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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.188 Lisboa jul. 2008

 

S. N. Eisenstadt, Múltiplas Modernidades: Ensaios, Lisboa, Livros Horizonte, col. «Estudos Políticos», 2007, 166 páginas.

 

Em 1991 tive o privilégio de colaborar com Pedro Tavares de Almeida e Jorge Miguel Pedreira na 1.ª edição de um livro de S. N. Eisenstadt em Portugal, A Dinâmica das Civilizações: Tradição e Modernidade, na colecção «Coordenadas», da entretanto malograda Cosmos; tratava-se de uma colectânea de textos publicados originariamente entre os anos 60 e 1987, com prefácio e notas conclusivas escritas pelo autor especificamente para a edição. Na nota de apresentação salientávamos então três grandes eixos que os orientavam: «a delimitação das dinâmicas macrossociológicas (estruturais e culturais) que originam a eclosão, o desenvolvimento ou o colapso da modernidade, em diferentes situações históricas; a reapreciação conceptual do binómio tradição/modernidade; e a definição das `premissas culturais básicas' da `visão do mundo' moderna, dos tipos de dinâmica institucional por ela gerados e dos conflitos que suscitam», buscando a «definição dos pressupostos civilizacionais da ordem cultural moderna, considerada como um novo tipo, fortemente expansivo, de tradição». E concluíamos: «Nesta relativização da modernidade — na ideia da sua pluralidade, cimentada na diversidade das tradições preexistentes, em oposição à sua identificação como uma etapa final para que todas as histórias convergiriam — reside talvez uma das ideias mais estimulantes desta leitura, especialmente numa época em que os particularismos étnicos, nacionais ou religiosos e as contestações à racionalidade revelam a fragilidade da civilização moderna» (pp. 16-17).

Se comecei a recensão de um livro com a recapitulação de notas que subscrevi sobre uma outra obra, é evidentemente por me permitirem situar as continuidades e os progressos das ideias que Eisenstadt elaborou durante décadas e que, vai para vinte anos, organizou e nos confiou para a edição portuguesa. A continuidade cronológica é quase perfeita, tratando-se agora de textos publicados entre 1992 e 2006 (a maioria deles, contudo, em 2002), além do curto mas substantivo prefácio escrito especialmente para a edição portuguesa. Mais importante, a continuidade teórica e problemática é completa, não no sentido de uma redundância, mas no de um mais pleno desenvolvimento de ideias seminais que ficaram lançadas em A Dinâmica das Civilizações — particularmente as condensadas nas «Considerações finais», capítulo que quase poderia figurar como introdução a Múltiplas Modernidades. À pluralidade e à abertura das soluções históricas, em várias sociedades, da tensão entre a expansão hegemónica da grande tradição moderna e a reelaboração selectiva das tradições preexistentes sucedeu um esforço teórico para explorar sistematicamente os factores da multiplicação dos tipos de modernidade e para propor um conceito de modernidade que permita abranger alguns dos desenvolvimentos mais recentes e críticos do mundo contemporâneo e globalizado. Para isso, sobre um pano de fundo conceptual que permanece fundamentalmente o mesmo, sobressaem agora com maior ênfase os temas do conflito e das formas políticas de regulação (já abordado em Os Regimes Democráticos: Fragilidade, Continuidade e Transformabilidade, publicado em 2000 pela Celta), da dissociação e tensão entre a racionalidade formal e orientada para fins (Zweckrationalität) e a racionalidade orientada para valores (Wertrationalität) e do paradoxal substrato moderno dos movimentos fundamentalistas explicitamente antimodernos (tema também de Fundamentalismo e Modernidade: Heterodoxias, Utopismo e Jacobinismo na Constituição dos Movimentos Fundamentalistas, publicado igualmente pela Celta em 1997). Nesta continuidade e nestas novas acentuações se desenvolve o argumento de Múltiplas Modernidades.

De facto, embora se trate de uma colectânea de artigos que podem ser lidos autonomamente, estes textos constituem, na ordenação agora adoptada, um argumento coerente — embora, inevitavelmente, a forma de colectânea gere uma série de repetições de fundamentos teóricos, de elaboração dos problemas e de alguns dos elementos históricos analisados entre os vários capítulos. Argumento expresso na linguagem, literariamente simples mas conceptualmente densa, característica do autor; tradução delicada e exigente por cujo resultado final cumpre felicitar Susana Serras Pereira.

Assim, o primeiro capítulo («Múltiplas modernidades: problemática e enquadramento de base») coloca os problemas e as premissas de base numa formulação originariamente publicada em 2002 mas revista pelo autor para esta edição. Retomando o fio dos seus escritos anteriores, postula que «a modernidade deve ser vista como um tipo novo e distinto de civilização, de modo não muito diferente do da formação e expansão das grandes religiões […] um programa cultural distinto, combinado com o desenvolvimento de um conjunto ou conjuntos de novas formações institucionais, caracterizado por uma `abertura' e incerteza sem precedentes» (p. 19), em que as dinâmicas e movimentos de protesto passaram de fenómenos marginais a «elementos básicos do simbolismo social e político do centro societal» (p. 21).

Se, indiscutivelmente, a diferenciação estrutural e o desenvolvimento de arenas institucionais autónomas constituem traços comuns e definidores da modernização, o grau de diferenciação estrutural, o grau de definição e de estruturação de novas arenas institucionais reguladas por valores específicos e os padrões de conflito e de regulação dos conflitos daí decorrentes são variáveis entre as diversas sociedades modernas e em cada sociedade ao longo do tempo. A sua variação é fortemente influenciada pelos tipos específicos de interpretação cultural e política das premissas civilizacionais básicas do «programa cultural da modernidade» em disputa no interior de cada sociedade.

Contra as teorias lineares da modernização como expansão uniformizadora e hegemónica de um padrão civilizacional «ocidental», sustenta assim que «as várias arenas institucionais autónomas modernas — económica, política, educativa e familiar — se regulam e interagem de modos diferentes em diferentes sociedades, em função dos seus períodos históricos» (pp. 15-16). Em resultado das diversas combinações destes elementos e das tensões criadas pelas diferentes formas de os concretizar, numa civilização em forte expansão e erodindo, mas não simplesmente aniquilando, as premissas institucionais e simbólicas das sociedades que nela se incorporaram «surgiu uma grande variedade de sociedades modernas ou em processo de modernização, tendo muitas características comuns, mas evidenciando também grandes diferenças entre si» (p. 37), cujos «programas culturais e institucionais […] implicam diferentes interpretações e reformulações profundas do programa inicial da modernidade, suas concepções e premissas básicas» (p. 42): múltiplas modernidades.

Em suma, o mundo contemporâneo e a própria história da modernidade são mais bem entendidos, não como um «fim da história», uma completação e superação do projecto moderno, nem como um «choque de civilizações» em que a civilização moderna se veria confrontada com uma reacção de civilizações pré-modernas, mas antes «enquanto história da permanente formação, constituição, reconstituição e desenvolvimento de modernidades múltiplas, fluidas e muitas vezes contestadas ou conflituosas» (p. 14), com diversos programas políticos e culturais cujas tensões e antinomias «implicaram o correlativo desenvolvimento, nas sociedades modernas, de forças bastante destrutivas» (p. 46).

Os restantes quatro capítulos são outras tantas concretizações das perspectivas e dos instrumentos analíticos sobre problemas historicamente situados que o autor considera exemplos críticos do desenvolvimento de múltiplas modernidades.

Começa por uma análise comparativa do que considera terem sido os primeiros exemplos históricos desse processo na constituição dos Estados do continente americano («As primeiras múltiplas modernidades: identidades colectivas, esfera pública e ordem política nas Américas»). Os casos dos Estados Unidos, do Canadá e dos Estados latino-americanos surgem com um carácter quase experimental, por se tratar de processos históricos paralelos de cristalização de padrões institucionais enraizados na modernidade europeia e ocidental, nos quais surgiram «não apenas variações locais do modelo ou modelos europeus, mas padrões ideológicos e institucionais completamente novos» (p. 51). A detecção de diferenças profundas nos padrões de modernidade que vieram a constituir-se nesses novos contextos histórico-geográficos, a partir de diferenças iniciais que não seriam mais do que variações limitadas de uma visão iluminista europeia, estabelece dois pontos fundamentais do argumento geral. O primeiro é que de pormenores significativos das configurações institucionais de base europeia, cruzados com as novas circunstâncias da sua aplicação (as formas de representação de interesses entre centros europeus e colónias, as relações entre colonos e povos nativos e a consequente reformulação das fronteiras identitárias), geraram diferenças civilizacionais fundamentais e de grande alcance, mesmo no contexto lato da civilização ocidental. O segundo ponto, implícito mas directamente inferível do anterior, é que tais diferenças na estruturação das civilizações modernas não poderiam deixar de se acentuar quando as premissas civilizacionais de base fossem ainda mais distintas do que as variações de pormenor que clivaram as matrizes originárias da Europa ocidental e da cristandade — abrindo assim a porta ao próximo passo do argumento.

Deste próximo passo se encarregam dois outros capítulos: «Modernidades em reverso», análise comparada dos padrões de protesto e da formação de identidades colectivas entre os Estados Unidos, o Japão e a Europa, e «A estruturação do protesto social nas sociedades modernas», análise mais alargada de como as premissas culturais de base, as configurações sociais e institucionais das elites e as posições no sistema político mundial em evolução se combinaram para gerar distintos padrões de protesto nas diversas civilizações modernas (retomando explicitamente a clássica questão de Sombart sobre a irrelevância do movimento socialista nos Estados Unidos). Aponte-se que este último capítulo, publicado em 1992, é o «decano» da reflexão aqui apresentada, levando a pensar que, mais do que uma concretização da problemática teórica, poderemos estar perante uma das explorações fundadoras dessa problemática, na continuidade de A Dinâmica das Civilizações. A isso convidam, quer a centralidade dos padrões e movimentos de protesto na visão eisenstadtiana da modernidade, que utiliza os modos de protesto e da sua regulação como um indicador fundamental das diferenças das sociedades modernas, quer o próprio subtítulo do capítulo, «Os limites e a direcção da convergência».

O último capítulo, «Transformação e transposição das múltiplas modernidades na época da globalização», não só alarga ainda mais a concretização histórica, mas também, e de modo menos óbvio, avança um novo, decisivo e quiçá o mais contestável passo no argumento teórico e no alcance da problemática fundadora. Este texto recente, publicado em 2006, questiona as mudanças civilizacionais que se desencadearam com a globalização dos mercados e dos sistemas de comunicação e de conhecimento, com o surgimento de quadros institucionais alternativos em competição com o Estado-nação e o Estado revolucionário socialista, ambos de matriz iluminista ocidental, e com a emergência de novos temas e movimentos de protesto «pós-modernos», «pós-materialistas», «fundamentalistas» e mesmo agressivamente «antimodernos». O desafio que o autor aqui se coloca não é apenas uma continuação dos anteriores, é-lhes de facto superior numa ordem de magnitude: o de reconduzir a uma combinatória distinta de premissas básicas da modernidade — e portanto a outras e diferentes formas de multiplicidade desta — fenómenos como os novos fundamentalismos religiosos e políticos, como os novos padrões de protesto que visam a contestação radical das próprias premissas da modernidade, alimentando-se da erosão dos «marcadores de certeza» e da universalidade da razão, como a obsolescência da tipologia moderna dos Estados, minada a um tempo pelo desenvolvimento de mercados, instituições, identidades colectivas e movimentos de protesto transnacionais, de tensões regionalistas e particularistas, e pela descrença crescente na visão do progresso de base racional, científica e tecnológica incorporada na ideologia dos Estados modernos.

A resposta a este desafio encontra-a o autor na recondução destes desenvolvimentos contraditórios à dimensão utópica e escatológica inerente ao projecto da modernidade: o da realização terrena de uma ordem transcendente, tendo a arena política e a esfera pública como meios centrais da acção transformadora. «Acima de tudo muitos movimentos fundamentalistas partilham com as grandes revoluções a crença no primado da política […] ou pelo menos a crença na acção política por uma visão religiosa da reconstrução holista da sociedade […] Na verdade, a herança ideológica e política das revoluções, representando a vitória das tentativas gnósticas de trazer à Terra o Reino dos Céus, constitui o laço vital entre o programa cultural e político da modernidade e os movimentos fundamentalistas» (p. 138), que se aproveitam selectivamente de aspectos da cultura moderna e das suas implicações institucionais, nomeadamente pela «apropriação das dimensões mobilizadoras e participatórias do programa político moderno e das suas formações institucionais básicas […] ao mesmo tempo que negam a sua legitimidade em termos `seculares', sobretudo em nome da razão `fria' e da autonomia individual» (p. 139) (tal como, reciprocamente, a expansão da civilização moderna se apropria selectivamente de aspectos das culturas e instituições tradicionais, minando-lhes a legitimidade particularista). Para melhor perceber este ponto convém regressar por um momento às bases teóricas lançadas no primeiro capítulo, onde se afirma que, longe de constituir algo oposto à ideia de modernidade, «a ideologização da violência, do terror e da guerra […] tornou-se a matéria-prima mais importante da construção dos Estados modernos» (p. 47). O crítico, porém, não pode deixar de notar que essa ideologização da violência apenas teve esse papel na medida em que a legitimidade política do exercício dessa violência passara a ser monopolizada pelo Estado, como um dos pilares da própria definição de Estado moderno, ao invés das suas reapropriações por alguns movimentos fundamentalistas contemporâneos.

Este programa de investigação que Eisenstadt denominou múltiplas modernidades é incontestavelmente um desenvolvimento da reflexão sociológica e histórica sobre a modernidade — no fundo, a grande problemática fundadora da própria sociologia, a razão maior para esta se manter fiel à visão histórica e comparativa dos seus autores clássicos. Se esta problemática fundadora se ossificou, aqui e ali, em grandes narrativas da modernização, ou em quadros teóricos reificando a modernidade como uma entidade quase metafísica, não é menos certo que as reflexões sociológicas mais recentes têm tendido a estilhaçar esses quadros. Nesse questionamento, a visão histórica e comparativa de Eisenstadt foi certamente pioneira. Os ensaios reunidos neste volume e o argumento a eles subjacente afirmam a necessidade de substituir a grande narrativa da modernidade por uma metanarrativa teórica e comparativa das combinações de factores que geram a multiplicidade histórica das modernidades, tornando o conceito ao mesmo tempo mais dúctil e mais exigente nas suas especificações empíricas.

Enquanto desenvolvimento do programa de investigação anterior, o que acima designei como o segundo passo do argumento — a análise comparativa entre as modernidades europeia, do continente americano e do Japão — afigura-se uma via teoricamente consistente, abrindo vias para analisar os padrões de modernidade emergentes noutras regiões, como a Índia e a China. Menos pacífico se afigura o terceiro passo. É, sem dúvida, aliciante a subtileza teórica com que resolve o aparente paradoxo de encarar como parte integrante da modernidade e da sua expansão — e não só como seus efeitos, o que seria menos inovador e mais dificilmente contestável — o tipo de fenómenos fundamentalistas que programaticamente se lhe opõem, frequentemente com violência (e, sendo o autor um democrata israelita, dificilmente podemos deixar de ter como referentes tanto o fundamentalismo judaico, que assassinou Rabin, quanto o fundamentalismo islâmico, que certamente o teria feito, se pudesse). É mobilizadora a ideia de que «o paradigma emergente de múltiplas modernidades fornece um esquema para a análise e, em última instância, para a coexistência pacífica destas diferenças numa era de condições globais comuns […]» (p. 48). Essa mesma ductilidade, entretanto, e a busca de extensão do campo de aplicação do conceito de modernidade até este tipo de fenómenos levam a perguntar quanto de uma casa pode cair até deixar de ser uma casa (é, deste ponto de vista, interessante que o conceito de colapso da modernização, assíduo em A Dinâmica das Civilizações, se tenha agora desvanecido) — e em que medida os elementos dos movimentos fundamentalistas antiocidentais que Eisenstadt caracteriza como modernos são vigas mestras suficientes para conduzir, através de instituições políticas e de visões culturais modernas, uma coexistência pacífica das diferenças. Tal é talvez o principal terreno de debate intelectual e político que torna indispensável a leitura destes textos sociológicos.

Rui Santos

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

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