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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.212 Lisboa set. 2014

 

ARTIGO

Habermas e a ideia de continuidade reflexiva do projeto de Estado de bem-estar social

Habermas’s idea of reflexive continuity of welfare State’s project

 

Leno Francisco Danner*

*Departamento de Filosofia, Universidade Federal de Rondônia, Campus José Ribeiro Filho, BR 364, KM 9,5 — CEP 76801-059, Rondônia, Brasil. E-mail: leno_danner@yahoo.com.br

 

RESUMO

O artigo discute a proposta de reformulação da social-democracia por parte de Habermas, bem como a sua contraposição ao neoliberalismo. A crítica de Habermas à social-democracia centra-se na tendência de, no que tange à condução do Estado de bem-estar social, se substituir a democracia de base pela predominância do partido e da sua elite burocrática, o que dificultaria a democratização política do poder, ao passo que a sua crítica ao neoliberalismo aponta para uma recusa, por parte deste, da vinculação político-económica da normatividade do social, que enquadraria o político e o económico a partir de interesses generalizáveis, via Estado de bem-estar social. Estes dois aspetos do pensamento político de Habermas são sintetizados nesta artigo na ideia de continuidade reflexiva do projeto de Estado de bem-estar social.

Palavras-chave: Habermas; social-democracia; neoliberalismo; Estado de bem-estar social; modernização.

 

ABSTRACT

This paper discusses Habermas’s criticism of and proposal for a reformulation of the social democracy, as well as his contraposition to neoliberalism. I argue that Habermas’s criticism of social democracy tends to replace radical democracy with hegemony of political parties and their bureaucratic elite, and that this tendency ultimately harms the political democratization of power.  I also defend that Habermas’s criticism of neoliberalism points to a neoliberal refusal of a political and economic link to social normativity, which should frame the political and economic spheres based on the universalizable interests of the Welfare State. These two aspects of Habermas’ political thought are summarized in this article in the idea of reflexive continuity of the Welfare State project.

Keywords: Habermas; social-democracy; neoliberalism; Welfare State; modernization.

 

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

 

Em 1984, Habermas apresentou, junto ao parlamento espanhol, um artigo intitulado A Crise do Estado de Bem-Estar Social e o Esgotamento das Energias Utópicas, no qual, pela primeira vez nos seus trabalhos, é defendida uma continuidade reflexiva desse mesmo projeto de Estado de bem-estar social. Ora, mas o que significa esta proposição? A hipótese defendida por este artigo é a de que, através desta proposição, Habermas busca contrapor-se à posição neoliberal ou neoconservadora, seja em termos de realpolitik, na medida em que o neoliberalismo estaria em franca hegemonia, a partir da década de 1980, em algumas das mais desenvolvidas sociedades mundiais de então (Inglaterra, com Thatcher; Estados Unidos, com Reagan; República Federal da Alemanha, com Kohl, etc.), seja em termos de posição teórico-política, com o fortalecimento, durante o período acima exposto, da corrente neoliberal ou neoconservadora e o seu ataque direto ao Estado de bem-estar social; ao mesmo tempo, com aquela proposição, o autor reafirma a vertente teórico-política social-democrata, propugnadora do projeto de Estado de bem-estar social, apontando para a necessidade de se fortalecerem as funções interventoras (regulação económica) e compensatórias (justiça social) do Estado de bem-estar social, mas ligando-as, concomitantemente, à realização de processos cada vez mais efetivos de democracia política, aproximando-se, com isso, o poder político-administrativo (partidos políticos, Estado) da sociedade civil, dos movimentos sociais e das iniciativas cidadãs. A necessidade do nosso tempo – que, por exemplo, a esquerda deveria levar a sério – consistiria em justiça social e democracia política, cuja efetivação dependeria de um movimento recíproco, correlato.

Com isso, o presente trabalho definirá a defesa e a retomada da social-democracia, por parte de Habermas, enquanto aspetos que explicitam a sua postura teórico-política ligada à esquerda – e propugnadora de um projeto teórico-político de esquerda, que ganharia força após a queda do socialismo real e que marcaria efetivamente a posição de uma esquerda ocidental não-comunista no seu combate ao neoliberalismo. Correlatamente, defender-se-á que a crise do Estado de bem-estar social, em Habermas, e a consolidação de um processo de modernização económica globalizado, apontariam para a necessidade de se retomar esse mesmo Estado de bem-estar social em pleno caminho de desestruturação, nas suas funções diretivas, interventoras e compensatórias, ou seja, a ideia de uma política diretiva enquanto elemento central no que tange à evolução socioeconómica – uma lição com a qual as sociedades ocidentais se debatem hoje em dia de um modo cada vez mais dramático.

Ao mesmo tempo, buscar-se-á tematizar a crítica de Habermas à esquerda e, em particular, à social-democracia europeia, desenvolvida a partir da ideia de continuidade reflexiva do projeto social-democrata de Estado de bem-estar social. Afinal de contas, o ideal de democracia radical1, que perpassa a reformulação desse projeto, tem por objetivo exatamente combater a tendência tecnocrática, burocrática, no que tange à condução da práxis política e da administração pública – algo que, desde as suas primeiras obras, Habermas percebia como uma das características nefastas das posições teórico-políticas social-democratas (mas não somente delas, naturalmente). A burocratização do poder e a substituição da democracia de base pelo partido político, nesse sentido, são os dois grandes pontos da crítica que Habermas desenvolve em relação à esquerda, apontando para a necessidade de processos democráticos radicalmente inclusivos, que aproximem o poder político-administrativo da sociedade civil, dos movimentos sociais e das iniciativas cidadãs. A nossa época, repito-o, exige não apenas justiça social, mas também democracia política – e é nesse duplo objetivo que ainda reside uma possibilidade para a esquerda teórico-política.

Um último esclarecimento. Neste texto, procurarei fornecer uma chave de leitura para perceber aquele que considero o núcleo teórico-político dos escritos habermasianos, a saber, a sua crítica e reabilitação da social-democracia, concomitantemente à sua feroz contraposição ao neoliberalismo. Insistirei, no texto, nesta continuidade (muito mais do que nas diferenciações – que, de todo o modo, não incidem diretamente na tal chave de leitura e que não a modificam substancialmente) no que tange ao pensamento político de ­Habermas. Desde os seus primeiros escritos, portanto, que Habermas é crítico da posição teórico-política social-democrata e do projeto de Estado de bem-estar social por ela propugnado. É crítico da social-democracia no sentido em que o estrondoso sucesso material consolidado a partir da conciliação entre capital e trabalho nas sociedades desenvolvidas do pós-guerra ocorreu, no seu entender, à custa do enfraquecimento do processo de democratização política do poder, o que teria gerado sociedades altamente desenvolvidas em termos materiais, mas estruturalmente enfraquecidas em termos de democratização política do poder, de um modo geral, e do poder administrativo-partidário em particular. Desde os seus primeiros trabalhos, assim, Habermas defendia que a superação desse déficit democrático próprio da social-democracia e do Estado de bem-estar social deveria ser resolvido pela efetivação de processos ampliados de democratização em todos os âmbitos da sociedade. Ora, a partir da década de 1980, por meio da ideia de continuidade reflexiva do projeto de Estado de bem-estar social, essa defesa de uma reabilitação da social-democracia e de uma prossecução reflexiva do projeto de Estado de bem-estar social passa a ganhar, nos escritos habermasianos, um lugar fundamental, como alternativa teórico-política ao neoliberalismo. Nesse sentido, haveria de reforçar-se tanto a diretiva política da evolução social, quanto as tarefas interventoras e compensatórias do Estado de bem-estar social, que Habermas acredita serem a base da posição teórico-política social-democrata, como forma de se oferecer uma alternativa consistente à posição neoliberal hegemónica em grande parte das democracias ocidentais. A partir da década de 1990, com a progressiva consolidação da globalização económica, a defesa da social-democracia e a prossecução reflexiva do projeto de Estado de bem-estar social são utilizados como mote para Habermas defender a, por assim dizer, globalização da política, a partir da criação de instituições políticas transnacionais com poder de intervenção económica e de compensação social ao estilo do Estado de bem-estar social. Ainda aqui, conforme mostrarei logo adiante, a social-democracia deveria assumir a sua função de ponta-de-lança de um projeto emancipatório ao nível global, para se fazer frente a uma globalização económica consolidada e incontrolada, que estaria a pôr em xeque tanto a solidez política, social e económica dos Estados-nação contemporâneos quanto uma ordem mundial minimamente pacífica e justa. Enfim, é essa crítica e retomada da social-democracia, correlatamente à contraposição ao neoliberalismo, que enquadram a posição teórico-política habermasiana filiada à esquerda, tanto ao nível de uma sociedade democrática quanto ao nível da globalização.

 

O ATAQUE AO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL: 1980

 

Se a década de 1970 foi marcada pelo diagnóstico de uma crise fiscal cada vez mais acentuada em termos de Estado de bem-estar social (Habermas, 1999 [1975]2, pp. 88-89 e 1990 [1976], pp. 255-256; O’Connor, 1977, p. 23 e seguintes); e se, neste mesmo período, teria chegado ao fim um processo de crescimento económico ininterrupto aliado a sólidos investimentos em termos de política social (que teria dado a tónica da reconstrução das sociedades desenvolvidas no pós-guerra, da Europa Ocidental à América do Norte) (Hobsbawn, 1995, pp. 537-562; Judt, 2008, pp. 537-582; Van der Wee, 1987); a década de 1980, como continuação, seria caracterizada pelo ataque neoconservador ou neoliberal ao Estado de bem-estar social no que tange as suas funções de intervenção económica e de integração social, o que, por sua vez, teria implicações no combate ao conteúdo normativo congregado no conceito de direitos sociais e políticos – a ideia de igualdade substantiva3, a ideia de justiça social4, a ideia de democracia radical (Habermas, 2005a [1985], pp. 24-26; ­Rosanvallon, 1998, pp. 23-27; Offe, 1984, pp. 236-240). Nesse sentido, durante a década de 1980, e inclusive na década seguinte, a programática neoliberal hegemónica marcou o compasso da reestruturação das sociedades ocidentais (em particular, das citadas acima), diante dessa crise económica que se teria consolidado desde a década anterior. Por isso, baseando-nos em Katz (1989), poder-se-ia falar de uma guerra contra o Estado de bem-estar social enquanto o móbil da ideologia teórico-política neoliberal nesse período, contrariamente a uma afirmação desse mesmo Estado de bem-estar social nas décadas imediatamente ­posteriores à Segunda Guerra Mundial (Zürn e Leibried, 2005; ­Marshall, 1967). E, com Offe (1984, pp. 237-239 e 1989, pp. 269-312) e Habermas (1997 [1985], pp. 236-251), poder-se-ia falar correlatamente de um ataque neoliberal ou neoconservador ao núcleo normativo do modelo de democracia social – modelo esse marcado pela íntima imbricação e dependência entre direitos individuais, direitos políticos e direitos sociais – como dando o tom da reapolitik dos anos 1980.5

Ora, a hegemonia neoliberal não foi – nem é – um desafio insignificante à esquerda ocidental, dado que todo o conteúdo programático do neoliberalismo ataca diretamente noções-chave da esquerda, noções essas que constituem o próprio núcleo normativo da esquerda, para não se falar mesmo da gradual desconstrução e da efetiva desestruturação das atividades interventoras e compensatórias tradicionalmente enfeixadas pelo Estado de bem-estar social. Com efeito, para o que me interessa aqui, três das noções mais centrais para uma posição de esquerda – centralidade da política enquanto elemento fundamental para a condução da evolução social, necessidade de focos de democracia direta (no sentido de uma aproximação entre Estado e partidos políticos profissionais em relação aos movimentos sociais e às iniciativas cidadãs) e justiça distributiva – são postas em xeque pelo neoliberalismo.

É nesse sentido que, em Habermas, a análise do processo de modernização serve como elemento teórico fundamental para se perceber, nesse caso, o próprio significado do projeto teórico-político neoliberal e, noutro sentido, para se pensar uma proposta de esquerda que tem na reafirmação da social-democracia e no projeto de Estado de bem-estar social o seu paradigma orientador. O correto entendimento do processo de modernização, portanto, permite uma consistente tematização das ideologias teórico-políticas em disputa no que diz respeito à compreensão da crise desse Estado de bem-estar social e às possíveis soluções a serem perseguidas, ao mesmo tempo que possibilita uma reapropriação dos ideais normativos ínsitos à modernidade ocidental, da qual a esquerda – e a teoria social crítica, quando se posiciona à esquerda – precisa de beber, em termos de orientação teórico-política.6

Desde os seus primeiros trabalhos que Habermas procurou considerar o processo de modernização a partir de um duplo viés, a saber: esse processo de modernização, em termos de capitalismo tardio, (a) seria marcado pela centralidade do Estado de bem-estar social no que diz respeito à orientação da economia e à integração social enquanto tendência basilar das sociedades contemporâneas, ao mesmo tempo que (b) a política e a cultura democráticas teriam deixado de ser mera superestrutura do sistema para se tornarem o elemento central a partir do qual esse mesmo sistema seria legitimado. No primeiro caso, por conseguinte, a esquerda não poderia ignorar, nas suas análises e na sua programática política, o facto de que o Estado de bem-estar seria o conteúdo político da democracia de massas (Habermas, 2001a [1981], pp. 490-491), da mesma forma que, no segundo caso, qualquer ideologia teórico-política deveria levar em conta, uma vez hegemónica, essa situação na qual a esfera pública democrática, ainda que constantemente enfraquecida por formas de comunicação distorcidas, exige permanente justificação das forças teórico-políticas em disputa, enquadrando-as a partir de interesses generalizáveis, normativamente definidos, que não podem ser sempre ignorados (Habermas, 1994 [1968], p. 72-81). Seja pela importância do Estado de bem-estar social enquanto motor do desenvolvimento e da estabilização das sociedades contemporâneas, seja pela consolidação de uma cultura política democrática e universalista que marcaria a constituição dessas mesmas sociedades, o processo de modernização teria de ser percebido na sua complexidade para, então, ser analisado nas suas ambivalências e nas suas potencialidades.

No que diz respeito a isto, Habermas explicitava enfaticamente, já na década de 1970, a necessidade de se reformular a teoria marxista de modo a que ela pudesse dar conta da mudança político-económica e sócio-cultural que teria acontecido nas sociedades industrializadas desenvolvidas – ou seja, para dar conta da interpretação das sociedades do capitalismo tardio. ­Sinteticamente, três fatores básicos da teoria marxista tradicional – a dependência da superestrutura política face à base económica, a luta de classes e a questão da ideologia – sofreram o impacto de três condições específicas das sociedades industrializadas contemporâneas, a saber: a atividade interventora do Estado na economia com o objetivo de a estabilizar; a realização, ainda por parte do Estado, de amplos programas de inclusão social, de bem-estar material e de pleno emprego às classes sociais dependentes do trabalho; e a consolidação de um ethos normativo que, marcado pela íntima imbricação entre direitos individuais fundamentais, direitos políticos e direitos sociais, teria generalizado os processos de inclusão em todos os âmbitos da sociedade e, portanto, fortalecido a ideia de democracia ou, pelo menos, a teria colocado como o núcleo paradigmático a partir do qual a legitimação do poder tem de partir inevitavelmente (de modo que o regime democrático deixa de ser mera superestrutura ou ideologia para se tornar o ponto a partir do qual a legitimação do poder e as forças políticas disputantes têm de partir na sua busca de hegemonia).

No século XX, o capitalismo liberal, caracterizado pela teoria de laissez-faire, teria sido implodido seja pela consolidação de uma economia monopólica ou mesmo oligopólica, na qual há uma crescente concentração das empresas e uma organização de mercados de bens, capitais e de trabalho ao nível nacional e transnacional, seja pelo crescente intervencionismo do Estado na esfera da produção, no sentido de a gerir (e, inclusive, no sentido de evitar os efeitos nefastos de uma economia monopólica). Em relação ao primeiro ponto, tem-se a destruição do capitalismo concorrencial (que Adam Smith defendia como caso modelar), na exata medida em que a economia é monopólica; em relação ao segundo ponto, o Estado substitui e complementa o mercado em vários âmbitos, com o que se teria a repolitização das relações de produção (que, no capitalismo liberal, ao entender-se o mercado como fazendo parte da esfera privada e sendo determinado pela mão invisível, eram compreendidas como parte da esfera privada, como sendo relações económicas privadas, não podendo, por isso, sofrer ingerência do próprio Estado). O Estado contemporâneo, em suma, deve mediatizar os conflitos entre capital e trabalho – e isso tanto em termos de estabilização do processo de acumulação capitalista, evitando-se crises permanentes do sistema e garantindo que o processo de produção e de acumulação da riqueza aconteça num crescendo, sem sobressaltos graves, quanto em termos de realização de programas de inclusão social das classes dependentes do trabalho, de modo a evitar-se que a acumulação privada da riqueza socialmente produzida (que ainda se mantém na passagem do capitalismo liberal para o capitalismo tardio) possa gerar concomitantemente processos de pauperização material às classes trabalhadoras (Habermas, 1999 [1975], p. 68 e 1984 [1962], pp. 97-99; Hobsbawn, 1995, pp. 107-108; Baran e Swezzy, 1978, pp. 218-247; Braverman, 1987, pp. 242-246; Shonfield, 1968, pp. 21-41; Macpherson, 1974, pp. 28-30; Abendroth, 1973, pp. 19-20; ­Horkheimer, 1990, p. 4; O’Connor, 1977, pp. 25-33; Wolfe, 1980, pp. 271-277; Held, 1980, p. 45; Ingram, 1994, p. 199; Pinzani, 2009, p. 69-71).

Nesse aspeto, portanto, percebe-se uma nova configuração da relação entre Estado e economia, que a teoria de Marx (e as vertentes mais ortodoxas do marxismo), com os olhos voltados para o capitalismo liberal, não conseguiria diagnosticar, a saber: a partir do século XX, o Estado passa a ser o motor da evolução, em termos económicos e em termos sociais – ele não é mais parte da superestrutura do sistema, senão que faz parte, ainda utilizando um termo marxista, da própria base desse sistema. O Estado de bem-estar social, como quer Habermas, é o conteúdo político da democracia de massas, exatamente porque garante a estabilidade dos processos de integração social, que, sem essa atuação interventora e compensatória, ocorreriam de modo como que espontâneo, arbitrário, e sendo determinados pela configuração das forças presentes na esfera económica, o que, como consequência, aponta para o Estado como algo marcado por um poder pacificador e integrador junto da sociedade – ele intermedia a esfera produtiva, em termos de economia capitalista, e a esfera da distribuição do produto social, de modo a garantir que o sistema como um todo possa evoluir com o mínimo de conflitos estruturais e seja marcado pelo máximo de inclusão social possível.

Por isso mesmo, nem a política democrática e nem a sociedade civil (congregada, por exemplo, em movimentos sociais e iniciativas cidadãs) mantêm a compreensão clássica que possuíam no liberalismo, respetivamente política negativa e esfera económica privada7. De facto, nas sociedades do capitalismo tardio, a íntima imbricação entre direitos individuais, direitos políticos e direitos sociais, correlatamente à repolitização das relações de produção, leva, em primeiro lugar, à consolidação da política democrática enquanto âmbito em que as contradições sociais estouram e como o instrumento por meio do qual tais contradições são amortizadas, bem como, em segundo lugar, enquanto uma esfera de efetivação da igualdade pressuposta pela imbricação entre os direitos, acima comentada. Aqui, a política negativa, própria do capitalismo liberal, restrita à afirmação da justiça comutativa, é ampliada, apontando para a realização da justiça distributiva (direitos sociais de cidadania), para não se falar da sempre aguda necessidade de participação das forças sociais no que diz respeito ao exercício do poder, ao lado dos partidos políticos (democracia radical). Em tudo isso, a política democrática, diferentemente do liberalismo clássico, passa a ser compreendida como núcleo organizador da sociedade – uma política que encontra no Estado o seu órgão diretivo fundamental (Habermas, 1999 [1975], p. 72; Maccarthy, 1992, p. 421). Nesta nova compreensão da política, nesta afirmação do caráter político das relações de produção, uma nova sociedade civil, altamente politizada e afirmando um ethos normativo que alarga a compreensão da política para além daquela prática política sintetizada na – e monopolizada pela – política parlamentar representativa a cargo dos partidos políticos profissionais, tem lugar e enfatiza exatamente a instituição de uma esfera público-política na qual os processos de legitimação do poder têm de se curvar, de se submeter permanentemente – uma esfera público-política que é radicalmente crítica do poder, em todas as suas formas (Habermas, 2003b [1992], vol. II, p. 99).

Ora, dado este papel central do Estado de bem-estar social, que deve estabilizar o sistema económico e garantir a efetividade dos processos de integração social, o capitalismo tardio é marcado pela mediação política dos problemas económico-sociais, ou seja, a ideia de um Estado de bem-estar social enquanto conteúdo político da democracia de massas significa que a estabilidade sistémica – que Marx havia diagnosticado como sendo impossível de ser mantida no longo prazo, e que, por isso mesmo, levaria ao ocaso, à autodestruição do capitalismo – é garantida politicamente, através do aparato estatal interventor (na esfera económica) e compensatório (na esfera social). Aqui, enfim, reside a afirmação de que a política democrática, enfeixada nas funções interventoras, regulatórias e compensatórias do Estado de bem-estar social, seria, em termos de capitalismo tardio, o elemento diretivo da evolução da sociedade – um elemento que sob hipótese alguma poderia ser substituído, por exemplo, pelo laissez-faire económico, ou mesmo pela retomada da ética liberal-protestante do trabalho.

Note-se, em relação à centralidade do Estado de bem-estar social no que tange à estabilidade e à evolução das sociedades industrializadas (mas não somente delas, naturalmente, como podemos perceber em termos de organização das nossas próprias sociedades, hoje), que uma das suas funções basilares consiste em garantir padrões de integração social mínimos a todos os indivíduos e grupos sociais, em particular àqueles indivíduos e grupos que, pelo facto de serem dependentes do mercado de trabalho, são por ele afetados de diferentes maneiras (exploração do trabalho, baixos salários, desemprego estrutural, etc.). Quer dizer, para estes indivíduos e grupos, a realização da política social por parte do Estado é condição sine qua non da sua integração social bem-sucedida. Com efeito, como quer Habermas, o Estado de bem-estar social não pode garantir a viabilidade de padrões de acumulação do capital sem correlatamente realizar, às classes sociais dependentes do mercado de trabalho e afetadas por ele, amplos processos de integração material, que se caracterizam, preventivamente, pela satisfação das condições básicas de vida, acrescidas de acesso universal aos sistemas formais de educação, bem como, a posteriori, pela instauração de um sistema de segurança social que protegeria os indivíduos já impossibilitados de trabalhar da falta de recursos para a sua sobrevivência (Habermas, 1999 [1975], p. 75 e 1990 [1976], p. 234). Em tudo isso, a tentativa de conciliação entre capital e trabalho dá o tom da programática do Estado de bem-estar social.

O conflito de classes, inscrito na estrutura do sistema por causa da manutenção dos processos de acumulação privada da riqueza socialmente produzida, é mediatizado politicamente, a partir da política social realizada pelo Estado. Nesse sentido, na medida em que é oferecido a todos os indivíduos dependentes do mercado de trabalho um conjunto básico de bens sociais primários, de direitos sociais de cidadania, há uma equalização desses mesmos indivíduos, que em rigor não podem cair abaixo de um padrão mínimo – mas decente – de bem-estar material. Tal padrão mínimo, se não apaga as fronteiras de classe existentes na sociedade e reproduzidas no processo produtivo, pelo menos desarticula os focos de conflito originados pela pauperização material e pela exploração do trabalho no, para utilizar um termo de Habermas, mundo da vida das classes dependentes do trabalho. Com isso, a luta de classes é contida e a consciência de classe, fragmentada – já que não é mais possível identificar aquela clássica divisão de classes estabelecida por Marx, pois que a realização de um nível mínimo de bem-estar material para todos aqueles que dependem do mercado de trabalho eliminou, no caso das sociedades desenvolvidas, em grande medida, os focos de pobreza material e de exploração do trabalho que detonariam os conflitos de classe, que desestruturariam a própria hegemonia de classe, levando a conflitos sociopolíticos (Habermas, 1994 [1968], pp. 95-96 e 1999 [1975], p. 76-77).

Porém, há, para Habermas, uma dialética aguda entre politização e despolitização que perpassa esse compromisso de classes assumido pelo Estado de bem-estar social na sua relação com a democracia de massas. De um lado, como se disse, o Estado responsabiliza-se, no capitalismo tardio, pela manutenção do processo de acumulação da riqueza (e, direta ou indiretamente, pela reprodução das relações de classe); de outro lado, dada a consolidação da democracia social e dos valores universalistas da modernidade política, bem como devido à força do movimento de trabalhadores europeu, a realização de amplos processos de integração material e a necessidade sempre premente de justificação público-política do aparato administrativo-partidário passam para primeiro plano na agenda do poder, não podendo ser ignorados – na verdade, a mediação política dos conflitos entre capital e trabalho não deixaria outra opção ao Estado de bem-estar social. Ora, é aqui que a dialética entre politização e despolitização das relações políticas de produção marca a dinâmica da esfera de poder congregada no aparato administrativo-partidário do Estado na sua relação com a democracia de massas. É que essa conciliação entre capital e trabalho nem sempre pode chegar à tematização pública, nem sempre pode ser objeto de reflexão do público de cidadãos – sob muitos aspetos, ela está em conflito com um ideal de democracia radical. O Estado de bem-estar social, assim, estaria perpassado, de um lado, pela necessidade de justificação política permanente acerca da sua dinâmica interna, mas, ao mesmo tempo, de outro lado, para que essa dinâmica pudesse ser realizada sem percalços maiores, precisaria, sempre que possível, de despolitizar uma sociedade civil altamente politizada. E ele faria isso por meio da gradativa independência em relação à – e substituição da – sociedade civil enquanto horizonte político por excelência (consolidado pela modernidade política), seja a partir de uma mudança estrutural da esfera pública, seja pela integração dos partidos políticos profissionais no horizonte da administração, desligando-os, em grande medida, do público de cidadãos que representam, seja mesmo pela substituição da discussão democrática pela ênfase na tecnocracia, ou seja, neste último caso, pela centralidade da ciência e da técnica no que diz respeito à resolução das questões sociopolíticas e económicas pelas quais o Estado se responsabiliza.

Essas posições, que Habermas desenvolveu ao longo das décadas de 1960 e de 1970, no sentido de estudar, influenciado pela primeira geração da Escola de Frankfurt, as condições de reprodução das sociedades contemporâneas, a caracterização do capitalismo tardio, a estrutura do Estado de bem-estar social e a constituição da democracia de massas (enquanto, de todo modo, momentos interligados e dependentes), foi sintetizada pelo referido autor em Teoria da Ação Comunicativa. Aqui, Habermas tem como foco de análise o processo de racionalização ocidental que culminou nas sociedades do capitalismo tardio, regidas pelo modelo de Estado de bem-estar social. Nestas, por conseguinte, o principal problema não consistiria no crescimento dos processos de pauperização social originados da esfera produtiva (que, não obstante, também existiriam), senão que seria o nada desdenhável aumento da independência do Estado frente à sociedade civil, paralelamente à consolidação de um processo de racionalização social que este mesmo Estado de bem-estar social realiza frente a ela – isto é, no que diz respeito a este último ponto, a subsunção da sociedade civil aos imperativos do poder do Estado. Ora, se o Estado de bem-estar social é o conteúdo político da democracia de massas, o núcleo político diretivo da evolução social em termos das sociedades contemporâneas, então é claro que, numa situação na qual ele enfraquece a arena política constituída pela sociedade civil e se sobrepõe, autonomiza-se frente aos atores políticos constituídos pelos movimentos sociais e iniciativas cidadãs, esse mesmo Estado de bem-estar social, assumido por grupos de poder hegemónicos, efetivamente constituir-se-á em instrumento de dominação de classe.

Isso significa, por conseguinte, que o desafio das sociedades contemporâneas, na verdade, não é nada mais – mas também nada menos – do que, dada a centralidade do Estado, em avaliar até que ponto, quais os objetivos e que limites esse mesmo Estado de bem-estar social possui, no que tange à conciliação entre capital e trabalho. De um lado, tal postura é fundamental pelo facto de que o Estado é esse núcleo político diretivo da evolução das sociedades democráticas, que não pode ser abdicado pura e simplesmente, devido à mediação política por ele realizada entre o económico e o social (entre outras mediações, naturalmente). De outro lado, essa mesma postura aguça a compreensão de que a democracia não se restringe ao – e nem pode ser assumida pura e simplesmente pelo – Estado (e nem pelos partidos políticos disputantes do poder nele centralizado). Quer dizer, o Estado é um instrumento democrático, a arena na qual a evolução política da sociedade é realizada, mas não substitui nem funda uma cultura democrática. Na verdade, esta cultura é o substrato normativo daquele. Com isso, se de um lado o papel do Estado não pode ser abdicado (por isso a necessidade de consideração das suas funções), de outro lado a necessidade de ampliação da política democrática para além das fronteiras da representação parlamentar e da atuação dos partidos políticos profissionais coloca-se como uma exigência fundamental para as nossas sociedades – uma política inclusiva e abrangente, uma política de base, feita no contato e na interrelação com os movimentos sociais e as iniciativas cidadãs, aproximaria novamente o Estado em relação à sociedade civil, evitando-se, desse modo, aquele distanciamento acima comentado e possibilitando uma remodelação do processo de racionalização social que este mesmo Estado de bem-estar social leva a efeito hodiernamente.

É por isso que disse, acima, que a correta avaliação do processo de modernização ocidental se constitui no caminho a partir do qual se pode ajuizar o sentido dessa relação entre o económico e o social mediados politicamente, ou seja, a relação entre economia e sociedade civil intermediada pelo Estado somente pode ser pensada a partir da compreensão das fronteiras, das funções e, então, de que modo cada âmbito se pode aproximar dos demais. Porque a modernidade não é um processo unívoco, senão que, por sua multidimensionalidade, precisa de ser compreendida nas próprias diferenciações que a constituem. Basicamente, estas diferenciações apontam para, de um lado, um processo de modernização económica, racionalizada em termos de Estado, e, de outro lado, para um processo de constituição de uma cultura ­democrática e universalista radicalmente secularizada e laicizada, solidária, que, embora esteja em íntima relação com a esfera político-económica, também é independente em relação a ela e, mais importante, colocada como seu fundamento normativo, enquadrando-a em termos de uma necessidade permanente de legitimação e de justificação. Tem-se, então, a partir da diferenciação da modernidade, a constituição de um aparato monetário-administrativo no qual economia e Estado se imbricam a tal ponto que instauram uma dependência como que férrea entre o económico e o político (capitalismo tardio), bem como a consolidação de um ethos democrático radicalmente inclusivo em todos os âmbitos da sociedade – um ethos normativo que é colocado como o substrato a partir do qual aquele aparato, como se disse acima, encontra uma escora no que tange à sua evolução. Na teoria da modernidade de Habermas, conforme ela recebe contornos desde as obras da década de 1960, passando pelas obras da década de 1970 e chegando, na década de 1980, à obra Teoria da Ação Comunicativa, enquanto síntese e maturação das investigações filosófico-sociológicas anteriores, feitas pelo referido autor, a diferenciação entre modernização económico-social, ou seja, a imbricação entre economia capitalista e Estado de bem-estar social, e modernização cultural, marcada pela consolidação de uma cultura democrática altamente inclusiva e explosiva, politizada, dá a tónica no que diz respeito à crise do Estado de bem-estar social, às ideologias teórico-políticas em disputa por hegemonia teórico-política (social-democracia e neoliberalismo, para o que aqui me interessa) e mesmo em relação às considerações diversas acerca de um suposto fim, esgotamento da modernidade como um todo.8

 

O NEOLIBERALISMO ATACA A MODERNIDADE CULTURAL, NEGANDO-A; A SOCIAL-DEMOCRACIA ENTRAVA A MODERNIDADE CULTURAL

 

Nesse sentido, remetendo-se novamente ao texto de 1984, A Crise do Estado de Bem-Estar Social e o Esgotamento das Energias Utópicas, pode-se entender por que Habermas, num certo sentido, recusa enfaticamente a posição neoliberal e, noutro sentido, critica e propõe uma reformulação da posição teórico-política social-democrata em relação ao Estado de bem-estar social, mas sem romper com ela. Com efeito, no caso do neoliberalismo, somente se pode atacar o núcleo duro do Estado de bem-estar social (intervencionismo económico e justiça distributiva) na medida em que se combate o conteúdo normativo da democracia social, sintetizado na íntima imbricação entre direitos individuais, direitos políticos e direitos sociais. Assim é que, conforme se disse anteriormente, Offe e Habermas diagnosticam, de meados da década de 1970 em diante, com especial ênfase a partir da década de 1980, um ataque massivo à modernidade cultural, à ideia de democracia política radicalizada e ao conjunto dos direitos sociais de cidadania.

Nesse período, a afirmação de Thatcher, de que a sociedade enquanto totalidade social não existe, senão somente indivíduos, explicita a dinâmica da crítica neoliberal ao Estado de bem-estar social (Harvey, 2008, p. 31; ­Habermas, 2000 [1998], p. 82). Esta crítica, na verdade, é caudatária da posição defendida por Hayek, para quem tanto o direcionamento político da evolução social quanto a realização da justiça social (ou distributiva) não teriam legitimidade. E não teriam pelo facto de que, para o referido pensador, a evolução social ocorre de modo espontâneo, a partir da busca individual do interesse pessoal, por parte de cada sujeito. Ora, a ideia de uma evolução espontânea da sociedade significa basicamente que não existe uma instituição diretiva da evolução social – muito menos uma instituição política que assuma tal função. As instituições não têm condições de estabelecerem um resultado final e, por meio dele, planearem um caminho e arranjarem os procedimentos adequados para a consecução daquele ideal. Não há como saber o resultado final, porque a sociedade não é uma totalidade social autoconsciente, ou que pudesse ser percebida institucionalmente com autoconsciência. A sociedade é pura e simplesmente um amontoado de indivíduos sem qualquer visão profética ou filosófica do todo, indivíduos estes que estão voltados para os seus objetivos pessoais e que os perseguem acima de tudo. É esse perseguir cada indivíduo seu interesse pessoal que, por outro lado, garante a realização, ao longo do tempo, do processo de evolução social, na medida em que, ao buscar cada um os seus objetivos pessoais, acaba direta ou indiretamente por se pôr ao serviço dos interesses dos demais.

E isso significa que se não existe algo assim como (a) a sociedade enquanto totalidade social, enquanto macrossujeito autoconsciente, e (b) uma instituição política diretiva e planeadora da evolução social, bem como (c) se apenas existem indivíduos a perseguirem os seus interesses privados, então somente um Estado restrito nas suas funções, marcado pela justiça comutativa e garantindo a viabilidade de uma competição racional entre estes indivíduos (evitando-se, por exemplo, a concentração monopolística da riqueza), poderia ser sustentado com legitimidade. Um Estado amplo, caracterizado pela realização da justiça social, não teria qualquer fundamento. Nesse sentido, a justiça social seria uma miragem, porque implicaria exatamente conceber-se a sociedade enquanto totalidade social, que, a partir do arranjo das suas instituições e da configuração das forças políticas em busca de hegemonia, consolida e legitima desigualdades entre os indivíduos e grupos sociais ao longo do tempo. Mas a sociedade enquanto totalidade é uma fantasia, posto que somente existem indivíduos – daí o caráter fictício do conceito de justiça social (Hayek, 1985).

Para Habermas, a tentativa neoliberal de revitalização da já esgotada ética do trabalho liberal-prostestante, nesse contexto de crise do Estado de bem-estar social, enfeixaria esse ataque à modernidade cultural e, em particular, à intima imbricação entre direitos individuais, direitos políticos e direitos sociais. Para essa mentalidade neoconservadora, o problema não estaria no processo de modernização económica, mas sim no excesso de expectativas normativas que os movimentos sociais e as iniciativas cidadãs dirigiriam ao Estado, à esfera política – expectativas normativas fomentadas em termos de modernidade cultural. Aqui, na verdade, residiria o grande empecilho ao processo de modernização económica, na medida em que aquela imbricação entre os direitos, própria da democracia social, por levar tanto a uma politização das relações de produção quanto, por causa disso, a um crescimento das funções interventoras e compensatórias do Estado, bem como a uma necessidade de democratização progressiva da própria esfera produtiva, travaria o processo de crescimento económico e retiraria mesmo a centralidade da ética do trabalho liberal-protestante, para a qual o individualismo possessivo e a meritocracia do trabalho, assentes na afirmação do caráter privado, meramente económico, dessa esfera produtiva, dariam a tónica da própria definição do status quo em termos de estratificação social e, por conseguinte, também da estruturação da esfera política (Estado guarda-noturno). Assim, sob os motes de ingovernabilidade e de inflação de expectativas, o neoliberalismo ataca, com a sua proposição de uma redução das exigências sociais, concomitantemente o Estado de bem-estar social e o conteúdo normativo da democracia social (Habermas, 1997 [1985c], p. 271; Offe, 1984, pp. 236-240). E, por causa disso, o Estado de bem-estar social deveria ser desinchado.

Por outro lado, ainda no texto A Crise do Estado de Bem-Estar Social e o Esgotamento das Energias Utópicas, Habermas tece considerações acerca da posição social-democrata, que é a real propugnadora do projeto de Estado de bem-estar social e que estaria em franca perda de hegemonia política frente às posições neoliberais, devido à crise do Estado de bem-estar social e à sua incapacidade em resolvê-la. Ora, um dos grandes pontos de crítica de ­Habermas à social-democracia, que desde a década de 1960 marcou sua posição frente àquela, e que ficou estilizado em Teoria da Ação Comunicativa, consiste em que a programática social do Estado teria sido elaborada de um modo tal que a inclusão política das classes sociais dependentes do trabalho foi travada por meio da normalização dos papéis de trabalhador e de consumidor, talhados exatamente para a estabilização do sistema (Habermas, 2001a [1981], pp. 494-495; White, 1995, pp. 113-119). O Estado de bem-estar social, por conseguinte, nas suas tarefas de estabilização sistémica e de integração social, teria adquirido relativa independência frente à legitimação democrática, prescindindo, em grande medida, da participação popular no que diz respeito à orientação da sua dinâmica, dos seus procedimentos e dos seus fins. E isso seria possível (a) por uma mudança estrutural da esfera pública (concebida negativamente, ou seja, como cultura de massas e imbricação entre media, Estado e partidos políticos, com o que se teria perdido a independência da imprensa em relação ao poder), assimilada ao poder administrativo, (b) pela transformação dos partidos políticos profissionais em máquinas de conquista da lealdade das massas e (c), como se disse acima, pela tendência da política social para fomentar o privatismo civil (normalização dos papéis de trabalhador e de consumidor, conformes ao sistema, e destruição da cidadania política). Tais tendências, que perpassariam a constituição do Estado de bem-estar social e a sua relação com a democracia de massas, que marcariam muito do sentido e do direcionamento em termos de dinâmica da constituição do poder na relação entre Estado e partidos políticos frente à sociedade civil, mediada pela esfera pública instaurada pelos media de massas, tais tendências, como eu dizia, imprimiriam essa dinâmica contraditória ao exercício das atividades do Estado e o seu contacto com a sociedade civil, demarcando uma dialética de politização e despolitização da massa dos cidadãos, substituídos, no que diz respeito à participação política concernente à evolução social, pelos partidos políticos e pela tecnocracia.

A social-democracia, por conseguinte, é criticada por Habermas como imprimindo à esfera política uma dinâmica eminentemente assente na atividade político-partidária que prescindiria, sempre que necessário, da democracia de base, que alcançaria certa autonomia em relação a esta – uma dinâmica despolitizante, portanto. A social-democracia teria acreditado que o domínio partidário do Estado e a colocação desse mesmo Estado enquanto entidade que se responsabilizaria tanto pela estabilização sistémica quanto pela evolução social seriam suficientes para garantir a conciliação entre capital e trabalho, ou, por outras palavras, para garantir o casamento entre desenvolvimento económico e justiça social. Com isso, teriam crescido vertiginosamente os processos de racionalização social coordenados pelo Estado frente à sociedade civil – motivo pelo qual a crise do Estado de bem-estar social não possui, para Habermas, apenas um viés económico, mas também um viés psicossocial (Habermas, 2005a [1985], p. 22 e 2002 [1985b], p. 502; Offe, 1984, p. 375).

Ora, a social-democracia tradicional entravaria a modernidade político-cultural pelo facto de que o conteúdo normativo desta aponta para a consolidação de processos democráticos radicalmente inclusivos, em todos os âmbitos da sociedade, da esfera política para a esfera económica e, naturalmente, para a esfera cultural. Nesse sentido, o aparato administrativo-partidário não pode pura e simplesmente substituir, no que tange ao processo de democratização progressiva da sociedade, essa arena política que é a sociedade civil, ela que é provavelmente a principal conquista da modernidade política, bem como os atores políticos constituídos pelos movimentos sociais e pelas iniciativas cidadãs, oriundos da sociedade civil, que, ao diagnosticarem os problemas político-culturais e socioeconómicos, têm condições de orientar o exercício do poder administrativo-partidário frente à correção das mazelas sociais e à efetivação das questões de integração material e sociopolítica. É sugestivo, portanto, que Habermas termine o seu texto (A Crise do Estado de Bem-­Estar e o Esgotamento das Energias Utópicas) com a afirmação de que a resolução da crise política pela qual passariam o Estado de bem-estar social e a social-democracia enquanto sua propugnadora somente poderia ser pensada a partir do momento em que os partidos políticos profissionais (e a social-democracia em particular) abandonassem uma das suas funções nefastas, sem qualquer outro substitutivo que não a instauração de focos de democracia de base, a saber: a conquista da lealdade das massas (Habermas, 2005a [1985], pp. 32-33). A social-democracia, como acredita Habermas, não pode subsistir politicamente se não se fundar na, se não afirmar a democracia de base (e este é, de todo o modo, o grande desafio e o agudo dilema dos partidos de esquerda quando alcançam ao poder de Estado – ou seja, a ênfase na capacidade e no valor do próprio partido e dos seus quadros burocráticos, que se fecham seja à participação popular, seja à crítica publicamente realizada, permanecendo como que acima das massas e da própria crítica).

É sugestiva, em relação a isso, a afirmação habermasiana, feita no texto subsequente Revolução Recuperadora e a Necessidade de Revisão da Esquerda, de que a social-democracia, a partir do projeto de Estado de bem-estar social, se por um lado teria sido muito bem-sucedida no que tange à realização de um consistente programa político assente na efetivação da justiça social, por outro teria blindado as instituições e a esfera pública de um modo mais geral a uma democratização abrangente. A democracia de massas, dinamizada politicamente pelo Estado de bem-estar social, segundo Habermas, assumiu “[…] as características de um processo de legitimação controlado e dirigido […]” (Habermas, 2005b [1990], p. 143), no qual a esfera pública, conduzida tecnocraticamente e centralizada pelos partidos políticos profissionais, foi blindada a uma maior participação de movimentos sociais e de iniciativas cidadãs, consolidando certa autonomia institucional em relação à sociedade civil e blindando a esfera económica e a esfera política, eminentemente ligadas em termos de capitalismo tardio, a um questionamento mais abrangente realizado a partir do mundo da vida pelos movimentos sociais e pelas iniciativas cidadãs. Com isso, a democracia de massas, de tipo ocidental, segundo Habermas, seria marcada institucionalmente pela renúncia à democracia radical; e a social-democracia, por meio do projeto de Estado de bem-estar social, se por um lado teria sucesso em termos de domesticação das mazelas económicas próprias à economia de mercado capitalista, por outro teria de reconhecer que contribuiu para dificultar a extensão dos processos democráticos a todas as esferas da sociedade, tendo de conviver permanentemente seja com as patologias económicas, seja com as patologias psicossociais da modernização ocidental (monetarização e burocratização). Por isso, no seu texto Revolução Recuperadora e a Necessidade de Revisão da Esquerda, Habermas é enfático ao afirmar, no que tange ao repensar da esquerda após o colapso do socialismo real, que o socialismo “[…] sempre significou mais do que a política social” (Habermas, 2005b [1990], p. 144). Ora, isto vale também para a social-democracia: ela sempre significou mais do que a política social, do que os direitos sociais. E é aqui que a defesa de uma continuidade reflexiva do projeto social-democrata de Estado de bem-estar social ganha novo sentido: não se trata apenas, utilizando os termos de Habermas, de uma domesticação da economia capitalista, mas também de uma democratização progressiva e sólida do poder institucional, do Estado, dos partidos políticos, a partir da afirmação de movimentos sociais e de iniciativas cidadãs que podem complementar e eventualmente até substituir funções institucionais e mesmo os próprios partidos políticos.

 

DA DEFESA HABERMASIANA DE UM ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO

 

A partir de Direito e Democracia (Faktizität und Geltung, 1992), Habermas passa a centrar as suas análises e posicionamentos em torno da necessidade de se salvar e de se afirmar um Estado social e democrático de direito, ­temperado com focos de democracia radical. E, aqui, enfatiza a necessidade de se retomar a posição teórico-política social-democrata, de modo a oferecer-se uma consistente contraposição ao neoliberalismo. Com isso, ter-se-ia uma continuidade reflexiva do projeto de Estado de bem-estar social que, se por um lado reforça a importância do projeto social-democrata de Estado de bem-estar social e, com isso, a sua filiação à social-democracia, por outro lado, fiel às críticas desenvolvidas em momentos anteriores ao caráter autoritário dessa mesma social-democracia na sua relação com a sociedade civil, afirma a necessária complementariedade do aparato administrativo-partidário com focos de democracia de base, de modo a aproximar-se o Estado e os partidos políticos e a esfera público-política burguesa em relação à sociedade civil, aos movimentos sociais e às iniciativas cidadãs, bem como às esferas públicas informais por eles instauradas. No primeiro caso, portanto, o Estado de bem-estar social não pode ser abandonado nas suas tarefas de intervenção económica e de integração social – a sua desestruturação não é a saída para a crise económica pela qual estariam passando as sociedades contemporâneas (e as sociedades desenvolvidas, em particular); no segundo caso, conforme lapidar afirmação feita em Direito e Democracia, de que não haveria – nem se poderia manter – Estado de direito sem democracia radical, a democracia de base é a exigência basilar para as nossas sociedades, no sentido de que aquela pretensa e problemática autonomia do Estado frente à sociedade civil e a generalizada autosuficiência dos partidos políticos frente aos movimentos sociais e às iniciativas cidadãs estão enfraquecidas, somente podendo ser solucionados a partir de uma maior aproximação entre estes âmbitos, a partir de uma rearticulação entre eles (Habermas, 2003a [1992], vol. I, pp. 12-13).

A retomada, a defesa de um Estado social e democrático de direito, como quer Habermas, congrega em si a afirmação dos conteúdos normativos tanto das revoluções burguesas quanto dos movimentos proletários modernos. No primeiro caso, a ideia de um Estado democrático de direito – no qual a afirmação de direitos individuais e políticos e a centralidade da esfera jurídico-constitucional em termos de estruturação das instituições e do processo de evolução social dão a tónica – aponta para o procedimento institucional (política parlamentar-representativa, partidos políticos, direitos individuais, integração jurídico-constitucional) enquanto o meio a partir do qual os indivíduos e grupos sociais decidem acerca de como querem estruturar as suas relações recíprocas e as instituições que as regulam; no segundo caso, a ideia de uma universalização dos direitos sociais, como condição da efetividade dos direitos individuais e dos direitos políticos (estes também universalizados), correlatamente à necessidade de contactos cada vez mais intensos entre o âmbito administrativo e os partidos políticos frente aos movimentos sociais e às iniciativas cidadãs (focos de democracia de base), têm por objetivo exatamente evitar que a democracia se restrinja ao procedimento institucional e aos atores políticos burocráticos, sendo concentrada e monopolizada neles e por eles tão-somente, ou seja, como queriam os movimentos proletário-socialistas, que a democracia possa ser marcada efetivamente pela equiparação sociopolítica de todos, que apenas aconteceria na medida em que a participação generalizada fosse efetiva – e no grau, por conseguinte, em que essa participação generalizada acontecesse.

Ora, como acredita Habermas, o Estado de bem-estar social é um Estado social e democrático de direito assente na afirmação de uma democracia de base, o único herdeiro legítimo das revoluções burguesas e dos movimentos proletários modernos, uma organização político-administrativa que está intrinsecamente ligada ao conteúdo normativo da democracia social. Nesse sentido, é inviável, em termos de sociedades democráticas contemporâneas, uma organização administrativo-partidária que prescinda das massas no que diz respeito à discussão e à decisão acerca da sua atuação. Na verdade, é aqui que reside um dos grandes problemas dessas mesmas sociedades na sua relação com tal estrutura administrativo-partidária, na medida em que a crise do Estado de bem-estar social possui o caráter de uma crise económica e de uma crise psicossocial – nos dois casos, a saída para a crise acabou sendo o acirramento da separação entre Estado e partidos políticos frente à sociedade civil, seja por causa da hegemonia neoliberal desde a década de 1980, seja mesmo como forma de se ganhar suficiente autonomia de decisão por parte dessas administrações e dos partidos políticos trabalhistas vitoriosos e possuidores do maquinário estatal (incluindo-se, aqui, a social-democracia), no período do pós-guerra.9 Mas a saída para a crise não é, nem pode consistir, na despolitização institucional da massa da população e dos conflitos sociais definidores da dinâmica da esfera política.

No que diz respeito à crise económica, percebe-se que, dado o caráter mediador do Estado em relação ao desenvolvimento e à estabilidade económica, qualquer crise neste último âmbito estourará fatalmente na esfera administrativa, que será responsabilizada pelos déficits acontecidos no ­mercado. Entretanto, com isso fica ainda mais claro o facto de que a causa da crise não está no Estado, e sim no mercado: o processo de acumulação privada da riqueza socialmente produzida imprimirá, ao longo do tempo, uma desigual distribuição do produto social e, como consequência, uma estratificação social cada vez mais acentuada em termos piramidais, para não falar no facto de que crises cíclicas no processo de acumulação acontecem devido a vários fatores, entre eles o crescimento da especulação e o decréscimo dos salários e do consumo. O que se percebe, aqui, é que o problema consiste em que o foco determinante da estabilidade do mercado e, por causa disso, da sociedade nele fundada está em que o processo de acumulação aconteça permanentemente e em graus cada vez mais elevados, o que implica que a exploração social e a divisão desigual da riqueza devam aumentar de forma concomitante – mas isso é impossível e, aliás, nem pode ser uma constante. Com isso, o Estado, dada a sua centralidade no capitalismo tardio, vê-se em grande dilema, pois que, de um lado, deve estabilizar a esfera económica (ou seja, fomentar administrativamente o processo de acumulação, com todas as contradições que este gera), correlatamente ao facto de que também precisa de mediá-lo socialmente por meio da concessão de direitos sociais.

As contradições geradas em termos de economia capitalista – essa é a conclusão que se pode tirar daí – acontecem e acontecerão com a participação do Estado ou sem a participação do Estado, mas o grau em que a domesticação estatal da economia acontece é que define e definirá a intensidade e o alcance dessas mesmas crises. Nesse sentido, abdicar das amortizações estatais em relação à esfera económica implica também abandonar-se tanto medidas tendentes a evitar uma monopolização pura e simples da economia, como a realização de políticas de integração social à massa de indivíduos expulsos do processo produtivo, cuja necessidade (de políticas sociais) cresce à medida que a monopolização da economia e a sua autonomia em relação ao controlo político aumentam. Aqui, com efeito, o papel do Estado jamais se tornará defasado, por mais problemático que ele possa ser. Na verdade, se é difícil conviver-se com ele, mais problemático ainda é passar-se sem ele, em particular na nossa época, na qual a necessidade permanente de crescimento económico, tornada aguda por causa de crises quase quotidianas no processo de acumulação da riqueza, marca a sina diária da vida de todos nós, imprimindo à esfera público-política o pathos de uma responsabilização pela crise à qual essa mesma esfera não pode fazer mais do que amortizar de modo paliativo ao longo do tempo, enquanto não se realizam reformas mais substantivas no próprio processo de produção e de distribuição da riqueza. Uma, sob muitos aspetos, pseudo-responsabilização política que, na posição neoconservadora ou neoliberal, somente pode ser resolvida com a retirada dos controlos públicos em relação à esfera económica e com um afrouxamento das leis trabalhistas (hoje, a necessidade de medidas de austeridade dá o tom das reformas políticas tendentes à resolução da crise económica), mas que implica em deixar-se o âmbito social completamente desprotegido frente à dinâmica da exploração económica e do desemprego estrutural.

Nesse aspeto, também pode divisar-se o sentido de uma crise psicossocial. Esta é caudatária da cada vez maior necessidade de autonomia administrativo-partidária no que tange a conduzir estatalmente tais reformas políticas frente ao mercado, aos direitos sociais e ao trabalho. Como se percebe hoje, as medidas de austeridade encontram profunda contraposição nas camadas sociais as mais diversas, que sabem que isso significará um corte dos direitos sociais em favor do processo de acumulação económica e, portanto, em benefício das classes mais abastadas da sociedade. Ora, tais medidas de austeridade somente podem ser implantadas no momento em que se prescinde exatamente dessa discussão pública ampliada, ou seja, na medida em que, como se disse acima, a esfera administrativo-partidária se autonomiza da legitimação pública da sua atuação, substituindo a participação popular pela representação burocrática. Para Habermas, a grande contradição da esquerda está em que ela também, a exemplo do neoliberalismo, estaria utilizando cada vez mais, desde os anos 1960, esse procedimento de substituição da democracia de base pela ênfase nos partidos políticos burocráticos, que cortam a ligação com as camadas sociais suas representantes. Com isso, o Estado – mesmo o Estado administrado pela esquerda social-democrata – ter-se-ia sobreposto à sociedade civil, tolhendo-a na sua participação política e substituindo os focos de democracia de base pela manipulação da lealdade das massas e pelo fomento do privatismo civil. A esquerda social-democrata teria como que renunciado à democracia de base, isto é, à generalização da organização democrática da sociedade em todos os âmbitos (inclusive no âmbito produtivo, de uma organização autogestionária do trabalho e da produção). E é claro que, em tal contexto, o caráter da atuação estatal frente à esfera económica será sempre problemático, porque, politicamente falando, renunciou-se, em grande medida, à extensão da democracia de base para todos os âmbitos da sociedade, em favor da afirmação de um processo de racionalização social que abarca a sociedade como um todo, na sua tentativa de conciliação entre capital e trabalho por meios administrativos. Mas não se substitui a democratização progressiva da sociedade pela burocracia sem um preço muito alto, a saber, o próprio enfraquecimento da democracia de base, o que tem como consequência essa nefasta autonomia do Estado e dos partidos políticos frente à sociedade civil e aos movimentos sociais e às iniciativas cidadãs daí oriundos, correlatamente à transformação da esfera público-política num espaço de manipulação político-cultural.

É por isso que, na década de 1990, a posição teórico-política de Habermas claramente se direciona para uma defesa da esquerda social-democrata e do seu projeto de Estado de bem-estar social, que, entretanto, precisam de ser retomados reflexivamente. De um lado, com o fracasso do socialismo real, a esquerda da Europa ocidental, revendo a sua posição, dá-se conta de que o seu projeto teórico-político, em particular num momento em que a hegemonia neoliberal fazia e faz sentir seus efeitos, se centra na afirmação do Estado de bem-estar social, nas suas tarefas de intervenção económica e de integração social (Habermas, 2005b [1990], p. 156). Esse mesmo Estado de bem-estar social precisa de ser defendido de um processo de desestruturação cada vez mais avassalador, devendo ter solidificadas as suas funções de domesticação económica e de integração material das classes sociais dependentes do trabalho – na verdade, por causa de uma globalização económica consolidada, há inclusive a necessidade de se criar mesmo instituições supranacionais de regulação económica e de inclusão social, ao estilo do modelo representado pelo Estado de bem-estar social (Habermas, 2003c [2001], pp. 105-106 e 2009, p. 106). Por outro lado, um projeto teórico-político emancipatório de esquerda, congregado no modelo social-democrata, somente poderia ser bem-sucedido na defesa do Estado de bem-estar social (e também num projeto alternativo de globalização) se se aproximar dos movimentos sociais e das iniciativas cidadãs, se se fundar em processos de democracia de base, de modo a evitar a autonomia da esfera administrativo-partidária causada pela burocracia política dos partidos e dos tecnocratas (Habermas, 2005b [1990], p. 144). Na verdade, o poder de classe é sempre bem-sucedido quando a burocracia substitui a democracia de base, já que esse mesmo poder de classe perde qualquer contraponto, qualquer freio, absolutizando-se devido à sua autonomia frente à participação democrática e, por causa disso, enfraquecendo-a. Nas sociedades democráticas contemporâneas, o poder de classe, no fim das contas, foi legitimado e consolidado, em grande medida, por causa dos partidos políticos burocratizados e autonomizados em relação à sociedade civil, bem como desligados em relação aos movimentos sociais e às iniciativas cidadãs, pelo menos em uma poderosa medida.

Ora, um último ponto merece destaque, neste meu argumento de que a crítica e a retoma da social-democracia e do seu projeto de Estado de bem-estar social, concomitantemente à contraposição ao neoliberalismo, constituem o núcleo da posição teórico-política habermasiana – mormente a partir do meu estudo sobre a ideia de continuidade reflexiva do projeto social-democrata de Estado de bem-estar social. Este último ponto diz respeito ao problema da globalização económica e, aqui, à importância de se retomar o projeto social-democrata de Estado de bem-estar social, pelo menos em alguns ­aspetos pontuais, ao nível supranacional. Nos seus últimos textos, Habermas louva a posição social-democrata, atribuindo-lhe responsabilidade pela pacificação das mazelas sociais das sociedades desenvolvidas. Ele diz que os sociais-democratas possuem “[…] o mérito […] de que a sociedade de classes tenha sido pacificada através do Estado de bem-estar social e se tenha transformado em uma sociedade de cidadãos” (Habermas, 2009, p. 57). Essa pacificação, como o referido pensador não se cansa de repetir, é uma questão de política forte, a partir da ênfase no Estado de bem-estar social interventor e compensatório. Portanto, ao contrário dos discursos neoconservadores contra a política e contra o Estado de bem-estar social, é exatamente esse modelo de política forte, centralizada num Estado diretivo e compensatório em relação à dinâmica socioeconómica, que marcou o compasso do desenvolvimento das sociedades ocidentais de um modo geral e das sociedades desenvolvidas em particular.

A globalização da economia, já consolidada, entretanto, teria como implicação um golpe de morte à centralidade da política diretiva da evolução socioeco­nómica, na medida em que, devido à desregulação económica reinante ao nível internacional, o Estado de bem-estar social estaria perdendo o controlo dos fluxos de capital e de trabalho a um nível interno, tendo de, por sua vez, adequar-se à desregulação económica e à flexibilização do trabalho reinantes ao nível internacional, renunciando a uma política diretiva da dinâmica socioeconómica, marca fundamental do modelo social-democrata de Estado de bem-estar social. Hoje, acredita Habermas, a implantação das políticas de bem-estar, ameaçada pela globalização económica, deveria ser complementada com instituições políticas de alcance supranacional, possuidoras de um projeto de desenvolvimento internacional, que pudessem enquadrar politicamente, ao nível global, os fluxos de capital autonomizados, a crescente desvalorização do trabalho e uma distribuição de renda absolutamente desigual entre países e povos. Aqui, mais uma vez, a social-democracia teria um importante papel político a desempenhar, bem como grande experiência no que diz respeito à instauração de uma política forte, diretiva da evolução socioeconómica, através da afirmação do Estado de bem-estar social (Habermas, 2009, p. 106). A social-democracia, na verdade, deveria encampar esse projeto emancipatório a um nível global, que, por meio da afirmação de instituições políticas supranacionais fortes, regularia os processos económicos ao nível global, de modo a proteger o trabalho dos efeitos nefastos da exploração neste nível, correlatamente a garantir padrões mínimos em termos de direitos sociais a todos os seres humanos.10

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Pode-se dizer com segurança que a reconsideração do papel do Estado frente à economia e à vida social deu a tónica dos desenvolvimentos teórico-políticos a partir da década de 1990 em diante, nas nossas sociedades (naturalmente, não com a mesma velocidade e intensidade em todas elas). Depois da referida crise fiscal do Estado de bem-estar social e, em particular, dos confrontos ideológicos em torno da compreensão do político, levados a efeito pelo neoliberalismo na sua larga hegemonia na realpolitik ocidental, passou-se, de um lado, a perceber a crise económica como um problema político (já que a esfera económica passa a ser entendida como uma esfera eminentemente política, marcada por relações políticas de poder), que deve encontrar, por conseguinte, solução política, em termos do poder congregado no Estado; e, de outro lado, como consequência, solidificou-se a perceção de que não é o Estado e os seus mecanismos reguladores, interventores e compensatórios que entravam o desenvolvimento económico, senão que o processo de acumulação possui déficits internos que precisam de ser permanentemente corrigidos por via política. Com isso, o Estado – esse Estado de bem-estar social marcado por funções interventoras e distributivas – torna-se o elemento fundamental no que tange à condução da evolução social, à regulação do mercado e à realização da integração social, não podendo ser abdicado pura e simplesmente em relação a essas tarefas. Hoje, na verdade, é muito difícil, na esfera público-política democrática, expor-se uma luta aberta contra o Estado e suas funções ampliadas, e pode-se perceber a esquerda concentrando-se exatamente na defesa deste Estado interventor e compensatório enquanto o pilar da estabilização económica e da integração social, nos mais diferentes contextos nacionais (Estado esse visto como o cerne de qualquer projeto teórico-político emancipatório).

No caso de Habermas, é importante perceber-se que a sua diferenciação entre modernização económico-social, marcada pela íntima imbricação entre Estado de bem-estar social e economia capitalista, e modernização político-cultural, caracterizada pela afirmação da democracia (em todos os âmbitos da sociedade) e pela radicalização e politização da cultura, deixa claro o quanto o papel do Estado é importante tanto no primeiro aspeto (regulação económica) quanto no segundo (estabilização social, viabilização da democracia). Ora, uma continuidade reflexiva do projeto de Estado de bem-estar social vem afirmar exatamente esse mesmo Estado de bem-estar social nas suas tarefas interventoras e compensatórias, complementado de focos de democracia de base, que evitariam o distanciamento e a sobreposição da esfera administrativo-partidária em relação à sociedade civil, aos seus movimentos sociais e às suas iniciativas cidadãs. E a razão é bem clara: se, por um lado, a instituição Estado adquire o papel de núcleo diretivo da sociedade, o locus onde as forças sociopolíticas fazem valer suas reivindicações, o instrumento a partir do qual os interesses generalizáveis encontram realização, por outro lado a práxis democrática não se restringe a ele, senão que possui uma realidade mais abrangente e que engloba esse mesmo Estado e, além disso, os próprios partidos políticos profissionais. O Estado e os partidos políticos são máquinas burocráticas que complementam, enquanto aparelhos, a democracia, mas não podem ser entendidos como sintetizando a democracia como um todo, porque, se isso acontecesse, a democracia seria substituída pela burocracia, a normatividade política pela racionalidade instrumental. Quanto mais se afirma a centralidade do Estado enquanto instância diretiva da vida social, mais intensamente se exige também a realização de focos de democracia de base. O erro do neoliberalismo consiste em dissociar a esfera política (entendida apenas enquanto esfera administrativa) e a esfera social (entendida, ainda pelo neoliberalismo, enquanto esfera eminentemente privada, apolítica, englobada pelas relações de produção), perdendo de vista a radicalidade do político e travando a normatividade que vai da esfera social para a esfera política; o erro de muitos partidos de esquerda (incluindo, no caso de Habermas, a social-democracia), quando alçados ao poder, está em reduzirem o poder político ao poder do partido e a práxis política ao exercício burocrático do poder pelo partido, blindando-se à democracia de base. Mas não há Estado democrático de direito sem democracia de base (já que aquele é uma esfera instrumental e esta uma esfera normativa). Nesse sentido, se o papel do Estado na vida socioeconómica foi reconsiderado, sendo percebido como absolutamente necessário, das duas últimas décadas do século XX em diante, a ênfase na democracia de base, da mesma forma, neste período, passou a ser afirmada como o próprio espírito do poder, como possibilitando (e somente ela) a fundamentação normativa do poder – e estabelecendo uma dialética sociopolítica em que a política democrática e a organização da sociedade passam a ser confrontadas com as suas contradições e as suas potencialidades.

 

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Recebido a 09-12-2013. Aceite para publicação a 03-08-2014.

 

NOTAS

1  A ideia de democracia radical, em Habermas, significa, primeiramente, a complementação do exercício do poder administrativo-partidário por movimentos sociais e inciativas cidadãs, que ofereceriam o arcabouço normativo necessário à realização das atividades burocráticas e técnicas próprias às administrações públicas e aos partidos políticos. Com essa ideia, por conseguinte, Habermas quer enfatizar o facto de que as instituições não são suficientes para garantir a efetividade da democracia, necessitando das vozes das ruas, dos movimentos sociais e das iniciativas cidadãs; além disso, também quer enfatizar a ideia de que as instituições e os partidos políticos não são independentes em relação à sociedade civil, de modo que os movimentos sociais e as iniciativas cidadãs possibilitariam essa ligação entre as instituições e a sociedade civil. Em segundo lugar, o ideal de democracia radical significa, em Habermas, a extensão gradativa dos procedimentos democráticos para todos os âmbitos da sociedade, desde a política à cultura, passando pela economia. Sobre estes aspetos, conferir: Habermas (1970, p. 49 e 1986 [1971], pp. 204-329).

2 A título de informação, as datas que aparecem entre parêntesis retos referem-se à publicação das obras originais de Habermas em alemão. Isso permite traçar a cronologia entre elas e, assim, estabelecer, como proponho, uma certa ligação entre elas e os problemas tratados.

3 Por igualdade substantiva entenderei a efetivação das condições materiais que garantem as condições sociais básicas de vida, enfeixadas nos direitos sociais de cidadania. Ela implica, portanto, que a igualdade formal não é suficiente, devendo ser complementada com direitos sociais e políticas públicas de inclusão material.

4 Com a ideia de justiça social, significo a importância basilar, em sociedades democráticas, de processos de equalização material a todos, de processos de distribuição equitativa da riqueza produzida, de modo a concretizar-se a realização dos direitos sociais de cidadania, condição para a efetividade dos direitos individuais e dos direitos políticos.

5 Uma excelente análise dos vários vieses em que o neoconservadorismo ou neoliberalismo ataca a modernidade cultural e o conteúdo normativo ínsito à democracia social é feita por Dubiel (1993). A propósito, neste texto, utilizarei os termos neoconservadorismo e neoliberalismo com o mesmo significado, entendendo-os enquanto posição teórico-política marcada pela ênfase na modernização económica e pelo ataque à modernidade cultural, e mesmo pela crítica ao Estado de bem-estar social. Sobre estes aspetos, conferir Habermas (2001b [1989], p. 2).

6 É interessantíssimo, em relação a isto, conferir-se a entrevista concedida por Habermas a Honneth, nos primeiros anos da década de 1980, acerca dos motivos e do contexto sociopolítico e cultural que marcaram a sua orientação no que tange à elaboração da Teoria da Ação Comunicativa, ou seja, aqui, o objetivo da referida obra consiste em compreender corretamente o processo de modernização, de modo a entender-se os seus resultados na contemporaneidade e, assim, responder teoricamente às posições em disputa sobre a compreensão da modernidade e mesmo às ideologias políticas (o neoliberalismo ou neoconservadorismo entre elas) em busca de hegemonia político-social. Sobre esta entrevista, conferir Habermas (1997 [1985], pp. 137-154).

7 No liberalismo clássico e, em particular, no neoliberalismo tem-se uma conceção restrita da política e do Estado, afirmados enquanto instâncias de proteção dos direitos individuais ao estilo lockeano: vida, liberdade e bens. Nesse sentido, à política caberia defender tais direitos de cada indivíduo contra violações dos demais e mesmo das próprias instituições. É uma política negativa porque o seu objetivo – vide a noção de Estado guarda-noturno – não é realizar direitos por meio da política, mas proteger a esfera privada, entendida enquanto esfera económica, de qualquer interferência injustificada nela. Uma política negativa, portanto, é uma política conservadora, que reduz o poder à justiça corretiva e à proteção dos pactos e dos contratos celebrados.

8 Sobre o seu percurso intelectual, sobre o desenvolvimento das suas pesquisas filosófico-sociológicas, Habermas, em entrevista em fins da década de 1980, diz o seguinte: “Nos anos sessenta, tinha de se enfrentar as teorias da tecnocracia e, no início dos anos setenta, as teorias das crises. Desde meados dos anos setenta, começou a fazer-se notar a pressão exercida pela crítica neoconservadora, assim como a crítica pós-estruturalista da razão; a isto respondi com o conceito de racionalidade comunicativa. Esta constelação não mudou, em princípio, durante os anos oitenta […]” (Habermas, 1991 [1990], p. 166).

9 Não se pode esquecer, em relação a isso, que a posição de Habermas, conforme penso, tem como objetivo uma crítica e uma contraposição ao neoliberalismo, bem como uma crítica e uma reformulação da social-democracia, como fica explícito desde Teoria da Ação Comunicativa em diante. Habermas reage contra a desestruturação do Estado de bem-estar social e, portanto, leva em conta as forças teórico-políticas em jogo. Ignorar esse elemento sociológico, no pensamento de Habermas, equivale a não compreender o seu posicionamento teórico-político, que não se funda apenas em questões filosóficas. Sobre esse contexto sociopolítico das sociedades do capitalismo tardio, pode-se conferir: Offe, 1984, p. 171; Miliband, 1972, pp. 321-334; Abendroth, 1973, pp. 153-191.

10 Habermas atribuiu à social-democracia europeia a tarefa de encampar tal projeto de construção de instituições políticas supranacionais, a fim de fazer-se frente à desregulação económica reinante ao nível global, no texto “A política da Europa em um beco sem saída”, de 2007, apresentado num congresso do SPD. Nele afirma que “Existe ainda outra razão para se olhar além das fronteiras nacionais. O SPD sempre foi um partido baseado em um programa e perdeu sua clientela ao não lhe oferecer mais perspectivas amplas que configurem o futuro e satisfaçam a clássica necessidade de justiça – perspectivas que transcendam os temas da idade de aposentadoria, da subsistência diária e da reforma no sistema sanitário. Eu não tenciono, como alguém que goza de um alto rendimento, manter-me indiferente aos desafios da política social. Imerso em um dos ambientes de bem-estar mais deslumbrantes, sigo sentindo como um escândalo a crescente pobreza em que se encontram as crianças, o aumento das disparidades na distribuição da renda e da propriedade, o crescimento do setor de baixos salários caracterizados pela insegurança no posto de trabalho, o segmento cada vez maior de pessoas que se sentem supérfluas. Mas este escândalo deveria ser entendido como uma parte dos problemas que somente podemos solucionar se invertermos essa tendência, planetária, de os mercados escaparem às possibilidades de configuração política” (Habermas, 2009, p. 106; os itálicos são meus).

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