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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.206 Lisboa jan. 2013

 

O programa Habitações de Renda Económica e a constituição da metrópole de Lisboa (1959-1969)

The Habitações de Renda Económica programme and the rise of metropolitan Lisbon (1959-1969)

 

João Pedro Silva Nunes*

*DINÂMIA-CET, ISCTE-IUL. E-mail: joao.silva.nunes@iscte.pt

 

RESUMO

Este artigo reflete sobre a constituição da metrópole de Lisboa. Analisa o papel do Gabinete Técnico de Habitação na execução do programa Habitações de Renda Económica. Dá a conhecer como a partir de investigação realizada por aquele organismo do município da capital se reivindicaram alterações na política de habitação da década de 1960. Coloca em relação aquele programa de alojamento social com a sua contra-parte urbana, o universo da habitação clandestina. Sugere que uma exploração articulada daqueles dois objetos é um contributo quer para a história social da metrópole, quer para a sociologia da condição e da experiência suburbanas.

Palavras-chave: Lisboa; Habitações de Renda Económica; políticas de habitação; Gabinete Técnico de Habitação.

 

ABSTRACT

This article reflects on the rise of Lisbon as a metropolis. First, it examines how a public housing programme, Habitações de Renda Económica, was put into practice by a muncipal office, Gabinete Técnico de Habitação. Second it gives an account on how research carried out by that office supported alternative claims on Estado Novo housing policy in the 1960s. Third, the public housing programe and its urban counterpart, the universe of illegal housing, are put in relation. Perceived in an articulated manner, it is suggested, they contribute to Lisbon’s social and metropolitan history as well as to a sociological analysis of the suburban condition and experience.

Keywords: Lisbon; affordable housing; housing policy; metropolis.

 

INTRODUÇÃO

 

Os anos de 1960 são para o estudo das políticas de habitação em Lisboa uma época estratégica de investigação, transpondo do espaço para o tempo a expressão de Firmino da Costa (1999, p. 2). São, por um lado, anos em que uma rápida e intensa suburbanização transformava a aglomeração de Lisboa em metrópole (Baptista, 1994, pp. 59-60). Edificado residencial de origem e forma bem diversa compunha a frente avançada da suburbanização: dos grandes conjuntos residenciais, a bairros resultantes da urbanização de quintas, passando por bairros de barracas (Pereira, 1963a, p. 37; Gabinete Técnico de Habitação, 1965) e pela habitação dita “clandestina” (Corte-Real, 1973; ­Salgueiro, 1977; Rodrigues et al., 1989a).

São, por outro lado, anos marcados por iniciativas públicas de planeamento: no domínio urbanístico, o Plano Director da Região de Lisboa (1959-1964); no domínio do alojamento, a criação do Fundo de Fomento da Habitação (1969); no domínio da planificação económica, o Plano Intercalar de Fomento (1965-1967) e o III Plano de Fomento (1968-1973) – prevendo ambos investimento público em habitação. São anos marcados, ainda, pelo relançamento do programa das Habitações de Renda Económica. O Decreto-Lei n.º 42 454 de 18 de agosto de 1959 enquadrou a iniciativa, facultou meios financeiros e fundiários, e estabeleceu o modelo da intervenção. Deste programa resultaram os primeiros grands ensembles lisboetas – Olivais Norte e Olivais Sul. Na sua edificação, o Gabinete Técnico de Habitação foi determinante. Este organismo, criado então na Presidência do Município de Lisboa, planeou, dirigiu e executou o programa das Habitações de Renda Económica e desenvolveu práticas de investigação sobre as carências de alojamento na cidade de Lisboa. A partir desse trabalho de construção social, estatística e política da necessidade habitacional emergiram argumentos críticos relativamente à política de habitação da época, conduzindo à enunciação da habitação enquanto direito.

O papel deste programa de habitação na constituição da metrópole de ­Lisboa é objeto de reflexão, depois de analisado o seu modus operandi e os seus efeitos sociais e urbanos para o período compreendido entre 1959 e 1969. Em seguida, discute-se a emergência de Lisboa enquanto “cidade-metrópole dualista”, expressão utilizada por Nuno Portas (1997, p. 120) para designar o facto de na capital os bairros resultantes do crescimento urbano marginal terem, nos anos de 1950 e 1960, tomado “o lugar que nos países europeus avançados tinham os grandes bairros públicos do Estado-providência”. No final, sugere-se que esta via de análise oferece contributos significativos quer para a história social e urbana da metrópole de Lisboa, quer para a sociologia da condição e da experiência suburbanas.

 

A CONSTITUIÇÃO DA METRÓPOLE DE LISBOA

 

Na alvorada da década de 60 do século XX, o processo de urbanização de ­Lisboa e dos seus concelhos limítrofes começou a constituir este território como metrópole. Por um lado, o crescimento da cidade de Lisboa, que entre 1920 e 1950 progrediu “à razão de cem mil habitantes por década” (Baptista, 1994, p. 64), abrandava o seu ritmo. A cidade de Lisboa apresentava em 1960 uma população na ordem dos 802 mil habitantes, ligeiramente superior aos 783 mil habitantes registados em 1950. Por outro lado, Lisboa suburbani­zava-se. O crescimento urbano transformava radicalmente a “estrutura de povoamento da aglomeração” (Nunes, 2011, pp. 127-131). A população residente nos concelhos situados na margem norte do Tejo – Cascais, Sintra, ­Oeiras, Loures e Vila Franca de Xira – passou de 376 mil habitantes, em 1960, a 618 mil habitantes, em 1970. Para os concelhos da margem sul do Tejo, o crescimento situou-se na ordem da centena de milhar de habitantes, passando de 195 mil, em 1960, a 296 mil, em 1970, o número de residentes em Alcochete, no ­Montijo, no Barreiro, na Moita, no Seixal e em Almada. O curso demográfico de três concelhos, apreendido através de dados publicados no X e no XI Recenseamento Geral da População (1960 e 1970), exprime bem o ritmo e o volume da suburbanização em curso: em Almada registavam-se 23 mil habitantes em 1940, 43 mil em 1960, e 107 mil habitantes em 1970; em Loures registavam-se 35 mil habitantes em 1940, 102 mil em 1960 e 166 mil em 1970; e, finalmente, a população residente no concelho de Oeiras, que à data incluía a freguesia da Amadora e o lugar de Algés, progrediu de 37 mil habitantes em 1940 para 97 mil em 1960, ultrapassando, em 1970, os 180 mil habitantes.

Uma intensa construção de alojamento refazia Lisboa e os seus principais núcleos suburbanos. Ocorrendo no interior da cidade, nas principais vilas dos arredores, e nos novos lugares suburbanos situados na sua envolvente, este fenómeno era descrito na imprensa como “avalancha de construções” (Nunes, 2011, pp. 211-216). Nas frentes avançadas da urbanização, destacava-se pela novidade a edificação de grandes conjuntos residenciais, como os Olivais Sul, de iniciativa pública, Carnaxide, Miraflores, Santo António dos ­Cavaleiros, ou a Reboleira, de iniciativa privada (Nunes, 2011, p. 49). A edificação de bairros cujo recorte apresentava ainda alguma afinidade formal com ruas e com praças persistia e, geralmente, decorria da transformação de quintas em ­bairros, integrando pequenos construtores nesse processo (Nunes, 2011, pp. 196-200). Acentuava-se “o loteamento e a construção clandestina” (­Rodrigues et al., 1989a) – fenómeno levantado e tratado em reportagens como “Os bairros clandestinos nos arredores de Lisboa” (O Século, 16-02-1962) e “O cerco à cidade. ‘Brandoas’ há muitas” (O Século Ilustrado, 31-10-1970), e em artigos de opinião publicados, por exemplo, no Diário Popular no ano de 1969.

No domínio do planeamento urbano, o final dos anos de 1950 é marcado pela preparação do Plano Director do Desenvolvimento Urbanístico da Região de Lisboa (MOP, 1960) – um instrumento de ordenamento regional originário da esfera de iniciativa do Ministério das Obras Públicas. Suscitado pela construção da primeira travessia rodoviária do Tejo, este plano é uma marca maior da emergência de uma política de metrópole. Aliás, como bem salienta Margarida Souza Lôbo (1989), o telos do plano não se esgotava no domínio rodoviário: o Ministério das Obras Públicas pretendia otimizar o território da aglomeração; corrigir deficiências na localização das atividades económicas; regular o crescimento urbano e residencial; e favorecer a miscigenação das diferentes categorias sócio-ocupacionais.

Na proposta de Lei n.º 14 de 6 de fevereiro de 1959, assinada pelo engenheiro Arantes e Oliveira, ministro das Obras Públicas, a justificação da necessidade do plano era acompanhada pelo argumento de que a dinâmica industrial da região e os persistentes fluxos migratórios campo-cidade alimentavam uma intensa procura de alojamento. Relativamente ao lado da oferta, o diagnóstico do ministro era claro:

 

À falta de um plano director do desenvolvimento da área de influência da capital, não tem sofrido pràticamente limitações a instalação de indústrias nos seus arredores, nem tem sido possível impedir o crescimento desordenado das povoações suburbanas e a criação de novos núcleos populacionais, ao sabor das iniciativas particulares. Estas são movidas na maioria dos casos por simples propósitos de especulação de terrenos ou com o intuito de se evadirem da disciplina dos planos de urbanização a que estão sujeitos os centros populacionais mais importantes, incluindo a Capital, reduzindo assim gravemente a eficiência desses planos e comprometendo até em muitos aspectos a sua utilidade [Proposta de Lei n.º 14/59 republicada em MOP, 1960, p. 10].

 

No ano de 1959, o governo relança o programa das Habitações de Renda Económica. Como era apanágio da política de habitação do Estado Novo, o enquadramento da iniciativa realiza-se através de legislação específica – o Decreto-Lei n.º 42 454/59. No rico preâmbulo à peça legislativa, a capital é descrita como uma cidade em crescimento, onde o problema da “construção de novas habitações e sobretudo de habitações com rendas acessíveis aos agregados familiares de mais fracos recursos [se] torna[va] cada dia mais premente, a despeito do aumento incessante das áreas residenciais da capital” (Decreto-Lei n.º 42 454/59 citado em Nunes, 2007, p. 47). Do Plano Director da Região de Lisboa, o telos da organização racional do território da aglomeração é recuperado. Na peça legislativa, o governo reafirmava a vontade de ordenar as novas vias de circulação e os interstícios por elas gerados, as localizações industriais e os espaços residenciais, a inserção das populações residentes e as que compunham os fluxos migratórios de mão-de-obra que à cidade e aos seus arredores afluíam.

Para atingir tais objetivos, o Decreto-Lei reunia e fazia dispor três meios “clássicos” para o reforço da ordem urbana. Em primeiro lugar, financiamento a ser obtido quer por intermédio dos cofres da Previdência Social, quer de um empréstimo contraído junto da Caixa Geral de Depósitos. Em segundo lugar, solo, quer originário da política de expropriação conduzida por Duarte Pacheco, e ainda disponível, quer sujeito a expropriação futura. E, e em terceiro lugar, capacidade de estudo, planificação e execução que surgia maximizada por via da intervenção do Município de Lisboa, encarregue de executar o programa.

O modelo concebido para o reforço da ordem urbana era a edificação de “novas unidades urbanas […] integradas no planeamento geral da cidade” através das quais se desejava, adianta o legislador, ver executado “o vasto plano de acção social que o Governo confia a este conjunto de providências” (Decreto-Lei n.º 42 454/59 citado em Nunes, 2007, p. 48). Tratava-se assim, para o governo, de edificar conjuntos residenciais minimamente equipados com igreja, escola e mercado. A sua composição residencial e social era afirmada como não segregada, pois, de acordo com o Decreto-Lei, estas unidades contariam obrigatoriamente com todas as categorias de renda previstas no programa, destinadas a diferentes estratos sociais, numa proporção previamente definida. Do programa, afirmava o legislador,

Espera-se que a construção em grande número dos fogos das categorias mais modestas venha facilitar o descongestionamento de prédios de rendas mais elevadas até agora habitados por excessivo número de famílias no pouco recomendável regime de partes de casa [e do mesmo modo] promover-se-[á] a substituição progressiva dos chamados “bairros de lata”, por habitações de carácter definitivo e rendas tão módicas quanto possível [Decreto-Lei n.º 42 454/59 citado em Nunes, 2007, p. 52].

 

Dois fenómenos que, no entendimento do governo, constituíam “nefastas consequências do urbanismo”, bem como um grave problema “moral e social”.

 

O PROGRAMA DAS HABITAÇÕES DE RENDA ECONÓMICA NAS ÚLTIMAS DUAS DÉCADAS DO ESTADO NOVO

 

Criado em 1945, através da Lei n.º 2007, o programa das Habitações de Renda Económica abriu uma nova fileira de produção e distribuição da habitação de cariz social. Constituiu uma diferenciação muito significativa na oferta pública de alojamento: o arrendamento era a forma de ocupação privilegiada e a edificação em altura era autorizada. No final dos anos 50, através da Lei n.º 2092/58, a ligação do programa às instituições e organismos do Ministério das Corporações e Previdência Social foi reforçada. As suas fontes de financiamento viam-se assim alargadas por uma pluralidade de cofres e de caixas. O leque de potenciais destinatários dos alojamentos era afirmado como mais amplo do aquele facultado pela legislação então em vigor para o programa das Casas Económicas.

Estas propriedades diferenciavam a Habitação de Renda Económica enquanto instituição do “champ administratif de production de la ‘politique du logement’” (Bourdieu, 1990, p. 66). À Habitação de Renda Económica correspondia uma nova lógica de produção: o investimento dos capitais acumulados nos cofres da Previdência Social resultantes das quotizações dos trabalhadores e das entidades patronais. Através da construção de habitação, do arrendamento e da incorporação de um juro relativo ao investimento no valor final da renda, as instituições da esfera da Previdência Social do Estado Novo obtinham uma remuneração de longo prazo para os seus capitais. Esta lógica distinguia-se daquela que o Ministério das Obras Públicas promovia no programa das Casas Económicas, administrado através de um esquema de fundos públicos, facultados para a obtenção de solo e para a construção de alojamento, que ia sendo amortizado pelas prestações pagas pelos moradores (Gros, 1982, p. 110). A Habitação de Renda Económica constituía um novo produto: o apartamento, destinado a alojar populações que por via do seu ­vínculo laboral estivessem inscritas em regimes de quotização para a ­Previdência Social, e consequentemente aptas a ingressar no programa (Nunes, 2007, pp. 54-55). Este produto diferia da moradia unifamiliar, o modelo das Casas Económicas, sujeita a prestações de renda resolúvel, incorporando valores de um seguro, mediante as quais os seus residentes, também eles sujeitos a seleção administrativa, acediam à propriedade do alojamento ao cabo de duas dezenas de anos (Baptista, 1999, pp. 48 e ss.).

Progressivamente, de 1958 a 1968, através desta nova lógica e deste novo produto, o Ministério das Corporações e da Previdência Social evidenciará um ascendente sobre a política de habitação do Estado Novo (Baptista, 1999, pp. 71-88). De acordo com Nuno Serra (2002, pp. 191 e ss.), a partir da década de 1950, iniciar-se-á uma “política de comparticipações” que representa uma “significativa alteração na política habitacional do Estado” e que encontra “paralel[ism]o em outras mudanças de natureza económica e social”. Traduzir-se-á tal política, entre outros aspetos, na “retirada do Estado para os grandes centros urbanos”, na “reformulação dos mecanismos de financiamento”, e na “inscrição [explicita] da habitação nas estratégias públicas de planeamento do desenvolvimento económico [Plano Intercalar de Fomento e III Plano de Fomento]” [Serra, 2002, pp. 191; 194; 196].

O modus operandi do programa das Habitações de Renda Económica era fortemente dependente de mecanismos de “construção social das populações”, mecanismos esses que para Jean-Claude Chamboredon (2001 [1985], p. 470) são “particulièrement complexes dans les cas des ‘grands ensembles’, dont la population résulte le plus souvent de la mise en œuvre de définitions juridiques et institutionnelles des droits, de mécanismes économiques et sociaux d’attribution des logements”.

Para a distribuição das Habitações de Renda Económica a edificar no âmbito do Decreto-Lei n.º 42 454/59, os critérios de acesso foram definidos por despacho ministerial. Os critérios mais influentes na “construção social das populações” eram a pertença de pelo menos um dos membros do agregado doméstico ao regime de quotizações para uma Caixa de Previdência; os modos de aferição e cálculo de rendimento familiar face aos escalões de renda estabelecidos; a composição do agregado familiar; a antiguidade residencial na cidade de Lisboa; e, não menos importante, um manipulável critério de boa conduta cívica ou moral.

As propriedades materiais e sociais das Habitações de Renda Económica estavam fortemente associadas aos valores das rendas definidos no Decreto-Lei n.º 42 454/59. Estas variavam entre os 200 e os 1 500 escudos, e eram escalonadas em quatro intervalos ou “categorias”, de acordo com o Decreto-Lei n.º 42 454/59. A maioria dos alojamentos a edificar situava-se no intervalo de renda entre os 200 e os 600 escudos – nas categorias I e II –, e destinava-se a agregados domésticos de baixos rendimentos. Visto pelo lado da edificação, o decreto estabelecia uma relação entre o custo do terreno, o custo do fogo, e as categorias de habitação e de renda. Visto pelo lado da distribuição social, os critérios de atribuição destes alojamentos estabeleciam uma relação entre o rendimento dos agregados domésticos candidatos, em regra vinculados a um regime de previdência, um tipo de habitação económica, e um escalão de renda.

No entanto, os efeitos da “construção social das populações” não se restringiam à eleição de estratos populacionais destinatários das habitações. Uma equivalente “construção material e social” (Nunes, 2007, p. 64) das habitações a edificar engendrava efeitos na cidade e nas suas populações. A cada estrato populacional eleito correspondia uma habitação diferenciada do ponto de vista da localização, da área do fogo, e dos elementos de conforto do alojamento; correspondia igualmente uma posição na hierarquia dos programas que compunham a política de habitação. Consequentemente, este novo produto estabelecia destinos residenciais específicos – construía-os social e administrativamente – e assim oferecia uma posição face à diferenciada oferta de meios de alojamento a cada momento disponível na cidade e nos seus arredores.

Nos últimos quinze anos do Estado Novo, e sob a égide do Decreto-Lei n.º 42 454/59 foram edificados cerca de 7 000 fogos nos Olivais Norte e ­Olivais Sul. Por serem bairros concebidos enquanto conjuntos, e pelo número de alojamentos se situar, em cada um, bem acima do milhar; por na sua origem e edificação se encontrar uma complexa organização de capitais públicos implicados na infraestruturação dos bairros e na construção das habitações; por nos seus planos se prever a instalação de equipamentos que contribuíram para que estes conjuntos apresentassem uma relativa autonomia urbana; e, ainda, por serem organismos públicos os detentores do processo de seleção administrativa da grande maioria dos seus residentes, os Olivais Norte e os Olivais Sul revelam semelhanças tanto com os grandes conjuntos residenciais europeus das décadas de 50 e 60 do século XX, como com as formas de atuação típicas dos Welfare States em institucionalização (Nunes, 2007, pp. 174 e ss.). Na origem desta nova forma de produção de alojamentos de cariz social encontra-se, por um lado, o programa das Habitações de Renda Económica e, por outro, um apurado labor de programação, de planeamento urbano, e de controlo de execução de obra realizado entre 1959 e 1969 pelo Gabinete Técnico de Habitação da Câmara Municipal de Lisboa.

 

O GTH ENQUANTO LABORATÓRIO DE URBANISMO

 

O Decreto-Lei n.º 42 454/59 incumbia a Câmara Municipal da realização de um vasto programa de habitação económica. Em conformidade com o diploma, e meses após a sua publicação, na dependência da Presidência do Município foi criado o Gabinete Técnico de Habitação (GTH). As malhas dos Olivais Norte, Olivais Sul e Chelas foram escolhidas pela edilidade para a edificação das “unidades urbanas”, e o GTH desempenhou um papel central no planeamento, na execução, e no controlo do programa.

Fazendo uso da expressão laboratório, no sentido conferido por Christian Topalov (1999), o Gabinete Técnico de Habitação pode ser analisado como laboratório de urbanismo na cidade de Lisboa. Da expropriação e infraestruturação do solo ao lançamento, controlo e avaliação das empreitadas (Nunes, 2007, pp. 65-75 e 87-89); dos estudos de economia e normalização da construção (Nunes, 2007, pp. 70-84) à preparação de instrumentos destinados à melhoria da eficiência do programa – como os Cadernos Concepção-Construção (­Catalão, 1963b); da execução do plano dos Olivais Norte, realizado no Gabinete de Estudos de Urbanização, à conceção dos planos de Olivais Sul e Chelas, e ao convite às equipas de arquitetura encarregues dos projetos de habitação e seu acompanhamento (Nunes, 2007, pp. 97-100); da investigação sobre as necessidades habitacionais em Lisboa, que mais à frente se analisará, à realização de “inquéritos fogo-família” com o intuito de aferir a adaptação dos agregados domésticos aos alojamentos dos Olivais Norte e Sul (Almeida Leite, 1968); da publicação regular de uma revista especializada, o Boletim do Gabinete Técnico de Habitação, à organização de encontros com especialistas estrangeiros, foi a partir da ação do GTH que emergiram novas formas de planear e desenhar, conceber e investigar a edificação de habitação pública de cariz social em Lisboa.

Ao longo da década, a ação do GTH ia colocando em causa – se uso se fizer da expressão de Virgílio Borges Pereira e João Queirós (2012) – a doxa constitutiva da política de habitação. Chamando a atenção para os “pontos de viragem” na produção da habitação social na cidade do Porto, os autores argumentam que tais inflexões, verificadas num tempo longo, decorrem de mudanças na relação entre o Estado, a habitação, e o curso da “questão social” naquela urbe. Acerca de uma inflexão verificada em meados da década de 1950, à relação com mudanças verificadas na economia e na sociedade do Porto, aduzem os autores duas outras dimensões – uma legal e institucional, outra intelectual. Para a cidade de Lisboa de finais de 1950, as mudanças institucionais e legais, no sentido que Pereira e Queirós (2012) atribuem à expressão, tiveram um papel determinante na ascensão das Habitações de Renda Económica a instituição do campo administrativo de produção política habitação de cariz social – parafraseando Bourdieu e Christin (1990, p. 66). E, mais tarde, através do Decreto-Lei n.º 42 454/59 foi institucional e legalmente tornada possível a criação de um organismo municipal orientado para funções executivas no programa Habitações de Renda Económica. Já a importância da dimensão ­intelectual (Pereira e Queirós, 2012) surge aqui reforçada pelo que José António Bandeirinha (2007, p. 26) identifica como uma mudança na composição disciplinar, técnica e geracional do pessoal integrado nos organismos do Estado:

 

[tais organismos] tinham a seu cargo jurisdição sobre as questões relacionadas com a habitação – Laboratório Nacional de Engenharia Civil, Direcção Geral de Urbanização, Federação das Caixas de Previdência, as próprias Câmaras Municipais, sobretudo a de ­Lisboa – muniram-se de técnicos jovens e sensíveis à urgência de uma solução mais sistemática para o problema. Foram esses técnicos – engenheiros, arquitectos, assistentes sociais, economistas – que, desde o início dos anos 60 e nos respectivos serviços, foram desenvolvendo vários trabalhos de âmbito analítico, de sistematização metodológica ou mesmo de projecto, e que foram dinamizando alguns núcleos informais de formação e de especialização menos académicos e mais operativos que as universidades [Bandeirinha, 2007, p. 26].

 

Na busca de soluções mais sistemáticas para o “problema social da habitação” (Baptista, 1999, p. 19), o GTH constituiu a política de habitação como problema e como solução. Já enquanto laboratório de urbanismo, a ação do GTH modificou não apenas o horizonte de possibilidade da intervenção do Estado, como também as possíveis modalidades de uma futura intervenção do próprio Estado. O modo qualificado como planeou e concebeu a habitação de cariz social e a integrou na cidade, de um lado, a crítica que enunciou relativamente ao funcionamento e aos efeitos socialmente excludentes do programa público estabelecido no Decreto-Lei n.º 42 454/59, de outro, são elucidativas da posição deste organismo público face às questões de política de habitação.

Para além de condições estruturais e conjunturais, a margem de ação que a equipa de urbanismo ao serviço do GTH tomou para si resultou da vaga orientação urbanística do Decreto-Lei fundador e do cunho experimentalista conferido à iniciativa pelo primeiro diretor do Gabinete, o engenheiro Jorge Carvalho de Mesquita. Relativamente à conceção urbanística, Carlos Duarte, em artigo publicado em 1976 na Architecture d’aujourd’hui, afirma que

 

[…] os arquitectos e os outros técnicos acreditaram poder fazer qualquer coisa e arriscaram uma colaboração no interior do sistema; relativamente à experiência construtiva em Olivais Sul, esta forneceu “um campo de experimentação nos domínios da tecnologia, da sociologia e da metodologia de projecto, […] sendo possível, ao nível do conjunto, um controlo sem precedentes, particularmente ao nível da célula habitacional, dos espaços exteriores, dos lugares comunitários e da utilização de linguagens arquitecturais [Duarte, 1976, p. 22, tradução minha].

 

Significativa parte dessa experiência radicava na observação e no estudo das realizações britânicas das décadas de 40 e 50 do século XX, e no ­conhecimento da cidade de Lisboa. O arquiteto Carlos Duarte, coautor do plano, recorda que

 

[…] na altura [se vivia] o entusiasmo das realizações ingleses do pós-guerra, nomeadamente das cidades novas à volta de Londres previstas no Plano Abercrombie, que muitos de nós já tínhamos visitado. E a verdade é que, não seguindo à letra os esquemas de Harlow, Steverage ou Crowley, certo é que a estrutura de Olivais-Sul se inspira nos princípios gerais dessas cidades, nomeadamente na adopção do conceito de “unidade de vizinhança”. Mas fá-lo na perspectiva da sua aplicação a uma cidade como Lisboa, com um património histórico e arquitectónico muito peculiar e uma tradição de viver urbano que não é a inglesa. Daí a insistência numa “vida de bairro” que tem tradução espacial em ruas, caminhos e praças, lugares tradicionais na nossa cidade de comércios, encontros e convívios. Uma intenção que teve correspondência no trabalho de algumas equipas de projectistas [Duarte, 2002, pp. 56 e 58].

 

A oferta de equipamentos coletivos, concebida pelos autores do plano ao serviço do GTH, recortava com nitidez uma intenção: produzir um espaço urbano semiautónomo face à cidade, que qualificasse a experiência de bairro das populações mais desmunidas em recursos económicos e culturais. Assim, à imagem dos centros das new towns inglesas e escandinavas, bem conhecidas da equipa (Medeiros, 1965; Duarte, 1965), o plano previa edificação de um centro cívico e comercial (Machado, 1967). Aí se localizariam um cineteatro e um grande armazém, um museu e um auditório, um mercado de grandes dimensões, e uma igreja, bem como um conjunto considerável de lojas e de serviços; numa órbita mais afastada do centro previa-se a instalação de duas bibliotecas, dois mercados, dois parques, e um complexo de instalações desportivas (Nunes, 2007, pp. 104-15).

É notória a semelhança entre os princípios de planeamento presentes na conceção dos Olivais Sul e as orientações da política urbana à época propostas e realizadas pelo Parti Socialiste Français (Dagnaud, 1978) ou por partidos trabalhistas ou sociais-democratas da Europa ocidental. Esta posição permite situar o plano dos Olivais Sul enquanto prática urbanística reformista, concebida e materializada sob a ditadura, e no âmbito de um programa de habitação com forte cunho “neoconservador” (Nunes, 2007, pp. 165-172).

 

DAS NECESSIDADES DE ALOJAMENTO AO DIREITO À HABITAÇÃO

 

Ao longo da década de 1960, o Gabinete Técnico de Habitação desenvolveu investigação sobre as necessidades de alojamento da população residente na capital. Os seus objetos e práticas de investigação revelam como a partir de um dos mais importantes e significativos programas de habitação económica se enunciaram argumentos que reivindicavam o entendimento da habitação enquanto direito.

Um dos primeiros tópicos de análise para o serviço de investigação do GTH foi o problema da sublocação. Apesar de algumas dificuldades de cálculo, decorrentes das definições estatísticas de “família” e de “agregado familiar” utilizadas nos Recenseamentos Gerais da População de 1950 e 1960, Maria ­Conceição Tavares da Silva (1964a) recortou a partir daquelas fontes um universo de 49 mil famílias sublocatárias na cidade de Lisboa, para um total de 245 mil famílias residentes. Ao diagnóstico quantitativo da sublocação, a investigação do GTH associou, em seguida, o problema da sobreocupação dos fogos. Foram calculados índices de ocupação dos alojamentos, e ordenados numa escala que resultava do rácio entre o número de ocupantes e o número de divisões. Apoiando-se nos trabalhos de Paul-Henri Chombart de Lauwe, Tavares da Silva (1967) traçou o “limiar crítico” no intervalo 1,85 a 2,74 ocupantes por divisão. Ao situar a linha de corte neste intervalo, a autora estimava em cerca de 18 mil os agregados domésticos “mal alojados” em sobreocupação. Também através dos dados apurados no X Recenseamento Geral da População (1960) foram reconstituídas as condições de habitabilidade dos fogos na cidade de Lisboa. Estimava-se que para cerca de 13 mil agregados domésticos residentes na capital o seu alojamento era deficientemente equipado, isto é, onde a falta de cozinha, casa de banho, ou retrete havia sido registada no recenseamento (Silva, 1967, p. 116).

Paralelamente ao levantamento estatístico da sublocação, da sobreocupação dos alojamentos e das carências de equipamento doméstico e sanitário, o GTH encetou o “inquérito à população residente nos bairros de lata e construções abarracadas” (Gabinete Técnico de Habitação, 1965). A observação conduzida pelo gabinete permitiu caracterizar um mundo urbano composto por 10 918 fogos, distribuídos pelos bairros de lata da capital, onde se alojavam cerca de 43 mil pessoas e que eram “teto” para 12 022 famílias – o que grosso modo representava cerca de 4% da população residente no concelho de Lisboa em 1960.

Da investigação acerca das necessidades habitacionais em Lisboa resultou um claro déficit de alojamentos. Jorge Carvalho de Mesquita sintetizava assim o trabalho do gabinete que dirigia:

 

[para além das 12 022 famílias a residir em barracas] em regime de sublocação revelou o censo de 1960 existirem cerca de 57 000 famílias. Mesmo descontando a este número as famílias de pessoa isolada, cujo problema se apresentava mais atenuado, se chegaria a um montante de 43 700 o que, de modo algum, se poderia minimizar. Além disso 2 900 ­agregados multi-familiares, com alojamento em prédio, não dispunham sequer de casa de banho, retrete e cozinha ou então só dispunham de cozinha [Mesquita, 1967, p. 15].

 

O diretor do GTH concluía que “avaliando em 160 000 o quantitativo das famílias, por razões várias classificadas como mal alojadas” se compreendia “a transcendência da crise” e assim a exigência em adotar “medidas rápidas, para [que] o déficit carencial se não se acentuasse ainda mais” (Mesquita, 1967, p. 15). Do confronto entre o valor do défice de alojamentos apurado pelo GTH e os mecanismos de “construção social das populações” destinatárias que operavam no seio do programa das Habitações de Renda Económica emergiu uma variada gama de críticas ao programa. Uma das mais significativas foi enunciada por Carvalho de Mesquita: o diretor do GTH constatava que, para a generalidade das famílias, o acesso a uma Habitação de Renda Económica se revestia de um grau de dificuldade superior àquele encontrado na procura de uma casa no setor livre do mercado (Nunes, 2007, pp. 175-176). O argumento era sustentado por investigação realizada pelo GTH.

Por um lado, a atrás referida investigação conduzida nos bairros de lata permitia aferir que boa parte dos agregados domésticos que se alojava em miseráveis condições não poderia aceder a uma Habitação de Renda Económica por via dos seus parcos rendimentos (Gabinete Técnico de Habitação, 1965; Nunes, 2007, pp. 110-111). Por outro lado, um inquérito realizado pelo GTH junto da população que trabalhava na zona oriental cidade apontava para esse mesmo efeito do programa (Pacheco de Amorim, 1964). E, por outro lado ainda, através de um inquérito às necessidades de alojamento e rendimento dos serventuários do Município de Lisboa (Catalão, 1963a, p. 10), o GTH verificava que devido aos seus reduzidos réditos uma significativa proporção dos trabalhadores do município deparar-se-ia com dificuldades de acesso a uma Habitação de Renda Económica.

Os estudos realizados permitiam que os técnicos e dirigentes do GTH argumentassem a favor de uma redução dos valores das rendas das Habitações de Renda Económica estabelecidas no Decreto-Lei n.º 42 454/59. O GTH e a Câmara Municipal de Lisboa criaram a Categoria HR – Habitações Renda Módica: uma nova categoria de habitação económica cujas rendas eram inferiores ao mínimo definido para a categoria I do Decreto-Lei n.º 42 454/59 – isto é, 200 escudos (Tavares da Silva, 1964b). Esta categoria foi destinada a ações de realojamento e a agregados familiares que se encontravam excluídos do programa. Foi incluída na construção de Olivais Sul (Nunes, 2007, pp. 110-113) e, mais tarde, alguns agrupamentos foram edificados em Chelas, onde o problema dos bairros de barracas e do realojamento se colocava de forma aguda (GTH, 1964, pp. 29-30).

Também ao longo da década de 1960 foram formulados outros argumentos e propostas de revisão do programa das Habitações de Renda Económica e da política de habitação do Estado Novo. Trabalhos realizados no Gabinete Técnico de Habitação, como se viu, ou no Laboratório Nacional de Engenha­ria Civil, por Nuno Portas (1964), ou ainda na Federação das Caixas de Previdência – Habitações Económicas, pela equipa de Nuno Teotónio Pereira, apresentavam denúncias e propostas de alteração programática e operacional dos programas de habitação pública da época. Desde logo, alterações nos meios e nos modelos da política de habitação eram reivindicados. Para Luís Catalão, engenheiro-chefe do serviço de investigação do GTH, era necessário o alargamento do âmbito do Decreto-Lei 42 454/59 aos arredores da cidade, e era urgente a criação de um organismo centralizado de distribuição de habitação (Catalão, 1963a). Num estudo elaborado no Laboratório Nacional de Engenharia Civil, Nuno Portas (1964, pp. 10-11) propunha a orientação do investimento público para a edificação de habitações destinadas às rendas mais baixas, uma revisão da remuneração dos investimentos dos organismos públicos em habitação, isto é, do juro associado ao capital investido, e um reforço da planificação quer no domínio orçamental e financeiro, quer no domínio construtivo e urbanístico. A equipa de Nuno Teotónio Pereira, que integrava a Habitações Económicas – Federação de Caixas de Previdência, argumentava, entre outros aspetos, a favor de uma política de solo que dotasse os órgãos do Estado de instrumentos de controlo e neutralização de processos especulativos (Pereira et al., 1964, p. 3). Em comum, estas três propostas pressupunham o reforço do investimento público.

A atuação que era requerida ao governo implicava mudanças na produção e na distribuição da habitação de cariz social. Relativamente à produção, pretendia-se que um reforço da planificação e do investimento público engendrasse incrementos no quantitativo de fogos oferecido. Assim se responderia ao déficit de alojamentos – um tópico que adquiriu enorme relevo ao longos dos anos de 1960 (Baptista, 1999, p. 117), e que foi tratado de forma pioneira e influente, quer por Raul da Silva Pereira (1963a) no primeiro número da Análise Social, quer pelo Serviço de Investigação do GTH, como se tem vindo a mostrar. Assim também, e por via da planificação e do aumento do investimento público, se gerariam economias de escala e se induziriam efeitos modernizadores na indústria e no setor da construção. Já relativamente à distribuição social, argumentava-se a favor de alterações no desenho do acesso aos programas públicos e, claro está, do programa das Habitações de Renda Económica em curso. Modificações na extensão económica e social do instrumento eram requeridas. Entre a produção e a distribuição, pretendia-se uma melhoria na articulação entre meios financeiros e programas de habitação.

Em suma, procurava-se uma maior proximidade a modelos e a meios de atuação típicos dos países europeus e dos Welfare States em institucionalização. Em 1969, um passo é dado nesse sentido. É criado o Fundo de Fomento da Habitação, organismo situado na esfera do Ministério das Obras Públicas, competindo-lhe a centralização e coordenação política, técnica e financeira do investimento público no setor. Também em 1969, um passo é dado no sentido de enunciar a habitação enquanto direito. No texto do relato final do Colóquio sobre Política de Habitação, é afirmado: “cada agregado familiar necessita de uma habitação. Desta evidente necessidade decorre o conceito de direito ao alojamento, que, sendo um direito, deve ser a todos garantido pela colectividade, sob a responsabilidade do Estado” (Colóquio sobre Política de Habitação citado por Gros, 1982, p. 147).

 

REFLEXÃO FINAL – A EMERGÊNCIA DE LISBOA ENQUANTO CIDADE-METRÓPOLE DUALISTA

 

Num ensaio intitulado “A arquitectura de habitação no século XX português”, Nuno Portas (1997) passa em revista a política de habitação dos últimos vinte anos do Estado Novo. Constata o autor que é face ao “déficit quantitativo” do setor público, verificado nas décadas de 1950 e 1960, que se revela o caráter excecional dos “últimos grandes bairros novos em Lisboa – Olivais e Chelas […], concebidos como new town in town […] [e juntando] mais uma vez, sem limitações de tipologia ou linguagem, o melhor dos arquitectos portugueses modernos, incluindo os mais jovens” (Portas, 1997, p. 120). Argumenta que “no início da segunda metade do século, Lisboa é uma cidade-metrópole dualista na qual o sector marginal tomou o lugar que nos países europeus avançados tinham os grandes bairros públicos do Estado-providência”, especificando:

 

De facto, os “bairros sociais” dos últimos vinte anos do Estado Novo não eram os das excepções “cultas” [Olivais Norte, Olivais Sul e Chelas], mas sim por omissão do Estado os das extensas urbanizações periféricas nascidas na sua maioria como loteamentos ilegais. De facto, estas suburbanizações em extensão só eram possíveis num regime autoritário se toleradas (porque eram tudo menos “clandestinas”, nome por que ficaram conhecidas) – mas ofereciam, embora com custos ecológicos, às classes populares da capital, aos imigrantes desejosos de investir no seu país, ou mesmo às poupanças das camadas médias, a oportunidade de construírem casa própria, de a ampliar ou melhorar, ou de instalarem actividades produtivas mais ou menos marginais que as cidades planeadas ou regulamentadas já não podiam integrar [Portas, 1997, pp. 119-120].

 

É à margem da promoção pública que o arquiteto e urbanista identifica em alguns subúrbios lisboetas um mundo de “arquitecturas populares sem arquitectos, em parte auto-construídas ou pelos pequenos construtores para vender e/ou alugar, já que também eles tinham perdido o seu papel nos centros urbanos ao vingarem os blocos em altura e a iniciativa do capital financeiro” (Portas, 1997, p. 120). A literatura sobre a habitação clandestina em Lisboa deu conta não apenas das dinâmicas especulativas e dos casos mais visíveis, inclusive, objeto de campanhas jornalísticas (Salgueiro, 1977), como também das urbanizações mais discretas (Corte-Real, 1973); levantou o perfil social dos seus protagonistas, interpretou as suas estratégias económicas e sociais, e reconstituiu as histórias familiares dos “clandestinos”, relacionando-as com a transformação do território por via da ação dos loteadores (Ferreira et al., 1985); analisou a eficiência e a equidade na produção de “espaço clandestino”, discutindo a oferta de habitação face à economia política urbana (Rodrigues, 1989); e apontou similitudes e identificou diferenças com fenómenos ocorridos em Itália, na Jugoslávia e na Grécia (Gaspar, 1989).

Na cidade Lisboa e nos seus arredores, durante a década de 1960, a edificação de grandes conjuntos residenciais, quer de origem pública, quer de origem privada, foi uma importante peça na constituição da metrópole (Nunes, 2011). As formas de crescimento urbano marginal podem também ser vistas sob esse prisma metropolitano, nomeadamente a partir das práticas de loteamento e de construção de habitação clandestina. Para o arquiteto Luís Bruno Soares, este fenómeno representa uma “transformação informal do território”, que se desenvolveu num período de crescimento demográfico que, note-se, ia igualmente constituindo a metrópole de Lisboa:

 

Se os bairros clandestinos dos anos 50 e 60 ofereciam alojamento barato que era uma alternativa à barraca, à parte de casa, ao quarto de hóspedes ou à casa insalubre no centro da cidade, os loteamentos dos anos 70 e 80 oferecem a alternativa de uma moradia e jardim construídos pelos próprios. Os clandestinos de primeira “geração”, instalaram-se e cresceram por falta de uma política de habitação social que respondesse às necessidades do crescimento demográfico e a instalação de populações imigrantes de baixos rendimentos. Os da “segunda geração”, dominada pela casa própria estão-se a consolidar por não haver uma política urbanística que responda e um modelo de habitat eleito pela classe média e por grande parte do operariado com uma capacidade de autoinvestimento acrescida [­Soares, 1987, p. 350].

 

A análise articulada do programa das Habitações de Renda Económica e da construção de habitação dita clandestina contribui para a reconstituição de ­segmentos significativos da história social e urbana da metrópole de Lisboa. Se tais objetos forem entendidos enquanto “meaningful types in a world of suburbs” (Harris, 2010), a sua análise contribuirá então para a sociologia da condição e da experiência suburbana, tanto à escala nacional como à escala global.

 

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Recebido a 24-03-2012. Aceite para publicação a 31-07-2012.

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