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Análise Social
versão impressa ISSN 0003-2573
Anál. Social no.215 Lisboa jun. 2015
RECENSÃO
Murteira, Mário
Esta Noite Sonhei com a Crise, Lisboa, Institute for Training and Human Development Consulting/Sítio do Livro, 2013, 242 pp.
ISBN 9789892037882
Miguel Quaresma Brandão*
* Universidade do Porto, Faculdade de Letras, Instituto de Sociologia, Via Panorâmica Edgar Cardoso, 4150-564 Porto, Portugal. E-mail: mbrandao@letras.up.pt
Esta Noite Sonhei com a Crise é o último livro de Mário Murteira, conceituado economista e Professor Catedrático Jubilado do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, cujo falecimento ocorreu na manhã de 15 de março de 2013, no mesmo dia em que o trabalho de organização desta obra, realizado por Cláudia Freire, ficou concluído, tendo sido feito sob a orientação do autor, que iria completar 80 anos no dia 19 de abril de 2013, como descreve, no Prefácio (Murteira, 2013, pp. 7-17), Américo Ramos dos Santos, presidente do Grupo CESO CI, empresa responsável pela edição, publicada pelo Sítio do Livro.
Seria a última data mencionada, aquela que foi escolhida para o seu lançamento e apresentação, num evento oficial de homenagem que foi prestado a Mário Murteira pelo ISCTE-IUL, e que contou com as intervenções do prefaciador da obra e de José Manuel Rolo (ICS--UL), mediadas pelo reitor, Luís Antero Reto, tendo-se procedido à exibição de um documentário biográfico, intitulado Mário Murteira: um Homem Aprendente, realizado por Jorge Murteira. Num momento prévio, foi também atribuído o nome do homenageado a um dos auditórios do Edifício I, com o descerramento de uma placa, na qual estão gravados vários elementos que definem a identidade académica, científica e cívica de Mário Murteira e onde se refere que, em 2008, foi titulado Professor Emérito do ISCTE-IUL, facto a que se sucederam, no ano de 2009, a atribuição do Prémio Carreira da Ordem dos Economistas e, em agosto de 2010, a condecoração, pela Presidência da República de Cabo Verde, com a Primeira Classe da Medalha de Mérito.
Este livro pode considerar-se mais um marco na sua longa carreira e no conjunto vasto das suas obras publicadas, mas, desta vez, assinalou a sua ponta final da existência, para utilizarmos uma expressão murteiriana (idem, p. 225), visto que consiste numa compilação de escritos (a maioria deles já anteriormente publicados) da última etapa do percurso de um dos pais fundadores das Ciências Sociais em Portugal, numa altura em que lhe foi prestada essa homenagem pelo ISCTE-IUL e em que também se comemoraram os 50 anos do GIS/ICS e da revista Análise Social, com diversos tipos de eventos, organizados por uma comissão presidida por José Manuel Rolo.
Será, portanto, pertinente relembrar que Mário Murteira, nas décadas de 50, 60 e 70 do século XX, integrou, de modo ativo, as instituições pioneiras que fundaram o ensino e a investigação da Economia e da Sociologia académicas e científicas com Adérito Sedas Nunes (Cardoso, 2013; Sedas Nunes, 1988), a quem o liga uma amizade pessoal e familiar, para além de o considerar um pai espiritual (Murteira, 2008, p. 30 e p. 185), sendo sempre identificado, por Mário Murteira, como o grande pioneiro da investigação social em Portugal (Murteira, 1993, p. 745; 2007, pp. 13-14; 2008, p. 30; Rolo, 2011, p. 567). Daí que se possa afirmar, com toda a propriedade, que em Portugal a sociologia, enquanto campo disciplinar, começou a emergir, justamente, a partir da economia num movimento que Mário Murteira acompanhou de perto, enquanto colaborador próximo de Adérito Sedas Nunes e colaborador também da Análise Social desde o seu primeiro volume (Marques, 2008, p. 655).
Esta última obra, em que Adérito Sedas Nunes, Joseph Schumpeter, Peter Drucker e Lester Thurow aparecem, mais uma vez, como as suas referências científicas principais, é um reflexo desse percurso e também uma oportunidade para se ficar familiarizado com várias noções fundamentais do pensamento murteiriano, que Américo Ramos dos Santos começa a sistematizar numa parte do Prefácio (Murteira, 2013, pp. 10-17). O livro, com ilustrações de Cristina Sampaio e fotografias de Cláudia Freire, Guilherme Bragança, João Paulo Murteira e Jorge Murteira, está organizado em quatro blocos, que aglomeram, cada um, um conjunto de escritos recentes com uma identidade similar.
O Bloco I, Esta noite sonhei com a crise (idem, pp. 19-66), que dá origem ao título principal da obra, é composto por nove textos que abordam a peculiaridade da crise económica do presente, num contexto de globalização económica e financeira, desencadeada pela mundialização do capitalismo e da economia de mercado, em que a União Europeia e os EUA, no sistema económico mundial, se reposicionaram quer entre si, quer em relação aos países das denominadas economias emergentes, sobretudo devido à ascensão económica da China (que é, na atualidade, a segunda maior economia do mundo e cujo tipo de desenvolvimento era objeto da atenção constante do autor), onde ainda são abordados alguns assuntos de índole social (o denominado terceiro setor ou economia solidária) e sobre a valorização da identidade autóctone de Portugal nesse contexto global.
No Bloco II, Entrevistas (idem, pp. 67-130), reúnem-se três entrevistas concedidas por Mário Murteira. Na primeira (idem, pp. 69-78), realizada no ano de 2005, começa por analisar o impacto da colonização europeia em África, relatando as missões de assistência técnica que desempenhou nos países africanos lusófonos, referindo a sua particular simpatia por Cabo Verde. Aborda também os possíveis modelos de desenvolvimento de Angola e Moçambique. Segue-se a segunda entrevista (idem, pp. 81-110), publicada em 2006, que incide sobre as suas memórias biográficas, desde a caracterização do seu berço familiar à descrição das várias etapas da sua formação universitária e dos cargos que desempenhou em várias instituições, com o contacto e a convivência com inúmeras pessoas de vários quadrantes e interesses. A terceira entrevista (idem, pp. 113-130) teve lugar em 2004, no âmbito do curso de formação de tutores em e-learning, realizado no INDEG-IUL, sobre a economia do conhecimento, que é o novo tipo de economia do mercado global, centrada no conhecimento e na informação.
No Bloco III, Lição de jubilação, Da economia do trabalho à economia do conhecimento, que é o texto escrito da sua lição de jubilação do ISCTE-IUL, que decorreu no dia 21 de outubro de 2003, acompanhado por várias apresentações esquemáticas (idem, pp. 131-164), é descrita a transição da economia do trabalho para a economia do conhecimento, que corresponde às transformações estruturais do capitalismo e da economia de mercado no último meio século, com a transformação da relação capital/trabalho no processo capitalista de criação e repartição de valor. Mário Murteira descreve a evolução do modelo de crescimento económico, durante as últimas décadas, constatando que o conhecimento e a informação são, no presente, fatores determinantes da competitividade no mercado global e no processo de acumulação de capital das atuais sociedades de Modernidade avançada, onde se verifica a consolidação e a aceleração do fenómeno da globalização do capital financeiro, com a transição concomitante do mercado de trabalho para o mercado do conhecimento.
Por fim, o Bloco IV, A gestão da condição humana (idem, pp. 165-242), composto por oito textos que retomam os assuntos do Bloco I, mas onde também são abordadas as temáticas do valor do tempo e do aumento da duração média da vida humana, bem como da gestão dos seus anos finais, sendo estes assuntos do interesse de alguém que se enquadrava no modelo murteiriano de homem aprendente, definido como aquele que procura conhecer mais e melhor do mundo que o cerca e, em particular, de si mesmo, mas conhecer também para agir sobre o objecto do seu conhecimento, seja ele próprio ou o meio circundante (idem, p. 237), de tal modo que, perante o caráter inigualável do seu percurso, vivido com intensidade e convicção, como confessa numa das entrevistas, se possam aplicar, a Mário Murteira, as palavras que ele próprio escreveu sobre Peter Drucker: Com a morte de cada ser humano, morre também um particular conhecimento do mundo; a perda dos vivos, neste sentido, é tanto maior quanto maior é a envergadura desse particular conhecimento (idem, p. 7).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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