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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.198 Lisboa  2011

 

Ruth Mandel, Cosmopolitan Anxieties: Turkish challenges to citizenship and belonging in Germany, Durham, Duke University Press, 2008, 440 páginas.

 

José Mapril

CRIA/ISCTE-IUL e FCSH-UNL

 

Nas últimas décadas, os debates sobre imigração na Europa têm abordado temas como cidadania, multiculturalidade, cosmopolitismo, “coesão social” e autoctonia. Um dos casos mais emblemáticos é certamente a Alemanha, onde a “questão da migração turca” assumiu uma importância central nos últimos cinquenta anos. Este fluxo migratório teve as suas origens no crescimento económico do pós-segunda guerra mundial. Perante uma evidente carência de mão-de-obra, as autoridades da então República Federal Alemã (RFA) estabeleceram acordos com vários países, entre os quais a Turquia, para o recrutamento de mão-de-obra, com contratos temporários de trabalho. Em 1973, porém, o contexto alterou-se e subitamente a economia, que já mostrava sinais de abrandamento, entrou num período de crise. O choque petrolífero estagnou o crescimento económico na Europa ocidental e a RFA não foi excepção. Os imigrantes, que até então tinham sido indispensáveis, passaram agora a indesejáveis. Entretanto, e contrariamente ao esperado, milhares de trabalhadores turcos não só acabaram por permanecer, como trouxeram as suas famílias. Perante tal contexto, as autoridades desenvolveram programas de incentivo ao repatriamento e encerraram as fronteiras à entrada de mais população, que não através dos processos de reunificação. A consequência foi a reconfiguração destas cadeias migratórias, que passaram a realizar-se essencialmente através dos processos de reunião familiar. Hoje vivem na Alemanha mais de 2 milhões de cidadãos com ascendência turca e estão presentes em todos os quadrantes da sociedade, desde a vida política ao futebol.

O mais recente livro de Ruth Mandel é precisamente um retrato detalhado da constituição histórica desta diáspora e os debates que suscitou, e continua a suscitar, na sociedade alemã contemporânea. Baseia-se na tese de doutoramento intitulada We Called for Manpower, but People Came Instead. The Foreigner Problem and. Turkish Guestworkers in West Germany, que a autora apresentou em Chicago em 1988. A tese era um misto de análise às representações públicas (oriundas de vários quadrantes políticos e dos media) e às medidas políticas realizadas para fazer face a este fluxo migratório e, simultaneamente, uma descrição etnográfica detalhada sobre as estratégias levadas a cabo pelos próprios migrantes turcos para fazerem face à sua condição. Assim, Mandel descreveu a sua implantação em Berlim, mais concretamente em Kreuzberg, e a sua transformação em “pequena Istambul”, as viagens à Anatólia durante o verão, as clivagens entre sunitas e alevis e os sentimentos de “estranhamento”, tanto na Alemanha como na própria Turquia, aquando dos “regressos”. A tese apresenta-se perfeitamente enquadrada nas preocupações teórico-metodológicas do momento histórico em que foi escrita — processos de integração, institucionalização do islão na Europa e a experiência migratória.

Vinte anos depois, uma parte significativa deste material é finalmente publicada em livro, ao qual a autora acrescentou um extenso conjunto de dados mais recentes. A ideia central da obra é explorar etnograficamente os paradoxos entre o cosmopolitismo, os processos de diferenciação da diferença e o transnacionalismo. O argumento principal é: “Rather then look at a Turkish diaspora in Germany as a bounded social community, I follow the multiple references of belonging across several decades and places. In lieu of reviving the tired bridge metaphor, either linking or separating two distinct cultures or peoples — ever national at best —, I find it cmore productive to explore the novel and not-so-novel spaces defined by contestation and oher performances, of interaction and mutual influencing. The bridge metaphor inadequately separates somewhat arbitrary entities; focusing on the shifting spaces in-between captures a more nuanced picture of the complex dynamics at work” (p. 1). Assim, Mandel procura perceber como vários quadrantes da sociedade alemã interpretaram, nos últimos cinquenta anos, o “problema dos estrangeiros” (ausländerproblamtik) e, simultaneamente, dar conta do papel que os migrantes turcos e os turco-alemães tiveram na reequação de noções de cidadania, nacionalismo e cosmopolitismo nas sociedades alemã e turca.

Ao longo de onze capítulos vamos desenrolando este novelo, através do acompanhamento dos vários debates e perspectivas ao longo do tempo. A obra poderia ser dividida em duas partes: a primeira, que inclui os cinco primeiros capítulos e onde se contextualizam os discursos dominantes sobre o lugar dos migrantes turcos na sociedade alemã, e uma segunda, onde os principais protagonistas são os próprios migrantes e os seus filhos. Assim, logo no início (capítulo 1) é analisada a forma como Berlim se constituiu historicamente como uma cidade de fronteiras, onde Leste e Oeste são referências históricas centrais para perceber as dinâmicas de urbanização. Até certo ponto, este capítulo 1 estabelece o cenário central de toda a obra (pois foi essencialmente aqui que a autora realizou a sua etnografia) — a cidade de Berlim e os seus imaginários.

No capítulo 2, Mandel revela a existência de uma hierarquia classificatória de estrangeiros onde o critério racial, neste caso a metáfora do sangue, assume uma importância simbólica central. Os russo-alemães, os Aussiedler, por exemplo, são percepcionados como “mais” alemães quando comparados com os turcos ou os trabalhadores convidados (os gastarbeiter). Seguidamente (capítulo 3), analisa os processos de etnicização e racialização presentes nas autopercepções dos seus interlocutores turcos e nas hetero atribuições da população alemã. Mostra como a noção de ausländer se equaciona com a alteridade e como Kreuzeberg passou a ser percepcionada como o lugar do “estrangeiro”, do “outro”. Simultaneamente, deixa-nos ver como este mesmo lugar na cidade foi apropriado por determinados segmentos da população alemã, os chamados alternative, para quem este é o “lugar” do chique étnico.

Daqui passamos (capítulo 4) para a ambiguidade da cidade de Berlim, dividida entre a visibilidade e a protecção das populações judaicas contemporâneas e a invisibilidade dos turcos. Argumenta a autora que estes ocupam agora o mesmo lugar estrutural que durante a história recente alemã foi ocupado pelos judeus e chega mesmo a sugerir as continuidades existentes entre os estereótipos de uns e de outros. No capítulo 5 ficamos a perceber mais detalhadamente as ambiguidades de Kreuzberg, que é simultaneamente uma periferia e um centro, simbólico e topográfico, o lugar do outro, do proletariado, e, simultaneamente, uma nova centralidade na Berlim contemporânea.

No capítulo seguinte (6) somos confrontados com o duplo deslocamento dos filhos dos migrantes turcos, entre os quais a narrativa dominante, baseada em processos de categorização, revela a não pertença aos lugares que fazem parte das suas histórias de vida: Alemanha e Turquia. Na Alemanha são sistematicamente considerados Ausländer, a alteridade, e na Turquia são apelidados de Alemanci, ou Alamanyals, remetendo a sua pertença para a Alemanha. É precisamente a partir desta posição intersticial que Mandel analisa (capítulo 7) o papel das elites culturais de ascendência turca, que ou rejeitam a intermediação com a restante sociedade alemã ou, pelo contrário, se tornam “profissionais étnicos”. Estas elites culturais produzem aquilo que se convencionou designar por “guest worker literature”, na qual manuseiam criativamente os próprios estereótipos que as rodeiam. Aborda-se então (capítulo 8) a problemática da cidadania e os “trabalhadores convidados” e para tal a autora analisa os debates entre liberais (SPD) e conservadores (CDU) sobre como gerir a naturalização dos migrantes turcos desde os anos 80 até à contemporaneidade. Neste período, a alteração substantiva nas políticas levou a que, enquanto nos anos 80 quase não existam naturalizações, em 2000 este número aumentou de forma espectacular.

No capítulo seguinte, o 9, a problemática central passa a ser as viagens de férias à Turquia e como estas são momentos de demonstração de riqueza e êxito através de consumos lascivos, construção de casas ou mesmo através da performance de rituais. Simultaneamente, são momentos de produção de alteridade e “estranhamento”. No capítulo 10 Mandel mostra-nos como são as vivências do islão entre os turcos na Alemanha, mais concretamente como aqui as clivagens, até institucionais, entre sunitas e alevis ganharam novos contornos. Os primeiros tornaram-se mais religiosos, enquanto os segundos mais públicos (contrariamente ao que acontece na Turquia). No último capítulo, Mandel aborda a polissemia das polémicas em torno do véu e argumenta que este sintetiza toda a problemática do “problema” dos estrangeiros na Alemanha, onde existe uma equação entre turco/muçulmano/árabe/estrangeiro. Através dele, vários quadrantes da sociedade alemã procuram mostrar como os turcos nunca poderão ser cidadãos “verdadeiramente” alemães.

Na conclusão voltamos à discussão central de todo o livro, nomeadamente a produção da diferença, cosmopolitismo e transnacionalismo no momento histórico actual. Nestas reflexões finais, Mandel sugere que se interprete a experiência dos cidadãos turco-alemães à luz daquilo que a autora designa como um cosmopolitismo demótico ou vernacular, através do qual as noções de cidadania são desnacionalizadas.

Ainda que, por vezes, seja algo repetitivo, especialmente nos cinco primeiros capítulos, este livro constitui-se como um excelente contributo para os estudos sobre migrações na Europa contemporânea, mais concretamente devido à dimensão historicista da análise. Assim, conseguimos mapear as percepções dos vários intervenientes e a forma como estas se foram transformando ao longo do tempo, desde os anos 50 até à actualidade. Através deste estudo de caso, é possível explorar algumas das ambiguidades associadas aos fenómenos migratórios, tanto do ponto de vista do imaginário hegemónico do Estado-nação como também da imaginação pós-nacional e do cosmopolitismo.

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