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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.198 Lisboa  2011

 

Vítor Sérgio Ferreira, Marcas que demarcam. Tatuagens, body piercing e culturas juvenis, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2009, 343 páginas.

 

Ricardo Campos

Universidade Aberta

 

O livro Marcas que demarcam. Tatuagens, body piercing e culturas juvenis, editado em 2009 pela Imprensa de Ciências Sociais, constitui uma contribuição de relevo para o panorama dos estudos juvenis em Portugal. Esta obra, da autoria do sociólogo e investigador do ICS Vítor Sérgio Ferreira, resulta de uma pesquisa desenvolvida no âmbito do seu programa de doutoramento em Sociologia.

Os estudos juvenis têm representado em termos internacionais uma área de investigação sólida e importante no contexto das ciências sociais, nomeadamente na disciplina sociológica. Tal facto deve-se, em grande medida, à relevância e visibilidade que esta categoria social e etária foi adquirindo ao longo da última metade do século passado, sendo um alvo fácil de discursos mediáticos e políticos. Muitos dos fenómenos sociais e culturais mais marcantes do século xx ocidental foram protagonizados por determinadas culturas juvenis. A capacidade para questionar e afrontar a ordem parece ser, desde há longa data, característica visível (porque mediatizada) de movimentos sociais e culturais conotados com os jovens. Os hippies, os punks, os okupas, os graffiti-writers, entre outros, fazem parte de um longo rol de agentes culturais que habitam o nosso imaginário e que servem para a edificação de uma certa imagem de juventude. A necessidade de conhecer em pormenor um grupo etário que foi sendo socialmente representado, a diversos níveis, como problemático e turbulento justificou e promoveu o interesse científico devotado a esta temática. Às ciências sociais tem cabido a tarefa de desconstruir esta juventude fabricada ao sabor das lógicas mediáticas (e mercantis), aprofundando muitas das matérias que tão superficialmente são trazidas a debate público.

A tatuagem corporal e o body piercing, embora correspondendo a práticas ancestrais, dificilmente escapam aos olhares dos mais atentos como elementos cada vez mais assíduos nos corpos que vislumbramos na paisagem urbana contemporânea. Não há, por isso, como escapar à questão: que razões têm levado jovens (e menos jovens), nos últimos anos, a recorrer a estes procedimentos como forma de ornamentação corporal e, necessariamente, de enunciado simbólico? A pesquisa realizada pelo autor, com o recurso a um programa metodológico de cariz qualitativo, procura, precisamente, dar resposta a estas questões. As opções metodológicas foram justificadas pelo propósito em captar os contextos subjectivos que fundamentam o uso do corpo como lugar de expressividade identitária e simbólica. Os estúdios de tatuagem e body piercing funcionaram como local privilegiado de observação in loco e de articulação entre muitos dos protagonistas, que contribuíram com a sua voz para a construção de uma representação sociológica do fenómeno. A realização de entrevistas aprofundadas a consumidores e profissionais deste tipo de práticas foi acompanhada por uma observação de inspiração etnográfica aos diferentes espaços reais (estúdios de tatuagem) e virtuais (internet) onde ancoram estas manifestações corporais.

A estética e a visualidade têm sido recorrentemente reconhecidas por diferentes investigadores como elementos cruciais para a forma como os jovens e as culturas juvenis constroem identidades pessoais e culturais, sendo a imagem cada vez mais usada como expediente comunicativo. Esta não é uma condição recente, pois a própria emergência das culturas juvenis enquanto fenómeno social está grandemente associada ao uso estratégico de um campo de visibilidade. Basta recordar muitas daquelas que ficaram conhecidas como as subculturas juvenis na segunda metade do século xx e que tinham como elemento fundamental de diferenciação e afirmação identitária uma imagética grupal fortemente vincada. O estilo é, ainda hoje, componente de distinção grupal, servindo para enquadrar os indivíduos nas diversas categorias simbólicas que compõem a juventude contemporânea. O corpo e os seus adornos, articulados com competências adquiridas na arte da performance, correspondem, por isso, a utensílios primordiais no jogo de edificação das arquitecturas de sentido que nos permitem localizar as pertenças e vínculos sociais. A própria noção profusamente empregue de tribo juvenil, tão polémica quanto sedutora, parece estimular no nosso imaginário uma ideia de exuberância e exotismo à qual a juventude não consegue escapar. A excentricidade de corpos e rituais que se impõem pela diferença e que parecem habitar mundos indecifráveis.

Nesta obra o autor pretende abordar a relação dos jovens com o corpo, tomado enquanto matéria passível de exploração pelo sujeito na produção de um sentido identitário. Se nas sociedades tradicionais o corpo modelado é uma expressão de domínio do social sobre o individual, na sociedade ocidental contemporânea, que promove a maior plasticidade corporal e identitária, a forma como o corpo é vivido e projectado é inteiramente distinta. No Ocidente a tatuagem e o body piercing inscrevem-se numa genealogia de gestos e enunciados semióticos marginais, tendo sido historicamente forjados como etiquetas de estigma. Estes símbolos de alteridade foram, ao longo da segunda metade do século xx, adoptados por determinados universos juvenis como enunciados subversivos, claramente divergindo da imagem corporal dominante. Recentemente, à semelhança daquilo que acontece com muitas das insígnias de desconformidade e antinomia apropriadas por círculos sociais periféricos, estas expressões corporais foram sendo assimiladas pelo mercado e por diferentes indústrias culturais, tendo, de alguma forma, perdido parte da sua aura marginal. Todavia, a popularização destas práticas não invalida que se detectem formas díspares de uso do corpo e dos seus ornamentos em contextos juvenis, exigindo uma prospecção mais profunda das constelações de representações e experiências associadas a este fenómeno.

As marcas corporais estudadas pelo autor são entendidas como “práticas ornamentais do corpo que têm a particularidade de, literalmente, o encarnarem e de, deliberada e indelevelmente, marcarem a sua superfície, com recurso a um complexo e diversificado conjunto de objectos materiais e de técnicas de aplicação [...] sendo as mais recorrentes, actualmente, no mundo ocidental as que se socorrem de formas mais moderadas de perfuração epidérmica, como a tatuagem e o body piercing” (Ferreira, 2008: 33). O autor não se debruça, contudo, sobre a totalidade das manifestações corporais passíveis de serem identificadas neste universo. Distingue, por isso, duas constelações simbólicas associadas a modalidades de consumo dissemelhantes. Por um lado, identifica uma modalidade de apropriação consumista, ligada a uma exploração mais volátil e superficial das marcas corporais como acessório de moda, e, por outro lado, assinala uma modalidade de apropriação identitária, vinculada a formas não massificadas e padronizadas de exploração do corpo e tendencialmente relacionada com uma mobilização de ordem projectual. Os corpos extensivamente marcados que servem de objecto à análise inscrevem-se nesta última modalidade.

O autor da obra entende os corpos extensivamente marcados como o resultado de uma operação individualizante do sujeito que, desta forma, converte a matéria-corpo numa vigorosa articulação semântica de natureza projectual e autobiográfica. Na índole radicalizada do discurso estético vislumbra-se uma objecção aos figurinos corporais predominantes. Neste sentido, o corpo oferece ao sujeito um campo óbvio para a afirmação da sua diferença. E o que inscrevem os jovens no corpo? A pele torna-se um mapa biográfico, historicamente cunhado, através do qual é possível ler a singularidade do seu detentor. Mas a pele é também uma tela que progressivamente pode ser tomada como recurso para desígnios corporais mais densos e reflexivos. Um projecto de corpo transforma-se, assim, num projecto de ser. Neste caso, os consecutivos actos de marcação corporal resultam numa densificação semântica que opera a vários níveis: estético, identitário e político.

Esta é uma problemática que se enquadra num paradigma que encara os jovens enquanto agentes activos na formulação de quadros simbólicos e de acção que não são necessariamente determinados por estruturas objectivas. O usufruto do corpo configura-se como acto de soberania, de apropriação do único recurso resistente e duradouro num contexto social fragmentado, de múltiplas ameaças e inseguranças. Daí que o autor fale de uma política de existência, “uma possibilidade de expressão e de construção subjectiva, onde o corpo se apresenta como espaço ‘liso’, disponível à projecção, à celebração e à luta pelo reconhecimento de uma identidade imaginada como singular (‘ser diferente’) e autêntica (‘ser eu próprio’), estendida e celebrada num estilo de vida que se pretende escapatório às fórmulas estilísticas e itinerários sociais normativizados” (Ferreira, 2008, p. 299)

Estando a falar de uma manifestação eminentemente visual, o livro teria sido enriquecido se às vozes dos entrevistados tivessem sido acrescentadas imagens fotográficas. Em algumas passagens sente-se a necessidade de explorar visualmente a riqueza semiótica destas expressões, de forma a articular os discursos dos sujeitos com os seus empreendimentos estéticos. Todavia, a ausência de imagens em nada afecta a elegância da escrita e a clareza do discurso científico. Esta é uma obra que concilia eficazmente a actualidade do objecto de estudo com a pertinência científica de uma abordagem que, em muito, contribui para o património de estudo sobre as culturas juvenis contemporâneas.

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