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Análise Social
versão impressa ISSN 0003-2573
Anál. Social no.222 Lisboa mar. 2017
RECENSÃO
PINTO, António Costa e MARTINHO, Francisco Palomares (eds.)
A Vaga Corporativa. Corporativismo e Ditaduras na Europa e na América LatinaLisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2016, 344 pp.
ISBN 9789726713685
Pedro Velez*
* Cedis, Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Campus de Campolide, 1099-032 Lisboa. E-mail:pedrorbavelez@hotmail.com
O livro A Vaga Corporativa, Corporativismo e Ditaduras na Europa e na América Latina tem, direta e imediatamente, como objetivo a análise da relação entre corporativismo e ditaduras. A empresa, na qual os professores António Costa Pinto e Francisco Palomares Martinho figuram como organizadores, mobilizou uma miríade de autores de diversa proveniência. Não obstante a contida configuração do objeto, a obra não deixa de concorrer para a abertura de novos e abrangentes horizontes interpretativos no campo dos estudos comparados sobre as [ditas] ditaduras do século XX.
Nela se mostra que os fenómenos político-institucionais aí analisados não podem ser descodificados quer meramente como instâncias de negação, negatividade e reatividade, de ausência de projeto constitucional, quer com base em rígidas dicotomias, como a contraposição autoritarismo versus totalitarismo ou a dualidade, pura, simples e última, entre democracia-liberal e um resto contrastivamente feito de autoridade/totalidade/ortodoxia.
As construções político-constitucionais objeto de análise são-nos reveladas como consubstanciando manifestações de ideias ordenadoras, de lógicas institutivas próprias; esteve em causa, por exemplo, uma conceção axiológico-política orgânico-estatal o poder político (soberano) passou a ser essencial e/ou fundamentalmente imaginado como poder uno, e a sociedade política como corpo político, como unidade e comunidade, e a subjetividade dos seus membros como subjetividade pública-comunitária (veja-se, por exemplo, o estudo introdutório panorâmico de António Costa Pinto capítulo 1). Não deixa de se recordar, por exemplo, que, na visão do seu arquiteto-mor, Alfredo Rocco (Guardasigilli dela Revoluzione e jurista do fascismo), a engenharia institucional fascista, enquanto definição de uma organização monoárquica integradora do social no político, deveria atualizar em grau máximo a ideia de Estado (interpretação que os chamados constitucionalistas fascistissimi Sergio Panunzio e Carlo Costamagna sufragariam e desenvolveriam) (v. capítulo 2).
Tal não implica negar o carácter eminentemente experimental, tentativo, destes novos fenómenos em destaque em relação à Norma (de derivação) Liberal. No continente europeu (ou pelo menos em grande parte dele), o período do entre-guerras não deixa, aliás, de poder ser observado e estudado primacialmente como um período de experimentalismo constitucional, como um período histórico em que a problemática central foi a da manutenção/reformulação/superação do ordenamento político-jurídico liberal-democrático. A hipótese corporativa inscreveu-se neste terreno de experimentalismo; provavelmente não poderia deixar de significar fatalmente mesmo no que toca a corporativismos com vontade de serem corporativismos de associação um trabalhoso processo de direção política constituinte, no sentido de implicar a construção institucional ex novo e/ou reinstitucionalização de instituições e espaços sociais existentes por parte do poder político; bem como a estruturação de uma autoridade política diretora independente (questão especialmente suscitada, por exemplo, por um Seipel na Áustria). O problema de como estabelecer definitivamente uma autoridade de tipo monoárquico era, aliás, um problema geral (na Alemanha do começo do III Reich, na Áustria, em Portugal e em Espanha discutiu-se a questão da restauração da monarquia; em Itália discutiu-se o problema da relação entre monarquia e mono-arquia fascista). Na obra A Vaga Corporativa não deixamos de ser recordados, por exemplo, de que o projeto corporativo daria origem a vivo debate no espaço público e político fascista ou nas experiências dos autodenominados Estado austríaco e Estado francês, bem como em solo espanhol, nas diferentes tentativas autoritárias (v. capítulos 2, 3, 5, 6).
Disse-se anteriormente que a obra organizada pelos professores Costa Pinto e Palomares Martinho convida à superação de rígidas dicotomias. Referimo-nos, desde logo, a uma contraposição simples entre autoritarismo e totalitarismo. No(s) retrato(s) taxonómico(s) agora sugerido(s) parece transcender-se as conhecidas lógicas de redução à univocidade ou, num sentido oposto, de redução à equivocidade, destacando-se uma inegável semelhança de família ao nível de uma partilhada lógica da instituição constitucional fundamental, da qual, genérica e caracteristicamente, foi parte e parcela uma hipótese corporativa. E tudo sem se negar a existência de importantes distinções essenciais entre as experiências políticas analisadas (veja-se, de novo, o estudo panorâmico do capítulo 1).
Sublinha-se também, ao longo do livro, que entre os fenómenos em presença se geraram circuitos de comunicação e aprendizagem constitucional, de mimetizações político-constitucionais, de entre-definições de identidade constitucional, de fertilizações constitucionais cruzadas. Entre tais fenómenos circularia toda uma semântica constitucional, feita de tópicos como o da ideia corporativa. O fascismo-regime, por exemplo, tornar-se-ia grande ponto de referência (positiva ou negativamente inspirador) das restantes construções constitucionais (v. o particularmente interessante capítulo 9, expressivamente intitulado Uma apropriação criativa. Fascismo e corporativismo no pensamento de Oliveira Vianna).
Temos em mente, ainda, uma outra contraposição: aquela que inocentemente separa democracia-liberal e um resto contrastivamente feito de autoridade/totalidade/ortodoxia.
Quanto a este aspecto central, não se oculta, desde logo, que no período do entre-guerras, e até posteriormente, o próprio paradigma corporativo pôde extravasar o pluriverso das ditaduras do século XX e ser encontrado, como tal (como uma ideia de época) ou a título de repetição não-idêntica, em ecologias constitucionais liberais-democráticas. Numa futura investigação, caberia perguntar se em tal temporalidade teve lugar ou em que medida ocorreu um imenso e grande jogo (construtivo) de definições mútuas e recíprocas entre discursos político-constitucionais opostos a aperfeiçoar a sua identidade no confronto do outro, a aprender a reconhecer momentos de estraneidade (momentos que têm a ver com o espaço conceptual do outro) no seu seio atente-se, por exemplo, para além da discussão acerca da compatibilidade entre o corporativismo e o constitucionalismo (na Checoslováquia e na Bélgica, por exemplo), nas polémicas acerca das consequências constitucionais do New Deal, ou da bondade das chamadas democracias militantes (a expressão é de Karl Loewenstein, abrangendo realidades constitucionais que erigiram explicitamente a democracia a codex de valores permitindo a supressão de forças políticas à esquerda e à direita). Um jogo que, porventura, se prolongaria no pós-guerra: pense-se na temática do reforço jurídico do poder executivo nos Estados Constitucionais liberais-democráticos coevos (recentemente assinalada, por exemplo, por um Marcel Gauchet).
Depois, o livro não deixa de se deter em experiências políticas cuja natureza íntima parece perturbar a estanquicidade da dita contraposição simples e pura. No analisado caso do regime de Perón (capítulo 12), regime emergente contra o pano de fundo da cristalização de um movimento nacionalista especificamente argentino, não deixa de se observar que uma essencial componente orgânico-estatista tendeu a ser transportada para o interior de um modelo constitucional democrático-liberal.
Importa ainda, neste plano, sublinhar que as chamadas ditaduras do século XX não têm deixado de ver vistas como coisas ajurídicas, ou coisas não jurídico--constitucionais (num sentido formal e mesmo num sentido último material). Ora, o presente livro, em vários dos seus capítulos, não deixa de concorrer poderosamente para um movimento analítico de sentido oposto. Nele, a dimensão jurídico-institucional e a ordenação jurídico-constitucional são tomadas a sério. Não se trivializa ou naturaliza as seguintes decisões ou opções fundamentais em fenómenos ditatoriais: a adoção de constituições formais; a existência de projetos de reconstitucionalização formal; a cristalização de doutrinas político-constitucionais ou de pensamento político constitucional de nítido perfil. Por outro lado, também aqui, a problemática da relação entre regimes não-liberais-democráticos e constitucionalismo parece ser revisitada no sentido da descoberta (da possibilidade da existência) de momentos constitucionalistas em ecologias políticas não-liberais-democráticas (em sintonia com os trabalhos de Robert Barros ou de Ran Hirschl).
O capítulo sobre o caso austríaco afigura-se particularmente eloquente: aí se dá conta da presença de uma sensibilidade constitucionalista no processo de refundação constitucional da Áustria, sob a constituição de 1934 (v. capítulo 3). Na divulgada síntese Alexander Somek, a ordem austríaca de 1934 apontaria, de alguma maneira, para um paradoxal (ou talvez não ) constitucionalismo autoritário.
Um último aspeto merece ainda ser devidamente enfatizado. Tem-se vindo a redescobrir (nomeadamente na ciência do direito constitucional hodierna) o cristianismo católico enquanto tradição e ingrediente político-constitucional. Também quanto a este domínio A Vaga Corporativa se destaca: em múltiplos dos seus capítulos, releva-se o peso do ingrediente cristão-católico nas experiências, projetos e pensamentos políticos analisados (casos austríaco, espanhol e francês, por exemplo; pensamento do integralismo brasileiro, abordado no capítulo 10 da obra). Neste livro, concorre-se ainda para um maior conhecimento do universo das experiências político-constitucionais que se destacaram num mapa da modernidade política como tendo aspirado a construir uma ordem cristã-católica, em boa verdade um conjunto de regimes que tem passado despercebido em tradicionais cartografias comparativas. Pensamos concretamente no estudo que aí se encontra sobre o pouco conhecido projeto de reconstrução político-constitucional de Laureano Gómez na Colômbia dos anos 50 (v. capítulo 13, o último da obra).
Numa palavra final, dir-se-ia que o leitor talvez se possa sentir autorizado a aguardar a edição de um segundo volume de A Vaga Corporativa, que eventualmente cubra experiências político--constitucionais que não puderam ser tematizadas neste volume, bem como os casos de consciente recusa de uma hipótese corporativa (o regime nacional-socialista, salvo num momento inicial; o caso do pensamento constitucional orgânico-estatal do presidente Smetona da Lituânia). Seja como for, A Vaga Corporativa valerá sempre em si e por si.