Serviços Personalizados
Journal
Artigo
Indicadores
- Citado por SciELO
- Acessos
Links relacionados
- Similares em SciELO
Compartilhar
Análise Social
versão impressa ISSN 0003-2573
Anál. Social n.194 Lisboa 2010
Estado, justiça e reconhecimento**
Fernando Filgueiras
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Av. Antônio Carlos, 6627, Pampulha, Belo Horizonte, MG, Brasil, CEP 31270-901. e-mail: ffilgueiras@fafich.ufmg.br
Este artigo investiga, a partir de uma crítica normativa, a perspectiva liberal e a perspectiva comunitarista do conceito de justiça, com o objectivo de reflectir sobre o papel do Estado nas democracias contemporâneas. A investigação da perspectiva liberal e da perspectiva comunitarista do conceito de justiça pretende avançar com uma crítica republicana ao processo de despolitização promovido pelo conceito de justiça política e de justiça social. Este artigo defende uma concepção política da justiça baseada na existência de um Estado republicano e na publicidade da origem de princípios e regras constitucionais.
Palavras-chave: Estado; democracia; justiça; reconhecimento; república.
State, justice, and recognition
This article investigates, from a normative critique, the liberal perspective and the communitarian perspective of the concept of justice, speculating on the role of the state in contemporary democracies. The investigation of the liberal perspective and the communitarian perspective of the concept of justice tend to indicate a republican critique of the depoliticisation process promoted by the concept of political justice and social justice. This article advocates a political conception of justice based on the existence of a republican state and the popular image of the origin of constitutional principles and rules.
Keywords: state; democracy; justice; recognition; republic.
Introdução
O objectivo deste ensaio é especular sobre as possibilidades e sobre os limites teóricos de uma hipótese sociológica na teoria política contemporânea, tendo como base uma reflexão a respeito do papel do Estado nas democracias. Parto da premissa de que tanto o liberalismo quanto o comunitarismo esvaziam o papel do Estado nas ordens democráticas, de maneira a esvaziar um conteúdo propriamente político da teoria política. Ou seja, a questão da justiça, nas democracias contemporâneas, promove uma despolitização da teoria política, no sentido de vinculá-la à questão económica ou cultural. A ausência de uma reflexão sobre o Estado implica a ausência de uma reflexão sobre lealdades fundamentais que transcendem a ideia das diferenças culturais.
O ensaio está dividido em quatro secções. Na primeira discuto a ideia de justiça como teoria social, chamando a atenção para os deslocamentos promovidos na teoria democrática contemporânea, tomando como elemento de discussão normativa o debate desencadeado pelo liberalismo político de John Rawls. Na segunda secção discuto a existência da hipótese sociológica na teoria política contemporânea e as suas consequências para a reflexão sobre a democracia, observando a crítica comunitarista ao liberalismo. Na terceira secção discuto os limites da teoria do reconhecimento, mostrando a ausência de uma perspectiva de liberdade política. Na quarta secção discuto as possibilidades de uma sociologia da dominação e do Estado republicano, num sentido normativo, com o objectivo de reflectir sobre as questões atinentes a uma sociologia política contemporânea.
Defendo a hipótese de que o liberalismo e a teoria do reconhecimento não reflectem sobre as alternativas ao problema da dominação e não analisam qual o papel do Estado no contexto das sociedades democráticas contemporâneas. As perspectivas comunitaristas vinculam a questão política à cultura, de maneira a criar uma perspectiva de sectarização social. O objectivo desta análise crítica é ressaltar a necessidade de se repensar o público enquanto chave de interpretação do Estado republicano e da liberdade política.
Os deslocamentos da democracia e a justiça como teoria social
De meados da década de 70 do século xx até ao presente, a democracia tem-se deslocado da esfera da representação parlamentar para a esfera da justiça. Esse deslocamento ocorre, sobretudo, em função da emergência de novos movimentos sociais e devido à luta desses movimentos por direitos e liberdades fundamentais, no sentido de se superarem desigualdades estruturais das sociedades capitalistas. É esse deslocamento o que motiva a ascensão do movimento feminista, do movimento gay, do movimento negro e de tantos outros na esfera política. O que caracteriza esses movimentos é a reivindicação de maior justiça social, colocando-a na agenda das ordens democráticas contemporâneas. Esses pedidos configuram uma luta por direitos, tendo grupos tradicionalmente subjugados como actores centrais desse processo.
Do ponto de vista da teoria política normativa, esse deslocamento da democracia em direcção à justiça abriu novas vias de reflexão a respeito de valores e normas fundamentais, os quais organizam as sociedades democráticas e as suas instituições. Desta forma, o debate da teoria política contemporânea é, por definição, o debate sobre o tema da justiça e o modo pelo qual as instituições podem concretizar esse fim normativo. A justiça, por conseguinte, é o horizonte de possibilidades da reflexão em teoria política, havendo uma aproximação necessária ao tema do direito e à especulação sobre procedimentos básicos para a resolução de conflitos sociais, culturais, políticos e económicos.
Pode-se dizer que a teoria política de John Rawls representa o momento de ruptura com uma teoria que se preocupava apenas com a descrição do comportamento dos actores políticos, no sentido do behaviorismo típico da década de 1950 (Ball, 2004). Rawls reconsiderou e recolocou a discussão normativa, típica da filosofia política, em que o tema da justiça entra como conceito básico numa estrutura de outros conceitos destinados a discutir a democracia. Este deslocamento da democracia da esfera parlamentar para a esfera da justiça ganha corpo a partir da publicação da obra Uma Teoria da Justiça, na esteira da luta por direitos civis na sociedade americana das décadas de 1960 e 1970. A partir da obra de Rawls (2002 [1971]), todo o debate contemporâneo da teoria política passa, necessariamente, pela discussão do tema da justiça e dos pressupostos básicos para a sua realização1.
No âmbito destes pressupostos, devemos destacar que a discussão sobre a justiça como construída por Rawls (1993) provoca, do ponto de vista da teoria política, um deslocamento da sociologia em direcção a uma filosofia política formal. Não há, nos pressupostos rawlsianos da justiça, uma perspectiva sociológica para a concretização de uma política das relações de poder. A perspectiva sociológica da teoria política submergiu aos preceitos de uma discussão normativa formal, em que o básico é a realização da justiça distributiva pela realização das normas constitucionais, em especial os direitos e garantias fundamentais (Rawls, 1993, pp. 13-14).
O deslocamento da teoria democrática da esfera da representação parlamentar para a esfera da justiça implicou, portanto, um deslocamento dos pressupostos metodológicos, em teoria política, da sociologia para a filosofia formal, congregando não a base de evidências empíricas sobre as relações de poder, mas conceitos normativos ancorados numa filosofia da justificação de procedimentos e normas fundamentais, que balizam as instituições políticas. Isso não elimina, contudo, as possibilidades de uma sociologia política do mundo contemporâneo, já que a obra de Rawls se direcciona para a realização da justiça distributiva no plano da estrutura básica da sociedade, a qual corresponde às instituições sociais fundamentais, como, por exemplo, a família, a vizinhança, os grupos, os clubes e os partidos políticos. No argumento do liberalismo político de Rawls, o objectivo da justiça como equidade é concretizar a ideia de uma sociedade democrática, e não apenas a existência de instituições formais e imparciais no plano do Estado (Rawls, 1993, pp. 15-22).
A adopção desse pressuposto formal da justiça é explicada, na perspectiva do liberalismo político, pelo posicionamento contra perspectivas culturalistas, que tendem a ver o problema da política como um problema da cultura. Sendo a cultura um conceito naturalmente sociológico, ele implica o facto de o grupo ter precedência ontológica sobre o indivíduo, o que representa uma premissa inadmissível para o liberalismo político (Vita, 2008, p. 170). A concretização de uma sociedade democrática só é possível, de acordo com Rawls, se houver o apoio público dos cidadãos a princípios de justiça construídos segundo uma posição originária da qual se derive uma concepção de justiça política válida. A cultura democrática é, segundo Rawls, pluralista, e não abrangente, porquanto o seu conteúdo é expresso não por concepções abrangentes do bem, mas por uma razão pública em que os cidadãos debatem no espaço público os fundamentos constitucionais e as questões de justiça básica. O fim normativo do liberalismo político é construir uma concepção adequada de justiça que promova os termos da cooperação social. O seu propósito é pensar, formalmente, uma sociedade bem ordenada na qual cada indivíduo aceite os princípios de justiça, em que a sua estrutura básica concorde com esses princípios e que os cidadãos tenham um sentido do justo (Ralws, 1993, p. 155).
Não há, na perspectiva do liberalismo, uma reflexão mais exacta sobre o papel do Estado nas sociedades democráticas. Os princípios de justiça e a construção de uma teoria formal do pluralismo pressupõem que o Estado seja neutro em relação às concepções de bem, no sentido de impedir que um grupo, maioritário ou minoritário, utilize o poder coercivo do Estado contra outro grupo ou contra os indivíduos. As virtudes da tolerância e da cooperação requerem essa neutralidade do Estado, cabendo a este apenas realizar e absorver os princípios da justiça liberal e a razão pública de uma sociedade democrática. É neste sentido que Rawls não expressa a ideia de um Estado democrático como fim normativo, mas a ideia de uma sociedade democrática (Rawls, 1993, pp. 156-157).
A crítica do liberalismo político rawlsiano às perspectivas culturalistas centra-se na adopção, por parte dos culturalistas, da premissa de que as democracias devem reconhecer que o pluralismo e as concepções abrangentes do bem podem representar uma forma de opressão contra o indivíduo e contra a sua autonomia, tanto na dimensão do grupo como na dimensão do Estado2. As necessidades da estrutura básica da sociedade, onde essas concepções abrangentes de bem são construídas, devem ser resolvidas na esfera da justiça, o que exige uma arquitetura constitucional que anteceda procedimentos e direitos fundamentais a essas concepções de bem e seja capaz de adjudicar conflitos, não de maneira neutra em relação aos resultados de políticas, mas à justificação de políticas3.
A justiça realiza-se, de acordo com Rawls, respeitando o princípio da diferença e construindo políticas redistributivas com base na existência de princípios gerais e substantivos, os quais definem a razão de uma democracia. O dilema do construtivismo rawlsiano é estabelecer a concretude desses princípios sem recorrer a uma concepção metafísica e ética da justiça. A justiça visa a estrutura básica da sociedade, no sentido de preservar a liberdade individual e impedir a interferência por parte do outro. Não existe uma concepção de bem que dê sentido à justiça, mas princípios substantivos derivados de uma posição original na qual se funda a neutralidade liberal.
As concepções do bem, de acordo com Rawls, são aquelas que expressam a racionalidade do indivíduo, sendo derivadas de concepções morais, filosóficas ou religiosas abrangentes, que informam um ideal de comunidade. Uma comunidade é alicerçada na existência de valores e regras abrangentes que delimitam o modo como o indivíduo se deve comportar face a um conteúdo ético. Do ponto de vista do liberalismo político, uma concepção de justiça política abandona o ideal de comunidade, porquanto esse ideal é entendido como um princípio que organiza a sociedade a partir de uma concepção moral, filosófica ou religiosa. Dessa forma, o objectivo do liberalismo político de Rawls não é pensar os termos da racionalidade do indivíduo, uma vez que este conceito se refere às concepções do bem, que, numa sociedade democrática, são plurais e incomensuráveis. O liberalismo político busca uma concepção de razoabilidade pela qual seja possível a ordenação da sociedade a partir de uma concepção cooperativa entre indivíduos que têm visões do mundo divergentes acerca do bem. O indivíduo de Rawls não é o sujeito racional que busca a realização dos seus propósitos, mas um indivíduo razoável, capaz de nutrir a virtude da civilidade e a tolerância em relação ao outro (Filgueiras, 2008).
Ao abandonar uma concepção de comunidade, o argumento rawlsiano abandona a eticidade da política em nome de um construtivismo que seja capaz de pensar um conteúdo para uma concepção de justiça política e delimitar os termos da cooperação. Por conseguinte, o liberalismo político põe em causa a existência da eticidade pelo questionamento de qualquer premissa sociológica, em que o valor da autonomia não é um valor ético, mas um valor político que se realiza na vida pública através da afirmação dos princípios de justiça. Ao abandonar um ideal de comunidade e ao especular sobre a concretização de uma justiça procedimental, o construtivismo liberal de Rawls acabou por procurar uma concepção formal e deontológica das virtudes da tolerância e da cooperação.
Uma teoria política balizada por uma eticidade, de acordo com Rawls, leva a uma concepção perfeccionista, segundo a qual a sociedade deve ser governada por um ideal ético que imprime um conteúdo à razão e à consciência, daqui resultando não uma sociedade pluralista e, consequentemente, democrática, mas uma sociedade em que grupos culturalmente dominantes oprimem grupos minoritários e divergentes. O contexto no qual Rawls produziu a sua concepção de liberalismo é o contexto das lutas pelos direitos civis nos Estados Unidos e a emergência de movimentos que procuravam a sua autonomia na esfera política. A bandeira desses movimentos era a justiça e a realização de uma sociedade igualitária e democrática, o que fez convergir a luta desses novos movimentos sociais com a perspectiva de uma teoria política contemporânea alicerçada na discussão da justiça e dos seus procedimentos. A obra de Rawls constitui a trave-mestra do debate empreendido pela teoria contemporênea acerca desta matéria, muito do qual se construiu precisamente contra as teorias de Rawls.
O facto é que, ao abandonar uma perspectiva de eticidade, o liberalismo político se viu obrigado a abandonar uma perspectiva sociológica, fazendo-a submergir a uma concepção deontológica e formal como método para uma teoria política normativa. Sendo a autonomia um valor político e não ético, o liberalismo político não reconhece a comunidade como locus de uma sociedade democrática, o que acarreta uma série de críticas a respeito dos pressupostos deontológicos da sua concepção de justiça.
A principal crítica é a ideia de que abandonar a perspectiva de eticidade significa defender uma concepção de justiça que se derrota a si mesma. Ou seja, a justiça envolve justificação e julgamento, não sendo possível que o indivíduo justifique valores e normas em contraposição aos seus vínculos, valores comuns, laços obrigatórios, costumes ou tradições (Walzer, 1990; Sandel 2005).
O primado da justiça, de acordo com Michael Sandel (2005, p. 93), parte da precedência da neutralidade em relação às concepções de bem. Ao abandonar uma concepção de bens sociais, o liberalismo de Rawls institui um preconceito na posição original para a construção de instituições imparciais. Isto significa que o pressuposto de motivação pelo desinteresse mútuo presume uma sociedade individualista a partir da qual o melhor para cada indivíduo é seguir o seu próprio caminho independentemente das imposições da comunidade. A teoria da justiça de Rawls visa superar as concepções perfeccionistas da moral, com o objectivo de produzir uma sociedade tolerante e cooperativa e, dessa maneira, justa. Contudo, como Sandel demonstra, essa concepção de sociedade justa requer uma acção cognitiva e reflexiva do indivíduo que não respeita o pressuposto de neutralidade e desinteresse na dimensão da posição original. Isso contradiz o pressuposto de neutralidade ao demandar uma concepção substantiva da comunidade, mediante a qual as concepções de bem são construídas (Sandel, 2005, p. 215).
De acordo com Walzer (1990), as concepções deontológicas de justiça falham ao pressupor modelos ideais que não têm sustentação no mundo empírico, tal como as ideias de posição original e de véu de ignorância de Rawls. É impossível pensar a existência do indivíduo sem o seu envolvimento com a comunidade e a sua eticidade, uma vez que a sua faculdade de juízo está alicerçada em valores que são comuns e que têm um significado social mais amplo. A ideia de justiça é complexa, ao ponto de em sociedades plurais ter significações diferentes, dependendo do contexto e do grupo de que se fala. Não é possível uma concepção universal de justiça a partir da qual se gerem princípios capazes de organizar e ordenar formalmente a sociedade. Essa ordenação depende da busca das estruturas profundas da sociedade, que são comunitárias, porque balizadas em valores comuns que informam os termos da cooperação ou do conflito. Sem uma eticidade que pense nesses valores e nessas estruturas profundas da sociedade, não é possível, de acordo com Walzer, encontrar um significado para a ideia de justiça, uma vez que ela está ligada às lealdades fundamentais que o indivíduo constrói com outros indivíduos.
Assim, não é possível pensar uma concepção de justiça neutra sem pensar os valores da comunidade na qual essa justiça será realizada. O liberalismo, segundo Walzer, argumenta que a neutralidade dos resultados de políticas justas é uma exigência face à fragmentação social. Uma vez que as sociedades democráticas são plurais e que os indivíduos não chegam a acordo em relação às concepções de bem, o Estado deve proporcionar-lhes uma forma de vida livre, que não exige do indivíduo qualquer concepção substantiva do bem. Como nota Walzer (1990, pp. 16-17), o problema desta concepção liberal de justiça é que, quanto mais atomizados são os indivíduos, mais forte tende a ser a sua lealdade ao Estado, uma vez que este será o mais importante e talvez o seu único laço social. Seguindo aqui o argumento originalmente apresentado por Émile Durkheim (2002 [1893]), a única possibilidade de solidariedade e organicidade das sociedades modernas é o Estado, o qual dá unidade moral à existência da sociedade.
A crítica ao liberalismo político é, desse modo, comunitarista, porquanto reconhece a diversidade como marca das sociedades democráticas contemporâneas e a necessidade do resgate de uma eticidade para a teoria política normativa4. A crítica comunitarista ao liberalismo baseia-se em três pontos que suscitam a discussão normativa: (a) a visão liberal do eu é vazia; (b) a visão liberal do eu viola a percepção do próprio eu; (c) a visão liberal do eu ignora a inserção do indivíduo nas práticas comunais. Estas críticas baseiam-se numa concepção de comunidade e de cultura como fundamentos para a política contemporânea, tendo em vista o contexto dos novos movimentos sociais e as suas lutas pelo reconhecimento (Taylor, 2000, p. 203).
De acordo com Taylor (2000, p. 149), o vazio da concepção liberal do eu reside no facto de o liberalismo não reconhecer que o indivíduo é portador de uma identidade e que essa identidade o insere e o situa na comunidade, sendo ela, portanto, fundamental para sustentar os significados e expressões da autonomia. Não é possível pensar, de acordo com Taylor, em indivíduos isolados dos eventos de significados que são atribuídos pela comunidade no plano da sua cultura5. Se a liberdade for puramente negativa, não existirá nenhum significado mais amplo para a ideia de liberdade, já que esse tipo de liberdade significa um vazio de sentido e presume um indivíduo isolado da sua comunidade (Taylor, 2000, p. 149). No que respeita à segunda crítica, a de que a visão liberal do eu viola a percepção do próprio eu, baseia-se na ideia de que os interesses e as percepções do mundo não são julgamentos exclusivamente individuais, nem são elementos inatos ou expressões de emoções sem significado maior para a ideia de felicidade. De acordo com MacIntyre (2001, p. 30), essa perspectiva deriva de uma abordagem emotivista da moral que não considera o facto de as nossas percepções de mundo estarem relacionadas com os papéis sociais que exercemos e que os desejos e os interesses não antecedem a existência do eu, mas formam a própria identidade do eu6. Em terceiro lugar, a crítica ao liberalismo político salienta que este ignora a inserção do indivíduo nas práticas comunais. O liberalismo seria cego às diferenças e procura impor uma cultura hegemónica sobre as minorias (Taylor, 2000, p. 219). Segundo Taylor, uma visão mais ampla da democracia e da vida pública depende dos significados que estão delineados na comunidade política, sem que essa visão esteja ligada a uma concepção transcendental de moral, que esvazia a noção de comunidade.
Este conjunto de críticas ao liberalismo político baseia-se na ideia de que as concepções deontológicas não são suficientes para pensar o problema da justiça no mundo contemporâneo, pois abandonam uma perspectiva de comunidade e a existência de uma eticidade que especifique o próprio valor da justiça. Sem um fundo ético não é possível pensar os significados que a ideia de justiça pode assumir nas democracias, não dando conta dos conflitos típicos das sociedades contemporâneas, que são culturais, e não necessariamente económicos. Por conseguinte, uma vez que os conflitos são sociais e a ideia de justiça supõe uma eticidade, é fundamental construir uma hipótese sociológica que explique os fundamentos das sociedades democráticas e as possibilidades de estabilidade institucional. Do ponto de vista metodológico, a partir de uma perspectiva comunitarista, a teoria política regressa a uma abordagem sociológica e não apenas deontológica e formal. De posse dessa hipótese sociológica, o comunitarismo lança os princípios de uma sociologia das relações de poder, com o objectivo de promover uma reflexão a respeito da ideia de justiça como uma teoria social. Sendo a justiça uma teoria social, o resultado é a reconstrução da sociologia política como fundamento para uma ciência da política em que o seu marco teórico se centre principalmente no tema das identidades.
A hipótese sociológica da teoria política: o multiculturalismo e o reconhecimento
Pode-se dizer que a crítica comunitarista ao liberalismo político aponta a este último um défice de realismo. Os comunitaristas defendem que falta ao liberalismo tratar dos eventos de significados que são construídos na dimensão da comunidade, e não penas pelo indivíduo isolado. Ou seja, o liberalismo de Rawls seria aplicável apenas em sociedades que já fossem democráticas, além de demandar uma estrutura de direitos que fosse eficaz na sua base.
É por estes motivos que o liberalismo político padeceria de um défice de realismo, porquanto o problema das deontologias está exactamente no seu aspecto formal e pouco empírico. Apesar de o liberalismo político de Rawls ter avançado na questão da justiça, desvinculando-a de visões metafísicas e transcendentais, a sua deontologia parte da presunção de que os pressupostos institucionais são desvinculados dos sentidos mais amplos de vida social (Taylor, 2000, p. 199). Faltaria, portanto, ao construtivismo rawlsiano uma concepção constitutiva de comunidade a partir da qual a ideia de justiça ganhasse um conteúdo semântico na estrutura da sociedade (Sandel, 2005, p. 215). Rawls reconhece, em escritos posteriores, que os preceitos da justiça como equidade são aplicáveis apenas em povos liberais razoáveis ou decentes7. Ou seja, o liberalismo político rawlsiano reconhece que existem certas condições estruturais, no plano da sociedade, para a realização dos termos da justiça como equidade e que a sua concretização depende de condições dadas pela existência de um governo constitucional, de uma cultura democrática de tolerância e uma natureza moral dada por uma concepção política de direito e justiça (Rawls, 2001, p. 30).
Como afirma Sandel (2005, p. 246), o liberalismo político pressupõe uma concepção constitutiva de comunidade a partir da qual sejam retirados os princípios que informam uma concepção política (moral) de justiça. Por conseguinte, uma teoria da justiça demanda uma concepção de comunidade que ofereça as estruturas sobre as quais ela irá operar, tendo em vista conteúdos que são oferecidos por tradições e lealdades fundamentais. Dessa maneira, é importante frisar que a justiça caminha para a formação de uma sociedade democrática plural e tolerante, como demonstram os objectivos rawlsianos de justiça como equidade. Contudo, é necessária a uma teoria da justiça a derivação de uma hipótese sociológica mediante a qual seja possível uma reflexão acerca das condições estruturais que possibilitem a sua realização (Walzer, 1993, p. 21).
A existência de uma hipótese sociológica para pensar as condições estruturais para a concretização da ideia de justiça faz com que a teoria política normativa retorne a uma reflexão de teoria social, em que a realização da democracia não dependa apenas da existência de uma justiça procedimental, mas da realização plena de uma sociedade democrática, capaz de criar conteúdos de sentido para a realização da liberdade. Foi dessa maneira que a reflexão sobre a justiça recuperou uma concepção da sociologia como método para uma ciência da política. O objectivo da reflexão política não estaria apenas na dimensão das instituições formais, mas na reflexão sobre os termos gerais de uma sociedade democrática. A ideia de justiça é complexa e necessita de pressupostos sociológicos para a sua reflexão. Isto é, a reflexão normativa da teoria política gira em torno da questão da justiça social, criando uma área sofisticada e autónoma de pensamento, cujo pressuposto é o da ideia de justiça como teoria social dos bens (Walzer, 1993, p. 43).
O desdobramento dessa hipótese sociológica para a teoria política está na presunção de que o problema fundamental seja pensar questões culturais como ponto de reflexão normativa. As questões identitárias, por conseguinte, tornaram-se questões básicas da teoria política, e a realização da justiça como fim normativo exige uma reflexão sobre as condições de igualdade. Essa hipótese sociológica daria assim origem a duas formas de reflexão normativa: por um lado, as políticas de redistribuição que têm em vista a distribuição de recursos e bens a grupos carenciados e, por outro lado, as políticas de reconhecimento que se ocupam da questão das diferenças, procurando garantir a inserção de culturas vítimas do desrespeito (Fraser e Honneth, 2003). A existência de uma hipótese sociológica leva à reflexão sobre as condições estruturais de realização da justiça em que as políticas sejam tributárias de condições empíricas dadas no plano da comunidade.
No que diz respeito à questão da redistribuição, o pressuposto é que a organização social se dá na dimensão das classes e que a injustiça está na situação de privação a que as classes subalternas estão sujeitas. Como observa Fraser, as políticas de redistribuição exigem uma transformação estrutural realizada a partir das condições económicas, as quais garantem acesso ao reconhecimento dos grupos subalternos. O reconhecimento cultural, na perspectiva das políticas de redistribuição, é resultado do acesso dos grupos subalternos a recursos e oportunidades estratégicos, estabelecendo as condições para a justiça social. Como atesta a autora, o problema das políticas de redistribuição estaria exactamente no modo como o comunismo e as ideologias de mercado livre submergiram em função da ascensão das questões identitárias (Fraser e Honneth, 2003, p. 214). No que diz respeito às questões de justiça social, haveria, de acordo com Fraser, uma hegemonia das questões de reconhecimento, criando uma tensão com relação às questões de redistribuição.
A política do reconhecimento toma como ponto central de reflexão e realização da justiça a possibilidade de respeito em relação às diferenças culturais. A injustiça, como afirma Honneth, é uma condição de desrespeito que estaria dada na ausência de uma eticidade reguladora (Honneth, 1995)8. Esta eticidade seria responsável por criar laços intersubjectivos que forneceriam um conteúdo para uma concepção de justiça. O pressuposto, como afirma Honneth, é que o paradigma da justiça social tome a questão do reconhecimento como seu centro, estabelecendo como fundamental a realização de uma política da diferença que, por sua vez, estabeleça as condições estruturais para a igualdade. Nesta chave da justiça como teoria social, as questões culturais teriam precedência ontológica sobre as condições estruturais do mundo material e as questões de justiça básica seriam, por definição, questões identitárias e centradas na busca das condições do auto-respeito.
A hipótese sociológica da ideia de justiça como teoria social demandaria, tanto na dimensão da redistribuição quanto na dimensão do reconhecimento, a busca de critérios ontológicos para a derivação de princípios básicos no plano da sociabilidade. Contra uma perspectiva deontológica e pouco realista, como a de justiça como equidade, defendida por Rawls, seria necessário criar condições ontológicas que estabeleçam os critérios para a realização da justiça. Como observa Fraser, o debate sobre essas condições ontológicas leva à criação de uma falsa antítese entre redistribuição e reconhecimento, cujo resultado é a construção de perspectivas parciais de justiça. Enquanto os defensores da redistribuição acusam a ideia de reconhecimento como falsa consciência, os defensores do reconhecimento atestam o facto de que redistribuição sem reconhecimento não quebra a hegemonia de culturas maioritárias (Fraser e Honneth, 2003, p. 11). A hipótese sociológica de justiça criaria, dessa forma, uma antítese entre redistribuição e reconhecimento, em que o debate gira em torno de perspectivas ontológicas reducionistas e contrastantes.
De acordo com Fraser, haveria quatro temas fundamentais que informariam os termos da antítese entre redistribuição e reconhecimento. Em primeiro lugar, ambas as concepções lidam com noções distintas de injustiça. A política de redistribuição foca o tema da injustiça na estrutura socioeconómica da sociedade, presumindo que as políticas se devem direccionr para a transformação dessa estrutura. As políticas de reconhecimento, por seu turno, operam com o conceito de injustiça na dimensão da cultura, considerando que a sua origem estaria nos padrões sociais de representação, interpretação e comunicação. As políticas de reconhecimento têm em vista a transformação das interacções quotidianas, no sentido de modificar esses padrões sociais de representação, interpretação e comunicação. Em segundo lugar, o contraste entre redistribuição e reconhecimento está na definição das soluções apontadas para resolver as injustiças. As políticas de redistribuição apontam como solução a reestruturação económica e a reorganização da divisão do trabalho, bem como a democratização dos procedimentos para a tomada de decisão sobre investimentos. As políticas de reconhecimento, por seu turno, estabelecem como remédio para a injustiça a valorização da diversidade cultural e o reconhecimento de culturas às quais o respeito foi negado. Em terceiro lugar, o debate entre redistribuição e reconhecimento apresenta concepções distintas sobre as colectividades que sofrem a injustiça. Na perspectiva da política de redistribuição, estas colectividades estão na dimensão das classes e nas suas condições de subsistência, enquanto a política de reconhecimento trata dos grupos de status e prestígio no âmbito da vida quotidiana. Finalmente, o contraste entre redistribuição e reconhecimento trata de diferentes perspectivas sobre o problema das diferenças. Para a política de redistribuição, as diferenças devem ser abolidas no sentido da construção de uma sociedade justa, enquanto para a política de reconhecimento estas diferenças (culturais) devem ser reforçadas como variações positivas de cultura, que merecem o respeito por parte do outro (Fraser e Honneth, 2003, p. 15).
O problema, de acordo com Fraser, é que, no debate entre redistribuição e reconhecimento, é formada uma falsa antítese que toma as condições ontológicas para a realização da justiça como mutuamente exclusivas. O debate entre redistribuição e reconhecimento cria uma concepção truncada que resulta em políticas parciais de justiça social. Estas concepções parciais não conseguem explicar a injustiça e a complexidade das sociedades capitalistas. De acordo com a autora, é fundamental pensar numa concepção dual de justiça que possibilite equacionar as questões da redistribuição e do reconhecimento num mesmo plano ontológico, tendo em vista formas híbridas que combinem os aspectos socioeconómicos com os identitários. Fraser presume que o erro do debate reside no facto de haver concepções excludentes sobre as colectividades, as quais partem de pressupostos distintos sobre a organização social. A resolução deste problema, de acordo com a autora, passa pelo desenvolvimento de uma concepção bivalente de colectividade em que questões de má distribuição socioeconómica e questões de não reconhecimento cultural sejam consideradas co-responsáveis pelas situações de injustiça (Fraser e Honneth, 2003, pp. 26-33).
Questões de auto-realização e de auto-respeito integram, de acordo com Fraser, uma concepção de justiça social mais ampla, mas que teria uma condicionante para a sua realização. Fraser agrega uma terceira dimensão a essa concepção dual de justiça, promovendo a ideia de uma concepção tridimensional, assente, para além da redistribuição e do reconhecimento, na paridade de participação como critério normativo. A paridade de participação é uma condição ontológica para a realização de uma concepção dual de justiça, uma vez que reduz a redistribuição e o reconhecimento um ao outro. De acordo com essa norma, a justiça requer arranjos sociais que permitam que todos os membros da sociedade interajam uns com os outros. A paridade de participação é uma condição por meio da qual a intersubjectividade possa ser concretizada e os pedidos de justiça possam ser vocalizados no âmbito da esfera pública (Fraser e Honneth, 2003, pp. 36-37).
Pode-se dizer que Fraser acertou no seu diagnóstico ao reduzir o impulso monista que marca o debate entre redistribuição e reconhecimento. Contudo, contra condições ontológicas reducionistas, Fraser afirma outra condição ontológica que condiciona a realização da redistribuição e do reconhecimento. A paridade de participação é um remédio contra a injustiça, que tende também a ser reducionista na base do debate público sobre as condições de distribuição e reconhecimento (Bohman, 2007, p. 271). Ao adoptar uma concepção também reducionista, presume-se uma universalidade da ideia de paridade de participação, sem se ater às condições de dominação que marcam as sociedades contemporâneas. De acordo com Bohman, a dominação não é matéria de valores culturais institucionalizados nem de paridade de participação, porquanto ambos estão relacionados com condições mais amplas de liberdade que não se realizam apenas na dimensão do mundo económico e do mundo cultural.
No que diz respeito ao problema da dominação, omitido nas teorias da justiça social, há uma conotação política da justiça para a qual a hipótese sociológica não consegue uma resposta eficaz. O problema não é reduzir as perspectivas da justiça à redistribuição e ao reconhecimento, mas atentar nas condições mais amplas de legitimidade do domínio dos indivíduos e grupos sobre outros indivíduos e grupos. Desta forma, não é possível omitir o problema do Estado das perspectivas da justiça como teoria social. Segundo Bohman, o conceito de paridade de participação de Fraser não dá conta do problema da liberdade e de lealdades políticas fundamentais que ocorrem na dimensão do Estado.
O debate que resulta da hipótese sociológica é omisso em relação à questão do Estado, tomando-o como um ente passivo diante das tentativas de reconhecimento e de redistribuição, cabendo-lhe apenas a realização dessas demandas sem pensar em condições mais amplas de liberdade política (Feldman, 2002, p. 418). Essa omissão conduz ao facto de que o desdobramento da teoria da justiça como teoria social, a partir do que nomeamos como hipótese sociológica, não tem em conta o factor liberdade, faltando-lhe uma reflexão sobre as condições mais amplas da liberdade política como um problema sociológico, bem como sobre a questão do Estado nas sociedades contemporâneas. A adopção de premissas ontológicas conduz a esse reducionismo metodológico, em que questões de justiça básica são resolvidas apenas com a adopção de remédios direccionados para os grupos. É fundamental, dessa maneira, pensar num desdobramento da hipótese sociológica na dimensão do problema da liberdade e do Estado, no sentido de promover uma concepção integradora de justiça social.
Os limites da justiça como teoria social
Condições ontológicas para a derivação de um sentido da ideia de justiça conduzem normalmente a visões reducionistas da realidade social, em que se procura a explicação das condições degradantes da vida quotidiana pela afirmação de premissas analíticas extremamente sintéticas, embora contraditórias. De facto, o debate sobre a questão das sociedades multiculturais, dos seus padrões de diferenças, e o modo como se procura um sentido de justiça acabam por construir um discurso aporético em que o debate sobre os termos da justiça social se contradiz a si mesmo. A discussão sobre a justiça, no mundo contemporâneo, tomou a proporção de um discurso autónomo e extremamente sofisticado que tende, por sua vez, para a sua naturalização e banalização.
Ao assumir uma condição aporética, o discurso sobre a justiça social assume uma condição de contradição permanente, em que as lutas sociais acabam por ser reduzidas a sectarismos ou fundamentalismos que contradizem os termos da integração social presumidos na hipótese sociológica. Esses sectarismos e fundamentalismos conduzem a uma crescente despolitização da justiça e das próprias lutas sociais. O problema é que se procura afirmar uma realidade do ser que sofre a humilhação, o desrespeito e as consequências da desigualdade, sem se ter em conta o facto de que o conceito de justiça é polissémico, não se resumindo a uma concepção ontológica do mundo. A hipótese sociológica para a discussão da justiça como teoria social trouxe avanços na discussão das soluções para a injustiça, chamando a atenção para elementos materiais e simbólicos da opressão. Todavia, tomar a perspectiva da justiça significa a construção de enunciados normativos na dimensão de uma moralidade política pressuposta. Ou seja, não é possível pensar os termos da justiça sem uma conotação política de fins normativos para a acção tanto na dimensão do indivíduo quanto na dimensão da comunidade.
A perspectiva da redistribuição contribui para a despolitização da justiça social ao atribuir a solução para as desigualdades à existência de um Estado burocrático que controla e distribui os recursos e bens produzidos pela sociedade. Como observa Habermas (2002a, p. 64), o problema do welfare state é que a sua crescente burocratização levou a formas instrumentalizadas de acção da sociedade, contribuindo para as suas crises de legitimação. A societalização do público conduziu a uma crescente crise de legitimação, que conduz, por sua vez, a uma crescente despolitização do Estado, relegado para um papel de agente administrativo da sociedade. Ao instrumentalizar a acção do Estado, o welfare state acabou por constituir a colonização do discurso político pelo discurso económico.
Por outro lado, a perspectiva do reconhecimento despolitiza a própria relação de reconhecimento, ao presumir uma mudança no sistema de representação, interpretação e comunicação da sociedade sem uma afirmação política na dimensão do público. Como observa Feldman (2002), a política do reconhecimento pressupõe passividade dos agentes políticos ao crer que as questões relacionadas com a desigualdade e com o desrespeito se resolvem apenas na dimensão da cultura. Brian Barry (2001, p. 71) demonstra também que a filiação a grupos nem sempre é uma derivação da cultura, em que o tema das identidades seja considerado algo inato, porquanto esta filiação depende de outras questões, tais como a fisiologia, a orientação sexual ou a idade. Da mesma forma, a filiação a grupos não significa uma condição fechada e estanque nem representa a pertença incondicional de um indivíduo a um grupo. Um mesmo indivíduo pode pertencer a diferentes grupos multiculturais, sendo ao mesmo tempo negro, pobre ou mulher, por exemplo (Kymlicka, 1995). Falta à noção de reconhecimento uma visão mais ampla de público, em que as lutas pelo reconhecimento não sejam processadas como questões monistas da realidade social excludente (Tully, 2000, p. 475). Dessa forma, a dimensão do reconhecimento não pode admitir concepções fundamentalistas, uma vez que o pressuposto de intersubjectividade assenta em relações não antagónicas e planificadas entre diferentes culturas. O confronto entre culturas resulta numa visão sectária da vida social, em que a possibilidade de solução do conflito se apresenta como uma solução ideal e pouco realista. Nessa perspectiva, os direitos pertencem aos grupos e não aos indivíduos, criando uma situação paradoxal em relação às liberdades fundamentais9.
Por fim, resolver a questão da justiça na dimensão da participação implica considerar uma condição não condizente com a realidade. Não há no pressuposto de paridade de participação de Fraser uma conotação de liberdade política, já que a participação não é matéria de justiça distributiva, mas matéria de liberdade da dominação e de status do membro do grupo. Falta, portanto, ao paradigma da justiça social (redistribuição e reconhecimento) a atenção aos problemas políticos, em particular ao problema da liberdade, da representação e do Estado. Não se modificarão os valores culturais institucionalizados, nem mesmo a má distribuição de recursos, se os agentes não tiverem condições para exprimir a sua opinião e as suas preferências em público (Bohman, 2007, p. 273). Dessa forma, não se resolve o problema da má distribuição e do não reconhecimento pela via de uma paridade da participação, mas pela atribuição de liberdades fundamentais na dimensão de um mínimo democrático. Como observa Bohman, esse mínimo democrático significa descrever condições necessárias, mas não suficientes, para que os arranjos democráticos produzam justiça em situações não ideais. Não há na ideia de mínimo democrático um conteúdo reducionista, mas a afirmação de uma realidade pluralista da democracia na qual não exista uma concepção ontológica do mundo, mas uma perspectiva pragmática para a realização da justiça. Não há, na perspectiva do pragmatismo de Bohman, uma concepção essencialista da justiça, nem mesmo das identidades ou da cultura. O problema da dominação assume uma conotação política à medida que se abandona uma concepção reducionista da injustiça, substituída por outra polissémica, em que o problema das diferenças encontra soluções diversas no contexto das instituições democráticas.
Assim, o problema da justiça encontra na política o ponto central para a solução de questões relativas ao reconhecimento, à redistribuição e à participação, e o pressuposto pragmático de um mínimo democrático passa a ser essencial à construção da própria ideia de uma sociedade democrática.
A questão da justiça exige, dessa forma, uma incursão no tema do Estado, no sentido em que este, apesar da globalização, continua a constituir um tipo de lealdade fundamental, já que dele derivam identidades fundamentais. Não é possível construir uma concepção de justiça (redistribuição e reconhecimento) sem uma concepção do Estado democrático, em que o tema das liberdades políticas seja constitutivo de uma noção mais ampla do público.
Sociedades plurais, que são permeadas por concepções multiculturais e díspares no plano das identidades, demandam a existência do Estado como unidade identitária, apesar das diferenças. Nos termos de Dewey (1991 [1927], p. 33), o Estado é a organização do público, tendo em vista a consecução de valores e normas de sociedades compostas por uma multiplicidade de grupos e interesses. A estratégia do pluralismo de Dewey, nesse sentido, permite outra abordagem ao tema da justiça, a qual deixa de estar assente apenas na dimensão da economia ou na dimensão da cultura para passar a contemplar um conjunto de valores básicos delimitados na esfera do público. Do pluralismo de Dewey podemos retirar a concepção segundo a qual a justiça requer uma condição de publicidade mais ampla, em que as questões de justiça básica não sejam resolvidas pela naturalização de identidades ou de desigualdades, mas por uma concepção pragmática para a qual os temas da democracia e do interesse público sejam fundamentais.
Omitir o tema do Estado na construção de uma hipótese sociológica para a teoria da justiça significa omitir uma forma básica de lealdade das sociedades modernas, omitindo, por sua vez, a própria esfera da política na resolução do problema das diferenças. Cabe a uma teoria da justiça como teoria social uma reflexão sobre o Estado democrático, no sentido de ampliar a esfera do reconhecimento e da redistribuição. A concepção do Estado democrático permite a construção de uma estratégia de solidificação da justiça em sociedades plurais sem a naturalização do reconhecimento, da redistribuição e da participação.
O lugar do Estado (republicano e democrático) na teoria política
A construção de uma hipótese sociológica para a ideia de justiça promove uma omissão em relação ao tema do Estado. De um lado, o liberalismo político relega o Estado para uma posição de neutralidade, cabendo-lhe apenas realizar os ideais de justiça numa perspectiva neutra em relação à justificação de políticas. Não há, no contexto do liberalismo político, uma reflexão sobre a questão do Estado e dos seus desdobramentos. Do mesmo modo, a discussão sobre a justiça social (redistribuição e reconhecimento) relega o Estado para uma posição administrativa e passiva na sociedade, estando as questões de justiça alicerçadas na confrontação entre o mundo económico e o mundo cultural.
De facto, pode-se dizer que o Estado e a sua legitimidade submergiram a outros contextos que se pretendem hegemónicos no debate político contemporâneo. Quando a questão é a redistribuição, o discurso económico tende a colonizar o discurso político, de maneira a solidificar um tipo de visão da justiça em que os indivíduos lutam por bens e recursos. O liberalismo político, ao dar prioridade à questão da distribuição, estabelece o mercado como o locus da acção política, sem pensar em temas relacionados com as lealdades fundamentais. De outro lado, quando se privilegia a questão da cultura, tende-se a ver a política apenas como uma questão identitária e de autonomia de grupos, em que estes lutam pelo reconhecimento no âmbito de uma política voltada para a questão do respeito. O resultado é que o discurso pelo reconhecimento também coloniza o discurso político, no sentido de instrumentalizar a acção política. Quando se olha para a questão da política e da justiça apenas pela questão da cultura, o resultado é a promoção de uma política de sectarização que mantém o desrespeito vigente.10
O problema não é reconhecer que essas questões não têm importância. Muito pelo contrário. Estas questões são fundamentais nas sociedades democráticas contemporâneas. O problema é construir visões reducionistas da realidade social sem ter em conta processos mais amplos de cidadania. Falta à perspectiva da justiça uma concepção com autoridade em que as políticas de redistribuição ou as políticas de reconhecimento tenham eficácia social, cultural, económica e política. É nesse sentido que o Estado é ainda um agente central nas sociedades democráticas, uma vez que essa perspectiva com autoridade se encontra ausente do problema da justiça. Ou seja, falta à perspectiva da justiça social uma concepção de Estado que possibilite concretizar os seus fins. James Bohman (2007) observa a necessidade da existência de um Estado democrático, em que a ideia de mínimo democrático ocupe um lugar central na reflexão sobre o tema da justiça e em que esse mínimo democrático viabilize as exigências de redistribuição e reconhecimento. Contudo, creio que a noção de Estado democrático precisa de ser ampliada na direcção de uma concepção de cidadania plena. O Estado não deve ser encarado apenas como um ente administrativo, mas como um sujeito coletivo que coaduna as lutas sociais.
O desdobramento da hipótese sociológica, como mostrei nas secções anteriores, é pensar uma sociologia das relações de poder no âmbito do Estado, tomando como centro de reflexão teórica uma perspectiva de liberdade política. Dessa forma, algumas perguntas são essenciais nessa problematização da questão da autoridade. Que tipo de Estado poderia resolver as questões da justiça? Qual o alcance do Estado na sociedade contemporânea? Como definir a sua legitimidade? Este questionário facilita a resposta às questões de justiça básica, recolocando-as na esfera da política e na esfera do problema da liberdade.
No que diz respeito ao conceito de Estado, tem sido ponto recorrente de debate na teoria política a recuperação da noção do político, derivada da contribuição de Carl Schmitt (1990). Schmitt defende que o político se define pelas relações entre amigo e inimigo, definindo um sentido de Estado na dimensão interna e externa. O político realiza-se, internamente, pela lealdade fundamental que os homens estabelecem com o Estado, definindo um contexto de amizade contra um inimigo externo. É nesse sentido que o político, de acordo com Schmitt, se resume ao Estado e se realiza pelo Estado. Por extensão, a política é o próprio Estado e a noção de autoridade que daí deriva. O sentido que Schmitt dá ao Estado é a existência da autoridade e a sua extensão no âmbito da comunidade. Schmitt, como pensador do Estado, pressupõe a existência da unidade e da identidade, que conferem a autoridade ao Estado, e demonstra a fragilidade das democracias liberais. O problema em se absorver o conceito de político e a sua derivação da questão da autoridade está em não reconhecer a pluralidade e, por sua vez, a democracia como temas fundamentais da política11. Podemos dizer que o conceito de político de Schmitt carrega uma conotação inadequada em torno da questão da autoridade, por pressupor uma unidade orgânica da sociedade, que não admite a existência do outro. Apesar de atestar o contexto de despolitização que as democracias liberais proporcionam, é inadequado pensar o conceito de Estado com o qual Schmitt trabalha, visto que não há no conceito de político uma pressuposição de pluralismo que defina as sociedades contemporâneas.
Apesar da inadequação do conceito de político, podemos recorrer a um aspecto importante da obra de Schmitt, que é a questão da amizade. O conceito de Estado implica pensar a questão da relação amigo e inimigo, sendo a amizade o elemento que define uma identidade fundamental dos indivíduos em relação ao Estado. O tipo de Estado de que precisamos para solucionar as questões da justiça (redistribuição e reconhecimento) precisa de estabelecer unidade na diversidade, uma vez que esta é uma questão que impede a sectarização da sociedade. O conceito de amizade, portanto, pode cumprir uma função importante no nosso argumento, permitindo pensar a unidade e a autoridade no contexto de sociedades democráticas. Ou seja, é fundamental estabelecer qual o papel do Estado no problema da justiça de acordo com uma estratégia de repolitização do justo. Apesar da concepção de Estado de Schmitt ser inadequada, é correcta a presunção de despolitização descrita por este autor quando o problema é a produção de justiça em sociedades plurais.
Desse modo, recolocar o tema do Estado significa procurar uma concepção política de justiça, e não uma concepção de justiça política, como no liberalismo, ou de justiça social, como no comunitarismo. Reflectir a respeito de uma concepção política de justiça significa recolocar o tema da legitimidade como condição do justo. O meu argumento é que falta à hipótese sociológica da ideia de justiça uma conotação política em que o tema da liberdade seja tomado como tema fundamental. E as questões de justiça apenas podem ser resolvidas sem sectarização se houver uma instância deliberativa dos fins através da qual a liberdade política se concretize. No que diz respeito ao conceito de liberdade, não tratamos do conceito de liberdade negativa. O conceito de liberdade negativa pressupõe a não interferência e a neutralidade do Estado perante a sociedade, não havendo um sentido de comunidade que informe uma concepção constitutiva. A liberdade política está relacionada com a capacidade de o cidadão manifestar as suas preferências em público e decidir sobre questões fundamentais da colectividade, o que exige um tipo de Estado fundamentalmente republicano (Pettit, 2001a).
O Estado republicano é um sujeito colectivo ao qual é dado pela comunidade um status especial dentro dos seus limites de operação. É um tipo de Estado que, de acordo com Pettit (2001a, p. 213), pressupõe a existência de um público ampliado, mediante o qual exista uma razão discursiva que assegure a sua legitimidade. O Estado republicano é, de acordo com este autor, um Estado livre, em que a questão central é o problema da dominação e da sua extensão nas sociedades contemporâneas. Como Estado livre, o Estado republicano presume que o conceito de liberdade é indissociável da existência de uma vida pública e da capacidade discursiva do cidadão, pela qual ele exercerá influência sobre os demais cidadãos e terá acesso às instâncias onde o debate público é realizado.
A liberdade republicana é a liberdade como não-dominação, em que a condição para ser livre depende de o indivíduo não sofrer nenhum tipo de interferência arbitrária por parte de outro indivíduo ou grupo (Pettit, 1997, p. 66)12. A liberdade republicana significa que uma pessoa goza da não-dominação, uma vez que ela não se exponha a um poder arbitrário de interferência por parte de outros. O conceito de liberdade republicana implica o desafio constitucional para formular uma política que possua poder com autoridade, ou outros com ele relacionados, e que esse poder não seja arbitrário. A autoridade, nesse sentido, supõe uma concepção de liberdade em que não haja dominação ou qualquer forma de interferência arbitrária. Esta perspectiva de liberdade política não omite a existência do Estado, mas procura dar-lhe um sentido constitucional que evite a arbitrariedade.
A ideia de justiça presume que a adjudicação dos conflitos sociais, políticos, económicos e culturais seja mediada por instituições que tenham na lei o seu princípio fundamental. Se a teoria política contemporânea se preocupa com a questão da justiça, a sua proximidade com o direito e com a origem da lei é inevitável. É dessa presunção que o liberalismo de Rawls recupera uma visão contratualista da origem da constituição, tendo em vista o conceito de consenso constitucional. De forma oposta, o comunitarismo procurará a origem da lei nas tradições culturais de um povo, que informam um conteúdo histórico para instituições e práticas. O problema da vertente liberal é não ter um argumento a respeito da origem da lei baseado num movimento político. Ao atribuir a origem da lei ao contrato, Rawls sobrepõe a justiça às condições do governo legítimo. Por outro lado, o comunitarismo, ao pressupor a origem da lei nas tradições culturais de um povo, promove, tal como o liberalismo, uma estratégia de despolitização ao prever uma antecedência do justo ao legítimo. Uma concepção política da justiça deve dar conta da origem da lei, de acordo com o problema da legitimidade. A recuperação do tema da legitimidade para uma concepção política de justiça significa estabelecer regras e princípios constitucionais sustentados na ideia de publicidade. Ou seja, a validade de regras e princípios que balizem uma concepção política de justiça apoia-se na publicidade da acção do Estado republicano no contexto das ordens democráticas.13
A estratégia republicana não está em promover a despolitização da justiça, mas em afirmar uma concepção política que tome como preceito fundamental a ideia de liberdade. O governo legítimo, para os republicanos, é o governo que assegure a liberdade política. A justiça realiza-se na condição de liberdade política, de acordo com um processo alargado de participação do povo na construção da lei e da validade dos princípios postos na constituição. Nancy Fraser concentrou o problema da justiça na paridade de participação. O problema é que a participação, por si só, não resolve o problema das injustiças. O preceito da paridade de participação assenta na ideia da existência de uma sociedade civil activa, o que nem sempre é empiricamente verificável. Por outro lado, o liberalismo rawlsiano concentra na razão judicial a adjudicação de conflitos e a produção da justiça, sem ter em conta processos participativos e as virtudes dos cidadãos. O Estado republicano e uma concepção política da justiça (e não da justiça política ou da justiça social) têm na co-originalidade da lei e da participação os seus elementos fundamentais. O conceito de liberdade republicana supõe que os cidadãos participem na criação da lei, com a finalidade de produzir justiça, mas que essa condição não seja suficiente para garantir a sua legitimidade.
Uma concepção correcta de Estado republicano considera que a participação por meio de processos de deliberação pública e a existência de instituições sustentadas num marco constitucional são condições duais para a concretização de uma concepção política de justiça (Ackerman, 1991, pp. 6-7). A democracia tem um carácter dualista que associa leis e participação num patamar público de constitucionalização de princípios e valores fundamentais. Uma concepção política de justiça, portanto, é fundamental para a concretização de um ideal de justiça válido de acordo com a condição de liberdade política das ordens constitucionais, tendo em vista uma razão discursiva que balize a participação. O problema da liberdade política e da justiça, na dimensão do Estado republicano, é o problema da razão discursiva.
Se o problema das sociedades contemporâneas é o problema das condições estruturais da dominação, a existência de um Estado republicano pode representar um elemento de emancipação dos grupos subalternos quando a questão fundamental seja a da libertação da arbitrariedade alheia, uma vez que esses grupos podem ir a público lutar por condições mais amplas de liberdade. É fundamental, nesse sentido, a existência de um sistema de direitos e deveres mediante os quais esses grupos possam enquadrar a sua luta por condições de redistribuição e reconhecimento, no pleno exercício crítico da cidadania. Uma concepção política da justiça, por conseguinte, afirma que a participação, por um lado, e os princípios e as regras constitucionais, por outro lado, são co-extensivos da justiça. A justiça depende de um Estado democrático que tenha na lei o princípio fundamental da sua actuação, mas que não seja uma condição exclusiva do justo. Noutra dimensão de uma concepção política de justiça, a legitimidade desse Estado requer processos participativos que assegurem a publicidade da sua actuação na sociedade, com o objectivo de assegurar, por sua vez, a reflexividade e a capacidade de crítica social da política.
Ao abordar o tema da dominação e o tema da liberdade, a discussão sobre um Estado republicano representa uma perspectiva normativa sociologicamente rica, uma vez que possibilita compatibilizar condições de liberdade e igualdade no contexto de sociedades plurais e complexas. Essa concepção de Estado republicano permite ainda abordar os temas da redistribuição e do reconhecimento segundo uma perspectiva política, assegurando critérios para a autoridade das políticas que deles derivam A condição para que a redistribuição e o reconhecimento ocorram no contexto de sociedades democráticas é haver uma razão discursiva que permita aos agentes tornarem-se invulneráveis à possibilidade de serem silenciados, ignorados, de não serem ouvidos ou de lhes ser negada a palavra final nas próprias respostas. O reconhecimento está na condição de sujeito discursivo que pertence ao cidadão, com voz e ouvidos próprios, que não aceita o domínio arbitrário do outro (Pettit, 2001a, p. 194).
A perspectiva da liberdade como sujeito discursivo tem povoado as perspectivas de teoria política, como a abordagem habermasiana, por exemplo. Habermas recuperou a possibilidade de uma eticidade no contexto do pensamento pós-metafísico a partir de uma pragmática do discurso racional sobre a verdade (Habermas, 2002b). A partir dessa pragmática, o autor construiu a noção de uma democracia deliberativa que tenha na sociedade civil o actor privilegiado para a existência de uma esfera pública. As condições do discurso, na perspectiva da democracia deliberativa, assentam na existência de uma ética do discurso que estabeleça as regras e condições para a realização da deliberação (Habermas, 1997, p. 30). O problema é que não existe um conteúdo da moralidade que dê um conteúdo ao que será deliberado, criando uma situação de deliberação contrafactual que não permite testar as condições da própria deliberação (Pettit, 2001b).
A resposta encontrada por Pettit para o problema dos sujeitos discursivos parece mais interessante do que a de Habermas, do ponto de vista sociológico, e mais próxima do conceito de razão pública de Rawls, do ponto de vista normativo14. O Estado republicano exige que as questões políticas sejam aquelas que respeitem a condição de publicidade, não se resumindo a uma esfera, mas a uma condição de público aberto (Pettit, 2001a). A democracia, nas sociedades contemporâneas, não se realiza na condição da deliberação, porquanto essa condição está envolvida no dilema discursivo. O dilema discursivo ocorre quando as situações de deliberação resultam em políticas que o público não necessariamente apoie. Face a essas situações, há a necessidade de colectivização da razão no sentido de resolver o dilema discursivo por uma saída com autoridade tomada em público (Pettit, 2001b, p. 292)15.
As exigências de redistribuição e reconhecimento, portanto, devem respeitar a condição de publicidade, uma vez que os grupos subalternos vão a público para lutar por condições justas de distribuição dos bens e recursos, bem como por condições de auto-respeito. Uma concepção política de justiça resgata uma noção de publicidade da lei, assegurada pelo alargamento do debate público na dimensão do Estado. A partir da condição da publicidade e da autoridade do Estado republicano, não há necessidade de alteração dos elementos comunicativos, como proposto por Honneth (1995), nem uma perspectiva de paridade participativa como condição ontológica de justiça, como defendido por Fraser e Honneth (2003). A perspectiva de colectivização da razão, como defendida por Pettit, requer que o discurso ocorra em público, numa perspectiva amigável. Uma perspectiva política de liberdade a partir do Estado republicano, portanto, coaduna-se com a ideia de que a justiça e a existência de uma razão discursiva demandam uma condição de publicidade mais alargada. Essa condição de publicidade exige que não haja sectarização da sociedade, mas a ideia de que os discursos de redistribuição e reconhecimento ocorram na dimensão de uma comunitarização das demandas sociais.
O Estado livre e republicano é, por definição, um Estado democrático, porquanto as demandas de justiça têm um carácter de não arbitrariedade e uma força com autoridade no contexto das lutas sociais pela redistribuição e reconhecimento. A condição de publicidade exige, dessa forma, um tipo de lealdade que esteja acima das particularidades dos grupos multiculturais, possibilitando a construção de uma identidade comum enquanto cidadão do Estado republicano. O Estado republicano permite a unidade na diferença, uma vez que garante voz aos diferentes grupos que estejam sujeitos às situações de dominação16. A perspectiva de um Estado republicano, sustentado na ideia de liberdade política, evoca para si que a solução para o problema da dominação exige a construção de uma unidade que não esteja num mínimo democrático, mas num ideal de comunitarização de exigências sociais pela construção de interesses comuns.
Esses interesses comuns nada mais são do que a perspectiva de uma condição de cidadania igual, mediante a qual se crie uma situação de unidade e a possibilidade de que os discursos por maior justiça ocorram numa perspectiva amigável, com o objectivo de preservar a liberdade dos agentes políticos. Não é pela sectarização da vida social que se resolverá a questão das diferenças multiculturais, mas pela perspectiva de integração social e mais democracia. A democracia é aqui compreendida como uma chave para a ampliação das liberdades políticas dos agentes (indivíduos e grupos) no contexto de sociedades marcadas por culturas díspares e necessidades básicas no plano material.
Há, dessa forma, um desdobramento de uma hipótese sociológica da justiça que está no problema da liberdade e do Estado republicano. Nessa hipótese sociológica não se defende o abandono das diferenças culturais e da redistribuição, mas que a condição heterogénea das sociedades contemporâneas se sustenta pela ideia de que os cidadãos possam desenvolver atitudes e concepções do mundo realizadas a partir de instituições comuns. A necessidade de se discutir a questão da justiça a partir de uma visão comum de cidadania impede a sectarização da sociedade e fundamenta a construção de um princípio com autoridade na condição da publicidade.
Considerações finais
Este ensaio procurou constituir uma reflexão sobre o papel do Estado no contexto das lutas pela redistribuição e pelo reconhecimento. Como afirmei, a luta dos movimentos sociais necessita de um ponto de convergência institucional que esteja na condição de uma vida pública ampliada pela qual uma razão discursiva possa dar conta de uma perspectiva de reconhecimento social das diferenças. A ideia de uma unidade na diversidade procura evitar a sectarização da sociedade, no sentido de mitigar os conflitos e as suas consequências. Dessa forma, o argumento foi construído em torno da ideia de um Estado republicano que seja capaz de acolher essas exigências de redistribuição e reconhecimento e de lhes dar um sentido com autoridade legitimamente construído.
A construção de uma sociologia das relações de poder deve adoptar essa perspectiva de público de maneira ampliada, de forma a compreender que a questão da autoridade deve ser confrontada e que ela é central na solidificação da democracia contemporânea. A reflexão sobre o Estado em contextos plurais e complexos deve ser uma tónica da teoria política contemporânea, no sentido de derivar propostas normativas de integração social a par de uma visão empírica da dominação e das estruturas da sociedade. O debate sobre a questão da redistribuição e do reconhecimento, portanto, deve partir da presunção de que o Estado é um ente central na construção da ideia de cidadania e que a plenitude do status de cidadão passa, fundamentalmente, pela condição de publicidade que as políticas devem assumir na ordem democrática.
Falta às considerações deste ensaio uma perspectiva sobre a questão internacional e as possibilidades de um Estado republicano balizado na ideia de direitos humanos. Procurei chamar a atenção para a questão interna e para o modo como se pode compreender uma noção ampliada de cidadania. Pensar a justiça internacional é talvez a tarefa mais controversa para o pensamento republicano que escapa ao escopo inicial deste artigo.
Bibliografia
Ackerman, B. (1991), We, the People Foundations, Cambridge, Harvard University Press.
Ball, T. (2004), Aonde vai a teoria política?. Revista de Sociologia e Política, 23, pp. 9-22. [ Links ]
Barry, B. (2001), Culture and Equality, An Egalitarian Critique of Multiculturalism, Cambridge, Harvard University Press.
Bohman, J. (2007), Beyond distributive justice and struggles for recognition. European Journal of Political Theory, 6 (3), pp. 267-276.
Dewey, J. (1991 [1927]), The Public and the Problems, Nova Iorque, Swallow Press, Ohio University Press, Athens.
Durkheim, É. (2002 [1893]), A Divisão do Trabalho Social, São Paulo, Martins Fontes.
Feldman, L. (2002), Redistribution, recognition, and the state. The irreducicly political dimension of injustice. Political Theory, 30 (3), pp. 410-440.
Filgueiras, F. (2008), Da tolerância: teorias, instituições e práticas. In XXXII Encontro Anual da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais, GT de Teoria Política, Caxambu, Brasil, pp. 1-28.
Fraser, N., e Honneth, A. (2003), Redistribution or Recognition? A Political-Philosophical Exchange, Londres, Verso.
Habermas, J. (1997), Direito e Democracia. Entre Validade e Facticidade, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.
Habermas, J. (2002a), A Crise de Legitimação no Capitalismo Tardio, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.
Habermas, J. (2002b), Pensamento Pós-Metafísico, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.
Honneth, A. (1995), The Struggle of Recognition. The Grammar of Social Conflicts, Cambridge, Polity Press.
Kant, I. (1983 [1795]), Perpetual Peace, and Others Essays on Politics, Londres, Hackett Publishing.
Kymlicka, W. (1995), Multicultural Citizenship. A Liberal Theory of Minority Rights, Oxford, Clarendon Press.
Macintyre, A. (2001), Depois da Virtude, Bauru, EDUSC.
Mommsen, T. (2003 [1854]), Historia de Roma, vol. 1, Madrid, Turner.
Mouffe, C. (2005), On the Political, Londres, Routledge.
Pettit, P. (1997), Republicanism. A Theory of Freedom and Government, Oxford, Oxford University Press.
Pettit, P. (2001a), A Theory of Freedom. From the Psychology to the Politics of Agency, Cambridge, Polity Press.
Pettit, P. (2001b), Deliberative democracy and discursive dilemma. Philosophical Issues, 11, pp. 268-299.
Rawls, J. (1993), Political Liberalism, Nova Iorque, Columbia University Press.
Rawls, J. (2001), O Direito dos Povos, São Paulo, Martins Fontes.
Rawls, J. (2002 [1971]), Uma Teoria da Justiça, São Paulo, Martins Fontes.
Sandel, M. (2005), O Liberalismo e os Limites da Justiça, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.
Schmitt, C. (1990), The Concept of the Political, Chicago, The University of Chicago Press.
Taylor, C. (1997), As Fontes do Self. A Construção da Identidade Moderna, São Paulo, Edições Loyola.
Taylor, C. (2000), Argumentos Filosóficos, São Paulo, Edições Loyola.
Taylor, C. (2005), Hegel e a Sociedade Moderna, São Paulo, Edições Loyola.
Tully, J. (2000), Struggles over recognition and distribution. Constellations, 7 (4), pp. 469-482.
Vita, Á. (2008), O Liberalismo Igualitário. Sociedade Democrática e Justiça Internacional, São Paulo, Martins Fontes.
Walzer, M. (1990), The communitarian critique of liberalism. Political Theory, 18 (1), pp. 6-23.
Walzer, M. (1993), Esferas de la Justicia, Cidade do México, Fondo de Cultura Económica.
Notas
1 A partir de Uma Teoria da Justiça, de Rawls, pode-se dizer que o debate da teoria política contemporânea é marcado por posições substantivas a respeito do tema da justiça, que reflectem uma concordância com os termos da justiça liberal ou uma posição crítica, a que se atribui normalmente a designação de comunitarista. Em 1993, Rawls publicou a obra Liberalismo Político como resposta aos críticos, na qual revê as suas posições. A título de organização do argumento, privilegiarei as posições de Rawls descritas nesta última obra.
2 Na perspectiva do liberalismo igualitário, o pluralismo impõe um enfrentamento da questão cultural por meio da despolitização dos conflitos étnicos e religiosos. Brian Barry (2001, pp. 24-32) chamou a esse processo de despolitização dos conflitos estratégia de privatização, o que significa desactivar o potencial conflituoso das sociedades plurais por meio da distribuição igual dos recursos institucionais.
3 A ideia de neutralidade não ocorre, de acordo com Rawls, na perspectiva dos procedimentos ou da acção do Estado, mas na dimensão da justificação de políticas públicas. Isso significa que o Estado pode exercer algum tipo de intervenção, ou ter um papel activo na sociedade, desde que as suas políticas não firam os princípios de justiça e sejam neutras com relação aos valores e concepções de bem existentes na sociedade. Rawls confronta a ideia de neutralidade, diferenciando a neutralidade de resultados da neutralidade de justificação. De acordo com o autor, políticas que tenham um resultado neutro não são factíveis, sendo que uma sociedade liberal pode assegurar que a premissa de neutralidade seja garantida na dimensão da justificação, o que significa que nenhuma concepção de bem em sociedades plurais pode servir para a justificação de políticas (Rawls, 1993, pp. 191-193).
4 O pano de fundo do debate entre liberais e comunitaristas é o debate, no âmbito do idealismo alemão, entre Kant e Hegel. Os autores comunitaristas são leitores de Hegel e absorvem as ideias de eticidade e comunidade como premissas conceptuais da ideia de justiça (Taylor, 2005, p. 109).
5 A ideia de eventos de significados é uma derivação do estruturalismo linguístico de Saussure, pelo qual, de acordo com Taylor, se associam novas expressões de linguagem dos grupos e suas culturas a uma perspectiva de maior grau de liberdade para essas expressões culturais (Taylor, 1997, p. 150).
6 MacIntyre entende por emotivismo toda concepção moral que separa o valor racional dos interesses da faculdade de juízo dos indivíduos no contexto das sociedades modernas. Segundo o emotivismo, o juízo moral seria expressão de emoções subjectivas, representando um desiderato de relativismo moral que esvazia a eticidade (MacIntyre, 2001).
7 Os povos liberais razoáveis são aqueles que vivem sob um governo constitucional razoavelmente justo e que tenham controlo político e eleitoral sobre ele. Além disso, os povos liberais razoáveis têm afinidades comuns definidas no plano de uma nacionalidade e um carácter moral. Os povos decentes são aqueles, segundo Rawls, que não demonstram objectivos agressivos e que defendem uma concepção de justiça como bem comum, em consonância com os direitos humanos (Rawls, 2001, pp. 70-75).
8 A eticidade pensada por Honneth deriva de uma concepção hegeliana da moral. O problema central do reconhecimento é a construção de uma consciência crítica na dimensão da cultura, tendo em vista o problema do desrespeito.
9 Will Kymlicka (1995, p. 92) condiciona a existência de direitos de grupos ao limite das liberdades fundamentais. De acordo com o autor, apenas faz sentido haver o reconhecimento de direitos de minorias quando isso não entra em conflito com as liberdades fundamentais dos membros individuais desses grupos e quando isso não significa sancionar culturas que defendam práticas de discriminação racial, de género ou sexual.
10 Álvaro Vita (2008, p. 185) cita as perspectivas multiculturalistas como solução para uma sociedade dividida por fomentarem o facciosismo e o conflito entre os grupos.
11 Como nota Chantal Mouffe (2005), é importante observar que Schmitt se refere ao pluralismo como aquela visão antagónica à questão do Estado, que o toma como uma entidade religiosa ou associação profissional, não tendo o indivíduo qualquer obrigação com a associação política.
12 O conceito de liberdade como não-dominação supera a dicotomia traçada por Isaiah Berlim entre liberdade negativa e liberdade positiva. Segundo Pettit, a liberdade republicana supera esta dicotomia ao assumir que o mundo público e o mundo privado são co-extensivos da liberdade.
13 De acordo com Kant, a passagem da política para a moralidade depende do princípio da publicidade. Como ele defende no segundo apêndice de A paz Perpétua, a publicidade garante a passagem da política para a moralidade, uma vez que fundamenta o pleno exercício da liberdade e garante a plena autonomia da vontade. Publicidade, de acordo com Kant, é o princípio de exercício da liberdade e de fundamentação da vontade na construção dos deveres, o qual permite a justiça na acção do direito público e fundamenta a acção do Estado na sociedade. O princípio kantiano da publicidade, portanto, busca reconciliar política e moralidade, configurando, ao mesmo tempo, um conteúdo (moral) para a conduta política e para a liberdade de exercício do juízo por parte do público (Kant, 1983 [1795]).
14 De acordo com John Rawls (1993, pp. 216-220), a razão pública é a razão dos cidadãos, daqueles indivíduos que partilham o status de cidadania igual. O objecto da razão pública, de acordo com Rawls, é o bem público, compreendido como aquilo que a concepção política de justiça requer da estrutura básica das instituições da sociedade e dos objectivos e fins que devem seguir. A razão pública tem um aspecto cognitivo, centrado na cultura pública de fundo das sociedades democráticas, tendo como conteúdo os princípios substantivos de justiça e as directrizes de indagação argumentativa.
15 Um exemplo de dilema discursivo utilizado por Pettit encontra-se na discussão que pode surgir num local de trabalho entre os empregados de uma companhia que é sua propriedade. A discussão consiste em recusar um aumento de salário a fim de utilizar esse dinheiro economizado para introduzir medidas de segurança no recinto através da instalação de instrumentos que evitem a electrocussão. Os empregados devem tomar a decisão com base em três considerações: primeiro, se existe o risco de electrocussão; segundo, se o instrumento a ser adquirido é eficiente para evitar a electrocussão, no caso de existir risco; terceiro, se o sacrifício do salário envolve uma perda suportável para cada membro individual da companhia. Como mostra Pettit, após as deliberações apropriadas, os empregados estarão dispostos a votar sobre as premissas e conclusões relevantes, formando uma matriz para um grupo de três empregados.
Dessa matriz conclui-se que uma decisão diferente será tomada conforme o julgamento do grupo considere as premissas ou as conclusões. Analisando a matriz formada, conclui-se que, mesmo que cada empregado rejeite a conclusão de sacrificar o salário, o grupo apoia as premissas de investir em segurança. Se considerarmos que a conclusão das deliberações deve determinar a conclusão do grupo, o resultado será rejeitar o sacrifício do salário. Por outro lado, se considerarmos que a opinião dos empregados sobre as premissas deve determinar a decisão do grupo, então a conclusão será pelo sacrifício do salário e investimento em segurança (Pettit, 2001b, pp. 272-274).
16 Como o republicanismo pressupõe um retorno à experiência política romana, no plano da história das ideias, é importante destacar o modo como a tolerância à diversidade cultural é uma característica da noção de república. No período republicano romano, que compreende o período entre a queda dos Tarquínios e a cristianização do Império, não haveria uma religião oficial, nem uma língua oficial, sendo esses temas relegados para o modo de vida dos diferentes povos que compunham a república. Não por acaso, atribui-se a corrupção de Roma à cristianização do Império, que determina uma religião oficial e um modo de vida hegemónico. A esse respeito, cf. Mommsen (2003 [1854]).
** Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais o apoio logístico e financeiro para a realização deste texto. Também agradeço os comentários e críticas apresentados pelos referees anónimos da Análise Social e pelos professores Marco Aurélio Nogueira (UNESP), Ricardo Silva (UFSC) e Marlise Matos (UFMG).