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Análise Social
versão impressa ISSN 0003-2573
Anál. Social n.184 Lisboa 2007
Augusto Santos Silva, A Sociologia e o Debate Público — Estudos sobre a Relação entre Conhecer e Agir, «Biblioteca das Ciências Sociais», col. «Sociologia, Epistemologia », Porto, Edições Afrontamento, 2006.
O livro que aqui se recenseia é o mais recente trabalho de um dos mais destacados sociólogos portugueses que nos últimos anos tem centrado a sua actividade profissional no campo político (enquanto dirigente partidário, deputado e membro do governo) sem, no entanto, ter deixado de exercer algumas intervenções pontuais no campo académico, especialmente em conferências, congressos e outras iniciativas características da actividade deste. É o produto de parte desta actividade que Santos Silva nos apresenta nesta obra, nomeadamente um conjunto de intervenções efectuadas em encontros de carácter científico de âmbitos diversos, embora sempre na órbita das ciências sociais e da sociologia em particular.
O primeiro capítulo procura responder à interrogação «podemos dispensar os intelectuais?» (p. 13). Com este objectivo, percorre o trajecto de mudança da condição intelectual desde a sua expressão clássica, encarnada por Zola no caso Dreyfus (p. 15), até às transformações ocorridas no século XX, pelo desenvolvimento das indústrias culturais, pela generalização da comunicação e da cultura de massas e, finalmente, pela progressiva perda de autonomia do campo cultural e da sua crescente subordinação às leis do mercado. Contudo, diz-nos Santos Silva, os intelectuais foram também eles responsáveis pelo seu próprio declínio; «ao pisarem os próprios princípios de autonomia do campo que lhes permitiam legitimar a sua acção» (p. 19), tornaram-se funcionários, engajaram- -se politicamente, projectando uma inevitável visão maniqueísta da sociedade circundante. A própria emergência e consequente especialização e profissionalização do conjunto de disciplinas incluídas nas ciências sociais em muito contribuíram para a erosão progressiva da capacidade heurística do ensaio intelectual. No entanto, resta ainda um lugar para o intelectual nas sociedades contemporâneas, no exercício da «comunicação e da ‘tradução’ entre diferentes quadros culturais e simbólicos e a actividade de interpretação dos ‘textos’, palavras, sons, movimentos e imagens que informam a nossa contemporaneidade» (p. 26), a partir de «lugares de confluência: entre o conhecimento científico, a criação literária e artística e o debate das ideias» (p. 29).
O segundo capítulo versa sobre o contributo específico da sociologia para a sociedade: uma cultura científica enquanto forma de identificar, enunciar, analisar e resolver problemas (p. 32); um conjunto estruturado de saberes e competências profissionais, fórmula de acção, definição de objectivos e realização de escolhas (pp. 33-34); um potencial crítico, questionador de evidências e problematizador do real. Da identificação dos contributos, Santos Silva passa ao recenseamento das condições de desenvolvimento dos mesmos (p. 35), o primado da investigação fundamental, a abertura às restantes ciências sociais, o pluralismo teórico, a consciência dos limites do saber disciplinar, a investigação empírica e crítica epistemológica. Esta reflexão desagua subsequentemente na abordagem do modo desejável de articulação entre conhecimento sociológico e intervenção pública, nomeadamente em aspectos como a política científica e educativa e o relacionamento com entidades contratantes. A apreciação deste conjunto de problemas conduz o autor à enunciação de um vislumbrado paradoxo na sociologia portuguesa: entre, por um lado, os benefícios da pluralidade paradigmática e da prática de investigação empírica e o seu reduzido aproveitamento na praxis social (p. 43) e, por outro, a oscilação entre a vinculação da investigação à análise de práticas propiciadoras da mudança e emancipação, por oposição ao conformismo e convencionalismo tido aquando da investigação por encomenda institucional (p. 43).desagua subsequentemente na abordagem do modo desejável de articulação entre conhecimento sociológico e intervenção pública, nomeadamente em aspectos como a política científica e educativa e o relacionamento com entidades contratantes. A apreciação deste conjunto de problemas conduz o autor à enunciação de um vislumbrado paradoxo na sociologia portuguesa: entre, por um lado, os benefícios da pluralidade paradigmática e da prática de investigação empírica e o seu reduzido aproveitamento na praxis social (p. 43) e, por outro, a oscilação entre a vinculação da investigação à análise de práticas propiciadoras da mudança e emancipação, por oposição ao conformismo e convencionalismo tido aquando da investigação por encomenda institucional (p. 43).
O terceiro capítulo aborda a articulação entre ciência e democracia. No entendimento de Augusto Santos Silva, a influência que as ciências sociais podem deter no espaço público donde emerge a agenda social e política depende fundamentalmente do cumprimento de um conjunto de condições teóricas e institucionais e de relacionamento com o campo social. Há, contudo, alguns aspectos essenciais a preencher com o objectivo de melhorar a utilidade e a influência social por parte das ciências sociais: o aumento do investimento (interacção, socialização e intermediação) por parte dos cientistas sociais na relação com os seus públicos (especialistas e não especialistas, efectivos ou potenciais consumidores, utilizadores e parceiros da pesquisa científica) (p. 58); a transformação da relação dos cientistas sociais com o campo político-mediático, conferindo- lhes mais visibilidade e protagonismo na comunicação da ciência e na transmissão da cultura científica enquanto modo de ser e fazer ciência (p. 60), em substituição da intermediação entre ciência e público habitualmente efectuada pelos jornalistas/ divulgadores da ciência.
O quarto capítulo discute o variável impacto da educação no esbatimento das desigualdades sociais no âmbito dos países semiperiféricos e periféricos do espaço lusófono. Ao simplismo da associação imediata entre incremento da educação e aumento do desenvolvimento económico e equidade social é contraposta a noção, sociologicamente consolidada, do sistema educativo enquanto reprodutor e legitimador das desigualdades sociais (p. 67). A relação entre educação e democracia é, no entanto, bem mais complexa do que a linearidade proposta por cada um destes caminhos. Santos Silva propõe- nos então quatro temas fundamentais para uma agenda educativa (pp. 68-74): a democratização do processo educativo, o papel do Estado e do mercado nesta dinâmica, o benefício da sua estruturação em rede e, finalmente, o estímulo da produtividade e competitividade através do enraizamento da cultura científica no quotidiano dos cidadãos. O capítulo é rematado com a proposta de três tópicos para uma agenda cultural (pp. 77-80): a análise das configurações e intercomunicação das culturas nacionais no espaço dos países de expressão portuguesa e contextos limítrofes, a definição de um discurso cultural sobre a política da lusofonia e, por último, a articulação destes dois temas no âmbito dos movimentos sociais e das políticas públicas, sublinhando a importância da redução das desigualdades pela afirmação da identidade e da diferença. A democratização educativa em Portugal constitui o tema do quinto capítulo desta obra. Nele são enunciados os números que atestam o crescimento generalizado do acesso ao sistema educativo português, bem como o debate acerca do sucesso do mesmo, versando temas como as competências e saberes, a avaliação, os curricula e a diferenciação pedagógica. Neste capítulo, Santos Silva traça o roteiro dos desenvolvimentos políticos e doutrinários que orientaram o debate em torno do sucesso educativo em Portugal ao longo dos consecutivos governos democráticos (pp. 87-99), sublinhando a necessidade de mais investigação empírica por parte da sociologia em torno do debate entre, por um lado, a escola massificada, democrática e inclusiva e, por outro, o necessário esforço, exigência e mérito nos processos de aprendizagem e avaliação (p. 100). O sexto capítulo procura abordar as dinâmicas sócio-políticas do desenvolvimento local, não se limitando à sua mera compreensão a partir do contributo das ciências sociais, mas procedendo também à sua suscitação e condução (p. 103). A partir do muito diverso capital de experiência acumulado a partir de processos de desenvolvimento comunitário a partir da sociedade civil, o autor identifica e descreve uma tipologia de actores intervenientes em articulação processual complexa (pp. 107-111). Associando aos actores em presença o trio conceptual formado por «local», «comunidade » e «identidade», é possível entender melhor «a pluralidade de actores, a diversidade das suas orientações de acção e a complexidade dos seus jogos estratégicos» (p. 119). O sétimo e último capítulo retrata a mudança social operada em Portugal desde a década de 60 e a forma como foi apreendida, estudada e comentada pela sociologia portuguesa (nomeadamente pelos seus centros de investigação e investigadores mais produtivos). Nas palavras de Santos Silva, a mudança foi tardia relativamente aos restantes países europeus, mas «rápida, intensa e alargada » (p. 128). Portugal mudou muito substancialmente do ponto de vista demográfico, produtivo, na composição da sua estrutura social e nos estilos de vida. No entanto, as condições, o ritmo e os resultados desta mudança conduziram a situação social portuguesa a uma condição de singularidade, detectável em diversos níveis: no modelo de criação e funcionamento do Estado-providência, no posicionamento face aos movimentos migratórios, entre sociedade de emigração e de acolhimento, na organização familiar e no papel das mulheres na sociedade (pp. 133-136). A investigação sociológica tem correspondido aos desafios analíticos postos pela sociedade portuguesa, «destacando a intensidade da transformação e a singularidade da sociedade assim transformada » (p. 141), prática possibilitada pela própria singularidade da sociologia portuguesa, «muito treinada na abertura interdisciplinar e interparadigmática, muito reflexiva e sem medo de inovar» (p. 141). Esta obra de Santos Silva é, também ela, singular. Trata-se de um conjunto de ensaios breves e de densidade analítica variável acerca da, por vezes, tensa e problemática «relação entre conhecer e agir» própria da sociologia e dos sociólogos nas sociedades contemporâneas. É, no entanto, um trabalho de natureza parcelar, distinto do trabalho sociológico habitual, portador de um conjunto alargado de reflexões e recomendações efectuadas por um actualmente esporádico mas reputado praticante da sociologia portuguesa.
Nuno de Almeida Alves