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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.222 Lisboa mar. 2017

 

ARTIGO

Utopias, portais e antropologias urbanas: Gilberto Velho em Lisboa

Of utopias, portals and urban anthropologies: Gilberto Velho in Lisbon

 

Cristiana Bastos*

* Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Avenida Prof. Aníbal de Bettencourt, 9 - 1600-189, Lisboa, Portugal. E-mail:cristiana.bastos@ics.ulisboa.pt

 

RESUMO

 

Utopias, portais e antropologias urbanas: Gilberto Velho em Lisboa. O artigo homenageia o antropólogo brasileiro GiIberto Velho (Rio de Janeiro, 1945-2012) e comenta a sua influência em Portugal. A autora descreve o seu primeiro contacto com A Utopia Urbanae a abertura de horizontes que a sua leitura induziu num tempo em que o contraste entre o que se praticava em Portugal e no Brasil nos anos 1970-1980 era máximo e o desconhecimento mútuo era quase total. Seguidamente narra como essa separação deu lugar a um frutífero intercâmbio entre as antropologias brasileira e portuguesa, em particular no campo dos estudos urbanos, tendo sido o próprio Gilberto Velho uma figura central nessa aproximação.

Palavras-chave: antropologia urbana; história da antropologia; Rio de Janeiro; antropologia brasileira; antropologia portuguesa.

 

ABSTRACT

 

The article celebrates Brazilian anthropologist Gilberto Velho (Rio de Janeiro, 1945-2012) by commenting on his influence and impact on Portuguese scholarship. The author describes her first contact with the bookA Utopia Urbana,an original monograph about living in Rio’s Copacabana neighborhood. She describes the impact of the book at a time when;Portuguese and Brazilian anthropologists hardly knew of one another; she further describes how that estrangement gave way to intense academic interchange between the two communities,a change in which Gilberto Velho had an important role

Keywords: urban anthropology; history of anthropology; Rio de Janeiro; Brazilian anthropology; Portuguese anthropology.

 

DE UTOPIAS E PORTAIS

 

Antes de tudo, A Utopia Urbana. Um livro encontrado ao acaso numa livraria de Lisboa, um título de enfeitiçar. E um subtítulo que, só de ser em português, também enfeitiçava: Um Estudo de Antropologia Social. Nos anos 70, princípios de 80 do século XX, “antropologia social” era coisa da língua inglesa, quando muito em tradução, mas mesmo as traduções eram raras. Em Portugal havia etnografias, antropologia física, etnologia, fosse própria ou em tradução directa do francês ethnologie, como ainda se usava; havia levantamentos de folclore, usos e costumes no interior do país ou nas colónias, e uns raros ensaios de antropologia cultural. Mas aqui estava a prova de que do outro lado do Atlântico, usando a mesma língua, numa tradição académica que praticamente desconhecíamos, se fazia antropologia social. Ainda por cima em contexto urbano.

Não conhecia o autor, Gilberto Velho; reconhecia a editora, a Zahar, das poucas que tinha boa distribuição em Portugal; e pouco ou nada sabia sobre a antropologia no Brasil. Estava ali uma das suas materializações, e não uma qualquer, simplesmente a referência fundadora da antropologia urbana e ponto de viragem na definição de objectos e métodos de investigação. Nada disso sabia quando pela primeira vez me deparei com A Utopia Urbana; mas pressentia que, para além do encanto instantâneo de cada uma das palavras do título e subtítulo (utopia, urbana, antropologia, social) e dos pares que formavam (utopia urbana, antropologia social), ou poderiam ter formado (utopia social, antropologia urbana), podia bem ser que ali estivesse um portal para um realidade muito diferente daquela que nos circundava no momento.

E assim foi. De certo modo, A Utopia Urbana fez de portal e, ao longo dos anos, devagar e por etapas, o portal deu lugar a uma ponte aérea e a um canal de comunicação permanente entre as antropologias portuguesa e brasileira, como uma utopia de partilha e convergências que se mantém como horizonte nos rituais de proximidade e troca e na materialidade dos trabalhos conjuntos, projectos, cursos e publicações partilhadas. Mas isso só viria a acontecer anos mais tarde, muitas tecnologias de comunicação depois. Naquele tempo não havia sequer internet e as viagens transatlânticas eram muito caras e raras para antropólogos portugueses ou brasileiros.

 

A LONGA DÉCADA DE 1970 E AS SUAS DISSONÂNCIAS COGNITIVAS

 

Quando me deparei com A Utopia Urbana estávamos no prolongamento da década de 70, dita mais longa que as outras, feita de intervalos, experiências, substâncias, músicas, indumentárias peculiares e, em Portugal, feita também de grandes transformações políticas. O país saía de um regime autoritário que tinha produzido uma pequena e idiossincrática utopia de contenção e moderação, de costumes cinzentos e brandos, de honradez na pobreza em cenários pacatos de ruralidade. Em simultâneo, e gerando as dissonâncias cognitivas que cada um resolveu como pôde, ou deixou por resolver, o regime anterior tinha também produzido e reforçado um imaginário de esplendor a que não faltavam narrativas coloridas e fantásticas de heroísmo marítimo, referências a um mundialismo precoce, a um hibridismo gerado para o bem da humanidade, a uma superior aptidão para promover o convívio entre povos diferentes.

Tal era o aparato ideológico que Portugal dava a si mesmo e aos seus pelos anos 1970: mais que plural ou multifacetado, como se diz das sociedades complexas, assentava numa tensão representativa contraditória, para não dizer esquizóide. Por um lado, os portugueses eram passivamente transparentes, invisíveis nas paisagens líricas de aldeias de xisto, granito, ou cal, satisfeitos na sua contida pobreza, comedidos, sem ímpetos de melhoramento e auto-superação, murmurando fados, tangendo guitarras em tom menor, não se envolvendo em rixas, e até no espectáculo das touradas poupando o clímax da morte sacrificial. Por outro lado, eram os grandes heróis do mundo, os pioneiros, os mais fortes, os mais humanistas, os mais compreensivos, os mais interactivos, em suma, os primeiros e os melhores. Não se falava abertamente de emigração, de fome e miséria nos campos e nas cidades, de trabalho forçado em África, de repressão aos Satyagraha na Índia, de guerra colonial, de prisões políticas e, por maioria de razão, de censura.

Tendo embora raízes mais antigas, foi no regime que cessou em 1974 que este aparato ideológico se apurou e entranhou nos portugueses como ­espontânea descrição de si mesmos, chegando em ecos até hoje, século XXI, com ou sem fados e guitarradas, em tons de ironia auto-derrisória, ou sem eles. Foi também durante o regime de Salazar que se consolidou e cristalizou a narrativa do devir ultramarino da nação; que se criaram espectáculos de entretenimento colectivo sobre o original mundialismo português, materializados em exposições de grande escala, como a Exposição do Mundo Português, em 1940 (Thomaz, 2001), e perpetuados em refrões e outros bons veículos de difusão ideológica, como O Mundo que o Português Criou – este último produzido com a ajuda de um outro autor brasileiro, Gilberto Freyre (Castelo, 1999; ­Cardão e Castelo, 2015).

Um parêntesis para Gilberto Freyre (1900-1987) que, para além do nome próprio, pouco partilha com Gilberto Velho (1945-2012), a quem este artigo é dedicado.1 Se bem que ambos tenham sido intelectuais públicos e intérpretes de colectivos inovadores, que articularam e teorizaram questões de alcance universal nas suas abordagens às particularidades brasileiras, as suas obras são completamente diferentes – e diferente foi o impacto intelectual e político que tiveram em Portugal. A obra de Gilberto Velho viria a contribuir para o amadurecimento da nova antropologia portuguesa, bem depois de 1974; a de Freyre tinha sido usada pelo anterior regime na fabricação dos seus eufemismos de império. Lusófilo convicto desde pelo menos Casa Grande e Senzala (Freyre, 1933), Gilberto Freyre desenvolvera na década de 1950 o conceito de lusotropicalismo, ampliando o seu universo de referência do Brasil para o conjunto da colonização portuguesa em África e na Ásia, e reiterando a sua visão benévola dos portugueses enquanto colonizadores (Freyre, 1953; ­Castelo, 1999; Bastos, 1998). O lusotropicalismo seria posteriormente adoptado pelo regime português a braços com a justificação de um colonialismo tardio em África e em alguns enclaves da Ásia, questionado pelas instituições internacionais, combatido em armas ou em protestos pacíficos pelos movimentos nacionalistas locais, e contestado pelos que no próprio país resistiam à ideologia e políticas oficiais (Freyre, 1961; Castelo, 1999; Cardão e Castelo, 2015).

 

DISTOPIAS COLECTIVAS E PROPOSTAS DE INTERPRETAÇÃO

 

Pairavam esses precipitados ideológicos para além da queda do regime em 1974; o país procurava-se nos caminhos de uma economia e política mais abrangentes e democráticas que as anteriores, urgia fazer escolas e casas, melhorar a alimentação, dignificar o trabalho, substituir as estruturas ­autoritárias, dar por terminada a descolonização. Não se sabia, tão-pouco era prioridade, o que fazer com as imagens de caravelas e padrões de descobrimentos, as frases feitas sobre cordialidade e convívio pluricontinental, as crenças no colonialismo manso e na ausência de racismo. Sobrando aos pedaços para além das estruturas económicas que as tinham gerado ou feito consolidar, ora enterradas no inconsciente, ora à flor da pele, instaladas no senso comum, automatizadas no uso de um “nós” imperial e na mitificação dos descobrimentos, só várias décadas depois é que esses temas vieram a ser enfrentados analiticamente pela antropologia portuguesa, e em combinação com os estudos pós-coloniais (Bastos, Almeida e Feldman Bianco, 2002; Santos, 2002; Ribeiro e Ferreira, 2003; Carvalho e Pina-Cabral, 2005; Sanches, 2007; Castelo et al., 2012; Domingos, 2012) e apenas após um ciclo em que se deu prioridade à substituição dos estereótipos do país rural e bairros urbanos típicos por etnografias feitas com trabalho de campo balizado por teoria e métodos da antropologia, exemplificado na colectânea organizada por Brian O’Neill e Joaquim Pais de Brito (O’Neill e Brito, 1991).

Ciclicamente tinham aparecido e continuaram a aparecer tentativas de decifrar tal precipitado ideológico como um todo coerente, qual “modo de ser” português: enquanto padrão de cultura, como teorizou a seu tempo, e ao modo do seu tempo, o antropólogo Jorge Dias (1955); enquanto devir labiríntico, como propôs o ensaísta Eduardo Lourenço (1978); enquanto não-inscrição que acarreta a impossibilidade de ser, como niilisticamente apontou o filósofo José Gil (2004); enquanto estrutura que contém a sua libertação, como equacionou, mais optimista, o sociólogo Boaventura Sousa Santos (2011). Não chegando ao paroxismo que hoje metaforiza cultura e identidade em “código genético” e “ADN” (que esquecem serem também estes campos de possibilidades, para usar termos Gilbertianos) padecem aquelas e outras grandes caracterizações de povos e culturas de uma ilusão de perenidade dos modos colectivos de ser.2 E a isto Gilberto comentaria, ancorado em Schultz, Goffman, Becker, fazendo pontes com a sociologia e a literatura, que as identidades são multifacetadas, os contextos campos de possibilidades em que se desenvolvem projectos, as culturas nexos de coerência em devires colectivos plenos de incoerências. Mas não nos adiantemos à passagem do portal.

 

COMEÇOS DE UMA NOVA ANTROPOLOGIA PORTUGUESA: SOCIAL E CULTURAL

 

Regressemos ao contexto em que A Utopia Urbana de Gilberto Velho chegou ao meu conhecimento, estudante de uma licenciatura em antropologia cultural e social recém inaugurada em Lisboa. Num misto de indigência de meios e magnitude de intenções, destacava-se o empenho em criar um novo ramo de conhecimento e formar gente, desatendendo com sucesso às leis e tradições do mercado de emprego. Essa era a nossa realidade, primeiramente sediada em secções de terreno conquistadas por etapas a um quartel de Lisboa chamado Trem-Auto, na avenida de Berna, com edifícios precários, docentes emprestados, livros inexistentes, bibliografias polarizadas entre produções de um regime colonial até há pouco em vigor, e fotocópias de originais em inglês e francês, por vezes em traduções espanholas, escritos por autores colocados em pedestais académicos distantes, como Oxford e Paris, sobre os povos ainda mais distantes que habitavam desertos australianos, arquipélagos do Pacífico e florestas equatoriais americanas e africanas.

Não havia meios, mas havia muita paixão; e entre fotocópias, livros emprestados, idas ao Museu de Etnologia, que até tinha biblioteca com colecções de revistas internacionais, encomendas de Paris, tertúlias e intenso empenho em aprender essa novidade de uma ciência social mais entranhada no concreto da experiência que nos modelos estatísticos, mais respeitadora da diversidade das criações humanas que os modelos sociológicos em vigor permitiam, assim vivíamos, entusiasmados, a arte e prática de ser estudante de antropologia em Lisboa.

Não sabíamos, eu e colegas, o quanto viríamos a estar envolvidos na busca identitária colectiva que se impunha nesses anos, na procura de uma alternativa à imagética que sobrara do regime anterior. Não era programático da nova licenciatura que viesse a ser um veículo dessa busca, mas veio a fazê-lo sob a forma de pequenas etnografias, depois livros, primeiro na ruralidade, mas logo também no urbano; e por fim contagiou-se o mundo universitário desse entusiasmo de crescimento, criando mais licenciaturas e depois mestrados e doutoramentos, formando muitos jovens antropólogos cheios de vitalidade para se envolverem no projecto de conhecimento colectivo. E foram dezenas as obras entretanto publicadas, retratos do país de norte a sul, retratos críticos em conjunto e em partes, indagações, inquietações, documentários, intervenções (Viegas e Pina-Cabral, 2014; Bastos e Sobral, 2017).

Não se podia antever tal futuro: tudo foi acontecendo devagar e em aparentes actos de livre-arbítrio naquele campo de possibilidades que crescia em nicho precário de equipamento, mas fervendo em criatividade e abertura. De certo modo, a ausência de meios e de tradição académica específica ajudou a prevenir o estabelecimento de dogmas fechados e a estar disponível para aventuras. Por exemplo, encontrar ao acaso o livro de Gilberto Velho, a sua primeira monografia, e passar um portal que a antropologia criou.

 

PROJECÇÕES DE MUDANÇA

 

A Utopia Urbana era diferente de tudo o que conhecíamos. Estava escrita em português, e de raiz – em português, para além das poucas traduções de originais em francês ou inglês, praticamente só tínhamos etnografias do tempo colonial e estudos de cultura material. Nada de antropologia social. E esta era etnografia urbana, também diferente do que nos era servido em aulas de antropologia clássica, convencional e forte em Dogon, em Nuer e em Kiriwina. Ali estava um autor brasileiro que escrevia sobre a sua própria cidade, sobre o bairro onde vivia, sobre o prédio em que tinha habitado, que escrevia enquanto antropólogo, fazia antropologia na cidade e da cidade, e fazia-o muito bem, proporcionando conhecimento novo de uma particularidade, ao mesmo tempo que ampliava os instrumentos analíticos e as possibilidades metodológicas da disciplina.

Fiquei, como se diz hoje, agarrada, querendo mais, e continuando a ler o que a Portugal chegava de Gilberto Velho, partilhando o entusiasmo com colegas e aspirando a que um dia pudéssemos fazer algo semelhante (Cordeiro, 2014). Chegavam entretanto outras obras, como as colecções que Gilberto organizava a partir dos trabalhos dos seus estudantes no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, UFRJ (Velho, 1974, 1977 e 1980). Eram colectâneas que expandiam os estudos urbanos na sua multi-dimensionalidade, que exploravam novos temas e possibilidades metodológicas, que se faziam escola de pensamento e modo de etnografar.

Não podia então imaginar que uma década mais tarde, e depois de um complexo périplo, iria pessoalmente conhecer o autor, o bairro de Copacabana, a cidade do Rio de Janeiro – que seria também a cidade do meu terreno, se bem que noutros registos da urbanidade (Bastos, 2010, 2014). E que teria Gilberto Velho como conselheiro, professor, amigo e generoso interlocutor. E menos ainda imaginaria, nesses tempos em que fiz de A Utopia Urbana um portal para outro mundo, que estaria um dia a escrever sobre ele e a começar por este seu livro de juventude.

 

UTOPIAS URBANAS PARA TODOS

 

A Utopia Urbana contrastava com o que se fazia em Portugal; e Copacabana, os seus “conjugados”, as pessoas que neles viviam e as vidas que levavam ­contrastavam também com o que havia em Portugal. O que levava tanta gente a escolher o bairro, a deixar para trás espaços mais arejados e abraçar a vida aglomerada e apertada dos prédios de conjugados? Gilberto Velho descreve a ambiência desses prédios, a coexistência de sons, cheiros, visuais, corporalidades, costumes, a sua heterogeneidade, as modalidades de tolerância, intolerância e conflito, latente e manifesto; o estigma de viver num “balança” – de Balança mas não cai, nome de um programa humorístico de rádio envolvendo um conglomerado fictício, porém correspondendo, em gíria de arquitectos, a um conglomerado real que um dia balançou – como um dia me explicou Gilberto, passando na Presidente Vargas pelo legítimo e original (e gigantesco) balança. Tudo isso, mas também o conjunto de projectos individuais de um futuro mais interessante, de trajectórias de liberdade e escolha, enfim, de urbanidade, materializadas no glamour de Copacabana.

Não tínhamos nada equivalente em Portugal – mas, como o vieram a fazer alguns pioneiros da sociologia e antropologia urbana em Portugal, A Utopia Urbana de Gilberto Velho foi inspiração, modelo e chave para ler alguns bairros de Lisboa, resolvendo o paradoxo encontrado no terreno de serem os bairros típicos lisboetas maioritariamente povoados por migrantes do mundo rural. Assim o fizeram os sociólogos António Firmino da Costa e Maria das Dores Guerreiro nos seus trabalhos sobre Alfama (Costa e Guerreiro, 1984, 2014), e a antropóloga Graça Índias Cordeiro para a Bica, não sem ter ainda antes trabalhado o lazer urbano em Campo de Ourique (Cordeiro, 1993, 1997 e 2014).

Afinal, havia versões lisboetas de utopia urbana, obviamente contrastantes com a de Copacabana. Havia bairros destino, epítomes de urbanidade, de vida diferente, de concretização de projectos e materialização de trajectórias. Também neles havia sociabilidades próprias, sons, cheiros, tensões, latentes e manifestas, paradas, festas, lazer, quotidianos, associações, imagens feitas para o exterior de uma autenticidade bairrista e uma tradição que, como as outras, se faz no presente com a ideia de passado. Bairros, práticas, rituais, colectividades e grupos recreativos, ainda compostos na esteira da “comunidade” a que os estudos etnográficos tradicionais obrigavam, mas também interacções, diferenças, conflitos, dispersões, identidades múltiplas, rompendo com a tradicional demanda de “comunidades”, passaram a fazer parte da agenda de pesquisa – e a antropologia em Portugal fez-se, também, urbana. E, sem dúvida, e sem precisar de se justificar, em boa proximidade com a sociologia.

 

A ANTROPOLOGIA URBANA, PORTUGAL, BRASIL.

 

Se os livros de Gilberto Velho chegaram a Lisboa nos anos 70/80, ­influenciando trabalhos pioneiros sobre a cidade e criando espontaneamente discípulos à distância, o autor só nos visitou pessoalmente na década de 1990. Fê-lo primeiramente para integrar o III Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, organizado pelo ICS na Fundação Gulbenkian. Deixou marcas, trouxe novos livros (Velho, 1994; Cordeiro, 2014). Viria mais tarde a convite do ISCTE para um conjunto de conferências, assumindo definitivamente um lugar especial no desenvolvimento da antropologia urbana local, partilhando a sua experiência, perspectivas originais, ideias instigantes sobre cidade, projecto, desvio, campo de possibilidades, trajectória, camadas médias (Bastos e Cordeiro, 1997).

A partir daí, como lembram Costa e Guerreiro (2014), as visitas de ­Gilberto a Lisboa tornaram-se regulares, praticamente anuais. Cursos, supervisões, consultas de especialidade, painéis de avaliação, júris académicos locais passaram a contar com a sua presença. Muitos estudantes e recém-doutores começaram a circular entre os dois países, intensificando a troca, portugueses com estágios no Rio de Janeiro, brasileiros com estágios em Lisboa, bolsas sanduíche, visitas pós-doc, trabalhos iniciados numa modalidade que chegou para ficar. Projectos, painéis em conferências científicas, simpósios, seminários, publicações, foram tomando o modo de partilha, e desse processo saiu, também, o livro conjunto Portugal-Brasil Antropologia Urbana: Cultura e Sociedade no Brasil e em Portugal (Velho,1999).

São inúmeros os antropólogos portugueses directa ou indirectamente influenciados por Gilberto Velho; a dinâmica que a partir das suas visitas se instaurou marcou alunos e colegas, que ora intensificaram e expandiram a leitura das suas obras, nelas se inspirando para novas abordagens e interpretações de aspectos da vida urbana, ora partilharam com ele os lugares de pesquisa e tiveram-no como interlocutor na análise dos resultados e reflexão teórica subsequente, ora simplesmente disfrutaram da sua presença e espírito. Em homenagem póstuma, os antropólogos Celso Castro, do Rio de Janeiro, e Graça Índias Cordeiro, de Lisboa, reuniram testemunhos dessa influência, fazendo da colectânea uma referência incontornável para conhecer o impacto de Gilberto – autor, professor, colega e amigo (Castro e Cordeiro, 2014).

 

DESENVOLVIMENTOS CONCEPTUAIS E TRABALHO ACADÉMICO

 

Regressemos ainda à Utopia Urbana.Se a obra foi inspiradora de muitos pelo que reportava etnograficamente e media sociologicamente – já que o autor não deixou de recorrer a indicadores para melhor descrever o fenómeno estudado – deve também ser realçada enquanto antecipação dos desenvolvimentos conceptuais que Gilberto Velho viria a formular e a trazer como contributo original as abordagens às sociedades urbanas e complexas. Como aponta Júlia O’Donnell, sua discípula, ali surgem, ainda sem se exprimirem nestas palavras, “muito claramente, as ideias de projeto e de campo de possibilidades (…) fiéis companheiros de Gilberto em toda a sua trajetória” (O’Donnell, 2014, p. 68). Enunciados a propósito da vinda para Copacabana e da vida em Copacabana, escutados a quem escolheu ali viver, captados e narrados na etnografia exploratória do famoso Estrela, os conceitos de projecto e campo de possibilidades viriam a ser enunciados mais claramente em Projeto e Metamorfose (Velho, 1994), que enriquece a experiência etnográfica do Estrela com um conjunto de vinhetas em contextos urbanos, do Rio de Janeiro à área de Boston.

E em torno desses conceitos e de alguns outros que desenvolveu na interacção com o terreno e com autores que ajudaram a equacionar a complexidade experienciada na vida urbana (Alfred Schultz, mas também Ervin Goffman e o sempre presente Howard Becker), Gilberto Velho desenhou uma carreira singular. Perto de objectos e terrenos da sociologia, trouxe-os para a antropologia, deu-lhes a densidade do trabalho etnográfico e a espessura de significações e experiências interpretadas. Sem se abster de contar e medir, recorrendo a indicadores quantitativos quando pertinente (Velho, 1973), não se entregou aos grandes números e manteve a intimidade da pequena escala, da observação interpretativa, da comparação latente, da reminiscência ensaísta, a que não era alheia a experiência de leitura integral de Proust e uma cultura literária profunda e de amplo espectro.

Se a sua obra subsequente primou em ensaios e vinhetas, ou em colecções em torno de abordagens estruturantes, não se deve deixar de mencionar Nobres e Anjos (Velho, 1998), resultante da tese de doutoramento e mantida inédita durante muitos anos por respeito à privacidade daqueles cujas vidas, trajectórias e práticas estudou. A Utopia Urbana resultara do seu mestrado, finalizado em 1971, nos inícios do programa de antropologia do Museu Nacional; foi publicado pouco depois, em 1973. Tal aventura em terreno urbano, de que muitos terão discordado, tivera o aval de Anthony Leeds, então professor no Museu Nacional, e também ele um pioneiro da antropologia urbana. Prolongando a relação com Leeds, Gilberto Velho passou uma temporada na Universidade do Texas, em Austin, fazendo também nesse período uma breve incursão a Cambridge (Boston) – da qual resultou, anos mais tarde, um dos capítulos de Projecto e Metamorfose. Mas a trajectória de Gilberto seria maioritariamente no Brasil. Escolheu a prestigiada Universidade de São Paulo e para supervisar o seu doutoramento contou com a não menos prestigiada antropóloga – e amiga – Ruth Cardoso, também ela aberta à combinação de etnografia e indicadores (Eckert e Rocha, 2006). Explorou outra das suas linhas de preferência – desvio e divergência, complementares e simultâneos a projecto, mundos, trajectórias. Ao tempo, o Brasil vivia a sua também longa década de 70 enquanto regime autoritário, e revelar dados sobre os protagonistas de ­consumos proibidos, mesmo que disfarçados em pseudónimos, podia ter implicações perigosas para eles. Gilberto preferiu não publicar a tese, protegendo aqueles que descrevia. A ditadura não era um pano de fundo longínquo, mas uma ameaça próxima, que combateu enquanto estudante e a que resistiu quando presidiu à Associação Brasileira de Antropologia (Duarte, 2012). Só muito mais tarde, em finais de 90, a tese veio a público, depois de vários outros livros de ensaios, colectâneas, cursos e intervenções nos media e nas estruturas de governação. Gilberto Velho era já um intelectual público reconhecido, e o Brasil vivia em regime democrático.

 

NOTA FINAL: UM ANTROPÓLOGO SINGULAR

 

Referi ao longo deste artigo o pioneirismo de Gilberto Velho e o seu papel transformador na antropologia brasileira, mais tarde estendido à antropologia portuguesa. Para sermos justos, deveríamos porém reconhecer que o seu pioneirismo foi absoluto, e que a antropologia urbana se desenvolveu no Brasil, por sua influência, em simultâneo com a sua congénere do mundo anglófono; se a história intelectual das disciplinas fosse multilingue, Gilberto Velho seria certamente reconhecido como um dos fundadores da antropologia urbana, ponto, sem mais qualificativos localizantes. Não penso que isso lhe interessasse; nunca dei por qualquer indício de ansiedade por mais reconhecimento, tinha-o em abundância, como tinha uma vida plena. Praticava todos os dias a imaginação antropológica e sociológica, partilhava esse exercício com alunos e colegas, fazia-o com humor e generosidade, com estranhas demandas de horário, histórias descabeladas inventadas no momento, com reflexões genuínas e de largo alcance, inspirando a muitos e em muitas frentes. Deixou-nos neste paradoxo, metamorfose última, não está presente mas está presente, sempre a instigar a novas aventuras.

 

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Recebido a 17-11-2015. Aceite para publicação a 21-06-2016

 

NOTAS

1 Não terão sido poucos os que cometeram o deslize linguístico de chamar Gilberto Freyre a Gilberto Velho, ou vice-versa. “Freud explica”, como se diz no Brasil e, não posso garantir, mas apostaria que sim, diria também Gilberto Velho, a quem nunca faltaram humor e generosidade; e ele mesmo publicou um artigo sobre Freyre numa revista académica portuguesa, quando a proximidade e troca contínua com colegas da antropologia e sociologia urbana portugueses se tornou quotidiana (Velho, 2008).

2 Sem profetismo generalizante e mais ancorados na pesquisa histórica estão os estudos do nacionalismo português do antropólogo José Sobral (2003, 2012).

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