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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.212 Lisboa set. 2014

 

DOSSIÊ

O nome de batismo, o nome do colégio: coordenadas de uma reflexão sociológica

The Christening name, the school’s name: routes for a sociological outview

 

Maria Luísa Quaresma*

*Universidad Autónoma de Chile, Campus El Llano Subercaseaux, Ricardo Morales, 3369, San Miguel, Santiago, Chile. E-mail: marialuisa.rocha@uautonoma.cl

 

RESUMO

Este artigo convida a uma reflexão sociológica sobre as lógicas de distinção no seio das classes dominantes, tendo por base os resultados de um estudo de caso desenvolvido num prestigiado colégio de Lisboa. Propomo-nos encontrar a marca da distinção em dois importantes operadores simbólicos de diferenciação social: o nome e o colégio frequentado pelos herdeiros. Assim, refletiremos sobre as particularidades distintivas da onomástica dos alunos e sobre as motivações parentais para a escolha desse colégio.

Palavras-chave: distinção; classes dominantes; onomástica; colégio privado.

 

ABSTRACT

This paper is about upper classes’ social distinction and is based on the results of a case study developed in a leading private school located in Lisbon. We identify the distinctive mark in two important signs: the name and the school attended by descendants. We analyze the distinctive proprieties of the students’ names and investigate parents’ motivations in choosing that specific school.

Keywords: distinction; upper classes; onomastics; private school.

 

Garantir aos herdeiros a transmissão do capital (económico, cultural, mas também social e simbólico) e assegurar-lhes, por essa via, uma identidade distintiva, é um dos objetivos atribuídos por Bourdieu (1989) às classes dominantes, que encontrarão aliados da lógica de reprodução e de distinção classista no nome – nomeadamente de batismo – e no estabelecimento de ensino escolhido para os filhos. Apoiados nas teses bourdieusianas sobre as lógicas de distinção, refletiremos sociologicamente sobre estas duas escolhas parentais, tendo por suporte os dados de uma investigação desenvolvida num prestigiado colégio privado religioso localizado em Lisboa e frequentado por jovens das classes dominantes.

Seguindo a linha analítica de Bourdieu, o nome e a escola frequentada podem configurar sinais distintos e distintivos que estão em relação homológica com a posição ocupada no espaço social e que são indissociáveis do habitus de classe, entendido como um sistema de disposições incorporado e naturalizado pelos agentes sociais, e que é, simultaneamente, modelado e modelador: modelado pelas condições históricas e sociais em que é produzido e modelador das ações, das perceções, dos pensamentos e das preferências desses mesmos agentes sociais que o interiorizaram, de forma duradoura, no quadro da socialização. Estas escolhas estarão, assim, longe de corresponder a decisões aleatórias, como uma perspetiva naturalista levaria a crer, muito em particular no caso da onomástica, domínio em que o senso comum tende a justificar as opções pelo gosto, tido como indiscutível (“os gostos não se discutem”) e não balizado por condicionantes sociais. O universo onomástico do colégio estudado, pela flagrante ausência dos nomes mais frequentes entre os jovens das classes médias e populares que frequentam outras escolas, ­deixou em aberto a hipótese de, no domínio deste, como de outros gostos, estar inscrita uma marca classista, o que suscitou o nosso interesse. O estudo dos nomes, a que a antropologia social vem dedicando particular atenção, tem despertado pouca curiosidade analítica entre a comunidade sociológica portuguesa – como se depreende pela escassez de bibliografia –, permanecendo por desbravar um vasto campo de reflexão já entreaberto por estudos sociológicos como os de Lieberson e Bell (1992) e de Besnard e Desplanques (1986). Maior enfoque sociológico tem merecido a escola e também a questão da escolha do estabelecimento de ensino (Van Zanten, 2009; Vieira, 2003), nomeadamente enquanto estratégia de reprodução (Bourdieu e Passeron, 1974) e de distinção das classes dominantes.

O presente artigo divide-se, pois, em dois momentos a que correspondem duas reflexões – uma sobre a escolha do nome e outra sobre a escolha da escola – onde se entrecruzam, em diálogo, considerações teóricas e constatações empíricas emanadas do trabalho de campo. A necessidade de desvelar os bastidores desta investigação empírica justifica a breve abordagem metodológica que se segue.

 

CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS E CARACTERIZAÇÃO DO COLÉGIO E DO SEU PÚBLICO

 

Esta investigação foi realizada em dois reconhecidos colégios privados de Lisboa (um laico e um religioso) no âmbito de um doutoramento que teve por objetivo captar as representações sociais dos agentes educativos sobre o sucesso e sobre os fatores internos e externos à escola que o potenciam.

Para atingir estas metas, acionámos um conjunto de técnicas intensivas e extensivas de recolha de dados. Na fase exploratória do trabalho de campo, analisámos fontes secundárias (projetos educativos, regulamentos internos, anuários, jornais escolares…) e entrevistámos os diretores dos colégios, os diretores do 3.º ciclo e do ensino secundário, os presidentes das associações de pais, de estudantes e de antigos alunos. Na fase principal da investigação, aplicámos um inquérito por questionário a uma amostra representativa (em termos de sexo, ano de escolaridade e agrupamento científico) de 475 alunos (166 do colégio religioso e 309 do estabelecimento laico) do 9.º ao 12.º ano e recortada de um universo de 874 jovens (435 da escola confessional e 439 da escola laica). Para aprofundar os dados extensivos obtidos pelo questionário, realizámos três grupos de discussão (dois com alunos e um com professores) e duas entrevistas de grupo também a professores. Fizemos ainda 19 entrevistas semidiretivas, 13 das quais a pais e mães e seis a ex-alunos. Fizemos ainda uma entrevista de grupo a três monitores da principal atividade de ocupação de tempos livres do colégio religioso, justificada pelo caráter peculiar desta iniciativa enquanto pilar de um projeto de educação para o sucesso e também pela centralidade que a comunidade educativa lhe confere. As entrevistas foram sujeitas a análise de conteúdo qualitativa, tendo sido adotado como unidade de análise o tema. Permanecemos no terreno durante três anos, ao longo dos quais realizámos observações diretas quer do quotidiano escolar nos espaços e tempos não-letivos quer dos rituais e cerimónias dos dois colégios, através das quais procurámos validar os dados obtidos por outras técnicas, nomeadamente no que diz respeito à natureza das interações entre a comunidade educativa/personalização das relações, à criação e difusão de um esprit de corps e de um ethos escolar galvanizador do sucesso.

A reflexão onomástica proposta neste artigo cingiu-se ao universo de alunos do colégio religioso, uma vez que o colégio laico não dispõe de um Anuário nem de qualquer documento similar de acesso livre onde figurem os nomes de todos os alunos inscritos e respetivos pais. Teve por base a totalidade dos alunos do colégio (1413) identificados no Anuário de 2009-2010. Por razões de uniformidade de critério, restringimos também ao colégio religioso a análise sobre a escolha da escola, desenvolvida a partir dos dados recolhidos através das técnicas intensivas e extensivas anteriormente referenciadas.

Numa breve caracterização do colégio em questão, salientaríamos estar perante um estabelecimento de ensino com mais de meio século de existência e adstrito a uma ordem religiosa, desde sempre ligada à educação das classes dominantes. Assume como missão a formação integral dos alunos - estruturada no pilar humano, social e religioso - e tem por público, como veremos, jovens provenientes das classes e frações de classe mais capitalizadas, identificadas através de uma combinatória entre a dimensão profissional e a cultural e tendo por base a tipologia proposta por Costa, Machado e Almeida (1990). A quase totalidade dos pais (89,4%) e das mães (82,7%) são “Quadros Superiores da Administração Pública, Dirigentes e Quadros Superiores de Empresa” e “Especialistas das Profissões Intelectuais e Científicas”. Uma não menos expressiva percentagem dos progenitores tem habilitações literárias, no mínimo, ao nível da licenciatura (86,8%, no caso dos pais e 86% no caso das mães), havendo mesmo 23,2% das mães com mestrado, 8,5% com doutoramento e a mesma percentagem com pós- doutoramento, valores que entre os pais atingem, respetivamente, 27,1%, 16% e 11,8%.

A identificação do lugar de classe de família dos alunos, obtida por cruzamento entre os lugares de classe individuais do pai e da mãe, permitiu-nos concluir estarmos perante alunos pertencentes à burguesia (56%) - Dirigente e Profissional (28,7%) e Empresarial e Proprietária (27,3%) – e à Pequena Burguesia Intelectual e Científica (40,7%), a fração dos “dominados entre os dominantes” (Bourdieu, 2001, p. 153).

 

 

 

 

O LUGAR DOS NOMES: ENTRE A AFILIAÇÃO FAMILIAR E A DISTINÇÃO SOCIAL

 

O SOBRENOME COMO PATRIMÓNIO “HERDADO”

 

Os nomes, como diz Cabral (2008, p. 237), “(…) constituem um aspeto central da nossa condição de pessoa – não só de quem somos para os outros, mas ainda de quem somos para nós mesmos (…)”. No seu estudo sobre as práticas de nominação, Besnard e Desplanques (1986) definem o nome como um bem cuja particularidade reside no facto de ser de consumo obrigatório e de ser gratuito, já que nem implica custos de aquisição nem a sua escolha obedece a critérios objetivamente utilitários. Mas ele é, igualmente, um bem simbólico, na medida em que pode conferir ao seu portador benefícios ou desvantagens em termos de prestígio. É sobretudo ao nível do sobrenome que mais se evidenciam o peso desse capital simbólico e o seu caráter de distinção e distintividade, na aceção bourdieusiana. A este propósito – e incidindo a sua análise sobre algumas famílias do escol empresarial de Lisboa –, Lima (2007) analisa o modo como

 

[…] as estratégias de prossecução da continuidade da situação de distinção e privilégio destas famílias se apoiam, em grande medida, na transmissão de um património familiar composto por diversos elementos de identificação social no qual os nomes desempenham um papel fundamental [Lima, 2007, p. 41].

 

Lembra assim a possibilidade de um apelido de família sonante poder funcionar como um marcador de classe e recorda a “mística de antiguidade familiar” (Lima, 2007, p. 54) que pode ser transmitida através dele. Se um sobrenome de prestígio pode conferir vantagens, proporcionando aos seus detentores “(…) uma certa disponibilidade no acesso a determinados lugares de importância social ou empresarial” (Lima, 2007, p. 59), ele pode também constituir um constrangimento à afirmação da individualidade. Concentrando o apelido familiar todo o “crédito acumulado” (Pinçon e Pinçon-­Charlot, 2007, p. 21) pela família, impende sobre aqueles que o herdam o dever de ser digno dele (Zonabend, 1980), isto é, de o preservar e de o alimentar, sob pena de desaprovação ou mesmo de rejeição familiar em caso de um modus vivendi que, ostensivamente, ponha em causa o valor simbólico do nome recebido, como observa Mension-Rigau (2007). A importância de um sobrenome de prestígio advém, desde logo, do facto de “(…) não poder ser adquirido com dinheiro mas apenas poder ser herdado por nascimento” (Vieira, 2003, p. 307) o que salvaguarda, automaticamente, o seu detentor do efeito de desvalorização simbólica inerente à massificação a que está sujeita a generalidade dos bens de consumo. A consulta do Anuário deste colégio dá-nos conta da existência de inúmeros alunos com sobrenomes de reconhecidas famílias da vida social, económico-empresarial e política do país e, inclusivamente, da aristocracia nacional. Razões que se prendem com a manutenção do anonimato levaram-nos, no entanto, a centrar a nossa análise apenas nos nomes de batismo dos alunos.

 

NOME DE BATISMO: TRADIÇÃO, MODA E HIERARQUIAS DE CLASSE

 

Como lembram Besnard e Desplanques (1986), o nome próprio permaneceu, entre o século XVI e o início do século XX, mais como elemento de vinculação do indivíduo a uma identidade coletiva - de natureza familiar, religiosa ou até regional - do que como elemento de identificação individual. A modernização cultural e o decorrente processo de individualização, secularização e globalização vão esbater esse uso do nome enquanto elo de ligação com um coletivo (Gerhards e Hackenbroch, 2000). Segundo o estudo destes sociólogos, diminui então o número de crianças com o mesmo nome dos pais e com nomes religiosos e aumenta o número das que recebem nomes provenientes de outras culturas. Persistem, no entanto, “fortes associações entre determinados nomes e determinadas classes” (Gerhards e Hackenbroch, p. 521), também identificadas no recente estudo sociológico de Elchardus e Siongers (2011).

A crescente liberdade face aos constrangimentos traz aos pais uma maior responsabilidade pelas decisões de uma “boa” escolha onomástica, tanto mais importante quanto o nome nos acompanha durante toda a vida e é o nosso “cartão de visita” nas relações interpessoais e profissionais. Na verdade, o nome não só diz algo sobre nós como dá indicações sobre quem no-lo atribuiu (Lévi-Strauss, 1990), nomeadamente ao nível da ideologia professada ou até da capitalização cultural. A impopularidade dos nomes russos na Alemanha do Leste, por exemplo, seria um “protesto silencioso” contra a ideologia comunista (Huschka et al., 2009), tal como as Outubrinas nascidas no Portugal de 1910 expressariam a adesão parental aos ideais republicanos (Ivo Castro em Faria, 2009). Um mero erro ortográfico, por sua vez, denunciaria a pouca instrução do dador do nome, como nos diz Héran (2004).

O ato de escolha de um nome de batismo justifica, portanto, ponderação: se um nome na moda corre o risco de vulgaridade, um nome excêntrico ou ridículo pode também ser fonte de discriminação social. Para alguns pais, a aposta segura é encontrada nos nomes cuja estabilidade ao longo do tempo faz deles “clássicos” e que são escolhidos, preferencialmente, pelas classes burguesas e pelas profissões liberais; para outros pais – nomeadamente mais jovens -,a opção recai sobre o nome em voga no momento (Besnard e Desplanques, 1986). Como estes investigadores observam, o nome não está imune ao ­fenómeno da moda, sofrendo variações de “cotação” ao longo dos tempos e atravessando o que designam por ciclo de “vida, morte e ressurreição” (­Besnard e Desplanques, p. 33): um nome “em alta” no momento de lançamento pelos seus “pioneiros” enfrentará a “desvalorização” e até a ridicularização no período de “purgatório” que sucede ao seu apogeu e onde permanecerá, numa espécie de limbo, até ao momento em que novos “(…) aventureiros irão desencantar este produto ao charme retro e poderão reintroduzi-lo no ciclo infernal do consumo dos bens da moda” (Besnard e Desplanques, p. 10). Sendo um bem da moda, o nome não deixará de estar em homologia com a posição social e de cumprir, simultaneamente, a função de integração e de demarcação, na linha do preconizado por Simmel (1957). Também a exemplo do que se verifica com outros bens da moda, o seu modelo de difusão caracterizar-se-á pela verticalidade, segundo alguns estudos. As classes privilegiadas, pela maior capitalização escolar (Gerhards e Hackenbroch, 2000) e maior intensidade de contactos sociais (Besnard e Desplanques, 1986), são as pioneiras no lançamento da moda onomástica: os intelectuais introduzindo no “mercado” nomes novos, os profissionais liberais preferindo trazer para a ordem do dia nomes recuperados da tradição, como concluem estes investigadores. Num caso como noutro, os nomes seguem uma trajetória social que nos reenvia para Simmel (1957) e para os princípios bourdieusianos das lutas simbólicas no espaço social e da procura/manutenção da distinção: tomando como “gosto legítimo” o que não é mais do que um mero arbitrário estético, as classes médias, numa estratégia de identificação com as classes de referência, apropriam-se dos nomes dados pelas classes dominantes, desencadeando nestas a procura de novos sinais onomásticos que lhes permitam recuperar a distintividade perdida, num processo a que não será alheia a perceção de que a divulgação desvaloriza e de que essa desvalorização simbólica é tanto maior quanto menor for o “valor social” de quem se apropriou deles (Bourdieu, 2003).

Mas, para Besnard e Desplanques (1986), as clivagens sociais no campo onomástico parecem exprimir-se hoje menos através do pioneirismo das classes dominantes no lançamento dos nomes e mais através de uma polarização dos gostos que permite delinear a oposição, ainda que sem caráter determinista, entre nomes ao gosto burguês e ao gosto popular: enquanto a burguesia tende a fazer as suas escolhas entre nomes clássicos, as classes populares tendem a preferir nomes importados, cuja imagem de modernidade e urbanidade responderá, em muitos casos, a uma vontade de demarcação das origens sociais. Segundo Cabral (Sanches, 2006), a opção das famílias portuguesas que migraram do campo para a cidade por nomes como Sandra ou Vanessa documentaria esse processo de afastamento do universo rural e social que diríamos associado, onomasticamente, às Marias Albertinas.

No processo de nomeação das classes populares, os media têm um papel relevante. Com efeito, se é um facto que a globalização cultural, de que os media são um veículo privilegiado, abre um “campo de possíveis” onomástico a todas as classes sociais, a verdade é que são as classes populares e médias as mais permeáveis aos nomes de vedetas de telenovelas, de heróis de filmes ou de celebridades desportivas ou musicais do momento, como nos lembra Almeida (2007), evocando a divulgação do nome Gabriela na sequência da difusão da telenovela assim intitulada. A aura de “moderno e chique” (Almeida, 2007, p. 258) dos media, a identificação sentimental com os seus programas e personagens e a forte exposição das classes populares a este tipo de produtos explicam a sua maior permeabilidade relativamente às classes mais capitalizadas que, vendo-os como “lixo” cultural, se demarcam deles. É nos nomes femininos que os pais se mostram mais recetivos à criatividade1 e à moda (Lieberson e Bell, 1992), o que estes sociólogos admitem ser uma “tendência para atribuir um menor papel à mulher” (p. 521), na linha da diferencialidade de género assimétrica que tende a acantonar as mulheres ao universo simbólico do decorativo e da futilidade (Bourdieu, 1998). Em Portugal, as Sandras, Sónias e Tânias documentam essa nova onda onomástica cara ao gosto popular e que nos trará, nas décadas de 80 e 90 e por influência das telenovelas, as Vanessas e as Cátias, como nos diz Cabral (Ferreira, 2010). Maria, o tradicional nome feminino que ainda era dominante entre a geração dos anos 50, passa então a ser exceção no universo onomástico adolescente, como uma consulta das pautas das escolas secundárias permite concluir.

Nos grupos sociais dominantes, a escolha do nome de batismo é balizada por padrões de “bom gosto” (Vieira, 2003, p. 307) que têm por base a tradição – nomeadamente familiar, como também observa Lima (2007). A atribuição aos filhos dos nomes próprios de membros da família – progenitores, avós, tios – corresponde, nas classes dominantes, a “(…) um ato intencional que pretende não deixar esquecer o passado, um ato que valida o presente pela preteridade partilhada e que integra os recém-chegados na história de vida dos parentes que os precederam, prendendo-os à sua história de família” (Lima, 2007, p. 48). O núcleo restrito de nomes que decorre desta retoma familiar constitui, nas suas palavras, “(…) um sistema de significados afetivos, sociais, que hierarquizam e distinguem, ‘fazendo família’ à medida que fazem reviver os nomes mais significativos do passado familiar” (Lima, 2007, p. 46). Também Mension-Rigau (2007) releva essa tradição de inscrever, através da retoma do nome de batismo de figura(s) tutelar(es) da família, o recém-nascido na respetiva linhagem, que lhe competirá prolongar e respeitar; ao mesmo tempo, regista a relutância das classes sociais dominantes em aderir às “novidades” onomásticas, assinalando a veemente proscrição de certos nomes, interpretada por este investigador como a confirmação de uma vontade expressa de marcar, através do nome, a pertença social.

Num olhar de relance sobre o Anuário de 2009-2010 do colégio em estudo onde figuram os nomes completos dos alunos de cada turma, sobressai, de imediato, a marca da tradição dada pela sobrerrepresentação de nomes femininos que incluem o clássico Maria – um nome que é, aliás, indicado por várias adolescentes brasileiras como um exemplo de nome “feio”, num processo de rejeição onomástica que Cabral (2007) interpreta como expressão de revolta contra um “(…) universo da ‘roça’, como eles dizem; um universo que veem como fechado, tacanho, miserável, triste e opressivo” (Cabral, 2007, p. 83) e do qual se querem demarcar pela via onomástica. No caso deste colégio, um dos traços de demarcação e distinção parece passar, precisamente, pela opção parental por este nome que as classes populares puseram de parte, na procura do tal nome diferente a que atribuem “conotações altamente positivas” (Cabral, 2007, p. 84). Com efeito, entre as 606 raparigas que frequentam este colégio, desde a infantil até ao 12.º ano, encontramos 237 a quem os pais deram o nome de batismo Maria, o que perfaz uma percentagem de 39,1%. Cerca de 6% das raparigas têm-no mesmo como único nome de batismo. Curiosamente, este nome feminino é também usado por um número muito expressivo de rapazes: 178 alunos, ou seja, 22%. O tradicionalismo deste nome – que remonta à Idade Média – e a sua conotação religiosa – que reataria a tradição clássica dos séculos XVI e XVII de ter como inspiração onomástica nomes de santos, de apóstolos ou de outras figuras bíblicas (Besnard e Desplanques, 1986) – estarão em consonância com o ethos de famílias que, como estas, ocupam posições sociais dominantes e revelam uma forte vinculação religiosa, a crer na percentagem maioritária de católicos praticantes (57,1% dos pais, 69,8% das mães e 68,1% dos filhos).

 

 

GOSTOS E “DESGOSTOS” ONOMÁSTICOS DAS CLASSES DOMINANTES: A SOBRIEDADE COMO MARCA DISTINTIVA

 

Uma consulta rápida das pautas de uma qualquer escola secundária dá-nos conta da omnipresença do duplo nome de batismo, tradição introduzida no século XVII pela burguesia urbana e que vai induzir um processo de individualização até então dificultado pelo nome único, responsável pela forte concentração local de homónimos e pela redução do stock onomástico. Ao nível dos nomes femininos, as Maria da ­Conceição ou Maria de Fátima das décadas de 60-70 dão lugar, em Portugal, às Sónia ­Cristina ou ao paradigmático Cátia Vanessa. Ora, uma outra particularidade deste colégio ao nível da onomástica feminina é a subrepresentação de alunas com nomes compostos que não integram Maria: apenas 45 num universo de 606, ou seja, 7%. Tão pouco encontramos, nestes 45 nomes, a opção parental por “exuberâncias criativas”: mais de metade destes nomes compostos (26) apresenta um nome marcado pela tradição e até pela singeleza gráfica e sonora: Ana.

 

 

Igualmente digno de registo enquanto expressão dos “desgostos” (Bourdieu, 1979, p. 60) das classes dominantes relativamente às preferências onomásticas das classes populares nos parece ser o facto de, nas 606 alunas, não encontrarmos uma única Vânia, Tânia, Carina, Cátia, Sónia, Soraia ou Sandra e referenciarmos apenas seis Patrícias e uma Andreia. Por outro lado, abundam nomes já identificados em estudos sobre a onomástica medieval, como Constança, Beatriz, Catarina, Margarida, ­Leonor, Joana ou Inês (Gonçalves, 1988), a par de Madalena, Francisca, Matilde – acoplados, ou não, com Maria.

Na onomástica masculina, a distinção burguesa também parece afirmar-se pela via da “ostentação da discrição e da sobriedade” (Bourdieu, 1979, p. 278). Sobressai, como já referimos atrás, o elevado número de rapazes a quem foi atribuído o nome Maria - de que são exemplo os Manuel Maria, José Maria ou Luís Maria -, na linha da tradição aristocrática de atribuir este nome feminino aos rapazes (Mension-Rigau, 2007). Como o quadro 6 documenta, depois de Francisco – o nome mais escolhido – encontramos outros nomes clássicos como João, José, Pedro, Miguel, Manuel e António. Nos 807 rapazes não identificamos, por exemplo, nenhum Cristiano, Ruben ou Márcio, nomes frequentes na mesma faixa etária de outros universos sociais e que diríamos corresponder ao que aquele investigador considera serem os “nomes proscritos” pelas classes dominantes.

 

 

O stock onomástico masculino, tal como o feminino, aponta no sentido da impermeabilidade destas classes sociais à efemeridade e à moda e permanece restrito a um pequeno leque de nomes consagrados pela perenidade e pela tradição. Com efeito, as escolhas parentais de 78,7% dos rapazes deste colégio distribuíram-se por apenas 21 nomes, a exemplo do verificado com 86,3% das raparigas.

Um traço distintivo das classes sociais dominantes é, como já referimos, a tradição de atribuir ao recém-nascido o nome de batismo de familiares, nomeadamente de pais ou de avós (Lima, 2007). Tendo nós o Anuário dos alunos por fonte única de consulta, apenas tivemos acesso à identificação dos respetivos progenitores. Sem a árvore genealógica das famílias, ficou em aberto a possibilidade de o nome destes alunos retomarem o de outros familiares significativos – caso, por exemplo, dos avós ou dos tios. Tão-pouco pudemos apurar se os alunos em questão eram os primogénitos e, portanto, se a tradição de dar continuidade aos nomes dos antepassados não teria sido cumprida com outro filho. Pese embora estas limitações, procurámos averiguar a dimensão deste mecanismo de transmissão familiar de nomes de batismo. A fidelidade a esta tradição, que nas famílias estudadas por Lima (2007) atinge percentagens próximas ou superiores aos 50%, cifra-se, nesta escola, em valores percentuais bem menos expressivos, uma vez que apenas 14% dos alunos retoma um ou os dois nomes do progenitor do respetivo sexo. Esta discrepância de valores poderá ser explicada pelos constrangimentos metodológicos por nós enfrentados, mas também pela diferencialidade das amostras no que diz respeito à classe social: se a investigação de Lima (2007) tem por base um conjunto homogéneo de famílias empresariais, para as quais “o nome de família dos dirigentes e o nome da empresa reforça a partilha identitária entre uma e outra (…)” (Lima, p. 58), a nossa investigação centra-se numa amostra que é mais abrangente pela inclusão das duas frações da burguesia (BEP e BDP) e de uma percentagem significativa de membros da PBIC, que não nos custa admitir mais propensa à lógica de individuação pessoal do que a burguesia (Pinçon e Pinçon-Charlot, 2007).

 

A ESCOLHA DO COLÉGIO E A PROCURA DE UMA EDUCAÇÃO DISTINTIVA

 

A META DA FORMAÇÃO INTEGRAL: SINTONIAS ENTRE FAMÍLIA E COLÉGIO

 

Tal como o nome, também a escola frequentada pode constituir um traço identitário e um indicador de pertença social. Casos há em que ela, per se, confere ao seu público a garantia da distintividade académica e simbólica almejada pelas classes dominantes, como acontece no que Bourdieu (1989) designa por “escolas de elite”, instituições que cumprem simultaneamente a função de consagração e de reconhecimento. O traço distintivo passa, desde logo, por assegurar aos filhos uma “educação integral” e de excelência, desejo a que este colégio, na opinião dos pais, dará resposta – quer através do objetivo do “(…) desenvolvimento mais completo possível de todos os talentos dados por Deus a cada pessoa dada individualmente, como membro da comunidade humana” (Projeto Educativo, p. 11), quer através da educação para o magis, entendido como a procura constante da autossuperação em todas as dimensões humanas – e a que a escola pública alegadamente se mostrará incapaz de responder. No olhar destes pais, este colégio, tal como outras escolas privadas de prestígio, afirma-se como o contraponto da escola pública. Juntando a sua voz às dos que se deixam embalar por uma “doce memória do passado” escolar (Almeida e Vieira, 2006, p. 72) transfigurada pela distância temporal e inquietos com os “(…) sinais de mudança acelerada que parecem ter corroído a dimensão institucionalizada e hierárquica do quotidiano” (Almeida e Vieira, 2006, p. 84), muitos são os pais que deixam transparecer nas suas palavras a imagem de uma escola pública em “crise”. O “nivelamento por baixo”, a incapacidade de a escola lidar com a heterogeneidade juvenil que hoje acolhe e com os decorrentes problemas disciplinares dentro e fora da sala de aula, a desvalorização do docente enquanto figura de autoridade, a inexistência de um “sistema de valores coerente” e o deficit organizacional (Van Zanten, 2009, p. 190) são identificadas como as principais causas do “estado calamitoso” da educação estatal. Como admite um pai e presidente da Associação de Antigos Alunos do colégio, “as escolas públicas estão normalmente associados à impreparação dos professores, que continua a ser gritante, ao facilitismo, à falta de formação nas áreas relacionais e comportamentais e à indisciplina. Esta é acentuada nas escolas públicas até porque os alunos já sabem que não podem ser expulsos por mau comportamento, por faltas ou mesmo por más notas… são orientações criminosas do Ministério da Educação!”.

Enquanto “consumidores de escola” informados (Dubet e Duru-Bellat, 2000, p. 130) que não ignoram a heterogeneidade do ensino privado (Ballion, 1980; Estêvão, 2001) e enquanto pais que procuram para os filhos a excelência e a distinção na educação perseguidas pelas classes dominantes (Mension-Rigau, 2007; Pinçon e Pinçon-Charlot, 2007), os entrevistados não fazem recair a sua escolha sobre um qualquer colégio privado do longo “menu à la carte” (Ballion, 1980, p. 212) ao seu dispor, mas sim sobre o colégio que consideram dar resposta às suas aspirações. A propósito da candente questão da “livre escolha da escola” (Cotovio, 2004), o presidente da Associação de Pais lembra o direito das famílias à escolha de um estabelecimento de ensino cujo projeto educativo esteja em consonância com os valores familiares. Este documento orientador terá sido, aliás, determinante para a opção dos pais entrevistados, que dizem conhecer os princípios e linhas de ação aí enunciados, identificar-se com eles e assumi-los como guias de conduta no quotidiano. Como nos disse um pai: “Eu acredito mesmo no projeto do colégio, transmito-o às crianças e tento aplicar, exatamente, os mesmos princípios na minha vida do dia-a-dia – em casa e não só em casa, mas nas situações todas que vão acontecendo na vida. E isso é fundamental, para mim, senão não tinha cá as crianças” (PBIC2, 39 anos).

Neste colégio, os pais dizem procurar não apenas a excelência académica – por si só um cunho de distintividade em tempos de democratização ­escolar e de relativa massificação dos diplomas –, mas também (e essencialmente) determinados princípios socializadores que, na sua perspetiva, distinguem este ­colégio dos restantes. Assim, nos discursos parentais, a vertente ­instrutiva surge diluída e secundarizada face a valores de outra natureza, nomeadamente ­religiosos. Contrariamente às conclusões de alguns estudos sobre a escola privada (Ballion, 1991, Langouet e Léger, 2000), a confessionalidade é identificada por estes pais como uma das principais motivações para a escolha do estabelecimento de ensino, o que se inscreve numa tradição burguesa em que a religião, aliás, “funciona quase sempre em paralelo com o caritativo” (Pinçon e Pinçon-Charlot, 2007, p. 96) – uma dimensão a que este colégio também dá resposta formativa através do envolvimento dos alunos em atividades de trabalho social e de voluntariado que os tornem “(…) homens e mulheres abertos às necessidades dos demais, com os outros e para os outros, conscientes de si mesmos e do mundo que os rodeia (…)” (Projeto Educativo, p. 17). No entanto, porque a natureza religiosa de um colégio, por si só, não garante a transmissão do corpus de valores em que estes pais querem socializar os filhos, a escolha não recai sobre um qualquer estabelecimento religioso, mas sim sobre o desta ordem religiosa. Distinta e distintiva das restantes, desde logo, por ser herdeira de uma tradição de séculos no campo educativo e por, desde sempre, ter tido por missão a educação das elites; mas distinta e distintiva, também, pelo seu legado fundacional: o binómio virtus et litterae (ser e saber, ciência e sabedoria) que “(…) distingue e dá peculiaridade ao modo de pensar, de estar e de proceder da Companhia de Jesus no Ensino e na Educação” (Gonçalves et al., 2007, p. 11). Como nos disse uma mãe,

 

Não foi num colégio qualquer onde eu quis pôr os meus filhos (…) porque eu acho que outro colégio religioso qualquer não me diria a mesma coisa que este colégio (…) À parte isso, sei e sabia que o ensino era bom. Mas não foi por isso, pelo ensino, que os pus aqui, porque há muitos colégios não religiosos que têm um ensino bom. A causa principal foi por ser um colégio da Companhia de Jesus [PBIC, 46 anos].

 

A tríplice vertente do projeto formativo deste colégio – humana, social e religiosa – é percecionada pelos pais como garantia da educação total que procuram para os filhos e que assenta no corpus de valores integrantes do património “moral e espiritual” familiar (Mension-Rigau, 2007, p. 561) e de que são exemplo a fé, a caridade, mas também o mérito, o esforço e o rigor, pilares de uma exemplaridade que constituirá também uma demarcação positiva. Assumindo-se como herdeiros desse “património simbólico” legado pelas instâncias socializadoras e alimentando a esperança de lhe dar continuidade, estes pais querem transmiti-lo aos filhos, numa estratégia que adivinhamos de distintividade relativamente à “crise de valores ou perda de valores” que Araújo et al. (2007) dizem ser imputadas às atuais gerações. Como nos diz um dos pais: “há uma série de valores que eu tentei preservar e que os meus pais me transmitiram e que eu tento passar para eles. E foi essa uma das razões ­porque eu os coloquei aqui. A relação com Deus, o respeito pelos outros, o servir os outros (…)” (pai, BDP, 47 anos).

 

A FAMÍLIA COMO VALOR E A “ESCOLA COMO FAMÍLIA”

 

A identidade das classes dominantes tem um dos seus pilares na família e no espírito de “clã”. Legados em património e alimentados através da memória e das práticas de sociabilidade, os “ (…) valores da família e da construção de um modelo à volta da família” (pai, BDP, 45 anos) são deliberadamente transmitidos aos jovens herdeiros (Mension-Rigau, 2007). No colégio a quem confiam a educação dos filhos, as famílias esperam, naturalmente, encontrar o continuum socializador que assegure a manutenção e o reforço desse ethos familiarista. Os pais entrevistados dizem encontrá-lo neste colégio, expressiva e carinhosamente apelidado de “casa” e que se define, a ele próprio, como “uma grande família” (Projeto Educativo, p. 25) cuja coesão é alimentada institucionalmente através do recurso a um vocabulário organizacional galvanizador e a “rituais de envolvimento” (Estêvão, 2001) que estimulam o sentimento de comunhão e de orgulho de toda a comunidade educativa na família escolar. As mais emblemáticas e participadas iniciativas do colégio celebram a família e os seus valores, como é o caso das Festa das Famílias, ou dos Campinácios, um acampamento organizado segundo o modelo familiar tradicional onde nem sequer falta a convencional distribuição de papéis de género, de inspiração parsoniana, como as palavras de um elemento da organização documentam: “a função da mamã é quase cuidar do bem-estar do campo, em geral; o diretor tem a parte mais organizativa, dos horários, da questão logística e daquelas coisas todas”.

Este estabelecimento de ensino é também “uma escola de tradição familiar” por onde passam gerações da mesma linhagem, como admite o presidente da Associação de Pais, para quem “(…) a grande motivação que existe para os pais porem cá os filhos é a experiência que eles, enquanto alunos, tiveram (…) ou o sucesso que sentem que existe com os outros que cá estão e querem pôr os irmãos”. Os dados recolhidos no inquérito por questionário confirmam, de facto, que apenas 2,7% dos discentes têm irmãos a estudar fora do colégio e que quase metade dos estudantes (44,3%) têm, pelo menos, um dos pais como antigo aluno da escola.

 

 

 

No Anuário do colégio, um AA (Antigo Aluno) colocado junto ao nome dos pais dos alunos instaura uma hierarquização simbólica entre os jovens que pertencem a famílias com percursos de fidelidade ao colégio e os recém-chegados ao estabelecimento. A lógica de fechamento endogâmico e, consequentemente, de garantia de osmose entre valores familiares e escolares é assegurada por um complexo sistema de seriação dos candidatos que introduz como fator de hierarquização a maior ou menor proximidade na árvore genealógica do “candidato” a algum elemento da “família colegial” – membro da congregação religiosa, ex-aluno, funcionário da escola ou atual estudante. O diretor do colégio exemplifica-nos, com algum pormenor, o sistema de pontuação para ingressar na “família escolar”: “(…) se é irmão de um Jesuíta, setenta pontos, se é sobrinho em primeiro grau sessenta pontos, se é sobrinho em segundo grau cinquenta e se é primo em primeiro grau trinta e cinco pontos (…)”. Perante a dificuldade do ingresso que, também pelo desajustamento entre a procura e a oferta dos seus serviços, está praticamente vedado aos que não têm laços de sangue com algum dos atuais membros do colégio, a “entrada” no “restrito cl㔠transforma-se num ato de demarcação simbólica face a todos os que não conseguiram superar a barreira. Mas porque a “seleção é também ‘eleição’” (Bourdieu, 1989, p. 140), os pais não esmorecem, persistindo em tentativas sucessivas para ultrapassar “(…) a fronteira que separa a ‘massa’ e as ‘elites’ (…)” (Bourdieu, p. 147), como documenta o próprio diretor a propósito do “(…) sobrinho que andou três anos à espera de entrar aqui nesta Casa”. Em certos casos, nomeadamente de “famílias desconhecidas”, a “corrida de obstáculos” alia à pontuação obtida a realização de uma entrevista com o diretor – um momento de “filtragem” avaliativa do “perfil” dos pais, solicitados a ­elencar as motivações da sua opção pelo colégio. Numa lógica que nos reenvia para o “processo de agregação dos semelhantes e de segregação dos dissemelhantes” (Pinçon e Pinçon-Charlot, 2007, p. 24), é assim garantida a homogeneidade disposicional em que assenta o esprit de corps – um sentimento de solidariedade grupal que “(…) repousa com efeito na comunidade de esquemas de perceção, de apreciação, de pensamento e de ação (…)” (Bourdieu, 1989, p. 111).

A consolidação e atualização do corpus de valores das famílias “eleitas” integra as preocupações do colégio que encontra um precioso aliado na Associação de Pais, dinamizada por um restrito, mas ativo, núcleo de “militantes”. A missão é cumprida através de um leque de atividades lúdicas, de uma “Escola de Pais” e de “ações de formação” destinadas,  nomeadamente, “ (…) a divulgar não só a pedagogia Inaciana, não só o ideário, mas também a componente da espiritualidade Inaciana que, no fundo, é que vai influenciar a pedagogia (…)” (presidente da Associação de Pais). Temas como a importância da relação conjugal para o desempenho da parentalidade, o papel do voluntariado na formação dos jovens, a felicidade na aceção de “uma boa vida ou uma vida boa” ou a educação da vontade, recenseados através de consulta aos Boletins In-Formar, dão o mote para a união dos pais em torno da cultura do colégio. A promoção de “dias de reflexão” e de “retiros espirituais” destinados aos pais cumprem o mesmo objetivo. Conciliando, numa mesma prática, a dimensão cultural e de sociabilidade (Pinçon e Pinçon-Charlot, 2007), as “atividades de pais e filhos” permitem fortalecer, pelo convívio, a célula famíliar e, ao mesmo tempo, impregná-la dos valores da fé e da cultura inaciana, através de um roteiro que inclui desde peregrinações a lugares sagrados até visitas a locais, dentro ou fora do país, que fazem parte da história da companhia religiosa que tutela o colégio, passando ainda por atividades meramente profanas. Indo ao encontro dos gostos e interesses dos pais dos alunos – fortemente estruturados pela classe de pertença –, as propostas da Associação de Pais incluem ainda iniciativas como “caminhadas” pelas ruas da capital à descoberta do seu passado histórico-cultural, ou eventos “de - e com - classe”, como a participação em provas de vinhos ou em torneios do Clube de Golfe.3

Através da socialização múltipla resultante destas interações formativas e conviviais, os pais, mas também os filhos, vão interiorizando e sedimentando a sua “inacianeidade”, o seu sentimento de pertença, a sua vinculação ao colégio e ao respetivo projeto educativo, num processo de “adesão encantada aos valores e ao valor de um grupo” (Bourdieu, 1989, p. 258) que os enunciados discursivos deixam transparecer. Esta pertença a uma comunidade educativa auto e heterorrepresentada como de “excelência” traduz-se num sentimento de orgulho que os rituais e eventos festivos ajudam a reforçar. Estas cerimónias constituem um momento de (re)encontro de toda a comunidade educativa, de (re)conhecimento dos membros da “família inaciana” e de (re)afirmação dos valores e dos princípios que os animam: o “serviço ao outro”, a tolerância, o respeito, mas também o trabalho, o esforço e o magis. Tais vínculos identitários manter-se-ão ao longo da vida dos membros da família e reproduzir-se-ão de geração para geração: “(…) a sensação que nós temos – ou que eu tenho – é que vestimos esta camisola e grava-se, fica connosco” (diretor do 3.º ciclo do ensino básico).

 

PREPARANDO O AMANHÃ: LÓGICAS DE “EXCELÊNCIA”, REDES SOCIAIS DE “REFERÊNCIA”

 

A educação para os valores não é, no entanto, a única razão para os pais inscreverem os filhos neste colégio. A qualidade académica do colégio – reconhecida publicamente através dos lugares cimeiros ocupados nos rankings escolares – embora não sendo “a” motivação, como o diretor faz questão de frisar4, constitui uma das motivações destes pais, cuja mobilização para o sucesso escolar e profissional dos filhos se reflete nos projetos de sobre-escolarização (Diogo, 1998) ambicionados pelos filhos. Como o inquérito dá conta, 29,3% destes alunos prevê doutorar-se, 31,3% pós-doutorar-se e 25,9% completar o mestrado.

 

A consciência de que, no quadro da democratização, a excelência do ensino constitui condição essencial para os filhos assegurarem a manutenção das posições de distinção e, por outro lado, a perceção de que os filhos estão inseridos numa sociedade hedonista, levam estes pais a procurar um contexto de escolarização que, nas palavras do diretor, privilegie a “pedagogia do esforço contra a pedagogia do apetite” e se norteie pelo princípio do mérito, celebrado através do quadro de honra e da ritualização da cerimónia pública de entrega dos “prémios” de distinção. Imersos nesta “cultura pedagógica”, passível de ser lida como distintiva em relação a um alegado clima de laxismo associado às ­famílias populares (Gombert e Van Zanten, 2004) e ao ensino público, os herdeiros internalizarão os valores dominantes da sociedade meritocrática e a endurance – em termos de trabalho e de esforço – requerida quer na universidade, quer no mercado de trabalho. Contra os “ (…) que dizem que o quadro de honra amachuca aqueles que não são capazes de lá estar”, o diretor responde “que se esforcem por estar”. Só neste “caldo” de exigência se consegue alcançar o objetivo de distinção pela excelência, nomeadamente face aos alunos das restantes escolas, como nos diz um dos entrevistados a propósito da experiência universitária de ex-colegas de colégio “ (…) que entraram na faculdade e sentem que, relativamente a outros que andaram noutros colégios e noutras escolas, estão bastante beneficiados pela preparação” (aluno, PBIC, 16 anos). Também no mercado laboral – que cada vez mais exige versatilidade e capacidade de adaptação a novas realidades e que funciona na lógica de uma “dedicação total” e totalizante na vida dos indivíduos –, são requeridas estas competências que o colégio procura inculcar deste tenra idade. A exemplo do verificado por Macedo (2009) num colégio de elite, as intervenções dos entrevistados documentam a importância atribuída à “ (…) capacitação para o forte grau de competição do mundo em que vivem, bem como das consequências do seu percurso escolar como enraizadoras das possibilidades de inserção no campo de trabalho, que se antevê como duro e hostil (…)” (Macedo, 2009, p. 112):

 

Temos de perceber que o mercado tem competitividade e a competitividade obriga ao esforço e ele tem de se esforçar até ao limite daquilo que eu acho que é o seu limite humano. Ou seja, se ele trabalhar pouco sendo capaz de fazer melhor, aí o papel dos pais… é fundamental obrigá-los a trabalhar [pai, BDP, 45anos].

 

Socialização escolar e socialização familiar convergem, assim, no sentido da preparação para esse “mundo que é a loucura” (aluna, BEP, 17 anos) e cuja lógica da “competitividade ao extremo” (aluno, BDP, 17 anos) só permitirá a sobrevivência aos detentores de um habitus profissional distintivo, somente assegurado por uma “educação distintiva”: aquela que se traduz numa efetiva qualidade da formação e não numa mera distribuição de “notas que não merecem só para atingir um fim, que é entrar numa universidade” (mãe, BEP, 42 anos); mas também aquela que não se circunscreve à performatividade académica, dotando os alunos de outros saberes - como o saber-fazer e saber-dizer, o saber-ser e o saber-estar – e de outras competências, nomeadamente as “de cariz inter-relacional” (Cortesão, 2007, p. 105) requeridas nos “mercados dominados por valores extraescolares, quer se trate de salões e jantares ‘mundanos’ ou de todas as ocasiões da existência profissional (…) e mesmo escolar (…) onde se trate de avaliar a pessoa total” (Bourdieu, 1979, p. 97)

A garantia da homogeneidade disposicional é assegurada pela “educação entre iguais” que, ao mesmo tempo, constitui “um mecanismo essencial de criação de capital social” (Felouzis e Perroton, 2009, p. 99). Embora nunca explicitamente admitido pelos pais entrevistados como recurso estratégico, o entre-soi social e escolar propiciado por este colégio não deixará de se inscrever numa lógica de distinção que, admitimos, “pode implicar ou não a intenção consciente de se distinguir do comum (…)” (Bourdieu, 1979, p. 32). Mostrando não ignorar essa utilidade social e simbólica dos contactos estabelecidos na escola, um dos pais admite que

 

[…] uma das razões por que o colégio, se calhar, tem esta dinâmica e tem este sucesso é, claramente, esse network que cria – portanto, as chamadas redes que cria. Porque eu, obviamente se tiver dois miúdos ou se tiver duas pessoas no mercado de trabalho em que uma conheço e outra não e em igualdade de circunstâncias, opto pela que conheço [pai, BDP, 45 anos].

 

O interreconhecimento é também reforçado e alargado através da Associação de Antigos Alunos do colégio que, à semelhança do constatado por Faguer (1991) em escolas da mesma congregação religiosa, se mostra disponível para dar apoio profissional ou de outro âmbito aos seus membros, como nos deu conta o respetivo presidente.

 

NOTAS FINAIS

 

O nome e a escola podem, como procurámos analisar, funcionar como operadores de diferenciação social através dos quais os grupos sociais dominantes se reconhecem e são reconhecidos dentro e fora das fronteiras de classe.

No campo onomástico, a distinção do vulgum é estabelecida, desde logo, pela transmissão do “emblema de excelência” (Pinçon e Pinçon-Charlot, 2007, p. 82) que é o sobrenome de prestígio. Mas a demarcação classista faz-se também pela via do nome de batismo, através da escolha de nomes sóbrios, discretos, intemporais e aprovados pela tradição, como os encontrados neste colégio. No campo escolar, a procura da distinção transparece na escolha de um estabelecimento de ensino que, nas palavras dos pais entrevistados, providencia aos filhos o que as outras escolas não asseguram: uma educação integral e de excelência não apenas no plano da instrução, mas também, e sobretudo, no da formação do “caráter”, garantindo o prolongamento em meio escolar de uma socialização familiar ancorada em valores como o do trabalho, do mérito, da autossuperação, da exigência e em princípios como o do catolicismo, da atenção e solidariedade para com o “outro” e da afiliação ao grupo de pertença familiar e escolar.

É, pois, também pelo nome e pelo (re)nome da escola frequentada que as classes dominantes procuram legar aos herdeiros o ethos distintivo que as marca e as demarca.

 

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OUTROS MATERIAIS CONSULTADOS

 

Boletim In-formar, editado pela Associação de Pais.         [ Links ]

Projeto Educativo.         [ Links ]

 

Recebido a 30-11-2011. Aceite para publicação a 16-06-2012.

 

NOTAS

1 Expoente máximo dessa criatividade é o nome duplo dado à filha por duas conhecidas figuras mediáticas portuguesas: o primeiro, resultante da junção das iniciais dos seus nomes com parte do nome da sua cantora favorita; o segundo, inédito pela grafia sui generis, evocativo da supremacia do seu amor contra as adversidades.

2 Os pais foram identificados com base no seu lugar de classe individual.

3 Informações recolhidas no boletim In-formar editado pela Associação de Pais do colégio.

4 Com indisfarçável satisfação, o diretor disse-nos serem raros os pais que, em contraciclo com o ideal de formação holística do colégio, escolhem este estabelecimento apenas pela performance académica.

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