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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.199 Lisboa  2011

 

Diogo Ramada Curto(dir.) Estudos de Sociologia da Leitura em Portugal no Século XX, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/Fundação para a Ciência e Tecnologia (MCT), 2006, 1036 páginas.

 

Frederico Ágoas

Departamento de Sociologia, FCSH-UNL

 

Categoria central em tantos discursos políticos e pedagógicos e, nessa medida, objecto repetido de medidas concretas (aos mais diversos níveis) com vista à sua modelação individual e social; designação sintética de práticas tão díspares, da fruição artística ao investimento educativo, da difusão colectiva de determinado texto à sua exploração individual; símbolo cultural da liberdade de pensamento embora também veículo fundamental da codificação e ordenação de comportamentos, a leitura, não obstante incontáveis valências, começa quase sempre por se nos impor como evidência. Em Portugal, como noutros locais, é na sombra do seu contrário — a não-leitura — que se projectam os contornos que socialmente melhor a definem. A este respeito, aliás, a realidade, mais do que grave, parece ser trágica: dados europeus de 2000 colocavam 48 % dos jovens portugueses com 15 anos nos dois patamares inferiores de uma escala de cinco que avalia níveis de leitura (cf. planonacionaldeleitura.gov.pt/). Face à constatação comparativa de que em Portugal não se lê, são os instrumentos desenvolvidos para medir essa não-leituraque se impõem como principal imagem das práticas dos que o fazem: a leitura como capacidade de se compreender o que se lê, uma competência (a “literacia”); e a leitura enquanto quantidade e diversidade do que é lido, uma abundância (os “hábitos de leitura”).

A montante destas imagens, outras que a definem como “bem essencial”, condição de autonomia e plena consciência, de exercício da cidadania, de desenvolvimento cognitivo, de enriquecimento cultural; mas igualmente como “alicerce da sociedade”, que se define como sendo “do conhecimento” (cf. idem) — um valor que, por universalmente indisputável, parece contudo deixar esgotadas à partida outras possibilidades de inquirição do que designa. É o próprio Plano Nacional de Leitura a sublinhar o carácter parcelar da investigação existente relativamente a esta matéria. O que significa certamente o reconhecimento da necessidade de alargar, neste caso como noutros, o escrutínio da realidade a outras >formasmenos imediatas. Ora, é precisamente o embate crítico com uma certa evidência daquilo que se entende por leitura que constitui o principal contributo genérico da colectânea de trabalhos publicados em Estudos de Sociologia da Leitura em Portugal no Século XX. Mas também, e para além dos contributos particulares que apresenta, uma tentativa de avaliação dos limites e potencialidades de aplicação de várias metodologias a este domínio — que tem a sua tradução implícita no sucesso relativo de cada uma dessas abordagens, e a concretização explícita na avaliação que deles se faz a abrir o volume, pela mão do seu organizador.

A este respeito, de resto, são tomadas posições claras: obra que tem na origem um trabalho colectivo de seminário, começou-se justamente, segundo se afirma na “Introdução”, por procurar “ultrapassar o sentido sociográfico dos inquéritos à leitura”, a que se opôs, por um lado, uma “perspectiva micro” e, por outro, o “investimento em diferentes dimensões temporais” (p. 1); opção parcialmente concretizada em “pequenos estudos de caso” que se perfilavam também face à “aridez pseudo-teóricade muitas abordagens sociológicas (…)” (pp. 1-2). Mas que não podem dispensar, como aliás também se sublinha, o recurso a “modelos” ou, mais genericamente, à reflexão teórica, que permita superar o nível, também ele imediato, do dado. A heterogeneidade dos trabalhos em causa, contudo, revela justamente, para além da diversidade de interesses ou até dos diferentes perfis académicos dos autores, as dificuldades inerentes, porventura maiores do que à partida se pode supor, a exercícios académicos de natureza etnográfica, paradoxalmente em virtude daquilo que se considera ser um dos seus principais benefícios — a proximidade ao real. Não é certamente por acaso que, face a outros trabalhos do volume, de pendor mais estritamente historiográfico ou de mais sólida conceptualização teórica, são sobretudo alguns daqueles que ficam aquém dos seus objectivos; muito embora, claro, desse insucesso relativo não se possa inferir, num trabalho que se assume como quase fundador de uma área de estudos em Portugal, a inoperância de metodologias desse tipo ou, menos ainda, o fracasso desse esforço colectivo. Pelo contrário, é também na medida da consciência do que fica por fazer e da assunção dos problemas metodológicos associados ao propósito “ético ou político” de “dar voz” (p. 11) a quem normalmente não é ouvido que esse sucesso pode ser ponderado.

Essa dimensão, aliás, afigura-se fundamental, na senda de trabalhos de valor paradigmático nesta área, e de par com a assunção da análise histórica, para ultrapassar o âmbito da evidência e superar visões estritamente institucionais. É pois de acordo com essa dupla perspectiva crítica que se estruturam as 3 partes principais da obra que, não sendo absolutamente estanques, atravessa também cada uma delas e muitos dos artigos que as compõem. Assim, se na primeira parte, “Escolas e Bibliotecas”, é o escrutínio historiográfico da própria dimensão institucional que sobressai, nem por isso se deixa de avaliar o modo como no terreno diversas “missões civilizadoras” foram ou não logrando os seus intentos; em “Práticas e Comunidades de Leitura” (Parte II), por seu turno, a “reconstituição dos percursos de leitores” é feita à luz da acção de outros agentes que não podendo determinar em absoluto a “produção de leitores”, não deixam de estruturar, a vários níveis, a relação destes com o objecto impresso. Finalmente, em “Escritores, Intelectuais e Cientistas” (Parte III) são os próprios produtores de textos que são escrutinados nesse dupla perspectiva, quer como leitores (de terceiros), quer ainda como veículos e produtores de imagens daquilo que se entende (ou deve entender) por leitura.

Mais em concreto, na parte I, Miguel Jerónimo abre o volume com uma análise da sobreposição de políticas educativas dirigidas às colónias entre finais do século xix e princípios do século xx, e do papel que nelas desempenhou o ensino da língua portuguesa, como imposição política e administrativa, que ajuda a compreender historicamente, enquanto legado colonial, a constituição dessa “comunidade de leitura imaginada” que dá pelo nome de lusofonia. Ainda em torno de um eixo traçado pelo que genericamente pode ser entendido por políticas educativas, seguem-se quatro artigos que, por se situarem dentro de um mesmo arco cronológico, e de pontualmente estabelecerem algumas pontes entre si, podem ser lidos em conjunto. Daniel Melo e Luciano Amaral apresentam dois artigos mais gerais em que procuram avaliar as acções neste domínio durante o período do Estado Novo, muito embora adoptando orientações bem distintas. Amaral averigua, com recurso a modelos econométricos, a importância relativa da oferta e procura para explicar o crescimento da escolarização ao longo daquele período, em contraponto tácito com o período republicano; Melo, extravasando explicitamente os limites cronológicos do regime, procede a uma comparação de duas campanhas de alfabetização, uma dos anos de 1950, outra do imediato pós-25 de Abril, no sentido de caracterizá-las no seu contexto, o que lhe permite também interpretá-las, nas suas semelhanças e diferenças, à luz dos respectivos pressupostos. No segundo par de artigos, é precisamente o confronto entre intenções e resultados que teoricamente estrutura a análise da acção de duas instituições educativas que exerceram a sua actividade também durante o período fascista: “As bibliotecas das Casas do Povo” e “As bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian”. Metodologicamente, no primeiro, Nuno Domingos apresenta-nos um bom exemplo do valor paradigmático do estudo de caso, desenvolvendo-o na dupla perspectiva, global — evocada pela minuciosa caracterização dessa instituição considerada à luz das suas categorizações e seus intentos totalitários — e local — o contexto particular de uma das suas instâncias específicas, na sua relação com leitores, e destes com outras práticas de leitura. A mesma opção no artigo de Tiago Santos peca apenas por concretização meramente exploratória.

Menos conseguidos parecem-nos ser os dois diários de campo apresentados sobre “A leitura no quotidiano escolar”, I e II (respectivamente de Alexandra Vaz e AndreaRocha), cujo estatuto aliás não é inteligível em si mesmo e que nem a boa introdução teórica que os precede (de Vaz e Domingos) consegue delimitar. Em causa está justamente a relação entre observação e reflexão teórica que, por mais que se as considere como analiticamente distintas (ou que efectivamente o sejam, na sucessão cronológica dos passos que conduzem a um resultado final), não tolera a invocação post hocou apenas circunstancial da segunda. Porque é a própria observação que se ressente desse divórcio. Facto que tem aqui tradução no registo algo cego daquilo que rodeia o observador, mas também num certo desencontro entre aquilo que se procura e o que afinal se conclui. Arrematar que “a escola não consegue vencer diferenças de aptidão com origem no contexto familiar” (p. 339) com base na observação de escolas em contextos eles próprios de sinal social perfeitamente oposto, não só parece exigir da escola algo que ela manifestamente não pode garantir, como fica aquém das hipóteses avançadas na referida introdução, oriundas da sociologia da educação, nomeadamente de que a utilização da língua (e só no limiar da leitura) em contexto escolar é ela própria produtora de desigualdades — o que se pode aferir não tanto por desempenhos desiguais entre o que à partida é já diferente, mas antes pela distinta valorização de investimentos académicos que são apenas objectivamente iguais para quem os avalia.

A inclinação etnográfica aqui ensaiada sobressai no segundo conjunto de artigos, “Práticas e Comunidades de Leitura”. Em boa medida, a sua leitura global beneficia da explicitação que se faz a abrir, num ensaio de Nuno Medeiros, de algumas das principais abordagens teóricas neste domínio de investigação, que enquadram sociologicamente o recurso a tal procedimento. Embora centrado em duas figuras específicas do mercado do livro, editor e livreiro, e no papel que estes, entre outros, assumem como “agentes de mediação” entre autor e leitor, orientando práticas efectivas de leitura, Medeiros abre igualmente caminho à noção de “comunidades de leitura”, de certa forma tributária nas suas manifestações efectivas da acção daqueles, embora a ela não redutíveis. São pois esses dois domínios, e o confronto entre eles, que aqui servem de base à estrutura conceptual genérica dos vários artigos. Se nalguns deles predomina a tentativa de aceder às lógicas próprias dos primeiros (por exemplo “A Livraria Esperança na Madeira”, de César Rodrigues e Marçal Castro, ou “História de um Clube de Livros”, de Nuno Domingos e Inês Brasão) e noutros é sobretudo a voz de leitores que se faz ouvir (como “Leituras no feminino”, de Brasão, “A vida como ela é” sobre a obra de Margarida Rebelo Pinto, de Sónia Nascimento, ou “Imaginários de novela” de Cármen Maciel, sobre revistas especializadas), em quase todos eles acabam por se insinuar as figuras simétricas aos objectos explicitamente estudados — os sentidos subjectivamente atribuídos ao que é exteriormente estruturado ou, inversamente, as lógicas estruturais que transparecem na atribuição individual ou colectiva de significados. O que não deixando de ser por princípio consequente com a orientação teórica de fundo, é-o apenas na medida, e nos casos, em que não se reduz funcionalmente o segundo termo ao primeiro.

Noutros, não nos parece evidente que de uma avaliação parcelar (ou mesmo exaustiva) das estratégias de determinado agente se possa deduzir o que efectivamente se encontra na base da constituição da correspondente comunidade de consumidores de livros; como não é líquido que a partir dos sentidos atribuídos por certo leitor a determinada publicação se possa conceber a existência desta (ou, por exemplo, o seu sucesso) como simples ocupação de um espaço (sentimental, intelectual…) que até então estaria por preencher — até porque essa necessidade subjectiva precisa ela própria de ser submetida a escrutínio histórico e sociológico (como procuram fazer, no quadro de determinados universos, Vítor de Barros em “Leituras de auto-ajuda e Inteligência Emocional” e José Neves, num artigo sobre a leitura entre intelectuais comunistas, e, mais liminarmente, Domingos e RahulKumarnum artigo sobre a imprensa desportiva). Uma possível estratégia para evitar semelhante reducionismo, para além de uma clara delimitação do objecto (nem sempre perfeitamente cumprida, como sucede em Nascimento e em Maciel), encontra aqui concretização num conjunto de três artigos que procuram de forma concertada atender por passos a ambos os lados do problema. Referimo-nos ao confronto entre as histórias de dois géneros editoriais (jornais desportivos e “revistas de sociedade”, a segunda pela mão de Brasão) com uma etnografia comparada de leitores de ambas as publicações (de Brasão e Kumar). Pena é que, neste último caso, a bem delineada e interessante proposta de “compreender os significados sociais da leitura de objectos impressos que não estão inscritos nas formas dominantes, nem qualificam os ‘grandes leitores’” (p. 642) seja realizada à custa daqueles (barbeiro e empregada de balcão) sobre os quais afinal se estriba o estereótipo de que, em certos casos, mas justamente só em certos casos, as práticas dos leitores estão ancoradas no seu quotidiano — e noutros não. Mais consentâneo com o objecto proposto, parece-nos, seria a opção por um de dois inversos: procurar neles o que não é imediatamente sucedâneo dessa imersão numa realidade que só aparentemente é sua, ou objectivar outros consumidores, dos mesmos e doutros produtos, que normalmente permanecem imunes ao cliché.

Esta segunda alternativa é aliás prosseguida com assinalável sucesso na parte III do livro. Particularmente por Rui Branco que, a propósito do “Integralismo Lusitano” e seus intelectuais, delineia um conceito de leitura que se traduz não tanto num “processo cognitivo individual”, e mais no modo “como se processam a circulação e recepção de sentidos, e a organização da leitura, num espaço social alargado e assimétrico” (p. 726), procurando do mesmo passo dotar a noção de “influência” de uma espessura contextual e, nessa medida, de um dinamismo que torna precária (e portanto sujeita a mutações) “a geografia geral das trocas” intelectuais. É igualmente por oposição a uma imagem difusionistade circulação das ideias, neste caso de programas científicos, que ora supõe um espaço social que por demasiado plano deixa de o ser, ora uma topologia demasiado rígida dos lugares de emissão e recepção, mais estritamente “geográfica” do que sociológica, que Ricardo Roque procura interpretar a história da antropologia colonial portuguesa na primeira metade do século xx, à luz do que se lhe afigura ser um conflito entre os seus cultores metropolitanos e outros radicados nas colónias. Mais estritamente relacionados com o tema da leitura são os restantes 3 artigos que, cada um por si>, permitem entrever, no momento histórico da sua génese, o processo de aposição, entre intelectuais, de certas imagens à noção genérica de leitura: a partir de “Dois inquéritos literários (1912, 1920)” Nuno Mota considera a “ascensão da literatura a categoria pragmática” (p. 776), em sentido pedagógico, procurando confrontar esta análise, deduzida da teorização efectuada pelos grupos de escritores, com outra dos consumos literários da época (e para a qual concebe, aliás, face à inexistência de estatísticas, estratégias interessantíssimas); Neves, num trabalho de fôlego sobre a Biblioteca Cosmos de Bento Jesus Caraça, mostra como também este concretizou naquela uma visão “pragmática” de leitura, inspirada num certo marxismo, embora a ele não vergada tacticamente, onde se toma a cultura como objecto em si, mais do que como mero instrumento da luta política; finalmente, João Pedro George, procura relacionar aquilo que considera ser a perfeita delimitação, em meados da década de 1970, de um discurso de valorização incondicional da leitura por parte dos escritores, com um outro mais antigo, relativo à sua precária condição socioprofissional (e ainda com a recepção em Portugal da obra de autores que pertenceram, e de outros que George associa, à chamada Escola de Frankfurt). Uma derradeira nota ainda para assinalar os dois conjuntos de fotografias sobre leitura que acompanham o volume, o primeiro do acervo do Arquivo Fotográfico da C.M.L., o segundo da autoria de Paulo Catrica.

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