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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.222 Lisboa mar. 2017

 

ARTIGO

A captação do social e as armadilhas do método: aprendendo com Ruth Cardoso e seu jeito de ser

Methodological problems in the study of social issues:the special insight of Ruth Cardoso

 

José Machado Pais*

* Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Avenida Prof. Aníbal de Bettencourt, 9, 1600-189, Lisboa, Portugal. E-mail: machado.pais@ics.ulisboa.pt

 

RESUMO

 

A captação do social e as armadilhas do método: aprendendo com Ruth Cardoso e seu jeito de ser.A afirmação da antropologia urbana no panorama das ciências sociais brasileiras beneficiou, em grande parte, dos novos horizontes de conhecimento rasgados por uma geração de antropólogos formados na Universidade de São Paulo, entre os quais Ruth Cardoso. Neste artigo debate-se a atualidade da sua obra, assim como a génese e a influência de alguns dos seus contributos quer na captação de novos objetos de estudo, quer na proposição de metodologias inovadoras, sempre sujeitas a uma vigilância epistemológica dirigida às suas próprias armadilhas.

Palavras-chave:antropologia urbana; metodologias qualitativas; observação participante; subjetividades.

 

ABSTRACT

 

The field of Urban Anthropology in the context of Brazilian Social Sciences benefitted in great measure from the efforts and initiatives of a generation of anthropologists trained at the University of São Paulo, among which was Ruth Cardoso. This article examines the current applicability of her work, along with the genesis and influence of some of her contributions regarding the identification of new areas of study and her introduction of ground-breaking methodologies that always gave proper consideration to the traps that methodologies may bring to research.

Keywords:urban anthropology; qualitative methods; participant observation; subjectivities.

 

INTRODUÇÃO1

 

Conheci Ruth Cardoso em agosto de 1992, num almoço realizado no Restaurante do Clube da Universidade de São Paulo, durante o II Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais. Quando lhe fui apresentado, fiquei tocado por seu sorriso franco. Sabendo de meus interesses pela sociologia da juventude, surpreendeu-me com questionamentos estimulantes sobre o potencial de inovação e criatividade dos jovens e o papel relevante que deles poderíamos esperar nos novos movimentos sociais. Despedimo-nos com a promessa de um futuro encontro. Poderia ter ocorrido em setembro de 1995, quando a Universidade de São Paulo (USP) me acolheu como professor visitante. No entanto, então já Ruth Cardoso era primeira dama do Brasil, Fernando Henrique Cardoso havia sido empossado presidente da República. Com agradável surpresa descobri que, nesse mesmo ano, Ruth Cardoso acabara de editar, em coautoria com Helena Sampaio, uma Bibliografia sobre a Juventude (Cardoso e Sampaio, 1995), dando mostras de um profundo conhecimento da condição juvenil portuguesa.2

Passados cerca de vinte e cinco anos sobre a data desse fugaz encontro, é com muito agrado que agora faço um breve e parcial sobrevoo à obra de Ruth ­Cardoso, esperando dar conta, ainda que modestamente, da sua inquestionável relevância. Pode dizer-se que, como aliás tem sido largamente reconhecido (Velho, 2008; Gordinho, 2009; Brandão, 2010; Caldeira, 2011; Magnani, 2012), a crescente afirmação da antropologia urbana no panorama das ciências sociais brasileiras beneficiou, em grande parte, dos novos horizontes de conhecimento rasgados por uma geração de antropólogos formados na USP (Universidade de São Paulo), entre os quais Ruth Cardoso. Costumes exóticos de tribos indígenas continuaram a atrair a atenção de antropólogos e etnólogos. No entanto, começaram a surgir pesquisas centradas em temas de interesse imediato, temas comuns do quotidiano das cidades. Outra figura relevante dessa geração de antropólogos constatava: “Estamos, em suma, produzindo uma nova e intrigante etnografia de nós mesmos” (Durham, 2004 [1986], p. 17). E desfilava alguns dos novos temas pesquisados, muitos deles no âmbito de orientações de doutoramento dirigidas por Ruth Cardoso: modos de vida das periferias urbanas ou de bairros elitistas (Copacabana); populações caipiras ou imigradas; estudos de comunidade; culturas populares; lazeres e sociabilidades; religiosidades; sexualidade e feminismo; novos movimentos sociais…

Estes últimos, com uma participação crescente de jovens e mulheres, tornaram-se relevantes não apenas do ponto de vista político, mas também antropológico, pois abriam espaço, como bem reconheceu Magnani (2012, p. 35), para o desenvolvimento de uma nova sensibilidade antropológica, capaz de dar conta de novas dinâmicas sociais que, protagonizadas por novos atores sociais, se processavam quotidianamente: no movimento negro, no feminismo, no indigenismo, nas associações reivindicativas, onde quer que fosse. Invadindo um território dominado pela ciência política, a antropologia abordava estas novas problemáticas, em rotura epistemológica com as perspetivas globalizadoras da ciência política e da sociologia de matriz estruturo-funcionalista. Podendo tomar-se como exemplo desta nova sensibilidade antropológica a tese de doutoramento de José Guilherme Magnani (1984), Festa no Pedaço. Cultura e Lazer na Cidade, Eunice Durham sustentava (2004 [1986], p. 21): “Investigando esses ‘pedaços da sociedade’, as comunidades, como se fossem aldeias indígenas, era possível utilizar os métodos de observação participante, documentação censitária, histórias de vida, entrevistas dirigidas, etc., formulando um retrato multidimensional da vida social e integrando o estudo das manifestações culturais à análise do seu substrato social e económico”. De quem Magnani recebera orientação em sua inovadora tese de doutoramento? De Ruth Cardoso. O livro de Magnani (2012) sobre as ­trajetórias da antropologia urbana no Brasil não deixa de lhe fazer uma justa homenagem. Na obra3de Ruth Cardoso encontramos, com efeito, rasgos de uma nova sensibilidade antropológica, sempre em busca de brechas interpretativas, numa atitude de permanente alerta em relação aos impasses e armadilhas do método.

 

PARA DEIXAR DE CHOVER NO MOLHADO E NÃO DERRAPAR EM CONCEITOS DESGASTADOS

 

Ruth Cardoso foi aluna de Egon Schaden (1913-1991)4, ao seu tempo orientador de uma geração de jovens antropólogos, entre os quais Eunice Durham, inseparável colega de Ruth Cardoso.5 Ambas acabariam por ser convidadas por Schaden para assistentes da cadeira de Antropologia, onde já colaborava Gioconda Mussolini, outra notável antropóloga brasileira da geração de Ruth Cardoso. Apesar da relevância de Schaden nos primórdios da antropologia brasileira, Ruth Cardoso e Eunice Durham acabariam por divergir do seu mestre ao assumirem posições críticas em relação à teoria da aculturação por ele perfilhada: “Naquele tempo, em antropologia, a grande palavra nova era ‘aculturação’. Sabia-se o que era aculturação e o que não era. Havia a tabela do Herskovitz para a gente consultar” (entrevista de António Cândido a Martins P., 2014, p. 25). As teorias da aculturação tinham ganho especial relevância no Brasil devido aos fluxos de imigração e aos correlativos problemas de aculturação e assimilação. Ruth Cardoso acabaria por se ver empurrada para esse domínio de pesquisa: “Quando eu entrei no mestrado, Schaden decretou que deveríamos estudar os imigrantes, pela ausência de estudos na área, em especial sobre os alemães, com os quais ele havia trabalhado, e os japoneses” (entrevista a El Far et al., 1998, p. 152). Ruth Cardoso acabaria por aceitar o desafio, optando por pesquisar os japoneses imigrantes de São Paulo.

O título da sua tese de mestrado – O papel das Associações Juvenis na Aculturação dos Japoneses – defendida e publicada em 1959, comprova a presença inabalável do conceito de aculturação, certamente por insistência de Schaden. No entanto, Ruth Cardoso não se sentia confortável com a possibilidade de a sua tese vir a ser um simples chover no molhado. Aliás, os “desentendimentos com o orientador” (Caldeira, 2011, p. 16) levaram-na a concluir a tese com supervisão de Florestan Fernandes, libertando-se desse modo das amarras das teorias da aculturação (Peixoto e Simões, 2003, p. 496; Magnani, 2012, p. 47). Tal como era usado, o conceito de aculturação mostrava-se inadequado para dar conta da heterogeneidade e do dinamismo das sociedades contemporâneas, não por acaso então designadas “complexas”. Ruth Cardoso afastava-se, desse modo, de uma perspetiva culturalista que identificava cultura com totalidade. Não lhe interessavam apenas as regularidades sincrónicas mas, sobretudo, as variações diacrónicas, pois só conjugando umas e outras seria possível dar conta do papel dos agentes da mudança social a um nível comunitário, familiar e associativo. Esta foi, certamente, a razão que mobilizou o interesse de Ruth Cardoso para o estudo do papel das associações juvenis na aculturação dos japoneses. Aliás, em sua tese de doutoramento Estrutura Familiar e Mobilidade Social – continuaria a aprofundar os questionamentos teóricos em torno das persistências e mudanças sociais.

Embora contemplando a mudança social, Schaden (1956) acabava por a associar a situações disfuncionais de ruptura e desorganização familiar, tomada a comunidade dos imigrantes japoneses como um todo (Peixoto e Simões, 2003). Em contrapartida, privilegiando os percursos de mobilidade social entre os imigrantes japoneses, Ruth Cardoso coloca a descoberto aspetos contraditórios de uma suposta unidade cultural que, na verdade, encobria um mosaico de “soluções de compromisso”. A valorização da vida rural por parte dos imigrantes japoneses (os chamados isseis) não os impedia de se preocuparem com o futuro dos filhos (nisseis), apostando na valorização das suas trajetórias escolares e profissionais.6 O que Ruth Cardoso descobre é uma socialização de duplo sentido na relação issei-nissei7 não necessariamente conflituosa: “mesmo dentro de sua família, o nissei encontra estímulos para um entrosamento no meio brasileiro, que se traduz principalmente por uma exigência de êxito profissional” (Cardoso, 2011 [1959], p. 57). Na linha das teses de Eisenstadt (From Generation to Generation) que, aliás, cita em sua tese de mestrado, Ruth Cardoso descobre que a emergência entre os imigrantes japoneses dos grupos de idade, entendidos num sentido social e não meramente biológico, refletem estruturas sociais em que a família já não aparece como única ou principal instância de socialização dos jovens.

No entanto, as ameaças de ruptura e desorganização familiar, acenadas por Schaden, acabam por não se verificar. Possíveis descontinuidades geracionais nem sequer descambaram em manifestos conflitos familiares. Os isseis, orgulhosos do sucesso dos seus jovens (nisseis), condescendiam com novos hábitos culturais que estes iam adquirindo (Peixoto e Simões, 2003, p. 399). De entre eles a possibilidade de os nisseis se reunirem em associações juvenis independentes (recreativas, desportivas e culturais), sem a tutela dos isseis, embora com o seu beneplácito tácito. Daí a relevância destas associações, ao permitirem o envolvimento dos jovens em festas, sessões de dança, concursos de beleza, etc. (Cardoso, 2011 [1959], p. 66). O abrasileiramento dos nisseis acaba mesmo por desembocar em casamentos mistos, fora de um rígido controlo parental. Deste modo, os nisseis evidenciam uma “dupla lealdade”. Enquanto membros da “comunidade” não deixam de se considerar “japoneses”, o que não os impede de apostarem em estratégias de mobilidade social, comportando-se como “brasileiros”. Estamos perante estratégias de socialização por afinidade eletiva, estratagemas de “socialização por antecipação” (Merton, 1957, pp. 254-290).

Estas inovadores teses de Ruth Cardoso seriam retomadas em seu artigo “O agricultor e o profissional liberal entre os japoneses no Brasil” (Cardoso, 2011 [1963]) onde, mais uma vez, os jovens aparecem como agentes de mudança, mas sem entrarem em conflito cultural com os pais, convencidos estes do valor simbólico e material das profissões liberais em meio urbano. Assim se explica que as velhas gerações tenham tacitamente aderido às mudanças em curso, pois os sonhos de mobilidade social dos mais jovens correspondiam a projetos de vida simultaneamente individuais e familiares. Deste modo, Ruth Cardoso afastava-se das teses de Egon Schaden que nos seus estudos de aculturação dos japoneses no Brasil insistia nos problemas de “desorganização familiar” e de “conflito intergeracional” (Sakurai, 2008). O que Ruth Cardoso mostra é que o processo de aculturação dos japoneses não pode ser analisado à margem do jogo de forças entre persistências e mudanças culturais que atravessam os processos de mobilidade social.

O potencial de mudança associado aos jovens continuou a merecer o interesse de Ruth Cardoso, tendo em conta os movimentos protagonizados no final dos anos 60 e inícios da década 70 pelos jovens universitários de Berkeley e do maio de 68, em Paris. Mas o que mais interessava a Ruth Cardoso era o sentido antropológico do “pipocar” desses movimentos, a sua razão de ser, as novas éticas de vida que esses movimentos poderiam precipitar (Cardoso e Sampaio, 1995, p. 20). O entendimento das contestações juvenis reclamava, pois, uma problematização teórica assente em questionamentos sobre o devir social: “questionando desde a relação entre os sexos, o casamento e a organização familiar até o sentido do trabalho, da política, e da relação com a natureza, os jovens pareciam formular uma ética alternativa” (ibidem, p. 21). O posterior amortecimento dos movimentos juvenis originou a representação mediática de uma juventude apática, despolitizada. No entanto, Ruth Cardoso questionava se essa suposta apatia deveria ser considerada segundo os mesmos parâmetros utilizados para avaliar a efervescência dos movimentos juvenis dos anos 60 e 70.

Como vemos, para Ruth Cardoso o fazer antropológico é sempre um saber levantar questionamentos que desvelem realidades emergentes. Esse é o método que privilegia em suas pesquisas. A constatação mediada pela interrogação: “se a política não é mais o eixo articulador da identidade estudantil, quais seriam os novos (ou velhos) eixos que permitem a construção dessa identidade?” (ibidem, pp. 26-27). O que Ruth Cardodo descobre é que os novos estilos de vida, no caso dos jovens, aparecem frequentemente associados a transgressões simbólicas, a recriações estilísticas. A este propósito, sem deixar de reconhecer que a estilização pode aparecer como expressão da diversidade étnica, sexual ou territorial, Ruth Cardoso convida-nos ao cruzamento dos conceitos de estilização e tribalização, chamando a atenção para duas importantes dimensões do tribalismo na compreensão dos estilos de vida juvenis em meio urbano: por um lado, a “valorização do coletivo e seus códigos”; por outro lado a “vinculação entre territorialidade e plasticidade” (ibidem, p. 32). Na linha das reflexões sobre as tribos urbanas, posteriormente aprofundadas por Magnani (1992), Ruth ­Cardoso constata que o território das tribos juvenis contemporâneas é sobretudo simbólico, fluido e cambiante. As suas referências simbólicas sobrepõem-se, podendo resultar de pertenças étnicas ou regionais ou decorrer de preferências culturais cambiantes (gostos musicais, espaços de lazer ou hábitos alimentares). As tribos circulam 8, apropriam-se transitoriamente de uma multiplicidade de territórios, exibindo identidades múltiplas e diferenciadas. O que Ruth Cardoso (1975) nos mostra é que os conceitos de cultura ou subcultura apenas se revelam heurísticos se forem capazes de decifrar a ambiguidade dos grupos que descrevem. Se os instrumentos conceptuais se aprisionam ao estático perdem a riqueza da labilidade do social, onde as culturas e subculturas se refazem. Como é reconhecido por suas discípulas (Debert, Gregori e Coelho, 2008, p. 8), Ruth Cardoso defendia que “os conceitos não podem ser amarras”.

 

COMO ESCAPAR ÀS ARMADILHAS DO MÉTODO

 

Centremo-nos agora no livro organizado por Ruth Cardoso, em 1986, A Aventura Antropológica, Teoria e Pesquisa, obra de referência na produção ­antropológica brasileira dos anos 80 por apontar importantes impasses metodológicos vividos pelas ciências sociais na pesquisa de campo. Como admite na introdução da obra, os ensaios reunidos perseguiam um desafio que conjugava ventura com desventura, risco e proeza. Um risco seria o de confundir aventura antropológica com aventureirismo excêntrico ou romantizado (­Corrêa, 1998) que aparecia, e ainda aparece, como atributo do fazer antropológico. As proezas da aventura antropológica não se podiam confundir com aventureirismo falho de rigor metodológico.

A preferência pelo “microestudo de caso” que então mobilizava o entusiasmo das ciências sociais pela pesquisa de campo intensiva se, por um lado, correspondia a um recuo relativamente às apreensões holísticas do social e às explicações estruturalistas então dominantes, levantava vários problemas de natureza conceptual, teórica e metodológica. Ruth Cardoso (2004 [1986], pp. 95-105) questionava-se: como escapar às armadilhas do método? E alertava: “Um indisfarçado pragmatismo (muitas vezes confundido com politização) dominou as ciências sociais contemporâneas e desqualificou como ocioso o debate sobre os compromissos teóricos que cada método supõe” (ibidem, p. 95). As suas preocupações não perderam atualidade. Hoje, esse “indisfarçado pragmatismo” rima cada vez mais com imediatismo. A pressão que nos meios académicos atualmente existe para a publicação, e a existências de projetos cujas agências financiadoras exigem resultados imediatos, fragiliza a necessária vigilância epistemológica sobre o uso dos métodos. Agora como outrora, “qualquer pergunta sobre as limitações impostas por este ou aquele método é impertinente” (ibidem). O que conta é tão somente a ida ao campo, o número de entrevistas realizadas e transcritas, a célere publicação de resultados alcançados que, em regra, não andam longe dos resultados esperados.

Nas suas reflexões sobre as “armadilhas do método”, Ruth Cardoso coloca sempre em confronto os seus alcances e limitações. A crítica em relação ao uso de conceitos desgastados pelo tempo (como os de aculturação ou subcultura), é uma marca da sua trajetória de pesquisa. Crítica que era também dirigida ao uso de jargões políticos e pseudocientíficos, geradores de verdadeiros impasses metodológicos. A própria falácia de algumas políticas públicas no combate à marginalidade social das periferias urbanas, eram decorrentes de um impasse metodológico: a incapacidade em explicar os “comportamentos concretos” da vida quotidiana dos subúrbios. Uma viragem metodológica se impunha: “uma lente de aumento para os comportamentos banais, onde deveriam estar os elos que interligam os processos estruturais e as práticas sociais” (ibidem, pp. 96-97).

Foi com essa lente progressiva, de ver ao perto (práticas sociais) e ao longe (processos estruturais), que Ruth Cardoso questionou o “enigma” do ­ aparente conformismo político do operariado. A sua decifração não passava pelo estudo dos sindicatos ou das relações industriais, deveria antes captar-se na vida quotidiana do mundo operário. Aqui, sim, poderíamos encontrar formas subtis de resistência ou de oposição à exploração capitalista, marcas veladas de um inconformismo só desvelado nas teias da quotidianidade. Uma viragem metodológica desta amplitude exigia importantes reformulações conceptuais, desde logo em relação às interpretações mecanicistas de “classe social”, assentes numa definição estática da “situação de classe”, suposto abrigo de uma refugiada “consciência de classe”, de uma “identidade oculta” imobilizada nos chavões conceptuais que a definiam. E mesmo quando qualquer gesto ou traço cultural distintivo passa a ser descrito e interpretado como sinal de resistência, não estaríamos a ir longe demais naquele “indisfarçado pragmatismo” confundível com “politização”?

É certo que foi considerável o salto qualitativo das teses do conformismo para as teses da resistência, estas últimas acarinhadas pelos pesquisadores do Center for Contemporary Cultural Studies, da Universidade de Birmingham, cujos working papers Ruth Cardoso discutia com os seus alunos. Porém, atenta às armadilhas do método e às derrapagens dos conceitos, sustentava: “muitas vezes, a coleta de material qualitativo se justificou como forma de detectar esta identidade oculta dos trabalhadores, mas, operando com uma noção estática e descritiva da classe, não se consegue ultrapassar as interpretações globais vigentes. O que era lido como alienação, passividade e conformismo (futebol, festas, malandragens, submissão) passa a ser lido como resistência” (ibidem, p. 97). Ou seja, de novo as armadilhas do método quando cegamente se busca a confirmação de hipóteses teóricas supostamente irrefutáveis.

Na fuga às emboscadas que nos aprisionam ao próprio método, Ruth Cardoso reclama rigor no uso dos métodos qualitativos: “os cientistas sociais estão envolvidos em projetos que supõem a utilização de entrevistas longas e ampla convivência com os informantes. É uma espécie de volta ao significado em seu estado puro, ao discurso ‘real’, que deve permitir descobrir novos sentidos não previstos pelas análises macroestruturais” (ibidem, p. 98). Porém, como ela própria reconhece, o interesse pelos “atores sociais de carne e osso”, na ausência de uma crítica teórico-metodológica consistente, correspondia, sobretudo, a um desencanto com generalizações apressadas e esquemas explicativos abstratos. O retorno ao concreto fazia-se por linhas tortas, “pelos mesmos caminhos já trilhados pela ciência positivista” (ibidem). E porquê? Por falta de um questionamento crítico sobre o uso das metodologias qualitativas. Embora reconhecendo os importantes contributos da linguística às ciências sociais, Ruth Cardoso assinalava os seus desencaminhamentos positivistas: “[…] as técnicas mais difundidas de análise da narrativa não puseram em causa os princípios positivistas. Pelo contrário, a delimitação de um corpus discursivo como suporte primeiro da análise sociológica reforça a evidência da externalidade do objeto e dificulta a integração entre o discurso dos atores e o seu comportamento” (ibidem, p.100).

Ruth Cardoso identifica importantes “descompassos” nos modos de fazer pesquisa qualitativa. Um primeiro descompasso gera-se entre a suposta imersão do pesquisador no trabalho de campo e a ausência de uma discussão sobre o papel da subjetividade na produção de conhecimento: “Considero muito saudável a volta ao trabalho de campo e ao respeito dado ao empírico, mas quero ressaltar o descompasso entre estas iniciativas e a assimilação da discussão sobre a natureza do conhecimento científico, o papel da subjetividade como instrumento de conhecimento” (ibidem, p. 99). Deste descompasso desprende-se um outro, o da idealizada “neutralidade científica”, desconsideradas as subjetividades que medeiam as interações no trabalho de campo entre observadores e observados (Stocking, 1983). O papel do observador começa então a ser questionado: “seria ele um líder, um educador, um dirigente, ou um mero catalisador? Em qualquer um destes casos, como exerceria as atividades de pesquisador?” (Zaluar, 2004 [1986], p. 112).

A nova geração de antropólogos da USP, à cabeça dos quais Ruth Cardoso e Eunice Durham, questiona a observação participante nos moldes tradicionais. Tradicionalmente, reconhece Eunice Durham (2004 [1986]: p. 26), a ênfase era colocada na observação, tão objetiva quanto possível, enquanto a participação era uma mera condição de possibilidade da observação. A metodologia ganhou contudo outras ambições, tanto na “conceituação” quanto na “prática”. Por um lado, a subjetividade do observador começou a ser questionada e valorizada. Por outro lado, a participação passou a ser considerada uma condição necessária à observação: “Uma espécie de mergulho no fundo do outro que é condição para o conhecimento, mas que, entretanto, deve sempre ser completado pela observação dos comportamentos e de sua recorrência” (Ruth Cardoso, 2004 [1986], p. 100). Nesta relação entre participação e observação, caberia ao pesquisador questionar a sua subjetividade com espírito crítico e intentos metodológicos: “seus valores ou sua visão do mundo deixam de ser obstáculos e passam a ser condição para compreender as diferenças e superar o etnocentrismo” (ibidem, p. 102).

Ou seja, enquanto nas pesquisas em “sociedade primitivas” a objetividade sobreleva largamente a subjetividade – o pesquisador era frequentemente um “estrangeiro” que nem a língua nativa dominava – nas pesquisas urbanas a participação reivindica envolvências de natureza intersubjetiva. Nestas condições, o pesquisador “busca, na interação simbólica, a identificação com os valores e aspirações da população que estuda” (Durham, 2004 [1986], p. 26). Ruth Cardoso está em sintonia com esta posição. Passando de “adjetiva” (observação participante) a “substantiva” (participação observante), a participação “reinventou a empatia como forma de compreender o outro” (Cardoso, 2004 [1986], p. 101). É no encontro de pessoas que se estranham, e que ao mesmo tempo se acercam, que acabamos por “desvendar sentidos ocultos e explicitar relações desconhecidas” (ibidem). Sentidos que nos são dados pela observação.

Em que consiste a observação para Ruth Cardoso? Ela define-se do seguinte modo: “Observar é contar, descrever e situar os fatos únicos e os cotidianos, construindo cadeias de significação” (ibidem, p. 103). Esta capacidade de observação deve ser autorreflexiva, isto é, nos seus registos de observação o pesquisador não pode deixar de analisar o seu próprio modo de olhar, mas deve também ser intersubjetiva, condição de possibilidade da alteridade. Ou seja, para Ruth Cardoso o conhecimento passa pela descoberta de saberes não compartilhados e não por uma banal noção de empatia (ibidem). Neste sentido, as identificações subjetivas jogadas no trabalho de campo geram implicações de natureza metodológica e política. Com efeito, as experiências reflexivas vividas por observadores e observados assumem-se como uma condição da participação-ação. Tenha-se em conta que, no contexto de uma interação, a reflexividade não é uma qualidade dependente da vontade do pesquisador, ela medeia todas as ações sociais que ocorrem no trabalho de campo (Watson, 1987). Principalmente no caso em que o pesquisador participa ativamente nos movimentos sociais que estuda, criam-se condições para que surjam compromissos políticos, quer no figurino da responsabilidade social quer no da militância. Como é que Ruth Cardoso reage a estes “deslizamentos”, da observação participante para a participação observante e desta para a militância política? O problema não é propriamente o do espaço conquistado pela “pesquisa engajada”; é o da ausência de discussão sobre o fazer metodológico do trabalho de campo em tais circunstâncias (Cardoso, 2004 [1986], p. 101). Advertindo: “o resgate da subjetividade como instrumento de trabalho não deve ser justificativa para a indefinição dos limites entre ciência e ideologia” (ibidem, p. 103).

O que Ruth Cardoso sugere é que o trabalho de campo, particularmente o que envolve observação participante, só oferece garantias de objetividade quando a subjetividade é questionada, até na afirmação de um “engajamento político” com alguma “dose de ideologia”, como acontece quando o pesquisador se identifica com minorias discriminadas. Mas, neste caso, a pesquisa reduz-se à denúncia, transformando o pesquisador num porta-voz (ibidem, p. 99). Por outro lado, os compromissos ideológicos comprometem um dos passos mais importantes da pesquisa participante, “o estranhamento como forma de compreender o outro” (ibidem, p. 100). Não o estranhamento gerado por um distanciamento etnocêntrico entre observador e observados, mas o ­estranhamento que entreabre portas ao questionamento, dando pistas de interpretação, ancorando as relações pessoais a seus contextos de existência, permitindo “estudar as condições sociais de produção dos discursos” (­Cardoso, 1994, p. 84; 2004 [1986], p. 103).

Um outro descompasso resulta dos determinismos analíticos impostos por “processos estruturantes” que tendem a transformar os comportamentos individuais em “ações automatizadas”, ou daqueles outros determinismos que tendem a enjaular a pesquisa empírica em quadros teóricos cuja rigidez determina outro descompasso teórico, o que ocorre precisamente quando o “quadro teórico é muito mais declaração de princípios que uma construção de referências analíticas” (Cardoso, 2004 [1986], p. 99). Determinismos teóricos ou ideológicos limitam a capacidade da descoberta. A busca do inesperado só é possível através de um desejo de conhecimento movido pela curiosidade. Essa estratégia captativa não se contenta com meras colheitas de dados que tendem mais a fixar evidências que saltam à vista do que a descobertas só possíveis de concretizar com observação astuta, sensibilidade teórica e vigilância crítica em relação às armadilhas do método.

 

LIÇÕES DE VIDA QUE SOBREVIVEM

 

Na crítica ao livro Ciências Sociais no Brasil: Diálogos com Mestres e Discípulos (Trindade, 2012), onde Ruth Cardoso aparece como um dos expoentes da antropologia brasileira, José de Souza Martins (2014, p. 196) interroga: “Quanto o modo de ver de nossos cientistas sociais reflete o modo de ser de seus grupos de origem em precedência aos estritos e demarcados princípios da produção do conhecimento científico?” Eis uma boa questão que nos incita a explorar as origens sociais de Ruth Cardoso e a questionar o modo como aspetos da sua socialização primária se refletiram na sua trajetória académica.

Ruth Cardoso viveu a sua infância e adolescência em Araraquara, onde nasceu (1930). Embora frequentando a escola pública até aos 15 anos, Ruth prosseguiu os estudos num prestigiado colégio de São Paulo (Des Oiseaux), antes de ingressar na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Seu pai, José Corrêa Leite, organizava a contabilidade de várias empresas de Araraquara, dando também apoio aos vendedores do mercado, onde aliás, tinha uma banca de atendimento. Por vezes, Ruthinha acompanhava o pai no fechamento das contas (Brandão, 2010, p. 21). Não granjeava apenas agrados, ganhava também a oportunidade de aprender o alcance do rigor das anotações e registos contabilísticos. Sua mãe, dona Mariquita, descendente de uma família portuense, era farmacêutica e professora. Mulher perseverante – doutorou-se na USP com 60 anos – dona Mariquita deu a Ruth uma educação esmerada, onde as aulas de piano e declamação se conjugavam com a aprendizagem dos afazeres domésticos, desde logo os segredos da cozinha.

Ou seja, desde a infância Ruthinha aprendeu a olhar à sua volta, a observar e a questionar o que ia descobrindo.De suas memórias de infância, Ruth relembra Vó Vizinha, que vivia num barraquinho, uma velha tão querida que só podia mesmo ser tratada como avó: “[…] conversávamos por horas, eu perguntava muito, eu era muito perguntadeira” [entrevista a Brandão (2010, p. 19)]. Ruth observava-a atentamente nas lidas caseiras: “o fazer sempre me interessou muito, podia ficar horas observando a Vó” (ibidem). Como a Vó fornecia bolos para uma padaria, Ruthinha observava atentamente a sua confeção artesanal, feita com perícia e delicadeza. Observava e logo apontava as receitas das mais gostosas doçarias: pés de moleque, baba de moça, olhos de sogra, beijinhos e cajuzinhos… Esta capacidade, vinda dos tempos de infância, em observar, questionar e registar, é um dos reconhecidos atributos de Ruth Cardoso no seu modo de fazer antropologia. Teresa Caldeira, sua discípula e amiga, confirma como ela era exigente no trabalho de campo, reclamando sempre transcrições densas e pormenorizadas. A sua metodologia captativa obrigava a que realidade observada saltasse para os diários de campo como os movimentos de deve e haver saltavam para os diários contabilísticos de seu pai:

 

[…] a gente tinha de observar tudo quando íamos para a periferia. Tenho ainda meus cadernos de campo e posso ouvir Ruth exigindo: ‘Quero os diagramas das casas, preciso saber onde tem mesa, tem cadeira, onde está a televisão, quero saber o que tem na sala, o fogão, objetos, roupas, o chão, qual é a cultura material, como as pessoas se inserem nela’. Ensinava a fazer o caderno de anotação de campo. Era essencial observar os gestos, ver como as pessoas falavam, prestar atenção às posturas [entrevista a Brandão, 2010, p. 127].

 

O gosto pela culinária, que aprendeu com Dona Mariquita e Vó Vizinha, acompanhou-a vida fora, especialmente nas tertúlias que organizava em casa, onde acolhia colegas, amigos e alunos. Os pitéus que para eles confecionava tinham uma carga simbólica, não apenas pelas relações de horizontalidade entre os comensais, mas também pela função rememorativa que para Ruth Cardoso esses encontros tinham, ao avivarem-lhe lembranças de infância, trazendo ao presente o passado, nas memórias de aprendizagens que ela persistia em manter vivas, partilhando-as. Com Lévi-Strauss Ruth Cardoso aprendeu quão importante era para a antropologia o tema da alimentação, mas para ela a “cozinha dos antropólogos” (Kuper, 1985) passava por meter as mãos na massa. Uma aluna sua lembra: “sua casa era movimentada, e ela discorria com naturalidade da antropologia à sociologia, à maneira de fazer cuscuz, ou onde comprar um bom abacaxi” (entrevista a Brandão, 2010, p. 73). Em casa de Ruth sobressaía o carisma próprio de um vínculo social, onde prevalecia um sentido de communitas (Turner, 1997) que a sociabilidade à mesa favorecia. Danielle Ardaillon, outra sua orientanda, testemunhou: “Ruth me levou para sua casa em Ibuína para discutirmos o trabalho académico e, no meio disso, ela parou para me preparar um delicioso caldo verde” (entrevista a Gordinho, 2009, p. 110). Assim se criava uma disponibilidade para o fluir de ideias, num ambiente descontraído e sociabilístico. Ruth gostava de partilhar, fossem sabores, ideias ou livros: “Olha que maravilha, você precisa de ler!” – dizia a Eunice Durham quando, regressada de Paris, lhe passou o livro “Le Totémisme aujourd’hui”, de Lévi-Strauss. Também para Eunice, Ruth era uma “captativa”, uma buscadora de livros, de ideais e de informações que gostava de partilhar com colegas e alunos (entrevista a Brandão, 2010, p. 72).9

Ruth Cardoso era uma pesquisadora que se destacava “por abrir portas e criar espaços” (Velho, 2008, p. 273). Em seu percurso académico esbateu fronteiras disciplinares, triangulou perspetivas metodológicas, entrecruzou saberes de várias áreas. Como recordam outros orientandos (Debert, Gregori e Coelho, 2008), em seus seminários debatiam-se teorias de vários quadrantes disciplinares, debates que se ampliavam no Cebrap e na Anpocs em grupos de trabalho que coordenava com Gilberto Velho, cuja tese de doutoramento foi também supervisionada por Ruth Cardoso: “sua competência de orientadora se expressou no grande número de teses e dissertações, bem como na variedade de assuntos de investigação que supervisionou” (Velho, 2008, p. 272). No rol das teses de doutoramento que orientou acolhiam-se temas sobre minorias étnicas e culturais; desvio e transgressão; emigração; juventude e adolescência; feminismo e estudos de género; mudança social e conflito; movimentos sociais; educação; culturas populares; pobreza; imaginários e representações sociais. Ou seja, objetos de estudo reveladores de uma “notável abertura para os temas do mundo” (ibidem). Nas teses que orientou ressalta uma opção metodológica de fundo: uma lente progressiva de ver ao perto (práticas sociais) e ao longe (processos estruturais), tendo em vista uma conjugação dos dois olhares, uma articulação analítica entre práticas e processos. Daqui decorre a atenção dada aos modos de vida de uma enorme diversidade de agentes sociais: cangaceiros, jovens, populações marginais, clandestinos, criminosos, trabalhadores de cana de açúcar, cordelistas, moradores de periferia, índios, missionários, operários, mulheres violentadas, crianças tuteladas, meninos de rua, imigrantes, etc. Muitas destas pesquisas tinham lugar nas periferias urbanas, pouso de vida de muita desta gente: “ir para a periferia significava tentar entender a vida cotidiana do trabalhador, da dona de casa, que parecia mais rico do que uma descrição global relativa ao ‘papel histórico do trabalhador’, etc. Nós achávamos que deveríamos descobrir o universo mais cotidiano” (entrevista de Ruth a El Far et al., 1998, p. 156).

Professora visitante em várias prestigiadas instituições10, Ruth Cardoso era acarinhada pelos alunos. Gilberto Velho (2008, p. 272) lembra o memorável curso que ela leccionou no Museu Nacional, em 1981. Yvonne Maggie, que também assistiu ao curso, recorda: “Aprendi muito naquele curso e, sobretudo, me impressionou a sua forma tão imprevisível de tratar de um tema canônico como aquele” (entrevista a Gordinho, 2009, pp. 110-111). A temática do curso comportava uma formulação interrogativa: Por que os movimentos sociais urbanos despertam a atenção dos antropólogos?11. Essa era uma estratégia pedagógica seguida por Ruth Cardoso para aliciar os alunos: o incitamento da curiosidade e da indagação, a mobilização da pesquisa para a busca de respostas. Esta sensibilidade captativa, de menina “perguntadeira”, foi aprofundada com seus mestres, entre os quais Roger Bastide, de quem recorda, sobretudo, o seu jeito de ser: “nós íamos com o Bastide visitar favelas. Não era uma pesquisa no sentido rigoroso do termo, mas uma convivência que nos permitia criar essa relação com o outro” (entrevista a El Far et al., 1998, p.153).

No livro de Brandão (2010) em homenagem a Ruth Cardoso, Manuel ­Castells assina um posfácio (“Ruth Leite Cardoso, minha mestra, minha colega, minha amiga”), onde conclui:

 

Ela desfiava ideias com paixão tranquila em torno de uma xícara de café, no transcurso de uma viagem, na sala de um seminário ou numa reunião de um centro comunitário. Semeava. Semeava as sementes do que aprendeu como pesquisadora, esperando que a colheita fosse algo mais além de artigos científicos: que fosse uma colheita de humanizar a vida das pessoas que ninguém via. Foi uma antropóloga para quem as comunidades observadas eram comunidades vivas e não culturas dissecadas para consumo de elites [Brandão, 2010, p. 253].

 

Este depoimento de Castells testemunha o grande interesse de Ruth ­Cardoso por projetos de solidariedade social. Constatando que no Brasil não existiam programas de apoio governamental aos jovens, lançou o programa Comunidade Solidária, orientado para a alfabetização e capacitação profissional dos jovens: “nós temos que aproveitar brechas do mercado de trabalho, onde pessoas de baixa escolaridade possam ter meios para entrar” (entrevista a Trindade, 2012, p. 129). Com seus programas de capacitação dos jovens, Ruth Cardoso tentou explorar essas brechas12 partindo de grounded ideas surgidas no próprio campo de intervenção: cursos de cabeleireiro-afro raiados no próprio movimento negro, cursos de separação de lixo, cursos de fazer doces… cursos que Ruth Cardoso considerava “achados”. Depois das secas de 1998, lançou outro projeto original, o ArteSol, em parceria com a Fundação Nacional de Artes (Funarte). O projeto, que viria a ser coordenado por Helena Sampaio, uma das mais próximas discípulas de Ruth Cardoso, contribuiu para a subsistência das famílias, encorajadas a comercializarem o seu artesanato, ao mesmo tempo que revigoravam as suas identidades culturais: “Ruth tinha enorme prazer em escolher peças de artesanato, visitar os núcleos produtores, ouvir as artesãs. A beleza das cerâmicas, a perfeição dos filés e labirintos, dos bordados, da cestaria, a simbologia contida na mandala tramada e colorida, que mantinha em seu escritório, afirmavam o prazer da missão cumprida” (Gordinho, 2009, p. 174). No dia de enterro de Ruth Cardoso (falecida a 24 de junho de 2008), seu filho Paulo Henrique colocou no túmulo a bonequinha Esperança, símbolo do artesanato brasileiro (ibidem, p. 45) que Ruth Cardoso tanto apoiou, semeando esperança entre as artesãs.

A discussão teórica da vida quotidiana como espaço vivificante da esperança aparece em muitas pesquisas de Ruth Cardoso: “a vida cotidiana não é o primado da estrutura restritiva, pois a esperança de progresso também tem seu lugar” (Cardoso, 2011 [1977], p. 169). O seu texto “Favela: conformismo e invenção”, originariamente publicado em 1977, antecipa as conhecidas teses de Michel de Certeau (L’Invention du quotidien, 1980), ao tomar a vida quotidiana como um palco de criatividade social. Centrando o debate teórico no “movimento dos sistemas culturais” e no “refazer e repetir” da vida quotidiana, Ruth Cardoso distanciou-se, como vimos, das visões estruturalistas que apenas conseguem captar a passividade e o conformismo das culturas populares: ou porque, na esfera consumista, aparecem como uma massa desprovida de desejos, na esteira das teses da Escola de Frankfurt (­Horkheimer, Adorno, Marcuse); ou porque, apegadas a valores tradicionais, resistem à mudança, num aprisionamento a memórias coletivas e a ethos sociais que regulariam as práticas sociais, posição defendida por Durkheim e pelo estruturalismo simbólico, com Lévi-Strauss à cabeça. Ruth Cardoso não nega os sistemas simbólicos, mas renega-os enquanto simples metáforas cristalizadas da vida social. Para Ruth Cardoso (2011 [1977], p. 161), mesmo Victor Turner acaba por deixar de fora do seu modelo a dinâmica social pois, quando analisa os processos rituais, “a dinâmica vem ‘de fora’, da situação limiar em que a estrutura é posta entre parêntesis”. Em contrapartida, Ruth Cardoso busca a dinâmica na própria estrutura social, mais precisamente nos cenários da vida quotidiana. E de que modo o faz? Centrando-se nas estruturas cognitivas e na praxis dos artesãos do quotidiano – em suas arts de faire – sem as dissociar dos processos sociais que as geram. Para Ruth Cardoso, ela própria cultora da prática artesanal de pesquisa (Pais, 2013; 2014), a dinâmica social vem de dentro. Por isso, para melhor compreender essa dinâmica, segue uma estratégia emic (Headland, 1990) na exploração do universo cultural dos favelados: “estamos tomando fragmentos de entrevistas obtidas em situações normais da vida […], opiniões sobre assuntos cotidianos” (Cardoso, 2011 [1977], p. 163). Com uma notória influência de Richard Hogart (The Uses of Literacy), conclui: “Colocamo-nos no ângulo de visão da classe baixa e dentro de suas próprias formulações para poder reconhecer o elo entre as situações de vida e suas explicações manifestas” (Cardoso, 2011 [1977], p. 168). O reconhecimento desse elo passa pela exploração de brechas nos enlaces entre objetos de estudo, teorias, conceitos, interpretações e projetos de intervenção social. Foi na exploração dessas brechas que Ruth Cardoso procurou avanços na captação e transformação do social.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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Recebido a 17-11-2015. Aceite para publicação a 21-06-2016

 

NOTAS

1 Agradeço a Susana Matos Viegas o convite para escrever este artigo sobre Ruth Cardoso. Queria também agradecer o excelente acolhimento que tive no Centro Ruth Cardoso, em São Paulo, na pesquisa de alguma bibliografia e documentação de difícil acesso. Para os leitores interessados em aprofundar o conhecimento da vida e obra de Ruth Cardoso recomendo uma visita à página do Centro: http://www.centroruthcardoso.org.br/.

2 Nessa publicação, que reunia um amplo levantamento de trabalhos publicados no Brasil e no estrangeiro sobre juventude, entre mais de duzentos títulos recenseados e comentados, apareciam referências ao meu livro Culturas Juvenis (Pais, 2003), a seis publicações da coleção Estudos de Juventude do ICS-ULisboa, a dois artigos da Análise Social e a outro da Revista Crítica de Ciências Sociais.

3 Reunida numa excelente publicação, cuidadosamente organizada por Teresa Caldeira (2011).

4 Schaden ocupou a cadeira de antropologia na USP de 1947 a 1967. Em 1953 fundou, em São Paulo, a Revista de Antropologia.

5 Eunice Durham orientou o doutoramento de Ruth Cardoso, só concretizado em 1972, vinte anos após a obtenção da sua graduação em ciências sociais. O retardamento deveu-se ao exílio político de Fernando Henrique Cardoso, por efeito do golpe militar de 1964.

6 O papel da educação na integração dos japoneses imigrados no Brasil é uma problemática de estudo que não perdeu atualidade. Veja-se, por exemplo, Kishimoto e Demartini (2012).

7 Em japonês sei significa geração. Issei é o japonês, de primeira geração, que emigra para outro país. Os nisseis são os filhos (de segunda geração) dos isseis, já nascidos nos países de acolhimento.

8 O conceito de circulação viria a ser aprofundado por Magnanini no livro que co-organizou sobre Jovens na Metrópole: Etnografias de Circuitos de Lazer, Encontro e Sociabilidade (Magnani e Mantese, 2007).

9 Esta partilha de conhecimento não se circunscrevia aos seus doutorandos. Irlys Barreira, professora da UFC, informou-me que quando chegou à USP (1982) para iniciar o doutoramento (Refazendo a Política: as Múltiplas Faces dos Movimentos Sociais, orientação de Heinrich ­Rattner), Ruth Cardoso a recebeu em casa, passando-lhe referências bibliográficas.

10 Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flasco/Unesco), Universidade do Chile, Maison des Sciences de L’Homme (Paris), Universidade de Berkeley e Universidade de ­Columbia.

11 O programa do curso pode ser consultado no Museu Nacional, encontrando-se disponível em: http://www.museunacional.ufrj.br/ppgas/RC1983-2(4).pdf (consultado em 01-10-2015).

12 O conceito de brecha foi provavelmente levado para a CEPAL (Comissão Económica para a América Latina e o Caribe) por Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso, durante o seu exílio no Chile. O conceito de brecha continua a ser usado como um preciso instrumento conceptual das pesquisas da CEPAL (Barcena, Prado e Hopenhayn, 2010) e foi recentemente apropriado por Joseph E. Stiglitz (2015), prémio Nobel de Economia.

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