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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.185 Lisboa  2007

 

Introdução

 

 

As instituições híbridas. Reclusão e laços sociais

 

Este dossier resulta de um conjunto de análises suscitadas pela conferência «A prisão, a psiquiatria e a rua», que teve lugar no Instituto de Ciências Sociais (UL) entre 6 e 7 de Junho de 2005. Três tópicos funcionaram então como os pontos focais de uma maior variedade de contribuições tratando de aspectos da reclusão, de instituições, práticas e discursos terapêuticos, e ainda da «rua» — entendida aqui a «rua», latu sensu, como aquilo que está fora, para lá do espaço físico das instituições. Este termo não foi pois necessariamente utilizado como uma categoria específica de pobreza urbana, à maneira da rua que tem informado alguma etnografia urbana recente1.

Há vários nexos históricos e conexões contemporâneas entre estes domínios, cuja definição foi deixada à partida deliberadamente imprecisa. Não faremos aqui um inventário sistemático dessas conexões. Começaremos antes por evocar algumas delas a partir de um momento crítico nos anos 70 e do modo como o futuro era então imaginado e antevisto por filósofos e cientistas sociais. Michel Foucault (1975), para referir o mais saliente, sustentava que, da mesma maneira que a prisão havia tornado obsoletas modalidades físicas, mais brutais, de punição, assim ela própria acabaria por tornar-se não mais do que uma mera instância periférica de controlo no quadro de uma «forma disciplinar» difusa, dispersa na sociedade. O controlo social e a normalização operariam por todo o lado, através das escolas, dos hospitais, dos técnicos de reinserção social, do discurso psiquiátrico, entre outras vias. O argumento de Foucault influenciou toda uma geração de análises sobre instituições, vigilância e controlo.

Pouco depois de Surveiller et punir surgiram outras formulações deste mesmo diagnóstico, mais específicas e empiricamente sustentadas. Por muito diferentes que fossem a outros títulos, coincidiam com o de Foucault num ponto importante: o encarceramento seria uma forma em recuo, prestes a ser substituída por algo de outro. Na sua versão penal este diagnóstico estava em sintonia com um forte desencanto em relação às promessas de reabilitação que a prisão afinal não cumprira (Allen, 1981)2. Porém este desencanto não era uma simples réplica da atmosfera pessimista que um século antes tinha levado a que os ideais filantrópicos de regeneração sofressem um recuo nas missões que a prisão então se atribuíra (Duprat, 1980). Agora — isto é, na década de 70 — a decepção e o cepticismo quanto ao método da prisão crescia a par de um optimismo penal confiante na maior eficácia, ou pelo menos na menor nocividade, de medidas alternativas, não carcerais — confiante por conseguinte no inexorável declínio do encarceramento. À reclusão pensava-se vir a recorrer apenas como medida excepcional. Regime probatório e penas a executar em meio livre seriam algumas das opções penais constitutivas de uma rede reguladora alternativa fora dos muros da prisão.

Pela mesma altura, o tratamento psiquiátrico passava por uma evolução de sentido paralelo a esta. A crítica antipsiquiátrica, sobretudo a italiana e a britânica, fazia o seu caminho, os hospitais psiquiátricos abriam-se ao exterior e abandonavam algumas das características carcerárias das velhas instituições asilares e, por fim, uma psicofarmacologia cada vez mais eficiente tornava possível a desinstitucionalização de muitos doentes mentais. O avanço dos medicamentos neurolépticos vinha viabilizar para os psicóticos crónicos uma vida no exterior e a sofisticação dos ansiolíticos e antidepressivos veio tornar dispensáveis muitos internamentos prolongados3. Consultas em centros de dia, apoio domiciliário, cuidados psiquiátricos descentralizados em hospitais gerais mais próximos da comunidade, regimes ambulatórios, entre outros, sustentariam o regresso destes doentes à sociedade. Também aqui o fechamento, a clausura, era suposto tornarem-se ultrapassados e serem usados unicamente como último recurso. E no que toca aos doentes psiquiátricos a desinstitucionalização ocorreu, de facto, em grande parte4.

Mas algo de muito diferente estava prestes a suceder no domínio da reclusão penal. O desencarceramento previsto não veio a ocorrer e, pelo contrário, enquanto os hospitais psiquiátricos começavam a esvaziar-se, a demografia prisional iria em breve explodir. Em vez de convergirem, como antevira Scull (1977 e 1984), estas duas versões de enclausuramento iriam divergir. É verdade que as penas extraprisionais se multiplicaram, alastrando por conseguinte no meio livre a rede de controlo penal (Cohen, 1985). Mas o mesmo aconteceu com as penas de prisão. Isto é, ambos os sistemas de controlo se expandiram5. Como Loïc Wacquant (2002b) sugeriu a propósito do inaudito crescimento das populações prisionais, o diagnóstico prospectivo de Foucault não podia ter estado mais errado. Mesmo que outros sistemas de controlo e vigilância se tenham desenvolvido e disseminado pelas esferas do quase invisível e íntimo, as prisões não só não desapareceram, mas cresceram e multiplicaram-se. Wacquant (no prelo) sugere também que a prisão não pode hoje ser entendida unicamente com base na categoria demasiadamente estreita de repressão. A prisão está, para este autor, no centro das mais importantes transformações do Estado ocorridas nas últimas três décadas e no âmago da relação entre a gestão penal e a gestão social da pobreza.

É a esta luz que Wacquant trata aqui da forma como nos aparece hoje a relação entre as instituições penais e psiquiátricas — a prisão e o hospital — no contexto dos EUA. O que ocorreu em termos de desinstitucionalização no sector psiquiátrico veio na verdade a redundar no reforço do sector penal: muitas das pessoas que eram tratadas como doentes psiquiátricos passaram a ser reinstitucionalizadas na prisão. Com o encerramento das grandes instituições públicas não foi proporcionado um sucedâneo adequado nos serviços de saúde e, dada a depauperação de centros de dia, hospitais e serviços sociais, o tratamento psiquiátrico atrás das grades passou a ser o único disponível para alguns doentes (v. também a este propósito Herszberg, 2006). Em conjunto com populações toxicodependentes e sem abrigo, os doentes psiquiátricos tornaram-se um dos principais clientes de um sistema prisional inflacionado e multivalente. Assim, Wacquant encara a sua situação como a demonstração viva de um actual nexo causal entre a retracção do Estado social e a expansão do Estado penal.

Com o encarceramento maciço de pessoas com problemas psíquicos que não encontraram tratamento a montante, ao acabar por assumir um papel terapêutico que não fazia parte da sua missão e que era do foro de outras instituições, a prisão tornou-se uma instituição híbrida6. E, se, nesta análise, a terapêutica aparece como subproduto da prisão, já no artigo de Pat Carlen temos uma versão da prisão em que o tratamento passa a ser quase a sua própria essência, sendo, em todo caso, já a sua forma. A prisão diz ser uma instituição terapêutica. Contudo, esta pretensão decorre menos do tratamento de doentes psiquiátricos reais, mas antes de uma redefinição dos problemas sociais dos reclusos como problemas psicológicos. Reposicionados desta forma, é possível presumir-se que tais problemas são susceptíveis de serem superados através de programas psicológicos intraprisionais que se dão por objectivo reduzir a reincidência.

O revivalismo das perspectivas psicológicas sobre o crime tem alimentado uma nova retórica de reintegração que se alheia das circunstâncias sociais adversas no que toca a alojamento, perspectivas de emprego, toxicodependências, relações de abuso e violência doméstica, e põe antes a tónica na adaptação psicológica através de uma espécie de reprogramação cognitiva trabalhando atitudes e promovendo disposições na órbita do «pensamento positivo». Estes programas estão agora a tornar-se os produtos penais mais vendáveis numa arena global mercadorizada a que Pat Carlen chama aqui «indústria de reintegração».

O problema com este novo mercado é que a oferta está também, de certo modo, a criar a procura. Isto é, se as prisões são (ou dizem ser) instituições tão benéficas e eficazes — logo imprescindíveis — na superação dos problemas dos reclusos, então não há razão para procurar preferir alternativas não prisionais e é racional encarcerá-los, mesmo por crimes menores. Daí o crescimento do «carceralismo» ou, como o coloca Pat Carlen, a emergência de uma síndrome em que a aposta nos programas prisionais vai de mão dada com o aumento das populações prisionais. Enquanto Loïc Wacquant põe em evidência os factores externos implicados na explosão da demografia carceral, Pat Carlen acrescenta-lhes a hipótese de um factor endógeno ao sistema judiciário e prisional favorecendo esta mesma inflação.

Outro resultado da retórica terapêutica dos programas intramuros de reintegração é a transferência de recursos da comunidade para a prisão, mesmo quando o investimento no meio externo já provou ser crucial. Este movimento não deixa de evocar um paralelo com aquele relatado aqui por Wacquant para os EUA, onde é agora frequente que o orçamento do sector psiquiátrico em contextos prisionais seja superior ao orçamento homólogo no contexto dos hospitais públicos. Ambos os autores apresentam-nos assim duas versões de uma prisão híbrida; no caso descrito por Carlen, apesar das pretensões terapêuticas que a instituição ostenta, nem por isso deixa de ser uma instituição híbrida. A prisão «terapunitiva» é apenas a mais recente mistura, mesmo se reciclada de modo a ir ao encontro do zeitgeist gerencial e do marketing, de uma velha injunção contraditória dirigida às instituições prisionais: tratar e punir. Frise-se que esta injunção sempre foi mais acentuada no caso das prisões de mulheres, que são aqui o objecto do artigo de Pat Carlen. As reclusas e as suas circunstâncias sempre tenderam a ser mais patologizadas, por isso mais sujeitas a um discurso psicologizante, do que os reclusos, cujos problemas e trajectórias não padeceram nos estudos prisionais da mesma desatenção em relação à intervenção de factores de outro tipo, como os sócio-económicos7. Mas a lógica terapêutica intra-prisional não pode, uma vez mais, permanecer imune a uma lógica carceral inevitavelmente omnipresente e que, por esta razão, sempre acaba por prevalecer, como também há muito tem vindo a ser documentado neste domínio de investigação. Para além dos efeitos perversos que a retórica terapêutica pode ter no aumento do número de presos, esta é mais uma razão pela qual este artigo insiste em lembrar que uma prisão é, antes de tudo e acima de tudo, uma prisão.

E, no que toca a lógicas contraditórias no âmbito das instituições totais, o panorama parece ainda mais problemático no centro educativo português — um dos ex-denominados institutos de reeducação de menores —, que Tiago Neves traz à discussão. Da legislação às práticas quotidianas, dos funcionários e técnicos aos «clientes», como são conciliados o confinamento e a reintegração? Aqui estas ambiguidades, que começam por estar inscritas no próprio modelo presente do sistema de justiça de menores, assumem outro rosto ainda. Outras economias institucionais mistas, bem como outras maneiras de psiquiatrizar a diferença — seja a diferença definida como desvio ou cultura, em termos de género, classe ou etnicidade —, foram discutidas no encontro «A prisão, a psiquiatria e a rua». Ficamo-nos aqui por algumas delas.

Os dados etnográficos trazidos por Megan Comfort e Raquel Matos levam-nos a interrogar mais de perto noções abstractas de reintegração e a desconstruir — ou pelo menos complexificar — uma noção monolítica e apressada de reinserção. Quando aplicada às relações de proximidade dos prisioneiros, especialmente relações familiares e conjugais, o sentido habitualmente subentendido na noção de reintegração é o da preservação, não o da ruptura, desses laços sociais. Em consonância com esta ideia, é também usual caracterizar o impacto da reclusão nas relações pessoais segundo o esquema binário de separação ou reatamento com aqueles que ficaram no exterior. Em vez disso, e de maneira muito mais elucidativa, Megan Comfort e Raquel Matos focam o modo como a prisão recontextualiza estas relações. As duas autoras fazem-no a partir de ângulos complementares, os quais também permitem captar os efeitos das diferenças de género: Raquel Matos a partir da perspectiva de mulheres presas, Megan Comfort a partir da perspectiva de mulheres em meio livre cujos companheiros estão atrás das grades. Em ambos os casos, a distância interposta pela reclusão leva-as a encarar tais relações a uma nova luz, mas com resultados opostos. No caso apresentando mulheres presas, a prisão cria espaço para uma reavaliação que «negativiza» os laços anteriores. A reclusão é então vista como uma oportunidade para pôr termo a relações percebidas como danosas. No outro caso, em contraste, relações destrutivas passam a ser encaradas como «positivas» não só porque a distância proporciona às companheiras um novo ponto de vista, mais favorável aos homens presos, mas também porque a prisão em si mesma providencia um ambiente controlado e protegido onde se torna possível para as mulheres lidar _ mesmo se apenas temporária e artificialmente — com o comportamento caótico, irresponsável e violento dos respectivos parceiros. Relacionamentos que estas mesmas mulheres de outro modo tolerariam mal ou considerariam não viáveis são assim perpetuados, quando não se dá o caso de florescerem, à sombra protectora da cadeia.

Uma vez mais, como também o indicam os artigos de Loïc Wacquant e de Pat Carlen, a instituição penal torna-se «uma agência social de primeiro recurso» (Currie, 1998) para problemas não atendidos noutra sede. Mas, para além desta faceta da prisão híbrida, as contribuições de Megan Comfort e

Raquel Matos levam-nos a repensar a noção de reintegração naquilo que ela pressupõe acerca da renovação de relações prévias. Quer a prisão induza rupturas, ou, pelo contrário, a perpetuação dos laços sociais, nem tudo é o que aparenta ser.

 

Manuela Ivone Cunha

Cristiana Bastos

 

 

Notas

1 V. a este propósito, por exemplo, Wacquant (2002a).

2 V. em mais pormenor Cunha (2002).

3 Estas mudanças terão no entanto trazido por sua vez no reverso a tendência para fazer evoluir para a cronicidade o tratamento psiquiátrico de muitas afecções (v. a este propósito Lantéri-Laura, 1997).

4 É certo que este movimento não foi linear nem uniforme em todos os países, mas complexo e com aspectos contraditórios, variando bastante a proporção ainda ocupada pelos hospitais psiquiátricos públicos num leque de tipos de assistência que se tornou mais aberto e diversificado. Para referir alguns exemplos europeus, enquanto em Itália e no Reino Unido a desactivação dos hospitais psiquiátricos foi bastante acentuada (correspondendo mesmo em parte esta desospitalização a alguma despsiquiatrização da saúde mental e à afirmação de outras terapias), em França e em Portugal o peso dos hospitais psiquiátricos no sector da saúde mental é ainda bastante forte (Piel e Roelandt, 2001; AAVV, 2004). Em Portugal, na última década, tem sido especialmente flagrante o contraste entre, por um lado, uma prática disponibilizando um alto número de camas e concentrando profissionais nestas instituições e, por outro, o discurso político e as directrizes legais que sublinham ano após ano a ideia da desinstitucionalização dos doentes mentais, a psiquiatria de proximidade (Lei da Saúde Mental — Lei n.º 36/98 e Decreto-Lei n.º 35/99, AAVV, 2004-2006), e anunciam o encerramento iminente dos maiores asilos psiquiátricos portugueses, ainda não concretizado até à data.

5 Em Portugal esta expansão real (v. Cunha, 2002) não deixou nunca porém de se acompanhar de declarações de responsáveis políticos e operadores judiciários acerca da necessidade de descarcerizarão do sistema punitivo e de ampliação do leque de penas alternativas, a mais recente das quais sendo a vigilância electrónica.

6 Para este e outro tipo de papéis extraprisionais desempenhados na cadeia, v. também Cunha (2002), pp. 203-240.

7 V. Cunha (2007 e, para uma análise mais em pormenor deste aspecto, 1994).

 

 

Bibliografia

 

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