo de desvendar os mecanismos causais que se encontrem por detrás desta relação estatística. Com esse fito, o autor selecciona seis casos na Europa e na América Latina: Grécia, Guatemala, Hungria, Paraguai, Peru e Turquia. A ausência de casos africanos ou asiáticos é justificada como um corolário desta teoria: como estes continentes apresentam poucas organizações regionais e aquelas que existem possuem pouca densidade democrática, não se espera que tenham uma influência sistemática sobre os seus países membros.

Concentremo-nos primeiro nos testes estatísticos. As variáveis são definidas de forma precisa, são conduzidas meticulosamente, utilizam duas bases de dados distintas (Polity98 e Gasiorowski, 1996), de forma a poderem fazer uma dupla verificação, e consideram todas as hipóteses alternativas imagináveis. Além do mais, os resultados são consistentes e quase sempre significativos. A impressão com que o leitor fica é a de que não há grande objecção a levantar à tese do autor. O problema é que para construir o seu caso Pevehouse expõe as fraquezas de análises estatísticas semelhantes às que usa para basear o seu argumento. Por exemplo, os regimes militares serão mais propensos à ruptura do que os regimes pessoalistas de partido único (como Guedes afirma ter provado) ou será ao contrário (como conclui Gasiorowski com a concordância de Pevehouse)? Na mesma veia, será o nível de desenvolvimento um bom indicador da democratização (como afirmam Epstein, Bates, Goldstone, Kristensen e O'Halloran) ou não (como argumentam Przeworski, Álvarez, Cheibub e Limongi)? Mais estreitamente relacionado com o tópico do livro, será a experiência passada com a democracia um bom prenúncio da probabilidade de completar a transição (como defendem Linz e Stepan e a base de dados Polity98) ou não (como sustentam Przeworski et al. e a base de dados Gasiorowski)? Por último, será que uma grande diversidade etnolinguística tem pouca influência no processo de conclusão (como sustenta Pevehouse) ou uma influência negativa (como sustentam Linz e Stepan)? Estes exemplos levantam a questão extremamente incómoda da fiabilidade das séries de dados disponíveis e de saber em que medida os métodos estatísticos actuais são apropriados para este tipo de investigação.

Os casos de estudo abrem a caixa preta da «alta correlação» e conduzem o leitor aos processos causais que lhe estão subjacentes. O facto de esta parte da investigação se basear exclusivamente em factores secundários pouco afecta a força do argumento, já que não se pretende provar a associação, mas ilustrar as causas subjacentes. Pevehouse propõe dois conjuntos de mecanismos, um para explicar as transições e o outro a consolidação. Avançam-se inicialmente três mecanismos de transição: pressão dos outros membros da organização regional, efeitos de aquiescência e legitimação de um regime interino. Há que notar que os efeitos de aquiescência têm dois aspectos: compromisso de escolha, mediante o qual a elite governativa procura assinalar o seu compromisso com a democratização ancorando o seu país a uma conjuntura institucional credível, e a socialização, pela qual os agentes domésticos são «reeducados» nas virtudes da democracia pelos seus congéneres regionais. Depois de analisar os casos da Hungria, Peru e Turquia, acrescenta-se um mecanismo adicional a esta lista: apoio financeiro, verificado no caso húngaro. Até aqui nada a objectar: a maior parte dos mecanismos enunciados por Pevehouse assemelha-se aos propostos por Whitehead e Schmitter: pressão e apoio podem ser entendidos como condicionalismo, enquanto a aquiescência se assemelha claramente ao consentimento. Pode igualmente equacionar-se a legitimação com o contágio. Contudo, a inovação introduzida por este livro é mais analítica do que conceptual: mostra que estes mecanismos actuam a nível regional, e não a um nível superior — global — ou inferior — bilateral.

Os mecanismos de consolidação são também inicialmente três: vinculação de vencedores e vencidos, a legitimação psicológica e custos de audiência e aliciamento de grupos societais. Após a análise dos casos da Grécia, Paraguai e Guatemala, um mecanismo adicional é acrescentado à lista: a mudança institucional, que se verificou no caso da Grécia. O facto de que só nos casos europeus é que apareceram mecanismos não previstos anteriormente (Hungria e Grécia) pode sugerir que a União Europeia criou dispositivos de que as outras organizações regionais não dispõem. O autor alude a esta possibilidade, mas não a desenvolve. Em qualquer caso, o mecanismo de consolidação mais eficaz apresentado por estes casos de estudo é a vinculação dos vencidos: este tipo de condicionamento é um poderoso dissuasor das forças anti-regime, já que qualquer benefício da organização acabaria se a democracia vacilasse.

Existe, no entanto, um caso que não segue o caminho traçado por esta teoria: a Turquia. Embora de facto se encaixe no modelo relativamente à transição para a democracia, ou melhor, à redemocratização, não corresponde quando se trata de consolidação — ou apenas de sobrevivência. O autor encara esta excepção com frontalidade sugerindo uma série de hipóteses alternativas que poderiam explicar este desajustamento entre expectativas e resultados. Sobressaem duas: a importância geo-estratégica e a previsão de ameaça interna. A primeira situa-se a nível internacional. Diz respeito à avaliação que a organização regional e os seus estados membros fazem do papel que o país em questão desempenha: se é considerado crucial para os objectivos da organização, o risco de alienar o seu novo governo pode comprometer o desejo de preservar o regime democrático. A segunda situa-se a nível doméstico. Diz respeito à previsão de que os custos de um golpe, por muito altos que a organização regional possa torná-los, não suplantam os benefícios que se considera que dela irão advir. Abre-se assim uma nova via de investigação: Pevehouse explica competentemente como é que as organizações regionais promovem e protegem a democracia e quais delas estão aptas a fazê-lo; aponta também para a necessidade de conduzir mais investigações para melhor compreender quando é que intervêm. Em todo o caso, deve considerar-se que os argumentos realistas definem os limites dentro dos quais as organizações regionais intervêm e, eventualmente, têm êxito.

Impõe-se agora um comentário final. O autor afirma que «o êxito das instituições regionais advém da sua capacidade de incentivar, tanto positiva como negativamente, os actores domésticos», querendo com isto dizer que a interacção não é feita exclusivamente de cima para baixo. Pelo contrário: as organizações regionais actuam exercendo influência sobre a avaliação que os actores domésticos, tanto pró como antidemocráticos, fazem dos custos/benefícios e funcionando como uma forma onde os vizinhos antigolpe se manifestam e exercem pressão. Mas podem também ser instrumentalizadas pelos actores domésticos, que podem usá-las para promover a mudança de regime ou para aumentar a longevidade democrática. «Democracia superior» constitui por isso uma imagem forte que não faz justiça ao argumento do livro. É a partir de dentro do Estado que a organização superior é chamada a actuar.

Trata-se de um livro bem pensado. Embora tenha sido desenvolvido a partir de uma tese de doutoramento, é um trabalho maduro que aborda todas as questões que a sua leitura possa suscitar. O autor nunca perdeu o argumento principal de vista, ao mesmo tempo que aborda a maior parte das críticas ou hipóteses contrárias que terá, sem dúvida, encontrado durante a fase de investigação. Todos os conceitos são cuidadosamente definidos, as hipóteses são claramente especificadas e a argumentação é estruturada sem falhas. Este livro irá certamente tornar-se uma obra de charneira por muitos anos para qualquer pessoa interessada na relação entre democracia e organizações regionais. Além disso, constituirá um marco para aqueles que consideram que estreitar o fosso entre a política comparada e as relações internacionais não pode ser adiado por mais tempo.

 

Bibliografia

Epstein, David L., Bates, Robert, Goldstone, Jack, Kristensen, Ida, e O'Halloran, Sharyn (2006), «Democratic transitions», in American Journal of Political Science, 50 (3), pp. 551-569.

Gasiorowski, Mark J. (1996), «An overview of the political regime change dataset», in Comparative Political Studies, 29 (4), pp. 469-483.

Geddes, Barbara (1999), «What do we know about democratization after twenty years?», in Annual Review of Political Science, 2, pp. 115-144.

Linz, Juan J., e Stepan, Alfred (1996), Problems of Democratic Transition and Consolidation, Baltimore, MD, Johns Hopkins University Press.

O'Donnell, Guillermo, Schmitter, Philippe C., e Whitehead, Laurence (eds.) (1986), Transitions from Authoritarian Rule, 4 vols, Baltimore, MD, Johns Hopkins University Press.

Polity database (1998), Current URL, http://www.cidcm.umd.edu/inscr/polity/.

Przeworski, Adam, Alvarez, Michael E., Cheibub, Jose, e Limongi, Fernando (1996), «What makes democracies endure?», in Journal of Democracy, 7, pp. 3-36.

Schmitter, Philippe C. (2001), «The influence of the international context upon the choice of national institutions and policies in neo-democracies», in Laurence Whitehead, op. cit.

Whitehead, Laurence (2001), «Three international dimensions of democratization», in Laurence Whitehead (ed.), The International Dimensions of Democratization. Europe and the Americas, Oxford, Oxford University Press.

 

Andrés Malamud

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