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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.225 Lisboa dez. 2017

 

RECENSÕES

CHILCOTE, Ronald H.

Intellectuals and the Search for National Identity in Twentieth Century Brazil,

Nova Iorque, Cambridge University Press, 2014, 306 pp.

ISBN 9781107785298

Frederico Ágoas*

*Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa. Av. de Berna, 26-C - 1069 - 061 Lisboa, Portugal. fagoas@gmail.com


 

Mesmo a um olhar forasteiro, a história intelectual brasileira ao longo do século XX afigura-se particularmente rica e diversa. Vista de fora, ressalta desde logo como a extensão continental e a diversidade regional do Brasil têm correspondência aproximada numa pluralidade de polos intelectuais, eles próprios marcados por realidades sociais e culturais bastantes díspares, do cosmopolitismo industrial de São Paulo ao multiculturalismo vibrante e retalhado do Rio de Janeiro, passando pela centralidade periférica do Recife, para referir alguns dos mais importantes, apenas. Sob esta polaridade local, projeta-se uma história nacional marcada pelas heranças mais ou menos recentes do colonialismo, da escravatura e do subdesenvolvimento e pela persistência das questões nacional, racial e social ou pela intensidade com que se digladiaram e cruzaram correntes de pensamento como o nacionalismo, o indigenismo, o modernismo, a negritude, o integralismo, o marxismo, o corporativismo ou o desenvolvimentismo. A um outro nível, a influência continuada de missões de professores estrangeiros, designadamente franceses, de fundações científicas norte-americanas, como a Fundação Rockefeller ou a Fundação Ford, e de organismos internacionais como a UNESCO, promoveu o contacto precoce e sustentado com a cena internacional das humanidades, que o autoritarismo feroz de duas ditaduras acabou por não atalhar. Antes disso, aliás, pelo seu exotismo e pela sua biodiversidade, o Brasil faz parte das rotas mundiais das ciências da natureza e da antropologia física.

Em contrapartida, as ciências humanas de um país periférico como o Brasil têm um alcance internacional incomparável, quer porque dali saíram teorias originais de relevância global ou investigadores de reputação mundial como Gilberto Freyre, Florestan Fernandes ou Fernando Henrique Cardoso; quer ainda porque por ali passaram no início das suas carreiras alguns dos maiores vultos internacionais daquelas ciências, como o historiador Fernand Braudel ou o antropólogo Claude Lévi-Strauss, para além de investigadores de relevo como Roger Bastide e Donald Pierson, este último a pretexto da aplicação local de um programa de pesquisa do primeiro grande núcleo institucional da sociologia norte-americana, em Chicago. Podemos até perguntar-nos se a abordagem científico--social que Braudel e Lévi-Strauss imprimiriam à historiografia e à antropologia não terá ficado a dever alguma coisa à estrutura integrada das diferentes ciências sociais nas universidades brasileiras à data das respetivas estadias no país. No que toca ao primeiro, o historiador Peter Burke sugere mesmo que a história social dos Annales possa ter tido em Gilberto Freyre um percursor.

Por estas e por outras razões, torna-se particularmente difícil mapear o desenvolvimento histórico do campo intelectual brasileiro, mesmo se o restringirmos ao século XX. A dimensão da empreitada fica bem patente em Intellectuals and the Search for National Identity in Twentieth Century Brazil, em que Ronald Chilcote sintetiza mais de três décadas de investigação consagrada aos debates científicos e políticos a respeito – mas também em torno e a pretexto – do tópico. Com efeito, a questão nacional surge aqui não tanto como horizonte da pesquisa, mas sobretudo como eixo da vida intelectual autóctone e, portanto, como via de acesso a discursos mais alargados acerca da natureza do colonialismo português na América do Sul, das especificidades do capitalismo brasileiro e da sua integração na economia mundial, da diversidade étnica e racial do país, da sua dependência material e simbólica face às grandes potências internacionais, do desenvolvimento do Estado moderno ou do advento da democracia e da política de massas. Parece ser, pois, no próprio método que reside a principal tese do livro, que, sem se deter na obstinação identitária do pensamento social brasileiro, nos persuade da possibilidade de compor uma sinopse das suas diversas correntes a partir dos esforços efetuados por gerações de intelectuais para “transcender um sentimento de inferioridade baseado no colonialismo brasileiro, no atraso e na dependência da cultura estrangeira” (p. 9).

Não obstante, esse está longe de ser o principal mérito de uma obra que, mais do que um simples itinerário imaterial, constitui uma sociologia exaustiva do domínio em questão, extraída da interseção entre as posições e os percursos intelectuais dos visados e a evolução da estrutura de classes no Brasil, as respetivas formas de representação política (partidos e movimentos sociais), o desenvolvimento do Estado e os suportes materiais da produção de ideias, designadamente universidades, centros de pesquisa e empresas editoriais.

Assim se compõe uma história institucional e política das ciências sociais focada no Rio de Janeiro e em São Paulo, centrada no período entre 1930 e 1980, mas devidamente enquadrada a montante e a jusante pela análise das condicionantes político-intelectuais que determinaram o seu advento e pelas consequências político-sociais a que entretanto estiveram associadas. É esse o efeito conjunto do primeiro e do último capítulo da obra, onde se começa por relatar a emergência de um sentimento de orgulho nacional e as primeiras tentativas de superar o atraso e a subordinação cultural ao estrangeiro, em torno da década de 1920, e se estabelecem os marcos da narrativa subsequente, definida pelos ciclos de autoritarismo e democracia; e onde se relatam depois os esforços mais recentes da parte de intelectuais progressistas para suprir as fraturas da sociedade brasileira, por intermédio do Estado e da luta política, e as relações que mantiveram a este respeito com organizações laborais e movimentos sociais. Entre os dois extremos, os três restantes capítulos analisam a emergência e o desenvolvimento dos principais polos de pesquisa científico-social de meados do século e a constituição das variantes locais da teoria da dependência, sempre em diálogo com as formulações clássicas e estrangeiras do mesmo problema.

Nestes termos, à crítica de esquerda ao imobilismo político da oligarquia terratenente, no início do século, Chilcote faz suceder a institucionalização do projeto educativo da classe média emergente e da agenda industrialista dos grandes empresários de São Paulo, articulados por figuras como o sociólogo Fernando Azevedo e o industrial Roberto Simonsen, e materializados na criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (1934), de âmbito estadual, e da Escola Livre de Sociologia e Política (1933), de natureza privada. No Rio de Janeiro, à época capital, é o estrato dirigente que se impõe, com o projeto centralista da Universidade do Brasil (1937), que liquida a recém-criada Universidade do Distrito Federal. Ali, duas figuras assomam: Victor Nunes Leal, ligado à ciência política, e Alberto Guerreiro Ramos, professor de administração na Fundação Getulio Vargas e sociólogo no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), de que o segundo capítulo se ocupa. Criado em 1955, e vinculado ao Ministério da Educação e Cultura, agrupa intelectuais de todo o espectro político, de antigos integralistas a comunistas reconvertidos, agora movidos por um nacionalismo desenvolvimentista que pugna pelo estímulo à indústria e pela modernização do Estado. Com larga influência intelectual e política durante a presidência de Juscelino Kubitschek, é extinto com o golpe militar de 1964, numa altura em que experimenta uma deriva marxizante e que em São Paulo se chega à primeira formulação da teoria da dependência associada, em contraponto às teses desenvolvimentistas do ISEB. Para Chilcote, trata-se do culminar de um projeto mais estritamente académico – de que o terceiro capítulo se ocupa – radicado na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo e onde se destacam os sociólogos Florestan Fernandes e António Cândido, originalmente como assistentes de Fernando Azevedo, e, depois, Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso, alunos de Fernandes.

Na capital paulista, aos estudos de comunidade da Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP), conduzidos a partir do final da década de 1930 por Donald Pierson ou pelo antropólogo de origem germânica Emilio Willems, impõem-se os estudos empíricos sobre racismo e estratificação social da escola de sociologia da Universidade de São Paulo, cujo domínio institucional é manifesto já no final da década de 1940. A este respeito, Chilcote destaca a crítica movida pelos professores franceses daquela universidade e por Fernandes às noções de aculturação e assimilação, e a importância do ciclo de estudos sobre relações sociais no Brasil promovido pela UNESCO, na década de 1950, para a superação do paradigma culturalista – a despeito dos pressupostos da própria pesquisa, sublinhe-se – e, mais genericamente, para o descrédito do mito da democracia racial brasileira, com consequências para a afirmação posterior das duas instituições – ambas com investigadores no projeto. No mesmo sentido, a constituição do chamado “grupo do Capital” em 1958 é apontada como momento decisivo da crítica à hegemonia teórica do funcionalismo e ao nacionalismo metodológico prevalecente. Animado por José Arthur Giannotti, Fernando Henrique Cardoso, Ruth Cardoso, Octavio Ianni e Paul Singer, entre outros, o seminário em torno das obras de Marx prolonga-se até 1964 (e depois até 1967, com novos protagonistas) e surge aqui na base dos contributos locais em torno da ideia de dependência. A nível institucional, a criação do Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho (CESIT), em 1961, com fundos da Confederação Nacional da Indústria e de apoio à pesquisa do Estado de São Paulo; e a instituição do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), em 1969, com fundos da Fundação Ford, dão expressão aplicada a esta dinâmica e traduzem momentos diferentes da relação dos intelectuais com os poderes públicos, face ao advento da ditadura militar. À margem dos grandes centros de pesquisa, o historiador Caio Prado Júnior permanece como figura tutelar desta linhagem e os seus contributos substantivos acerca da história económica do Brasil são aqui recuperados como ponto de partida para a revisão dos debates centrados no advento do capitalismo no país e dos contributos teóricos em torno das ideias de atraso, subdesenvolvimento, dependência, desenvolvimento dependente associado, subimperialismo e superexploração, a que Chilcote consagra o quarto capítulo.

A nível metodológico, importa salientar o corpus de mais de 60 entrevistas em que o trabalho de Chilcote se baseia e a abrangência enciclopédica do conjunto da obra, que se ocupa com o mesmo escrúpulo de autores consagrados e de outros menos conhecidos, pelo menos para iniciados nestas questões. A forma como assim se veicula a densidade das redes institucionais e pessoais envolvidas nos debates em torno da identidade nacional brasileira e o trânsito propriamente intelectual, neste domínio, entre o campo académico e o campo político é outro dos principais contributos do livro. Em contrapartida, as resenhas individuais que traduzem este esforço e que compõem largas secções do articulado acabam por perturbar um pouco a fluência do texto. O mesmo se pode dizer das sinopses bibliográficas consagradas a cada um dos visados, que traduzem o carácter exaustivo da pesquisa e representam, por isso, excelentes convites à leitura orientada dos respetivos trabalhos, mas que são muitas vezes algo esquemáticas e nem sempre concorrem diretamente para o argumento desenvolvido a cada passo.

Em termos substantivos, compreende-se que se abdique de mapear em paralelo o campo cultural, delimitando – de forma apenas tácita, porém – a análise dos discursos que visaram a superação do atraso e a afirmação nacional do Brasil ao campo científico e político. A opção, todavia, não deixa de ter algumas consequências para os termos da narrativa. Em causa está, desde logo, a devida caracterização do movimento alargado que a partir da década de 1920 se confronta com estes problemas e procura fontes culturais complementares, designadamente indígenas e tradicionais, às doutrinas estrangeiras que inicialmente mobilizam esta deriva reflexiva e, mais especificamente, o modernismo local, a que se tem associado, a nível intelectual, o ímpeto gerador das ciências sociais no Brasil. De forma mais relevante, em causa estão também as ligações objetivas que um dos seus protagonistas – Mário de Andrade, no caso – manteve com os principais cultores da sociologia e da antropologia, em São Paulo, no quadro do Departamento de Cultura da prefeitura da cidade, de que o poeta e escritor foi diretor na segunda metade da década de 1930. Entre outras eventuais consequências, um enfoque mais alargado, a este respeito, poderia fazer ressaltar as origens aplicadas das ciências sociais na capital paulista, desenvolvidas com base na pareceria estabelecida entre o governo local e os primeiros professores americanos da ELSP, tanto mais quando se sabe que foram estudos engendrados neste circuito, junto dos operários paulistanos, que impuseram o padrão de cientificidade entretanto transposto para a escola de sociologia da USP, por intermédio de Florestan Fernandes e de outros que ali fariam os respetivos doutoramentos, durante a década de 1940.

Por mapear ficam também os diagnósticos decadentistas da antropologia física brasileira do início do século e os desígnios reformistas dos médicos sanitaristas do Instituto Oswaldo Cruz, por exemplo, que também enquadram as primeiras propostas de superação do atraso e conformam muitos dos topoi das ciências sociais ulteriores. O mesmo se aplica ao otimismo culturalista de Gilberto Freyre, que, a partir do Recife, e a par da sua profusa e conhecida atividade literária, protagoniza iniciativas determinantes para a implantação institucional da sociologia, antes ainda do seu reconhecimento académico. Tudo isto, todavia, pode ser visto como exterior aos objetivos de um livro que cumpre plenamente o seu programa e que, para além dos méritos anotados, merece ainda ser lido pela forma como acolhe as relações produtivas entre ciência e política e, por esta via, extravasa leituras estritamente institucionalistas da história das humanidades.

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