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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.213 Lisboa dez. 2014

 

ARTIGO

Vigilância e disciplinamento da luxúria clerical no espaço luso-americano, 1640-17501

The monitoring and discipline of the clerical lust in the Luso-American space, 1640-1750

 

Jaime Ricardo Gouveia*

*CHAM, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Avenida de Berna, 26-C — 1069-061 Lisboa. E-mail: jaime.ricardo@gmail.com

 

RESUMO

Este estudo tem como objetivo analisar a ação e o impacto dos mecanismos de vigilância e disciplinamento da luxúria clerical no espaço luso-americano no período compreendido entre 1640 e 1750. Depois de explicitadas as unidades de pesquisa, e de se apresentar uma reflexão sobre o estado da questão, o artigo aborda a ação contra os delitos sob jurisdição da Inquisição: solicitação e sodomia. Numa segunda fase, examina-se essa mesma ação, porém na esfera dos comportamentos luxuriosos não heresiarcas, que estavam sob jurisdição das estruturas episcopais de controlo, tais como o concubinato e outras formas de ilícito. Para terminar, tratará de aferir o impacto da ação analisada nos comportamentos clericais, i.e., a eficácia destes mecanismos de controlo.

PALAVRAS-CHAVE: Inquisição; justiça episcopal; luxúria clerical; espaço luso-americano.

 

ABSTRACT

This paper analyses the mechanisms for monitoring and disciplining clerical lust in the Luso-American space from 1640 to 1750.  The paper addresses the units of analysis and then inquires into the action against the lustful crimes (solicitation and sodomy) of the clergy under the jurisdiction of the Inquisition.  An examination is then made of the same action in the sphere of the non-heresiarch lustful behaviors which were under the jurisdiction of the Episcopal control, such as concubinage and other forms of illicit cohabitation between the clergy and parishioners. A final issue examined is whether or not the actions analyzed had an impact on the behavior of the clergy, i.e. if the mechanisms of control were effective.

KEYWORDS: Inquisition; episcopal justice; clerical lust; Luso-American space.

 

INTRODUÇÃO

 

Na primeira metade do século XVI, a Igreja portuguesa atravessava uma profunda decadência, em muitos aspetos análoga à verificada noutras áreas da Europa, no que diz respeito à vida cristã, ao clero, e às ordens monásticas. Os clérigos preocupavam-se com o prestígio e conforto pessoal, com a conquista de títulos e riquezas, e com o alargamento dos seus poderes temporais. Era comum o tráfico dos benefícios e cargos eclesiásticos, bem como a consequente rivalidade e conflito com as corporações canónicas. O recrutamento do pessoal eclesiástico não era rigoroso, pelo que havia uma verdadeira turba de tonsurados para quem, na sua maioria, o sacerdócio era apenas uma solução para a vida. A frequente quebra dos votos, sobretudo do voto de castidade, fornecia mau exemplo aos fiéis (Dias, 1960, pp. 33-92). Esta impureza de costumes passou, paulatinamente, a ser objeto de grande preocupação no período tardo-medieval e inícios da modernidade, sobretudo a partir do Concílio de Trento.2 O debate e a reflexão que nele ocorreram introduziram as principais linhas de reestruturação da vida religiosa da sociedade cristã. Entre elas, convirá destacar o novo interesse na formação e instrução do clero, e a criação de um conjunto de mecanismos e estratégias instaurados para vigiar e disciplinar os comportamentos que se afastavam do ideal apostólico, nomeadamente os ligados à sexualidade. Porém, em meados do século XVII, período em que se inicia o estudo desenvolvido neste artigo, essa concupiscência clerical encontrava-se longe de estar erradicada, o que justifica que a estudemos não apenas no que diz respeito à maneira como se manifestou, quem foram os seus protagonistas, senão também em relação a como foi vigiada e reprimida.

O sistema de vigilância e disciplinamento da cristandade, cuja ação se exerceu durante toda a época moderna, assente na “disciplina da alma, do corpo e da sociedade” (Prodi, 1994), funcionou com base em mecanismos verticais e horizontais que a Igreja concebeu. Com eles almejava-se alcançar um conjunto de comportamentos coletivos conformes, tendentes a uma obediência tácita, indispensável ao exercício do poder.

Essa constituição de automatismos, de uniformização social, implicava seguir um código de conduta comum e uma rigorosa subordinação dos fiéis leigos e clérigos à autoridade central da Igreja. Porém, tanto a disciplina como a ordem não eram recebidas por todos de forma passiva, motivo pelo qual foi indispensável a implementação de um conjunto de políticas de vigilância e disciplinamento que atalhassem os desvios, e permitissem identificar os seus protagonistas.

É sobre os resultados dessa ação que incide este estudo, o qual abarca tanto o domínio específico da luxúria clerical, heresiarca, sob jurisdição da Inquisição, nomeadamente a solicitação e a sodomia, como também a não heresiarca, em que se destaca o concubinato, os amancebamentos – estes os delitos mais frequentes – e outros pecados da carne, da competência jurisdicional dos tribunais episcopais. O estudo apresenta um ponto de vista comparativo, e centra-se no espaço luso-americano, no período compreendido entre 1640 e 1750.3

 

REFERÊNCIAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS

 

AS UNIDADES DE ANÁLISE

 

O recorte cronológico proposto constitui um período suficientemente lato para se perceber os ritmos e tendências da ação dos mecanismos de vigilância e disciplinamento da luxúria clerical. É o período em que passa a ser possível fazer uma comparação sincrónica com o Brasil, uma vez que tanto as monografias, como o espólio documental existente são essencialmente relativos a esta época.

Por outro lado, a cronologia escolhida coincide com uma mudança na estratégia de ação empreendida pelo tribunal inquisitorial no Brasil. Enquanto até meados do século XVII, o Santo Ofício atuou por intermédio de visitas esporádicas e limitadas no espaço, a partir dessa época passou sobretudo a operar por intermédio de uma rede de agentes próprios presentes no território, a que se juntava uma intensa colaboração, solicitada e espontânea, de agentes não inquisitoriais, além de uma preocupação crescente em impulsionar o provimento de cargos da cúpula da administração eclesiástica em criaturas que já haviam servido a Inquisição. São também as consequências dessa mudança de estratégia que se pretendem avaliar por comparação com o reino.

Iniciar este estudo em 1640 tem ainda o propósito de analisar a ação de vigilância e disciplinamento de um conjunto de estruturas judiciais num período marcado por uma significativa instabilidade e perturbação para a Igreja portuguesa à escala do reino e do seu império (Araújo e Paiva, 2007).

A escolha da data que encerra o estudo prende-se com as mudanças significativas verificadas no regime institucional da Igreja portuguesa a partir do reinado de D. José, nomeadamente com o governo do Marquês de ­Pombal, as quais deixam entrever já uma realidade completamente diferente. Acresce o facto de ser um período em que se acentuaram as consequências do cisma do sigilismo, passando a relação entre o Santo Ofício e os antístites a pautar-se mais por divergências do que por convergências, com reflexos no campo da vigilância e disciplinamento de toda a cristandade (Paiva, 2011, pp. 386-418). Trata-se de uma mutação decisiva, cujos contornos não cabem num estudo com uma profundidade temporal já suficientemente extensa.

No que concerne ao espaço escolhido, ele envolve o reino de Portugal, as ilhas atlânticas, e o seu império americano. Em matéria de fé e heresias, todos os territórios portugueses do Atlântico (ilhas dos Açores, Madeira, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, fortalezas e entrepostos na costa noroeste e ocidental de África e as capitanias do Brasil) estavam sob jurisdição da Inquisição de ­Lisboa. Tal panorama abre caminho à comparação entre espaços completamente distintos, mas profundamente ligados entre si. No que respeita à atuação do Juízo eclesiástico, o foco comparativo será mais incisivo. Comparar-se-á o bispado de Coimbra com a capitania de Minas e o bispado do Maranhão. Numa e noutra margem do Atlântico são aqueles que melhor possibilitam um cruzamento sistemático de fontes.

 

O ESTADO DA QUESTÃO

 

OS TRIBUNAIS ECLESIÁSTICOS ENQUANTO DISPOSITIVOS DE VIGILÂNCIA E DISCIPLINAMENTO SOCIAL

 

Os trabalhos que nas últimas décadas se foram produzindo no âmbito da história religiosa renovaram-na em profundidade, desde logo no que diz respeito a algumas categorias e perspetivas de análise, profusamente discutidas à escala europeia (Palomo, 2009). Novas abordagens se delinearam, tendo-se verificado uma paulatina passagem da história da igreja para a história religiosa. Nos anos 70 do século XX, apareceram estudos que traçaram um novo programa de investigação neste campo, em que o objetivo da história da Reforma passava a ser a análise do caráter e diversidade regional das crenças e práticas cristãs e o exame de como essas grandes mudanças em marcha haviam alterado a experiência, afiliação e identidade religiosa dos vários estratos sociais da Europa (Thomas, 1973; Delumeau, 1979). Outra das inovações foi o aparecimento posterior de alguns estudos comparativos sobre várias tradições confessionais (Benedict, 2006). Mudança fundamental foi também aquela que se verificou com o desenvolvimento do conceito de disciplinamento social. A primeira alusão que se lhe conhece (sozialdisciplinierung) encontra-se nos estudos de Gerhard Oestreich, em torno do neo-estoicismo de Justus Lipsius e da sua influência no processo de construção do chamado “Estado absolutista” (Oestreich, 2008). Durante muito tempo, a proposta restringiu-se ao campo da história política. Na década de 80, dois alemães, Wolfgang Reinhard e Heinz Schilling, aplicaram-no à história religiosa, pretendendo estudar os vínculos estreitos entre o poder político e as instituições e agentes do poder eclesiástico e religioso. Elaboraram, assim, o conceito de confessionalização (Konfessionalisierung), propondo-o como paradigma de interpretação de uma história religiosa da época moderna que, face a uma visão equacionada em termos estritamente eclesiásticos, colocaria a análise dos processos e fenómenos de caráter religioso numa perspetiva relacional, ou seja, atenta aos contextos político, social e cultural nos quais esses fenómenos se inscreviam (Reinhard, 1999; Schilling, 1992).

Estas perspetivas de interpretação fornecidas pela aplicação dos conceitos de confessionalização e de disciplinamento social deram origem a um número crescente de estudos no âmbito da história religiosa dos séculos XVI a XVIII. Destaque, neste contexto, para o livro coordenado por Herman Roodenburg e Pieter Spierenburg (2004), dedicado ao controlo social na Europa no período compreendido entre 1500 e 1800, contendo vários artigos onde estes conceitos são amplamente discutidos e usados.

Todavia, o quadro de interpretação que decorre destas duas categorias (confessionalização e disciplinamento) não deixou de produzir interpretações díspares e controversas, em especial no que concerne à eficácia dos dispositivos e dos agentes envolvidos em tais processos, bem como à aplicação de um modelo que teria aplicabilidade em algumas regiões da Europa Central e do Norte, mas que seria suscetível de falhar se perspetivado noutros espaços europeus (Benedict, 2006, 2001; Farr, 2003; Hendrix, 2006; Paiva, 2007a; Roper, 2006; Shagan, 2006). Além da insistência na proximidade e semelhança dos processos vividos nos territórios protestantes e católicos (Headley et al., 2004), convém não descurar também os fatores de diferenciação. Parece, assim, conveniente, entre outros procedimentos metodológicos, entrar em linha de conta com o fator “escala de análise” e procurar perceber como processos impulsionados a partir do topo das hierarquias sociais e políticas foram objeto de adaptações e negociações em função das realidades que encontraram na sua realização prática (Palomo, 2006). No caso português, será importante perceber quais os dispositivos quer desse ímpeto confessionalizador, quer da vigilância e disciplinamento social que se exerceu sobre a cristandade.

A questão do disciplinamento social tem tido pouco eco na historiografia portuguesa. Nos últimos trinta anos tem-se vindo a consagrar uma maior atenção ao estudo da Inquisição, preterindo-se outras instituições religiosas que, a par do Santo Ofício, tiveram um peso, uma presença e uma capacidade de ação muito significativas no seio da sociedade. De facto, os bispos e as ordens religiosas foram outros polos fundamentais na organização do campo religioso moderno (Palomo, 2006, pp. 30-31), e muito embora se revele importante estudar isoladamente cada um deles, é necessário também que se proceda a investigações acerca da sua atuação conjunta.

Além do Santo Ofício, as visitas pastorais efetuadas pelos bispos foram já também objeto de importantes estudos sobre as transgressões no domínio da moral e da vigilância e disciplinamento das populações, embora haja ainda muito a fazer neste campo.4

Finalmente, nem a historiografia portuguesa, nem a brasileira5, prestaram ainda atenção suficiente ao funcionamento dos tribunais eclesiásticos enquanto instituições de vigilância e disciplinamento social no que toca às imbricações entre o sagrado e o profano. Aquela que foi durante muitos anos a única obra de fôlego consagrada ao estudo da Igreja em Portugal, da autoria de ­Fortunato de Almeida, não se debruçou sobre o funcionamento das estruturas do governo episcopal, nem mencionou, tão pouco, a existência dos vários tribunais diocesanos (Almeida, 1986 [1910-1928]). Mais recentemente (2000), a História Religiosa de Portugal, sob a direção de Carlos Moreira de Azevedo, contém apenas uma síntese da autoria de José Pedro Paiva, num capítulo dedicado às dioceses e à organização eclesiástica, em que o autor traça uma importante visão de como funcionavam a burocracia e os aparelhos da administração diocesana, resumindo aqui algumas das ideias que figuraram num outro artigo da sua autoria publicado na revista Lusitania Sacra, no qual elegeu como espaço de análise a diocese de Coimbra (Paiva, 1991; 2000b). Os tribunais eclesiásticos voltam a ser alvo de análise num artigo da autoria de José Silva (2001) publicado no Dicionário de História Religiosa de Portugal, o qual além de muito generalista contém algumas imprecisões. Também ­António Manuel Hespanha (1992, pp. 43-44 e 56-57) na sua obra sobre o Poder e as Instituições no Antigo Regime traça uma síntese analítica sobre a jurisdição eclesiástica, vista sob o prisma de outra área do conhecimento, o direito. A única monografia especialmente dedicada à análise de um Auditório Eclesiástico apareceu em 2003 pela mão de Ana Trindade e Dulce ­Teixeira. Centra-se no Regimento do Auditório do Funchal e nalguns processos existentes no espólio documental daquele tribunal (Trindade e Teixeira, 2003).

Acrescem a estes estudos o artigo da autoria de João Rocha Nunes, onde se analisa a atividade do Auditório Eclesiástico de Viseu no período compreendido entre 1684 e 1689, através de um livro da Câmara Eclesiástica com o registo de sumários das sentenças aplicadas nesse mesmo período. Trata-se de uma análise monográfica pioneira que permite entender algumas das principais linhas de atuação deste importante órgão eclesiástico, mas que deixa em aberto o tratamento de outras questões, que a escassez de documentação não permite aflorar (Nunes, 2006). Um outro artigo (Gouveia, 2009), no qual analiso a devassa ordenada em 1741 por D. Miguel da Anunciação ao tribunal diocesano de Coimbra, permite mostrar que esses órgãos judiciais possuíam mecanismos de disciplina interna que se destinavam a expurgá-los de eventuais ilegalidades e corrupção. Finalmente, deve ainda ser mencionado um artigo de Federico Palomo (1995) no qual se reconstituem alguns factos sobre o funcionamento da justiça eclesiástica no arcebispado de Évora.

São ainda muitos os aspetos que se desconhecem acerca do funcionamento dos auditórios eclesiásticos luso-americanos, entre os quais as estratégias de ação e respetivos resultados, os perfis e competências dos agentes, o tipo de delitos mais reprimidos, a tramitação processual, a sustentação económica dos tribunais, as relações entre eles e outras instâncias judiciais, o impacto nos comportamentos da cristandade. Da mesma forma, não existe até ao momento nenhuma monografia sobre a atuação específica de um auditório português num período longo, nem estudos comparativos entre esses tribunais portugueses e os do império, ou de outros reinos europeus.

Relativamente à atuação concreta dos tribunais eclesiásticos nos reinos espanhóis e respetivo império americano, no que respeita ao controlo da moral sexual não heresiarca, escasseiam tanto os estudos mais gerais, sobre toda a sociedade, como os específicos, sobre a dimensão das transgressões eclesiásticas (excetuam-se Muñoz, 1992; Tomás y Valiente, et al., 1990; Pérez, et al., 1983; Montes, 1996; Candau, 1993 e 2004). Os únicos estudos espanhóis que denotam uma perspetiva ampla, e utilizam o conceito de disciplinamento social, são aqueles cujo objeto de análise é a sociedade civil (Movellán, 1997; 2002; 2004).

Em Itália muito pouco se tem escrito acerca da mesma matéria. Destaco o livro de Oscar di Simplicio (1994), no qual dedica três importantes capítulos aos comportamentos clericais em Siena e aos mecanismos existentes para os reprimir.

 

TRENTO E A REFORMA DO CLERO: ESTRATÉGIAS E IMPACTO

 

José Sebastião da Silva Dias (1960, pp. 33-92) foi um dos primeiros a notar que na primeira metade de Quinhentos a cristandade estava corrompida na sua cabeça e decadente nos seus membros. Que a situação do clero, tanto masculino, como feminino, não era na generalidade brilhante, no mesmo período, reconhece-o também José Pedro Paiva (2000c, pp. 201-237), explicando que tal se devia, em parte, à deficiente formação cultural e ausência de vocação religiosa de boa parte do corpo eclesiástico de algumas congregações. O quadro não é muito diferente no que diz respeito aos territórios italianos e espanhóis, no mesmo período cronológico (Boer, 2001; Greco, 1997, pp. 45-113; Cárcel, 1980, pp. 281-282; Lebrun, 1990, pp. 78-80).

Sobre algumas das medidas precoces adotadas no sentido de regrar o estado do clero e da sociedade, debruçaram-se alguns autores como Silva Dias (1960, pp. 67-92), Franquelim Neiva Soares (s.d., pp. 33-93) e mais recentemente José Pedro Paiva (2005, pp. 225-253; 2007b, pp. 127-174; 2009, pp. 7-42), Federico Palomo (2006, pp. 21-42, 68-90), Guiseppe Marcocci (2003, pp. 83-84) e Angelo Turchini (1994, pp. 225-256). Foi porém no Concílio de Trento que se concebeu o maior corpo de medidas relativas aos costumes e instrução do clero, assim como à correta administração dos sacramentos e à eficácia do programa de catequização. Neste contexto, a questão da profanação dos sacramentos foi uma das matérias afloradas com especial atenção.6

Os clérigos imorais que profanavam importantes sacramentos como o da confissão passaram a ser conotados com as ideias reformistas, justificando a intromissão da Inquisição no seu disciplinamento. Tal afirmação jurisdicional do Santo Ofício português, concretamente no caso da solicitação, ocorreu no quadro da valorização dos sacramentos, protagonizada pelo espírito contra-reformista católico, que o procurou defender das mordazes críticas luteranas e o reafirmou como caminho da salvação, apostando na sua eficácia pedagógica para promover em moldes católicos a grande reforma de costumes de que a cristandade necessitava. Ocorreu ainda num contexto de luta contra a promiscuidade do clero, no âmbito de um projeto disciplinar mais vasto, que compreendia um esforço concertado de várias instituições religiosas no estabelecimento de um código comum de conduta (Múgica, 2001, pp. 725-759; Boer, 2001, pp. 5-6, 39-42).

É nesta dialética de adoção de estratégias defensivas e ofensivas, com a mobilização do sacramento da penitência na conquista espiritual da sociedade, que a disciplina dos comportamentos deve ser perspetivada e estudada. A historiografia pôs a tónica no século XVI, particularmente na discussão das estratégias conciliares. Porém, não é menos importante prestar atenção ao seu impacto concreto no comportamento do clero nas centúrias que se seguiram (Gouveia, 2012), sobretudo tendo em consideração que esse foi um período de reconhecida hipertrofia e heterogeneidade desse corpo (Olival et al., 2003; Paiva, 2000c).

Sendo ainda escassos os estudos sobre os comportamentos luxuriosos do clero e sobre as estratégias utilizadas para os corrigir, não será de estranhar que os trabalhos que abordem comparativamente a questão, tomando como análise territórios distintos como uma metrópole e uma colónia, ou colónias de metrópoles distintas, sejam praticamente inexistentes. No que respeita aos delitos do foro inquisitorial, os estudos existentes sobre os comportamentos clericais centraram-se quase só no delito de solicitação, e no caso do império português, foi apenas na sua vertente atlântica que esta foi estudada.7

O delito de molinosismo, em que incorriam também alguns sacerdotes, foi alvo de um tratamento sistemático por parte de Pedro Vilas Boas Tavares (1993, pp. 187-204; 1994, pp. 157-183; 1995, pp. 203-240; 2005).8 A bestialidade, delito cometido por leigos, mas também por clérigos, ainda não foi estudada. Quanto ao crime de sodomia, nem sempre tem sido tratado numa perspetiva crítico-interpretativa rigorosa. Aqueles que melhor a analisaram, fizeram-no em relação ao espaço colonial brasileiro (Mott, 2010, pp. 1450-1451; e Vainfas, 1997). No entanto, escasseiam estudos específicos sobre o clero sodomita.9

 

A LUXÚRIA HERESIARCA DO CLERO

 

ROMA CONTRA A SOLICITATIO AD TURPIA

 

A condição fundamental para a instauração de um processo contra o delito de solicitação para atos torpes no decurso ou nos atos envolventes à administração do sacramento da confissão era a existência na Mesa do Santo Ofício de mais de uma denúncia contra o mesmo acusado.10 Orais ou escritas, iam sendo apensas nos Cadernos dos Solicitantes pelo promotor, que delas fazia um sumário onde resumia os dados relativos a cada solicitante. Caso fossem efetuadas de forma presencial, pelo solicitante, pelas vítimas, ou por outros delatores, o promotor escrevia ipsis verbis o relato do(s) acusante(s). Se fossem feitas por carta, anexava-a ao sumário. Estes cadernos são livros muito volumosos e constituem uma fonte imprescindível para o estudo deste delito.

 

 

 

 

 

 

Nos quadros apresentados, percebe-se, em primeiro lugar, que a vigilância e disciplinamento protagonizados pela Inquisição foi muito superior na primeira metade do século XVIII. Fica também claro que na colónia brasileira, um território com estruturas judiciais escassas face à extensão do seu território, essa ação foi inferior à verificada no reino. Há que considerar ainda que o Brasil tinha um menor número de clérigos, e que o tipo de mulheres presente nesse espaço lhes permitia ter contacto com elas por outras vias sem ser necessário profanar o sacramento. A isto acrescia o facto de serem raros os confessionários no Brasil, obrigando a que a confissão fosse administrada noutros locais, sujeitos a uma maior visibilidade, como se colhe da denúncia fulminada contra José de Oliveira, vigário de Itaverava “[…] não usa de confissionario nem nesta matriz os há […] no tempo da Quaresma algumas vezes uzava de huma taboinha com seu rallo que fazia as vezes do confissionario […]”11.

Foi diminuto o número de clérigos acusados de solicitação, apenas 260. Destes processos, só 198 foram concluídos, ou porque havia réus que fugiam, ou porque faleciam no decurso do processo, ou ainda porque eram absolvidos por outras instâncias superiores.12 Na Inquisição de Lisboa, entre 1640 e 1750, apenas 14,3% das denúncias relativas à metrópole e às ilhas do Atlântico deram origem a processos; no tribunal de Coimbra somente 8,3% das acusações resultaram em processos judiciais, e no Santo Ofício de Évora a percentagem foi ainda mais diminuta, 2,7%. No que diz respeito ao Brasil, unicamente 14,3% das denúncias originaram processos. No cômputo geral das denúncias que no mesmo período chegaram à Inquisição portuguesa, apenas 9,6% tiveram seguimento judicial.

Atente-se nas tendências evolutivas e regressivas da vigilância e disciplinamento. Evidencia a Figura 1 que o índice de instauração de processos acompanhou, com algumas pequenas exceções, a evolução da estatística das denúncias, as quais experimentaram um ritmo evolutivo gradual, interrompido por dois pronunciados picos, no último decénio do século XVII e na década de 30 do século XVIII.

 

 

O maior ou menor volume de denúncias dependia de mecanismos de apuramento das mesmas. Presume-se, portanto, que a tendência para o aumento das denúncias, visível no gráfico, mas sem correspondência notável no índice de processos, resultou de uma maior afinação dos mecanismos de vigilância e disciplinamento, numa altura em que existiam já os recursos jurídico-legais, físicos e humanos necessários para empreender uma ação efetiva.

A estatística da vigilância e da repressão sobre a solicitação acompanhava a evolução das contingências da própria história da Inquisição, o que é particularmente visível em dois períodos. O primeiro, é o que se alonga pelos anos que se seguem à suspensão papal da Inquisição (1674-1681), durante o qual começam a emergir sinais de decadência do poderio e influência do Santo Ofício, verificando-se um descréscimo da repressão sobre as causas ditas “maiores” que atraíam o grosso da atenção inquisitorial e simultaneamente um novo fulgor na perseguição das causas ditas “menores”, depois do restabelecimento das relações com a Santa Sé. No quinquénio que se segue ao de 1680-1684 o número de denúncias sobe de 80 para 117 e o número de processos ascende de 7 para 17, conhecendo ambos um considerável aumento, apenas refreado no ano de 1700.

O segundo, é o período que se estende a partir de 1745, e corresponde a um drástico declínio do número de denúncias, que não suscitou igual estatística no número de processos. Nos finais da primeira metade do século XVIII, a questão do sigilismo, neologismo utilizado para designar a quebra do segredo da confissão, opôs a Inquisição a um conjunto de bispos jacobeus protegidos por frei Gaspar da Encarnação.13 O cerne do dissídio residia na questão de determinados confessores sigilistas, presumivelmente estimulados pela jacobeia, não absolverem os penitentes que em confissão não revelassem os cúmplices dos delitos, negando-lhes licença para usar dessa informação. O confronto foi crispado até pelo menos 1747, ano em se registou pela primeira vez, e a título definitivo, a cisão entre os baluartes da fé e da disciplina, cuja ação se tinha pautado até esse momento por uma convivência muito estreita (Paiva, 2011, pp. 386-429). Das determinações pontifícias exaradas sobre a matéria colhia-se que à Inquisição cabia julgar os convictos da licitude do sigilismo e aos bispos aqueles que quebrassem o sigilo sacramental. De 1740-1744 para 1745-1750 o número de denúncias decresceu vertiginosamente, de 308 para 189, enquanto o número de processos diminuiu ligeiramente de 29 para 23. Parece evidente que os confessores, agentes que mais ativamente denunciavam o delito de solicitação, se retraíram de o fazer neste período pela polémica causada em torno do sigilismo que, eventualmente, poderia implicá-los também, ao passo que a Inquisição, munida de um arsenal de prelados, manteve os seus indíces de repressão, reiterando a sua preponderância nas matérias relacionadas com a confissão que inspiravam suspeitas de heresia.

Atente-se agora nas penas que mais frequentemente foram aplicadas. Os acórdãos inquisitoriais contra solicitantes congregavam várias das penas exaradas no quadro 6. Uma vez que eram aplicadas de forma cumulativa, a diversidade e a duração das mesmas, ao arbítrio dos inquisidores, eram os fatores que ditavam o maior ou menor peso das sentenças. O tipo de sanção mais aplicado foi a privação do poder de confessar, por determinado tempo, ou a título perpétuo. As consequências que essa medida acarretava no campo económico dos processados eram penosas e extravasavam o fator social de desonra, pois ­impossibilitavam o clérigo de concorrer a um curato ou a uma paróquia de melhores rendimentos. As penitências espirituais eram nalguns casos diárias e variadas, e destinavam-se a revigorar a fé do presumível heresiarca por intermédio da instrução espiritual, pelo que a quase totalidade das sentenças previa esta sanção.

 

 

O degredo temporário foi outro dos recursos frequentemente usado para reprimir os clérigos profanadores do sacramento. Obrigava-os a fixar residência noutra paróquia ou cenóbio, cuja distância do local da prática do delito ficava ao arbítrio dos inquisidores. Aplicado de forma perpétua, era pena gravosa porquanto obrigava o processado a passar o resto da sua vida em determinado território onde não tinha nem bens, nem família. Importa sublinhar, neste contexto, que nunca fez parte dos objetivos do Santo Ofício inundar o Brasil colonial de clérigos condenados. Nem aí lhes era permitido, sublinhe-se também, continuar uma vida de delinquência. Não só o degredo mais frequentemente aplicado era o temporário, como não tinha maioritariamente como destino as possessões coloniais. Nos casos em que se deputou degredo para as possessões ultramarinas portuguesas, a África foi também um destino escolhido de modo frequente.14 A tudo isto acresce que se os condenados no reino eram degredados para territórios do império, os sentenciados desses territórios eram também degredados para a metrópole, nomeadamente para o Algarve. Foram apenas seis os processados a quem foi cominado degredo para fora dos limites do reino, três para o Brasil, a título temporário15, dois para S. Tomé e Princípe, e outro para Mazagão, estes três a título perpétuo.16 Quanto aos processos relativos a solicitantes do Brasil, apenas dois obrigaram os réus a cumprir degredo fora da colónia, ambos no Algarve.17 Esta região sul do reino, mais erma e sujeita a ataques corsários, era um dos destinos frequentes para os degredados. Dos 24 processos cuja sentença determinou um local específico do reino para o cumprimento do degredo, 8, isto é, 33%, obrigavam a que o mesmo fosse cumprido nesta região. O objetivo de estancar a disseminação da luxúria clerical, como se percebe, tanto estava presente no reino como no império.

A inibição de o réu entrar no local onde cometera o delito, temporariamente ou ad eternum era também frequente. Pretendia-se vedar-lhe o contacto com as vítimas ou cúmplices do delito, possibilitar-lhe o início de uma vida nova, fazer esmorecer ou dissipar na paróquia a memória e escândalo da ocorrência, prevenir uma eventual reincidência e impossibilitar ações de vingança. A suspensão do exercício das ordens, assim como a inibição de voz ativa e passiva, sob a forma temporária ou perpétua, foi também um severo castigo e uma vigorosa limitação para os clérigos processados. O cárcere era quase exclusivamente aplicado aos regulares e, em regra, acompanhado de jejuns e instrução ordinária na fé. A privação de cargos e a abstenção perpétua do exercício de qualquer ofício, dignidade ou benefício, foram aplicadas de forma pouco frequente.

 

ROMA CONTRA SODOMA E GOMORRA: O PECADO NEFANDO

 

Ultrapassada a fase inicial de indefinição jurisdicional entre o Juízo Eclesiástico e a Inquisição, o período cronológico deste estudo foi por excelência o da expansão da ação persecutória sobre o delito de sodomia. Apesar de intensa, a atividade do Santo Ofício no terreno da sodomia foi menos sanguinária do que a empreendida pelos tribunais seus congéneres noutros espaços da cristandade. A sodomia era considerada um pecado horroroso e dele se dizia que parecia feio até aos olhos do Demónio.18

Segundo Luis Mott (2010, pp. 1450-1451), durante os quase três séculos de existência da Inquisição foram denunciados 4419 sodomitas, dos quais apenas cerca de cinco centenas foram processados, sendo a Inquisição de ­Lisboa aquela que mais atuou no terreno do pecado nefando, ao ser responsável por 80% dos processos instaurados. O maior volume de processos no tribunal lisboeta está relacionado com a ação que desenvolveu nos territórios do império. Que dizer do clero envolvido nessa trama persecutória? Atente-se nos valores apresentados nos quadros seguintes, relativos às denúncias e processos por sodomia na inquisição de Évora, Coimbra e Lisboa no período em análise.

De acordo com os quadros apresentados (quadros 7, 8 e 9), o clero incorreu menos no delito de sodomia do que no de solicitação. O Tribunal de Lisboa foi o que apresentou os índices mais elevados de repressão. No que concerne às denúncias, o Santo Ofício de Évora foi o que tomou conhecimento de menos ocorrências, seguindo-se o de Coimbra. O de Lisboa, no período compreendido entre 1640 e 1654, revelou um número maior de denúncias do que as dos seus congéneres em 110 anos.

 

 

 

 

Os casos registados mais comuns são relativos à coabitação sexual entre clérigos.19 À semelhança de outros delitos praticados por clérigos, nem sempre os relatos de sodomia denunciam uma atitude de cumplicidade entre o agente ativo e passivo, ocorrendo situações de violência física ou psicológica sobre o segundo. Assim procedeu, entre outros, Jerónimo Quaresma, abade da igreja de Penas Juntas, Bragança e morador no colégio dos Lóios em Coimbra, acusado em 14 de novembro de 1642 por ter violentado João Pinto, moço de 14 anos, ameaçando-o com uma espada e uma espingarda.20

Evidentemente que pelo facto de os clérigos serem indivíduos a quem se exigia o bom exemplo, a sodomia foi um crime que mereceu muita atenção às instituições de vigilância e disciplinamento. Pelo contacto permanente que mantinham com a população, temia-se que tais práticas, quando se somava a apologia das mesmas, pudessem alterar o entendimento que sobre elas os fiéis tinham. Eco disso foi a denúncia que chegou ao tribunal de Coimbra contra João de Mendonça, clérigo em Vila do Conde: “[…] desavergonhadamente vai semeando sizania e doutrina sodomita entre moços e gente de pouca idade, lugar onde tem mais facilidade pegua e lanssa raízes […]”21.

Se na origem de pecados como o “nefando” era possível presumir uma conceção heresiarca dos protagonistas, na medida em que se pressupunha que pusessem intencionalmente em causa uma certa ordem instaurada pelo Criador, as situações em que juntavam a teoria à prática eram indubitavelmente de mais fácil conotação com a heresia. A apologia do delito era o mais claro indício da presença de heresia e nem sempre os clérigos sodomitas se continham na enunciação do seu pensamento acerca da matéria.22 Tal argumentação poderia colher adeptos entre os agentes ativos e as cúmplices a quem caberia arcar com o peso de uma gravidez indesejada e a consequente desonra. Isso mesmo se infere do relato de D. Aníbal Francisco de Cassia, que sem fazer caso da ignomínia a que votava a instituição que representava, decidiu contar algumas das suas façanhas libidinosas ocorridas numa estalagem de Coimbra onde pernoitou:

 

[…] a dita mulher lhe pegava no membro veril e por algumas vezes o meteo no seo vazo traceiro, dizendo-lhe o mesmo clerigo que entendia que ella fazia aquillo por não imprenhar […] que alguns cardeaes em Roma cometião o peccado de sedomia com alguns rapases a quem chamavão bardaches […].23

 

Dois meses depois o caso foi delatado à Inquisição e teve seguimento judicial.24

Alguns clérigos optavam por práticas sodomíticas com receio de engravidarem as suas vítimas/cúmplices, mas também pelo facto de elas estarem indisponíveis para a prática da cópula natural, isto é, menstruadas ou enfermas. Foi esse motivo que levou o beneditino frei Jerónimo da Assunção a incorrer em delito com Antónia Vieira, mulher casada, moradora na cidade do Porto, pelo qual foi acusado em 1685.25

Apesar de em meados do século XVII a Inquisição ter perdido alçada sobre as situações de lesbianismo, continuou a avocar legalmente as situações de “sodomia imperfeita” que compreendiam um vasto leque de situações entre as quais se encontravam a cópula anal homo ou heterossexual com ejaculação fora do “vaso traseiro”. Porém, muitas das denúncias arquivadas não esclarecem se os casos relatados diziam respeito a “sodomia perfeita” ou “imperfeita”.

Apesar de a cópula entre homens e bestas ser formalmente um delito de bestialidade que, em Portugal, não competia à Inquisição julgar, as denúncias remetidas a esse tribunal de casos em que se relata a penetração anal do animal com derramamento de semente intra-vaso, faz-nos presumir que nalgumas situações houve dúvidas quanto à categorização das práticas em função dos detalhes e circunstâncias. Assim parece ter acontecido em casos como o do napolitano Gracio Salsano, acusado em 12 de março de 1642 pelo cura de Angueja, depois de uma Maria Manuel o ter visto numa estrebaria com a sua jumenta:

 

[…] o ditto Graceo estava posto en sima da manjadoura da estrebaria e a jumenta virada com as anquas pera elle e vio também que o dito Graceo estava cometendo com a ditta jumenta o pequado de sodomia […].26

 

Pode-se concluir que também no terreno da sodomia os mecanismos de vigilância e disciplinamento atuaram procurando corrigir os abusos morais de determinados eclesiásticos. O teor dos requerimentos dos promotores da justiça para que com todo o rigor se desse seguimento aos processos, designando o delito de “abominável vício” e os seus autores de “infames sumittigos”, é a este título bastante elucidativo. E quando as suas proposições tinham deferimento, percebe-se que as sentenças coincidiam com o peso atribuído a este tipo de crime.

O Regimento de 1640 era taxativo quanto às sanções que se deviam aplicar. Porém, os inquisidores agiam com grande arbitrariedade, pois eram também díspares os casos que lhes chegavam. A combinação de penas ditava um maior ou menor rigor das sentenças. O maior indício de que eram rigorosas são os pedidos de comutação que, em regra, aconteciam durante o cumprimento das penas, dando conta, através de reiteradas lamúrias, do sofrimento dos réus. A percentagem das sentenças comutadas foi ligeiramente mais alta no caso dos sodomitas do que no dos solicitantes.

Enquanto os profanadores do sacramento da confissão gozavam de um estatuto privilegiado durante as fases processuais e, inclusive, em relação ao tipo de sentenças cominadas, os clérigos sodomitas estavam sujeitos a um ­tratamento que pouco diferia do imposto aos réus leigos. Viam, por exemplo, as suas ordens serem suspensas a título perpétuo com mais frequência do que os solicitantes, a quem se impunha amiúde a suspensão temporária por ter anexa uma inibição de confessar ad eternum.27 O confisco de bens, os jejuns, o açoitamento público e o relaxamento ao braço secular, ainda que aplicados com menos frequência, colocam os acórdãos inquisitoriais contra clérigos sodomitas num patamar mais alto de rigor, pois não há eco de que alguma vez tenham sido aplicadas aos solicitantes.

 

 

Ainda que gozassem de alguns privilégios face aos demais réus, apenas tendentes a resguardar a imagem da Igreja, poder-se-á concluir que a Inquisição tratou os clérigos sodomitas com rigor, não se percebendo qualquer forma diferenciada de tratamento entre os casos relativos à orla ocidental ou oriental do Atlântico.28

 

A LUXÚRIA NÃO HERESIARCA NOS BISPADOS DE COIMBRA, MARANHÃO E CAPITANIA DE MINAS

EMENDAR COSTUMES E DESTERRAR VÍCIOS: A AÇÃO DAS VISITAS PASTORAIS

 

As visitas pastorais eram o principal instrumento de que os antístites dispunham para um cabal exercício de vigilância nas suas dioceses (Paiva, 2011, pp. 290-291). Não se detetam diferenças de monta em relação à maneira como nos vários territórios do Atlântico português o discurso montado requeria um mesmo modelo de visita pastoral. No que concerne à prática, aferir-se-ão os resultados quantitativos da ação desse mecanismo, elegendo unidades espaciais com fundos documentais que possibilitam este tipo de análise, isto é, o bispado de Coimbra e a capitania de Minas Gerais.

Eram profundamente distintos os espaços em análise. O primeiro é um dos mais importantes bispados do Portugal moderno, bem estruturado sob o ponto de vista da organização sub-diocesana, sede de um dos três tribunais distritais da Inquisição Portuguesa, e centro por excelência da formação dos quadros da Igreja. Era um território com um volume de eclesiásticos considerável e presumivelmente com uma vigilância apertada sobre o seu comportamento moral. O segundo, no período em análise, foi um dos espaços brasileiros que mais concentrou a atenção e a presença de indivíduos e também, por consequência, de clérigos. Seguem-se os quadros da distribuição do número de denúncias pelos vários territórios referidos.

 

 

Como facilmente se percebe, no bispado de Coimbra foi incomparavelmente maior o número de denúncias apuradas contra clérigos por delitos relacionados com a luxúria, comparativamente à capitania de Minas. Na diocese do Mondego registaram-se 862 casos e na região aurífera brasileira apenas 187. Os territórios mais densamente povoados e aqueles onde o número de paróquias era também maior foram os que registaram mais delações. Por conseguinte, o arcediagado do Vouga, aquele que tinha uma área mais extensa, e o mais elevado número de paróquias, 146, fazendo crer que o número de clérigos aí era maior, foi aquele onde se registaram mais ocorrências. Seguiu-se o de Seia, que tinha 123 paróquias; o de Penela, que contava com 92 paróquias, e finalmente a cidade de Coimbra que estava repartida em 8 paróquias (­Carvalho et al., 1989, pp.175-267). Na capitania mineira observa-se o mesmo tipo de lógica distributiva. As comarcas de Ribeirão do Carmo/Ouro Preto e Rio das Velhas, zonas de mineração por excelência, foram aquelas que concentraram os maiores quantitativos de denúncias, porquanto eram as que tinham os maiores quantitativos populacionais e, presume-se, de clérigos.

O panorama de 6474 denúncias contra clérigos durante um século, independentemente do crime e incluindo as respetivas reincidências, autoriza a conjeturar que o clero que exercia o seu ministério no bispado de Coimbra não passou à margem do fenómeno imoral. Recorde-se, aqui, as 2458 denúncias de solicitação apuradas no espaço luso-americano entre 1640 e 1750. ­Evidentemente que esse número fica aquém das 3068 denúncias relativas a delitos morais no campo da luxúria, na sua esmagadora maioria relativos a amancebamentos e concubinatos, apuradas apenas no bispado de Coimbra no mesmo período. Mais aquém fica se o número de referência incluir as reincidências, o qual faz ascender as denúncias para 4326. Trata-se de uma estatística relativa a apenas uma das 13 circunscrições eclesiásticas em que o reino se encontrava dividido durante o período em estudo. Muito embora não existam dados disponíveis para as restantes, é possível presumir que na metrópole o número de ocorrências relacionadas com concubinatos e amancebamentos fosse de longe mais alto do que as ocorrências de solicitação, até porque, note-se, as denúncias concernentes a esse delito provenientes do bispado de Coimbra não excediam as 201. O mesmo se pode dizer da capitania de Minas, cujo número de denúncias por comportamentos luxuriosos não heresiarcas do clero ultrapassou de forma expressiva as 114 denúncias de solicitação efetuadas em todo o Brasil. Daí se conclui que a luxúria clerical teve muito mais expressão em delitos como os concubinatos e amancebamentos do que em crimes como a solicitação ou a sodomia. Estes dados permitem-nos ainda concluir que, tendo em conta que o número de delitos relacionados com a moral sexual foi incomparavelmente maior do que os de outra natureza, considerando a frequência com que os acusados eram indiciados da sua prática com mais do que uma mulher, e tendo em conta que eles pressupunham a aceitação reiterada da prática luxuriosa, esporádica ou pontual de uma cúmplice, era fácil aos clérigos o contacto carnal com as mulheres.

De acordo com os estudos existentes sobre o reino havia um predomínio dos delitos contra a moral sexual católica (Paiva, 1991, pp. 71-110; Leal, 2004, pp. 414-415, 451). O quadro apresentado relativo à capitania de Minas, aponta também para uma predominância das infrações luxuriosas no quadro da totalidade de delitos cometidos pelo clero na colónia brasileira. Eram sobretudo clérigos escandalosos que viviam de “portas adentro” com mulheres pardas, com quem tinham filhos, e não tendo pejo em mostrar as suas cúmplices.29 Muitos deles, além da luxúria, acumulavam outras falhas no seu ministério, como o vigário de Pitanga, “embrulhador e alicerce de todas as duvidas e embrulhadas” que havia na sua paróquia, e do seu coadjutor António Pontes, chefe de uma pequena milícia armada de mulatos que lhe faziam os mandados.30

 

OS LADRÕES DAS HONRAS E A REPRESSÃO DAS DESONRAS: A AÇÃO DOS AUDITÓRIOS ECLESIÁSTICOS

 

Em 1712, Bento Freire de Abrantes, pároco da freguesia de S. Gião, bispado de Coimbra, foi pronunciado na visita pastoral por incesto e adultério com uma Maria, casada com Julião Marques, chegando a ser colocado em cativeiro. Persistiu no crime, e em 1730 foi pronunciado em 8.º lapso. A partir de então novos rumores asseveravam que andava amancebado com Águeda, solteira, filha da referida Maria, anteriormente referida: “[…] pario secretamente huma criança que não apareceu, que dizem ser do preditto padre”.31

Constava ainda que os pais da referida moça eram consentidores no pecado. Alexandre Alves, uma das testemunhas do amancebamento, não tinha dúvidas de que ele “hera ladrão das honras”. Ter-se-á presumido o mesmo no Auditório e instaurou-se-lhe um processo. O réu ainda apelou para a Relação de Braga, dizendo que tinha apresentado recurso alegando inimizades com os delatantes, mas o tribunal metropolita não foi ao encontro das suas pretensões.32

O processo citado é um dos poucos que subsistiram até aos dias de hoje. Devido à perda quase total da documentação emanada dos auditórios eclesiásticos em Portugal e no Brasil é possível reconstituir apenas em linhas gerais a sua atuação no campo da luxúria clerical, sendo impossível estimar com rigor o número de processos que instauraram. Não deixa de se perder, porém, a capacidade de se estabelecerem indicadores relativamente a uma correlação do volumoso número de denúncias com o número de processos e de se avaliar o grau de efetividade do disciplinamento. Uma vez que à margem de muitas das acusações exaradas nos livros de devassas, ou inclusive nas pronúncias dos culpados, eram apostas informações relativas ao cumprimento de penas, seria importante verificar se as causas, e quais, seguiam os trâmites judiciais. Do mesmo modo, dado que depois de determinada denúncia, os acusados eram confrontados com a admoestação de que seriam castigados com todo o rigor em caso de reincidência, seria importante avaliar quantos clérigos eram relapsos e que sanções lhes eram cominadas, isto é, conviria perceber se o disciplinamento aplicado pela máquina judicial diocesana era efetivo.

Não obstante as limitações de cariz documental enunciadas para responder cabalmente a tais linhas de pesquisa, o que se extrairá da análise da documentação compulsada será um mero indicador que não deixa de ser válido para a constituição de hipóteses na compreensão da atividade dos Auditórios no terreno dos comportamentos morais ilícitos do clero.33 Começar-se-á pelo Auditório Eclesiástico de Coimbra.

 

Quadro 13

 

 

Duas coisas são de realçar, desde logo. Em primeiro lugar, que o Auditório Eclesiástico de Coimbra entre 1696 e 1706 teve em mãos um volume significativo de causas para instruir e dar despacho. Em segundo lugar, o número de clérigos envolvidos nessas causas é, no cômputo geral, significativo. A percentagem de clérigos com causas pendentes nos dois períodos apresentados, correspondente a 17,7% no primeiro, e a 31,5% no segundo, é prova inequívoca de que os clérigos do bispado se viram envolvidos com frequência na justiça diocesana enquanto réus e autores, percebendo-se que a mesma agia quando acionada, ainda que não se saiba com que grau de rigor nem com que desfecho.

Sobre as transgressões que atentavam contra a moral sexual estabelecida, o quadro apresentado nada diz. Contudo, sabendo-se que entre os delitos cometidos pelo clero os dessa natureza eram os mais frequentes (Gouveia, 2012, pp. 285-291), e tendo em conta que do volume total de causas pendentes uma parte considerável envolvia clérigos, supõe-se que foram instruídos no Auditório vários processos contra clérigos luxuriosos, o que faz presumir que o juízo eclesiástico tivesse procurado regrar o comportamento moral dos clérigos da diocese. É difícil estabelecer correlações precisas entre o volume burocrático relativo às causas contra clérigos que pendiam no tribunal e os períodos cronológicos apresentados. A oscilação estatística entre as 197 causas referentes a 1696-1701 e as 791 relativas a 1702-1706 e ainda as 305 respeitantes ao ano de 1738 autorizam apenas a considerar que os clérigos figuram amiúde no cômputo de causas do Auditório, ora na posição de réu, ora na condição de autor, o que não deixa de evidenciar também uma ação expedita das instâncias judiciais próprias.

Quanto às sentenças pouco se sabe. Elas ficavam ao arbítrio dos julgadores e aumentavam de acordo com a gravidade das ocorrências e da sua recorrência. Há eco, nos poucos processos completos existentes, de que algumas das sanções eram pesadas, nomeadamente o degredo para as galés. Porém, como se sublinhou, a escassez documental não autoriza a concluir que assim fosse na maioria dos casos. Tal como se verificara na Inquisição, também nos Auditórios não se nota que o Brasil fosse um destino preferencial para o cumprimento desse tipo de pena, existindo outros casos de degredados para Angola e para a Ilha do Príncipe.34

Centremos agora a atenção no Auditório Eclesiástico do Maranhão. Tal como demonstrou Pollyanna Mendonça (2011b, pp. 2; 20), as denúncias apuradas não advinham apenas da sede do bispado, embora seja inegável que a maioria dos processos fosse proveniente de São Luís. No entanto, não deixa de ser surpreendente o domínio do poder episcopal na região sob sua jurisdição, malgrado a grande extensão do território e as longuíssimas vacâncias dos antístites.

É crível que o espólio atualmente existente, exarado no quadro acima apresentado, não dê conta da totalidade de documentos produzidos pelo Juízo Eclesiástico do Maranhão durante essa centúria. Os números apresentados são um mero indicador que aponta para uma máquina judicial atuante. Tal como no bispado de Coimbra, também no do Maranhão existia uma maior abundância de leigos do que de clérigos entre os envolvidos nas malhas da justiça diocesana. Evidentemente que esse volume de causas instruídas, durante uma centúria, não se aproxima sequer do total de causas pendentes no tribunal conimbricense.

 

 

 

O Auditório eclesiástico possuía não só um aparato burocrático ­solidamente constituído, como estava absolutamente inserido nas discussões jurídicas que se faziam na longínqua metrópole, já que, muitos dos agentes desse juízo, eram formados pela Universidade de Coimbra.35 Tal como no Maranhão, noutros territórios brasileiros, as máquinas judiciais diocesanas desenvolveram uma ação de vigilância e disciplinamento contra os clérigos residentes no teritório sob sua jurisdição. Assim foi na capitania de Minas.

Dos processos que na capitania de Minas foram instaurados entre 1720 e 1750, não se sabe quantos diziam respeito a questões criminais relativas à luxúria. Também não foi possível estimar, em relação a este território, a correlação entre o número de denúncias e o número de processos. Mas percebe-se que, no cômputo geral, a atividade efetiva dos juízos eclesiásticos superou a da Inquisição.

 

NOTAS CONCLUSIVAS

 

Do universo de processados no campo da luxúria heresiarca foram escassíssimos os casos daqueles que voltaram a ser denunciados.36 O mesmo poderá ser dito acerca das denúncias, constituindo verdadeiras exceções os casos daqueles que voltavam a cair nas malhas inquisitoriais. As acusações não “caíam em saco roto”. Eram registadas em cadernos onde ficavam arquivadas. Os réus eram então informados de que o seu nome constava do cadastro e de que a sua causa era arquivada à espera de novas provas que lhe acrescessem a culpa. Nessa altura, não haveria tanta margem para contemplações, e muito embora não fossem castigados com o rigor de um relapso, seriam sentenciados com mais facilidade e muito dificilmente seriam relevados. O Santo Ofício continuava, assim, a exercer o seu poder e controlo sobre o clero, disciplinando grande parte dos indiciados como solicitantes, através da admoestação administrada no momento da tomada de decisão da arquivação do processo.37 Presume-se assim que, em regra, as reprimendas surtissem efeito. O considerável volume de autodelações revela inequívocamente que os escrúpulos da consciência se fundavam mais no medo das consequências de uma segunda denúncia, do que propriamente no pejo das ações praticadas.

No que respeita ao Juízo eclesiástico, a percentagem de clérigos reincidentes no bispado de Coimbra e na capitania de Minas foi relativamente baixa, não chegando aos 23% e 14%, respetivamente. A percentagem alta de não reincidentes, 77,4% no bispado de Coimbra e 86,6% na capitania de Minas, aponta para uma eficiência da ação de vigilância e disciplinamento empreendida. Porém, o Juízo eclesiástico tinha um entendimento diferente da Inquisição acerca da “reincidência”, considerando que esta acontecia quando o delito era cometido com um mesmo cúmplice, ao passo que o Santo Ofício considerava reincidente o clérigo que voltasse a cometer o delito, independentemente de ter recorrido ao mesmo ou a outros cúmplices.

Significa isto duas coisas. Uma vez que os clérigos eram processados quase exclusivamente quando eram reincidentes, ao não serem considerados relapsos pela prática de ações luxuriosas desde que cometidas com cúmplices diferentes, podiam viver uma vida inteira no pecado sem nunca serem processados. Podiam também manter comportamentos desregrados beneficiando da leveza das multas pecuniárias previstas para aqueles que se considerava terem incorrido apenas em primeiro lapso. Despender meia dúzia de réis e mudar anualmente de cúmplice era, neste contexto, uma maneira eficaz de prolongar um comportamento luxurioso durante diversos anos e sem grande incómodo.

No Algarve, 25% dos acusados não foram condenados, e só 3% receberam castigos graves como prisão e degredo. Na diocese do Funchal apenas 55% das delações mereceram punição com a aplicação de multas. Em Mariana apenas 20% dos denunciados foram condenados. A tendência geral das acusações nos bispados de Coimbra, Viseu e em várias circunscrições de visita existentes no arcebispado de Braga, Açores e concelho da Lourinhã, foi a mesma (Paiva, 2011, pp. 278-285). No Maranhão, ainda que não se saiba qual a percentagem dos denunciados que foram processados, sabe-se que foram fulminados 168 processos contra clérigos, dos quais apenas uma minoria, 36, tinham sido instaurados por reincidência (Mendonça, 2011a). Ainda que alguns desses processos por relapsia mostrem que alguns clérigos persistiam três, quatro e até cinco vezes nos crimes pelos quais haviam sido processados, a verdade é que não deixa de ser baixa a estatística da reincidência, e baixo também o índice de incorrigíveis, não obstante, em regra, mesmo em relação a estes últimos casos mais graves, as penas não serem pesadas.

A maior parte dos clérigos do bispado de Coimbra e da capitania de Minas que reincidiram, 694 e 22, respetivamente, fizeram-no uma vez, isto é, incorreram formalmente em ações luxuriosas apenas duas vezes. No bispado de Coimbra essa maioria, traduzida por 61,2% da totalidade de reincidências, não foi tão expressiva como na capitania de Minas, onde os clérigos reincidentes apenas uma vez representaram 90,9% do total de reincidentes e não houve situações de mais do que duas reincidências. Significa isto que no bispado de Coimbra, e sobretudo na capitania de Minas, as acusações e respetivas admoestações em primeiro lapso serviram de emenda aos eclesiásticos luxuriosos tendo portanto impacto nos seus comportamentos ao coibi-los de ulteriores ações delinquentes, ou, em alternativa, que os clérigos souberam aproveitar a conceção de reincidência do Juízo eclesiástico para assim ludibriar o sistema, trocando de cúmplice para evitarem a indiciação em segundo lapso.

Preconizavam os códigos normativos dos auditórios que a prática reiterada do lapso aumentava a sua gravidade, podendo dar origem a um processo judicial quando os réus incorriam em mais de três lapsos. Para esses casos, em que seriam tidos como convictos na continuação do pecado, prescreviam um agravamento substancial das penas pecuniárias (muito mais elevadas do que aquelas que estavam previstas para os leigos) e a possibilidade de prisão, degredo e excomunhão, cuja aplicação ficava ao arbítrio dos juízes do Tribunal. Porém, as fontes não evidenciam senão uma fraca ressonância empírica deste género de condenações, com vários clérigos a incorrerem em comportamentos luxuriosos com a mesma cúmplice mais de três vezes, sem sobre eles se exercer uma ação corretiva. Registaram-se casos de clérigos que ultrapassaram o limiar dos dez lapsos, significando isso a manutenção de uma vida marital explícita durante uma década, tão só merecedora de condenações pecuniárias anuais, aplicadas por ocasião das inspeções visitacionais diocesanas.38 Daqui se infere uma discrepância entre as penas previstas e as aplicadas.39

Poder-se-á dizer que a vertente mais persuasiva, traduzida na admoestação, em detrimento da punitiva, vertida em penas pecuniárias leves, facilitou a persistência da luxúria clerical. Conclui-se, ainda, que existia uma maior fragilidade e falibilidade do processo de vigilância e disciplinamento empreendido pelas instâncias judiciais diocesanas comparativamente ao exercido pelo Tribunal do Santo Ofício da Inquisição.

No entanto, não parece poder pôr-se em causa que tanto o Juízo eclesiástico como o Tribunal do Santo Ofício puseram em marcha uma ação vigorosa de vigilância que lhes permitiu exercer algum domínio sobre o clero. Ainda que no espólio documental compulsado sobressaia a ação do Santo Ofício como mais eficaz, nenhuma dessas instâncias judiciais conseguiu erradicar em absoluto situações de prevaricação no campo da luxúria.

 

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Recebido a 26-06-2013. Aceite para publicação a 26-11-2014.

 

NOTAS

1 Este estudo foi produzido no âmbito do projeto de pós-doutoramento desenvolvido no CHAM – Universidade Nova de Lisboa e CHSC – Universidade de Coimbra com bolsa da FCT.

2 Sobre algumas das ações anunciadoras da renovação que viria a consumar-se em Trento v. Paiva (2007b, pp. 127-174).

3 A luxúria é, para a doutrina católica, um dos sete pecados mortais. Vários pensadores, teóricos e pregadores do período moderno se preocuparam em debater e refletir sobre ele. De acordo com o célebre manual de confessores e penitentes do canonista Martim Azpilcueta Navarro, a luxúria tinha vários rostos e era um vício capital ou cardeal porque dele nasciam oito filhas infernais, segundo as opiniões de S. Gregório e S. Tomás: “[…] luxúria é vício da alma que a inclina a querer o deleite desordenado da cópula carnal ou dos preparatórios dela e sua obra e ato é querer o desejo ou gozo de tal deleite”. O manual de Larraga, por exemplo, muito usado na Península Ibérica, enumerava seis formas naturais e quatro contranaturais (práticas que se afastavam do fim reprodutor da sexualidade) de luxúria. As naturais eram a fornicação simples (entre solteiros e de diferente sexo), adultério, estupro, incesto, rapto e sacrilégio (quebra dos votos de castidade). As contranatura eram a sodomia, a bestialidade e a diversa corporum positio. As molícies eram também luxúria, as quais, de acordo com a teologia moral, consistiam num vasto elenco de pecados contranatura que não implicassem coito anal ou vaginal, a exemplo da masturbação solitária ou a dois, da felação e da cunilíngua. No também célebre Catecismo de Bartolomeu dos Mártires, assim como na Conspiração Universal, sermonário do franciscano Pedro Correia, e no Desengano de Pecadores, da autoria de Alexandre Perrier, a luxúria é ­designada de sensualidade, vocábulo que aparece ainda na documentação inquisitorial com alguma frequência. A sensualidade, do latim sensualitas significa inclinação para o prazer dos sentidos, lubricidade, lascívia, luxúria. Lalande define-a como disposição que concerne aos prazeres ou desejos dos sentidos. V. Lalande (1938) e Carvalho (2011, pp. 96-129).

4 Para uma visão de síntese atualizada v. Paiva (2000a).

5 Sobre os contributos mais importantes desta historiografia v. Gouveia (2012, pp. 63-77).

6 A obra dirigida por Gabriel Le Bras e Jean Gaudemet é bastante consistente no estudo desta problemática (Bernhard et al., 1990, pp. 121, 137-183). O caráter controverso do sacramento da penitência na época reformista está também particularmente bem estudado, bem como as tentativas de recuperação do seu crédito por parte da hierarquia católica, e a sua importância no controlo e disciplinamento das consciências (Bechtel, 1994, p. 102; Boer, 2001; Lavenia, 2004; Myers, 1996; Prosperi, 1996; Rusconi, 2002; Delumeau, 1990, pp. 157-158).

7 Citarei apenas os trabalhos de maior vulto: no Brasil, Lima (1990); em Portugal, Marcocci (2004), Gouveia (2011 e 2012). Sobre a solicitação noutros territórios, nomeadamente em ­Cáceres, v. Nuñes (1980, pp. 157-167); em Sevilha, Alejandre (1995), Boeglin (2003) e Civale (2007, pp. 197-241); em Llerena, Nuñes (1988, pp. 651-670); na totalidade do espaço espanhol, Dufour (1996), Haliczer (1996), Mora (1994) e Belinchón (2010, pp. 1459-1461); no espaço hispano-americano, Rodríguez (1996, pp. 103-185), Stella (2009), Riquelme (1999, pp. 85-100), Carvacho (1996, pp. 741-803), Delgado et al. (1989); Birckel (1972, pp. 5-91); Martínez (1996, pp. 43-65); em Itália, Boer (2010, pp. 1451-1455). Sobre a sodomia em Portugal v. (Mott, 2010, pp. 1450-1451); em Itália, Scaramella (2010, pp. 1445-1450); em Valência, Carrasco (1985); no espaço hispano-americano, Sigal (2003). Sobre o controlo inquisitorial exercido nos territórios italianos no domínio da sexualidade v. Canosa (1994), Romeo (1998), Mazza (2009).

8 Difundida amplamente na Península Ibérica a partir do século XVII, a doutrina do heresiarca espanhol Miguel de Molinos (1628-1696), que professava a doutrina contemplativa do quietismo, porém, associando-a a uma permissividade quanto aos prazeres da carne, arrastou muitos confessores para as garras do Santo Ofício, alguns dos quais indiciados cumulativamente de molinosistas e solicitantes.

9 Para uma síntese de outros trabalhos relativos a Portugal e outros territórios europeus que se debruçam sobre o disciplinamento da luxúria, onde aparecem referenciados clérigos, solicitantes, sodomitas, e molinosistas, v. Gouveia (2012, pp. 63-77).

10Regimento do Santo Officio da Inquisição dos Reynos de Portugal. Lisboa: Manuel da Silva, 1640, tit. XVIII, n.º 9 e n.º 10. Sobre o conceito e as múltiplas configurações do delito veja-se Gouveia (2011, pp. 28-69); Gouveia (2010, pp. 1455-1459); Haliczer (1996); Mora (1994); ­Alejandre (1995).

11 Arquivo Eclesiástico de Mariana (doravante AEM) – Devassas, Itaverava, 1733 (2.º Livro), fl. 13v.º-14.

12 Apresentam-se alguns exemplos: sobre um réu que fugiu v. DGARQ/TT – Inquisição de Coimbra, proc. n.º 1462; sobre um réu que faleceu no decurso do processo v. DGARQ/TT – Inquisição de Lisboa, proc. n.º 136; sobre um réu absolvido por Roma veja-se DGARQ/TT – Inquisição de Évora, proc. n.º 6323.

13  A jacobeia consistia num grupo de prestigiados bispos ligados a uma corrente de renovação espiritual e eclesiástica que pretendia instaurar a disciplina, morigerar os costumes, afervorar a piedade e refazer, enfim, a vida religiosa e moral do reino. Esta corrente tinha o apoio e, de certo modo, era inspirada pelo franciscano do Varatojo frei Gaspar da Encarnação. Um tratamento aprofundado sobre esta importante questão poderá encontrar-se no trabalho clássico de Silva (1964). Duas releituras de síntese sobre a questão poder-se-ão encontrar em Prosperi (2003, pp. 413-434) e Paiva (2006, pp. 507-513; 2011, pp. 386-429).

14 O mesmo já foi dito por Paiva (2002, pp. 218-219) para os réus degredados por bruxaria e práticas mágico-supersticiosas.

15 DGARQ/TT – Inquisição de Lisboa, proc. n.os 3960; 4805; 7451.

16 DGARQ/TT – Inquisição de Lisboa, proc. n.os 3966; 5324; 10056.

17 DGARQ/TT – Inquisição de Lisboa, proc. n.os 8884; 9166-1.

18 Constituições Primeiras do Arcebispado da Baía, feitas e ordenadas pelo Ilustríssimo e Reverendíssimo Senhor D. Sebastião Monteiro da Vide, (…). Lisboa, Oficina de Miguel Rodrigues, 1764, liv. 5, tit. XVI.

19 V. um exemplo em DGARQ/TT – Inquisição de Coimbra, Cadernos do Nefando, liv. 265, fl. 2 e v.º.

20 DGARQ/TT – Inquisição de Coimbra, Cadernos do Nefando, liv. 265, fl. 126v.º-127.

21 DGARQ/TT – Inquisição de Coimbra, Cadernos do Nefando, liv. 265, fl. 44-46.

22 V. um desses casos em DGARQ/TT – Inquisição de Coimbra, Cadernos do Nefando, liv. 265, carta entre os fólios 181 e 182.

23  DGARQ/TT – Inquisição de Coimbra, proc. n.º 764, fl. 3v.º.

24 Idem, ibidem, fl. 3-29.

25 Veja-se, por exemplo DGARQ/TT – Inquisição de Coimbra, Cadernos do Nefando, liv. n.º 268, fl. 22-26; DGARQ/TT – Inquisição de Lisboa, Cadernos do Nefando, liv. n.º 135, fl. 154-156v.º.

26 DGARQ/TT – Inquisição de Coimbra, Cadernos do Nefando, liv. n.º 265, fl. 111.

27 Como se vê no quadro n.º 10, a suspensão do exercício das ordens foi 14 vezes aplicado sob a forma perpétua, e apenas 6 vezes foi cominado de forma temporária. Uma das sentenças que denotou esse rigor foi a aplicada ao padre Domingos Gonçalves dos Santos, coadjutor da igreja de S. Vicente de Chão, termo da vila de Montalegre, arcebispado de Braga: “E para que se edifiquem com suas penitencias os que se escandalizarão com suas culpas, e no mesmo, que delinquiu seja castigado, o privão para sempre do poder de confessar, e o suspendem do exercício de suas ordens por tempo de sinco annos; e por que não possa com sua prezença renovar nos ânimos dos fieis a memoria do escândalo e mais exemplo que lhes dava, o degradão por seis annos para o estado do Brazil e para sempre do lugar do delicto e cumpra as mais penas e penitencias espirituais que lhe forem impostas […] e no ditto degredo tratara de viver com toda a modéstia e com pessoas de que possa aprender san e apostolica doutrina e observando as penas que se lhe impuzerão na dita sentença com passiencia e sofrimento e será devoto da Virgem Senhora nossa rezando-lhe o seu rozario e nas sestas feiras sinco padre nossos e sinco ave marias as Chagas de Christo Nosso Salvador […]” DGARQ/TT – Inquisição de Coimbra, proc. n.º 8284. Vejam-se outros exemplos em DGARQ/TT – Inquisição de Lisboa, proc. n.os 67; 1447; 1983; 3949; 3966-1; 4810; 6337; 6702; 8228; 10426; 11030; 11298.

28 Conhecem-se três processos contra clérigos sodomitas em que a pena capital foi cominada. DGARQ/TT – Inquisição de Lisboa, proc. n.os 2127; 6587 e 8226.

29 Um exemplo em AEM – Devassas, Ribeirão do Carmo, 1722-1723, fl. 21.

30 AEM – Devassas, Pitanga, 1727.

31 AUC – Caixas da Câmara Eclesiástica, III, D, 1, 6, 1, 1, doc. 10, fl. 1-15.

32 Idem, ibidem, loc. cit.

33 Existem hoje muitas peças processuais dispersas e poucos processos completos, com as suas várias peças cosidas constituindo um maço. Assim, portanto, da estatística que se irá elaborar nos quadros que se seguem, constarão processos completos e articulados ou peças processuais.

34 V. AUC – Caixas da Câmara Eclesiástica, III- D, 1.º, 6, 2, 21, doc. 4.

35 Idem, ibidem.

36 Exemplos em DGARQ/TT – Inquisição de Coimbra, proc. n.º 6471 e proc. n.º 6905; DGARQ/TT – Inquisição de Lisboa, proc. n.º 9166 e proc. n.º 9166-1.

37 Como é óbvio, isto acontece apenas em relação às denúncias completas que deram origem a várias sessões, e onde o réu é chamado a depor.

38 V., por exemplo, AUC – Devassas do arcediagado de Seia, liv. n.º 44 (1705-08).

39  V., sobre o mesmo tipo de benevolência, Luís (2011, pp. 180-182) e Farr (1995, pp.64-65).

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