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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.228 Lisboa set. 2018

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2018228.02 

ARTIGOS

Historiografia, historiadores e memória nacional na I República portuguesa

Historiography, historians and national memory in the 1st Portuguese Republic

Sérgio Campos Matos*

*Centro de História, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, Alameda da Universidade - 1600-214 Lisboa, Portugal. sergiocamposmatos@gmail.com


 

RESUMO

Historiografia, historiadores e memória nacional na I República portuguesa. Durante a I República, a história teve lugar de relevo na argumentação política e doutrinária e na própria legitimação do novo regime. Nesses anos prosseguiu um esforço de nacionalização dos portugueses que se desenvolveu nos mais variados domínios. A memória histórica foi um deles. Quais os grandes temas de debate na historiografia portuguesa? Como se operou a republicanização da memória nacional? Entre outros tópicos (v.g. formação de Portugal, decadência), especial destaque é concedido à Restauração de 1640 para examinar em que medida os historiadores contribuíram para a construção da memória da nação - quando sabemos que muitos outros agentes sociais intervieram nesse processo.

Palavras-chave: historiografia; historiadores; memória nacional; nacionalização.


 

ABSTRACT

During the 1st Portuguese Republic, history always had a highly visible place in the political and doctrinal argumentation and legitimization of the new regime. In those years the process of nationalization of the Portuguese went on in various fields. The historical memory was one of them. Which were the major historical debates in Portuguese historiography? How did national memory turn into a republican memory? Among other topics (e.g. formation of Portugal, decadence) special emphasis is given to the 1640 restoration to examine the extent to which historians contributed to the building of a national memory, as we know that many other social agents were involved in this process.

Keywords: historiography; historians; national memory; nationalization.


 

No campo historiográfico exprimem-se dinâmicas que vão muito para além das conjunturas políticas, pois prendem-se com heranças do conhecimento e com o próprio alargamento dos saberes nas ciências humanas. No entanto, a relação da memória histórica com a Res publica tem não raro um condicionalismo conjuntural. Num caso concreto, o da I República portuguesa (1910-1926), tem interesse observar o lugar específico da história na argumentação política e doutrinária, designadamente na legitimação do novo regime. Na Europa dos decénios de 1910 e 1920, radicalizaram-se os nacionalismos e aprofundaram-se clivagens ideológicas e memoriais. Tratava-se também de uma disputa entre intelectuais de diferentes tendências pela hegemonia cultural na Republica das Letras e na opinião pública, uma disputa em que o passado ocupava um lugar central. A história já tinha aliás sido largamente mobilizada pelo republicanismo na oposição à Monarquia Constitucional, desde os anos 70 do século XIX: lembre-se, por exemplo, a História das Ideias Republicanas em Portugal, de Teófilo Braga (1880). Foi menos cultivada pelos contra-revolucionários e tradicionalistas em Portugal.

Portadora da memória da nação e das memórias regionais e locais, à história continuava a ser atribuída função social de relevo - como sucedia desde a revolução liberal. Era vista como instrumento de formação dos cidadãos que, nas palavras do historiador republicano António Ferrão, num discurso proferido em finais de 1917, podia “retemperar o espírito e fortificar o ânimo colectivo” (Ferrão, 1919, p. 3), trazer confiança no futuro. Num tempo instável (viviam-se então os anos conturbados da I Guerra Mundial), sublinhava-se assim a continuidade passado-presente-futuro. Já no republicanismo oitocentista a esperança do futuro estava num passado exemplar que o antecipava, que o fazia prever, chave do historicismo nacionalista que domina o período que temos em vista. Já tem sido, aliás, sublinhado este carácter historicista e biologista do republicanismo oitocentista (Catroga, 1991, pp. 193-205; Homem, 1989, pp. 199-200).

Durante o primeiro regime republicano prossegue um esforço de nacionalização da história (Torgal, 1996, p. 223) que se empreendeu nos mais variados domínios, da simbologia nacional à imprensa, passando pelas artes plásticas, a literatura ou a música. A escola e as forças armadas contribuíram decisivamente para este processo de nacionalização. É conhecido o esforço que a elite republicana desenvolveu no campo educativo, em todos os graus de ensino, embora por razões várias ficasse muito aquém do plano das suas intenções. Destaque-se o alargamento há muito reclamado do ensino superior, com a criação de duas novas universidades em Lisboa e Porto (1911). E os historiadores?

Num tempo em que, como sucedia noutras comunidades historiográficas, dominava o autodidatismo e a prática de uma multiplicidade de géneros, o número de historiadores “institucionalizados” (isto é de professores universitários) era em Portugal ainda muito reduzido - não ultrapassava 7 -, comparável ao de pequenas nações europeias como a Irlanda, a Grécia, a Dinamarca ou os países nórdicos. Aumentou significativamente, sobretudo com a criação da Faculdade de Letras do Porto (1919), atingindo em 1928 o número de 14 (em Espanha, no mesmo ano eram 35). Mas logo ficaria limitado a metade com o encerramento desta Faculdade decretado pela Ditadura Militar em 1931 (Matos e Freitas, 2010, p. 123).[1] Tal como em Espanha, num tempo em que não se definira ainda a figura do historiador profissional, dominavam os eruditos. Compreende-se que, num universo tão restrito, a universidade tivesse uma função relativamente pouco relevante na historiografia. O que também sucedia em Espanha, apesar da diferença de escala (Ruiz Torres, 2000, p. 22). Todavia, a legislação universitária de 1911 contemplava, entre outros objetivos, o “estudo metódico dos problemas nacionais” e “a difusão da cultura na massa da nação” (Diário do Governo, n.º 93, 22-04-1911, p. 691). Para além da investigação e do ensino, a nova elite chegada ao poder concedia a maior relevância à nacionalização dos portugueses (Sobral, 2012, pp. 57-79). Professores, intelectuais, jornalistas, políticos e artistas envolveram-se neste propósito, quer fossem republicanos quer tradicionalistas. A Renascença Portuguesa, uma associação cultural criada no verão de 1911, por iniciativa do futuro historiador Jaime Cortesão, exprime-o bem. Ou, num âmbito mais direcionado, a Sociedade Portuguesa de Estudos Históricos, fundada por um outro historiador, Fidelino de Figueiredo, em que a maioria relativa dos sócios já era de professores universitários (Brito, 2012, p. 62). No entanto, o campo historiográfico era ainda dominado pela figura do autodidata não especializado, não raro erudito e frequentemente envolvido na res publica. Refira-se, a título de exemplo, Anselmo Braamcamp Freire, fundador do Arquivo Histórico Português, que ocupou diversos cargos políticos, do poder local ao estado central.[2]

Quais foram os grandes temas de debate na historiografia portuguesa durante I República? Poder-se-á considerar que houve uma republicanização da memória nacional? Concederei especial destaque ao lugar da Restauração de 1640 para confrontar historiografia e memória pública: qual a função dos historiadores na construção da memória da nação, quando sabemos que muitos outros agentes sociais para tanto contribuíram?

Em 1930, já em plena Ditadura Militar, Luís de Montalvor, que coordenou a História do Regimen Republicano em fascículos, lembrava que a história da República portuguesa estava por fazer. E denunciava que então se atribuíam a este regime todos os males de que sofria a nação (Montalvor, 1930, pp. 6-8). Passavam 20 anos sobre o 5 de outubro e estava-se em tempos de revisão do passado nacional, programa sistemático que os intelectuais tradicionalistas ligados à revista Nação Portuguesa - com destaque para António Sardinha - vinham assumindo (Matos, 2015). É certo que nos anos 10 e 20 se publicaram narrativas cronísticas ou em registo memorialista relativas a um passado próximo, sobre a intervenção portuguesa na Grande Guerra, a evolução do 14 de maio de 1915 ou o sidonismo. Mas seria preciso esperar pelos finais do Estado Novo para que se desse um impulso na historiografia sobre a própria I República.

TENDÊNCIAS

Um conceito de história herdado do século XIX que permaneceu no sistema de divulgação e nos dicionários nas primeiras décadas do século XX foi o de narração, exposição ou descrição dos factos, desdobrando-se depois em matizes diversos. O tão comum tópico pragmático que remontava a Cícero - história mestra da vida - continuava a ser invocado. Dominava ainda uma consciência histórica que vivia dos exemplos do passado tido como Idade de Ouro - o antigo regime de historicidade, se admitirmos o conceito teorizado por François Hartog (2003) -, era ainda muito cultivado, convivendo com a projeção num futuro previsto e pré-inscrito naquele passado. As permanências eram evidentes. Mas os modos de conceber a memória histórica tinham mudado profundamente. Se a história documental, preocupada com a autenticidade dos factos, já se vinha afirmando de um modo evidente no século XVIII, no tempo das revoluções liberais e da secularização o conceito de história-ciência legitimara em novos termos a autonomia da disciplina, dotando-a de exigências heurísticas e hermenêuticas então comuns na Alemanha e na França. Abrira-se assim caminho para o reconhecimento da sua indispensável função social e cívica, generalizando-se a disciplina de História em todos os graus de ensino, do primário ao superior, a que se associou o reconhecimento da necessidade da formação de historiadores profissionais - esta última concretizada em momentos bem diferenciados, primeiro na Alemanha, depois na França e na Península Ibérica já em pleno século XX. Ethos científico e caráter doutrinário da prática historiográfica acabaram por andar associados (Iggers, 1997, p. 28). A dimensão política da dedicação ao estudo do passado estaria aliás sempre presente ao longo do século XX e a autonomia do ofício do historiador sofreu a pressão dos poderes (Raphael, 2012, p. 57).

Desde os finais do século XIX, em consonância com o positivismo então em voga, dominava já o conceito de história-ciência que partindo da observação, afirmava confiança num conhecimento assente em alegadas leis que regem as sociedades contemporâneas. Mas muitos historiadores limitavam-se a praticar uma história erudita e documental, não problemática, e que se reduzia à superfície do acontecimento, numa postura de tendência mais “realista” e passiva, de mero registo (Kracauer, 2006, p. 105) aparentemente desligado dos problemas do presente, como se de uma ciência pura se tratasse: era o caso de alguns dos colaboradores das revistas O Arquivo Histórico Português (1903-1917) e da Revista de História (1911-1928). Outros, mais criativos e intervenientes, resistindo ao positivismo, procuraram estabelecer relações entre história, filosofia, geografia e sociologia. E reconheciam, como Benedetto Croce, que o historiador é produto do seu tempo. Mas muitos adotavam um conceito de raça como chave da diferenciação da nação[3] ou isolavam fatores de evolução social como o meio e a luta pela existência. Reduziam assim a experiência histórica e o devir a pressupostos deterministas e inelutáveis.

Durante a I República, a historiografia portuguesa prolonga as grandes tendências que vinham do século anterior. Depois de Alexandre Herculano, autores de formação positivista como Emídio Garcia, Teófilo Braga, Consiglieri Pedroso e António Enes, todos republicanos excetuando o último (que todavia chegou a simpatizar em jovem com o republicanismo), aderiram ao conceito de história-ciência, valorizando um modelo de verdade importado das ciências experimentais, reconhecendo a função das leis em história e, alguns deles, a possibilidade de prever a evolução futura das sociedades humanas. A Academia das Ciências de Lisboa, a Universidade de Coimbra e o Curso Superior de Letras (transformado em Faculdade de Letras desde 1911) foram os principais centros de difusão destas ideias. Nessa época, o republicanismo ganhava influência na sociedade portuguesa, sobretudo nos meios urbanos. A sua leitura do passado nacional era construída a partir de conceitos-chave como civilização, progresso, decadência, nação, carácter nacional, povo, raça e revolução, numa narrativa laica e anticlerical que antecipava a evolução considerada necessária para alcançar uma república redentora. Tal como em Espanha (Alvarez Junco, 2001, p. 214), paraíso, expiação e redenção constituíam momentos marcantes desta visão historicista do passado. Os liberais radicais e os republicanos valorizavam o papel do povo na transformação social e justificavam a expectativa de mudança de regime político - a implantação da República. Desde o século XVI, o absolutismo, o catolicismo tridentino e até mesmo a expansão ultramarina teriam levado a nação à decadência, desviando-se assim de um percurso ideal que fora o medieval: um tempo forte em que os concelhos e as cortes tinham uma palavra a dizer na política nacional. No essencial era esta a filosofia da história de Portugal que Antero de Quental sistematizara na sua célebre conferência pronunciada no Casino de Lisboa em 1871 (Quental, s.d. [1871]). Muito antes da mudança de revolução republicana de 1910, dos primeiros doutrinários da ideia liberal a Basílio Teles, passando por Herculano e até pelo liberal conservador Pinheiro Chagas, uma consciência res publicana foi dominando o campo historiográfico. E desgastando a imagem dos monarcas da dinastia de Bragança.

Por outro lado, a partir do decénio de 1870, o conceito providencialista de história, sobretudo cultivado por católicos conservadores, tornara-se minoritário em termos de expressão pública (tal como o legitimismo miguelista tendeu a isolar-se numa margem combativa da vida política portuguesa). Este setor sublinhava a religiosidade inata dos Portugueses, defendia geralmente o estado confessional em estreita relação com a Igreja ultramontana e a liberdade das ordens religiosas. Aderia ainda, por vezes, a tradições míticas de fundação como o milagre de Ourique (Buescu, 1987). Mas não havia no Portugal oitocentista nenhum grande vulto neste campo ideológico que pudesse disputar a indiscutível primazia de Herculano, como sucedia em Espanha com o grande historiador católico Menéndez Pelayo.

Nos primeiros anos da República, a atenção conferida à política memorial é bem evidente na estratégia cultural então adotada. Inauguraram-se novos arquivos distritais (Lisboa, 1915; Bragança e Évora, 1916 e Braga, 1917) e o Arquivo Histórico Militar (1911). Adotou-se nova bandeira e o hino nacionais. Definiram-se novos feriados, entre outros, o 31 de Janeiro, o 5 de Outubro e depois o 1.º de Dezembro. Comemoraram-se, ainda que sem a eficácia dos centenários de finais de Oitocentos, efemérides como a conquista de Ceuta, as mortes de Afonso de Albuquerque (1915) e Fernão de Magalhães (1920), a independência do Brasil (1922) ou o nascimento de Camões e morte de Vasco da Gama (1924) (Catroga, 1996, pp. 567-579; João, 2002 pp. 76-80). Ergueram-se monumentos - caso dos memoriais aos mortos da Grande Guerra e de outra estatuária urbana[4] e emitiram-se selos de temática histórica.[5] A relevância concedida ao ensino da História nos diversos graus de ensino, o debate a este respeito e a ação pedagógica da associação cultural Renascença Portuguesa[6], fundada em 1911 (que aliás deu grande destaque à história nas universidades livres a ela ligadas) contribuíram também para a formação da consciência histórica dos portugueses. Já em 1912, Jaime Cortesão chamava a atenção para a relevância de uma história ensinada que valorizasse o lugar do povo mas também o esforço individual e o heroísmo de alguns (Cortesão, 1912, pp. 118-124). Entre os intelectuais da Renascença Portuguesa - caso de Cortesão, mas também de Pascoaes ou de Augusto Casimiro - manifestava-se a convicção de que a sociedade portuguesa estava desnacionalizada, tópico que aliás não era novo e se encontrava implícito na ideia de “reaportuguesar” Portugal, a que já Eça de Queiroz dera expressão no final do século anterior. Na I República estava em causa a construção da memória da nação e da simbólica do novo regime, mas não só: também a sua legitimação pública, convocando um tempo áureo anterior ao Estado absoluto, visto como tempo dissolvente de queda.

Nesses anos, a influência da história metódica, tal como era teorizada e praticada em França por Langlois e Charles Seignobos, é já bem evidente nas escolas superiores em Portugal. Joaquim de Carvalho e Vieira de Almeida são exemplos disso, caldeando-a no quadro de um pensamento de matriz kantiana: “O fim da história é rectificar, orientar, objectivar, embora sem directamente dizê-lo, a noção de progresso (…) é ‘o mais completo desenvolvimento do homem como ser racional'” (Almeida, 1911, p. 48). E para Joaquim de Carvalho, em 1932, “a história não é o documento, embora sem os documentos se não possa fazer a história” (Carvalho, s.d. [1932], p. 307). Alguns preferiam contudo um conceito positivista-darwinista em que a grande lei da história surge definida enquanto “Ordem como meio e o Progresso por fim”, isolando dois fatores “supremos e únicos” do desenvolvimento humano: o meio e a luta pela existência. Nas vésperas da eclosão da I Guerra Mundial, José Augusto Coelho reduzia assim a história a uma dimensão biológica, num estreito determinismo: “No vasto mundo dos seres vivos, a luta pelas subsistências, a concorrência, os egoísmos que se topam e dilaceram, os conflitos pelo meu e pelo teu - eis a grande lei geral da existência, irrefragável, soberana, fatal. Ela arrasta na sua vertigem plantas, animais em geral, homens, povos; ele tudo mobiliza, impele, desloca, embate, confunde e transforma. Lutar pela Existência é pois mudar; e Mudar é a condição primordial para avançar, para progredir” (Coelho, 1914, pp. 202-203). Também Serras e Silva, professor da Universidade de Coimbra, já no final da I República, expunha um conceito causalista de história-ciência, partindo da observação e conhecimento das leis que regem as sociedades contemporâneas e dando primazia ao domínio da vida privada e não às instituições políticas (Silva, 1926, pp. 78-83). O determinismo cientista continuaria presente nas ciências humanas, apesar da voga espiritualista e mística dos finais do século e das posteriores investidas do voluntarismo idealista e racionalista dos seareiros.

A memória da nação, tal como foi difundida nos livros escolares, permanecia dominada por um paradigma liberal e laico do passado. O mesmo sucedia, pode dizer-se, no plano mais geral da historiografia: a memória herdada dos vencedores da revolução liberal era a dominante. No que respeita às histórias gerais, a par da História de Portugal de Oliveira Martins, a da autoria de Manuel Pinheiro Chagas continuava a ser a mais divulgada. Uma novidade editorial neste plano veio da parte de Fortunato de Almeida, professor do liceu, um dos expoentes de uma narrativa católica e conservadora, que deu início à publicação da sua História de Portugal no pós-guerra (1922-1929). Significativo, aliás, é que se mostrasse muito crítico em relação àquelas outras obras suas antecessoras. Afirmava ele em relação à de Pinheiro Chagas: “carece (…) de inteireza de plano e harmonia de proporções; tem excessos de difusão e desvios, e falta-lhe com frequência o pormenor característico e valioso; e pior do que tudo, a obra foi elaborada quase exclusivamente à vista das fontes tradicionais…”. E no que toca à de Oliveira Martins, excluía-a do campo historiográfico, catalogando-a como “peça literária dominada de sentimentos pessoais” (Almeida, 1922, I, XIII). Noutros termos, desqualificava também a oitocentista obra do alemão Schaefer. O que levanta o problema ainda não suficientemente explorado na cultura histórica portuguesa da relação dos historiadores com os seus antecessores, das genealogias (reais ou ideais) que constroem para si próprios, das inclusões e exclusões em redes informais. Estava em causa a problemática da sua própria legitimação. Também a este respeito o caso de Fortunato de Almeida é significativo na sua definição de intenções: distanciando-se de elocubrações literárias, preferia-lhes “uma maior variedade de factos”, a “escrupulosa verificação das fontes”, numerosas indicações bibliográficas incluindo referência a nova documentação descoberta por eruditos e “a abundância e exactidão de dados cronológicos” (Idem, XV-XVI). Em lugar de discussão crítica, o historiador valorizava uma atitude que poderíamos qualificar de objetividade passiva. Compreende-se assim a crítica que lhe dirigiu António Sardinha, mestre do Integralismo Lusitano, movimento monárquico entretanto constituído na oposição tradicionalista à República. Sardinha fustigava o seu excesso de erudição, a superficialidade e “ausência de individualidade” (Sardinha, 1922, pp. 234-235) e desconsiderava Fortunato de Almeida pela sua passividade e ausência de teoria, submerso que estava no pormenor dos acontecimentos. Que ele se limitava geralmente à superfície dos factos positivos, não há dúvida. Mas, por vezes, a sua tomada de posição, mais do que latente é manifesta.[7]

Seja como for, por essa época, nos meios conservadores estava na ordem do dia a intenção de rever a interpretação do percurso histórico nacional legada pelo liberalismo - era o passado visto como campo de batalha, para empregarmos a metáfora de Enzo Traverso. Já em 1918, António Sardinha advertia que a história era “o elemento mais decisivo para a vitória do nosso nacionalismo” [o do Integralismo Lusitano] (Sardinha, 1940 [1918], p. 240). E nas páginas d'A Nação Portuguesa, em 1922, Sardinha exprimia aquela intenção em termos muito claros:

Um necessário trabalho de revisão se impõe simultaneamente - espécie de breviário de correcções ou erratas, em que se instrua o processo das diversas lendas-negras que deprimem a face augusta do nosso Passado. Com o objectivo de mostrar Portugal, sobretudo, como uma personalidade moral, prolongando-se no espaço e no tempo, uno e contínuo, essa História, a fazer-se, sem cair no detalhe excessivo, não deve também esquecer a revisão correspondente dos juízos e conceitos pré-concebidos…” [Sardinha, 1922, p. 234 sublinhado meu].

Para Sardinha, havia que fazer um esforço de síntese, de modo a tornar a história acessível ao grande público. A alternativa não estava pois no paradigma de uma história documental e erudita, antes na “esplêndida” Historia de España do seu amigo Antonio Ballesteros, extensa obra que começara a publicar-se em 1919, marcada por uma orientação conservadora e essencialista da história espanhola, centrada numa ótica castelhanista e distanciada do “liberalismo progressista”.[8] Mas era esta obra de Ballesteros, na sua intencionalidade, sobretudo informativa, um exemplo de síntese? A resposta só pode ser negativa (não surpreende pois que Ballesteros publicasse depois uma obra de divulgação mais acessível). No seu intuito polémico, Sardinha estava empenhado em mostrar que havia outra estratégia narrativa e de divulgação mais eficaz do que a de Fortunato de Almeida. Passava pela reabilitação de monarcas da dinastia de Bragança como D. João IV, D. João V, D. João VI, D. Carlota Joaquina ou D. Miguel (que considerava o rei legítimo), cuja memória tinha sido diminuída pela cultura histórica liberal, e a revisão crítica das representações que esta última legara de figuras como Gomes Freire, D. Pedro IV ou Mouzinho da Silveira. No entanto, a intenção de proceder a uma revisão da história de Portugal não era exclusiva dos integralistas: encontramo-la explicita ou implicitamente em intelectuais católicos tão influentes como Gonçalves Cerejeira - futuro cardeal patriarca - ou no já referido Fortunato de Almeida. Partiria contudo do Integralismo Lusitano o impulso mais sistemático nesse sentido. Autores como Caetano Beirão ou João Ameal - sem esquecer Alfredo Pimenta - concretizarão mais tarde a ambição de escrever novas narrativas da história nacional na ótica de um nacionalismo tradicionalista e apologético em relação ao Estado Novo, um tradicionalismo que não deixaria de evidenciar forte marca católica. Estas divergências mostram bem como no mesmo campo político - o do tradicionalismo - podemos encontrar conceções diversas de história. E como uma noção como o “revisionismo”, importada do campo político, pode ser insuficiente para compreender a diversidade de posições no campo historiográfico.[9] Voltemos porém aos princípios do século.

FORMAÇÃO DE PORTUGAL

Que grandes temas detinham então a atenção dos historiadores? Refira-se, em primeiro lugar, a problemática da formação de Portugal como Estado e Nação independente, que vinha dos primórdios do ideário liberal mas agora se renovava: também o regime republicano estava em fundação. O debate não era novo, instalara-se desde Herculano, no decénio de 1840, e prolongava-se no tempo. Se a polémica acerca do milagre de Ourique se saldara numa evidente vitória da posição crítica do historiador sobre o ultramontanismo na esfera pública, no último quartel do século XIX, o debate relançou-se no que respeita a dois outros pontos relacionados: a filiação, ou não, dos Portugueses nos Lusitanos e a tese política e voluntarista herculaneana. A independência de Portugal ficara a dever-se à vontade de uma elite, os barões portucalenses que apoiavam Afonso Henriques? Ou resultara de uma singularidade mais recuada? Herculano teve múltiplos críticos. Mas a este respeito dois deles se destacaram: Teófilo Braga, professor no Curso Superior de Letras (a partir de 1911 Faculdade de Letras de Lisboa) e presidente do primeiro governo republicano e Leite de Vasconcelos, etnólogo, linguista e arqueólogo, também ele professor nesta instituição. O primeiro, um dos mais persistentes divulgadores do positivismo em Portugal e autor de uma História da Literatura de larga receção, foi o principal teorizador de um conceito de nação natural, fundamentado num substrato étnico e cultural diferenciado (moçárabes, celtas). O celtismo não era novidade, fora importado de outras culturas históricas europeias, incluindo a espanhola, onde constituía um recurso explicativo muito invocado por historiadores liberais (caso de Manuel Murguia na Galiza). A fundamentação histórica de uma república federal a que Teófilo procedera em 1879 e 1880, a que não fora alheia a leitura de Pi y Margall, ficaria contudo esquecida na unitária I República portuguesa. Por seu lado, Leite de Vasconcelos demarcou-se da teoria política do autor da História de Portugal para adotar um ponto de vista alargado em que considerava uma multiplicidade de fatores (geográfico, histórico, cultural, político), não enjeitando a herança dos Lusitanos e de todos os povos que habitaram o território português antes da autonomização política (Matos, 2008, pp. 21-22). Já durante a I República o debate prosseguiu, com as contribuições bem diferenciadas de historiadores, geógrafos e publicistas de diversos quadrantes políticos.

A marca do determinismo étnico de Teófilo Braga é bem evidente em autores de formações tão diversas como os republicanos Basílio Teles e Ricardo Severo (Severo, 1911) ou o tradicionalista António Sardinha (Sardinha, 1915). Em qualquer caso, eram evidentes diversas intencionalidades doutrinárias: enquanto Severo notava a feição “constitucionalmente democrática” da nação, Sardinha procurava fundamentar uma monarquia orgânica e tradicionalista num quadro histórico em que as singularidades físicas etnicamente determinadas (a predominância da dolicocefalia), bem como o municipalismo tinham um papel destacado. Entretanto, acentuava-se a clivagem entre uma tese que acentuava o enraizamento nacional e uma outra que valorizava a experiência cosmopolita no percurso histórico. Nesta última orientação, em aberta crítica à valorização do tópico raça e do nacionalismo étnico que lhe está subjacente, António Sérgio propunha uma teoria europeísta da formação de Portugal, valorizando o papel dos estrangeiros neste processo: cruzados, ordem de Cluny, mercadores italianos e flamengos em Lisboa, colonos do Norte da Europa. Do lado do pensamento católico conservador, Gonçalves Cerejeira, então professor de História na Universidade de Coimbra, terá criticado esta interpretação “estrangeirista” nas suas aulas, considerando-a exagerada. Mas, por outro lado, distanciava-se da sobrevalorização dos fatores rácico e geográfico: o território ainda não estava constituído aquando da independência política “nem a raça estava integrada sob o mesmo domínio” (Machado, 1927, pp. 61 e 28-29). Inclinava-se antes para uma teoria política.

DECADÊNCIA

Outro tema que suscitou controvérsia entre os historiadores, associado que estava à consciência de crise, foi o da decadência. Desde as invasões francesas este tópico tornara-se muito corrente no discurso histórico e político, em Portugal e em Espanha. A narrativa laica e liberal do percurso histórico da nação logo identificou os grandes responsáveis pela queda, no século XVI (absolutismo, catolicismo reformado e expansão ultramarina). Mas recolhendo a herança de Herculano, o maior destaque acabou por ser atribuído à ação da Inquisição e da Companhia de Jesus. António Sérgio e Jaime Cortesão, herdeiros de Antero e de Oliveira Martins, em 1913, nas páginas de A Vida Portuguesa, revisitaram os fatores e os tempos da decadência. Poder-se-ia considerar que ela remontava ao período da reconquista, consequência do espírito guerreiro e do parasitismo, como pretendia António Sérgio? A crítica que lhe dirigiu Cortesão, chamando a atenção para a especificidade de momentos muito diversos do percurso histórico nacional, acabaria por levar o ensaísta a rever a sua posição em 1916. Mas, por outro lado, os dois amigos coincidiriam com a posição expressa por Raul Proença na Seara Nova de recusa de uma atitude retrospetiva e passadista em história. António Sérgio procurava identificar no passado os grandes problemas nacionais que, a seu ver, tinham bloqueado o progresso social e a modernização (o isolamento em relação à civilização europeia, o parasitismo e o comunarismo de Estado) (Sérgio, 1915). Enquanto o progresso cultural e científico estava do lado dos intelectuais estrangeirados.[10] Havia que formar uma elite capaz de levar a cabo profundas reformas, a começar pela educação e pela política económica. Jaime Cortesão sublinhava a função do povo na transformação social e intentava fundamentar a partir da história a soberania popular e as suas manifestações no passado. A democracia tinha raízes no passado. E a consciência histórica tinha uma dimensão não só nacional, mas universal. Para outros historiadores republicanos como Teófilo Braga e António Ferrão, a nação identificava-se com o povo. Também em Espanha as narrativas do passado nacional da autoria de republicanos assim procederam e prolongaram a tradição liberal das antigas liberdades medievais que não teriam sido respeitadas pelos monarcas estrangeiros: os Áustrias eram pois responsabilizados pela decadência (Salomón Chéliz, 2009, pp. 40-41). Outras eram, naturalmente, as ideias dos historiadores tradicionalistas, quer em Espanha quer em Portugal. Refira-se, como exemplo inspirador, Menéndez Pelayo: para ele, ao invés, o período de maior grandeza da Espanha coincidiria com a casa de Áustria e a decadência encontrava-se precisamente na rutura com a antiga monarquia espanhola e com a sua essência católica, levada a cabo por heréticos e estrangeiros - a “barbarie germanica” (Menéndez Pelayo, 1941, pp. 386-387). Menéndez Pelayo tornou-se uma referência para o tradicionalismo histórico em Espanha, e em Portugal o seu pensamento não deixou de encontrar eco (mas por cá não houve nenhum historiador tradicionalista que se lhe comparasse). Já o pensamento católico ganha a este respeito alguma singularidade na cultura histórica portuguesa: lembre-se a interpretação de Gonçalves Cerejeira que, sensível à leitura de Silva Cordeiro, explicaria a decadência invocando a estrutura económica e social e o carácter dos portugueses: estes estariam mais vocacionados “para a guerra e para a aventura” do que para a “exploração pacífica da terra” (Cerejeira, 1949 [1917-18], p. 205). Mas, sobretudo, procurou justificar a ação da Igreja e da Inquisição (lembre-se que não existia em Portugal uma história das origens do Santo Ofício alternativa à de Herculano) rejeitando as críticas que estas instituições tinham recebido por parte da historiografia liberal. Cerejeira, para quem a nação havia sido produto da ação dos monarcas, estes é que teriam completado o território. Neste último aspeto coincidia com a posição dos integralistas e de Fortunato de Almeida. Como vimos, Cerejeira recusava, contudo, a teoria étnica da independência de Portugal, valorizando antes a consciência, a política e a vontade dos portugueses (Machado, 1917, p. 62).

Como atrás referi, Fortunato de Almeida, professor do liceu e um dos expoentes de uma narrativa católica e conservadora, dava início à publicação da sua História de Portugal (1922-1929). Como ficou evidente, a sua interpretação esteve longe de reunir o consenso entre os jovens tradicionalistas portugueses - caso de António Sardinha ou de Caetano Beirão. No que respeita à decadência, Fortunato de Almeida considerava num dos seus compêndios que o declínio do império português ficara a dever-se à desproporção de recursos e de população da metrópole em relação a tão vastos territórios e a dificuldades de administração (não se prendia, pois, com a forma absolutista do Estado ou com quaisquer causas religiosas, como pretendiam os historiadores liberais e republicanos). Bem mais longe foi o tradicionalista Manuel Múrias, que valorizando a ação da Companhia de Jesus, e rejeitando a tese segundo a qual a Inquisição tinha contribuído para a decadência do pensamento em Portugal, chegava a pôr em causa que tivesse existido decadência - a seu ver seria impossível prová-lo (Múrias,1923) - ideia que seria retomada alguns anos depois por Agostinho de Campos (Campos, 1925) e pelo professor da Faculdade de Letras de Lisboa, Mário de Albuquerque (Albuquerque, 1930). De resto, para os integralistas, o século XVII era um tempo de enraizamento, casticismo lusitano, afirmação do mito sebástico e fixação da língua. Quando no pós-guerra a crise do regime republicano se acentuava, a revisão da narrativa liberal estava na ordem do dia, sobretudo voltada contra a História de Portugal de Oliveira Martins, considerada perniciosa pelo seu negativismo e pessimismo (Pimenta, 1935, pp. 108-120).

Por outro lado, a relevância da ideia de Império e da missão colonizadora dos portugueses no ideal republicano alimentavam um outro debate, relativo às motivações da expansão ultramarina - problemática que calava fundo na dimensão colonial do nacionalismo republicano, acentuada desde o Ultimatum britânico (1890), reavivada com os centenários da conquista de Ceuta e da morte de Afonso de Albuquerque (1915), bem como do nascimento de Camões e da morte de Vasco da Gama (1924). A hipótese de António Sérgio acerca da conquista de Ceuta (1920), atribuindo-a a uma burguesia comercial representada pelo vedor da fazenda João Afonso, foi criticada por David Lopes e por Jaime Cortesão. O primeiro valorizou a finalidade estratégica da empresa. Complementando a explicação do problema, Cortesão salientou a importância da praça africana na segurança do comércio marítimo e o seu lugar num suposto “plano de descobrimentos” e de expansão (Cortesão, 1925). Este último tópico que marcava a pré-determinação da empresa ultramarina nacional era aliás há muito invocado na cultura histórica portuguesa (desde Damião de Góis) e acentuara-se no século XIX e primeira décadas do século XX (exemplo em Dias, 1921, p. VII). Numa época em que o sentimento de crise se intensificava entre as elites, não surpreende que também a ideia do “plano da Índia” adquirisse um sentido pragmático. Esse carácter instrumental ficou aliás bem evidenciado na célebre viagem aérea transatlântica de Gago Coutinho e Sacadura Cabral (1922), vista agora por analogia com as viagens de descobrimentos como grande feito heróico e tecnológico de redescoberta do Novo Mundo. Mas seria preciso esperar pelos trabalhos de Duarte Leite, que fora chefe de um governo da I República nos seus primórdios, para que a teoria do “plano da Índia” fosse posta em causa (1930). Por essa época, já na ditadura militar, Mário de Albuquerque voltaria à questão, contrariando a ideia de que teria havido “manejos da alta finança inglesa” e apoios da burguesia cosmopolita na empresa de Ceuta.

O paradigma do herói nacional era outro tema que há muito ocupava um lugar destacado na historiografia portuguesa.[11] O sentimento de crise e as expectativas messiânicas que lhe estavam associadas - lembre-se o caso de Sidónio Pais, em que se esboça já o culto moderno do líder político carismático - alimentavam a centralidade deste tópico. Oliveira Martins contribuíra de um modo marcante para trazer para primeiro plano as figuras da Ínclita Geração e de Nuno Álvares Pereira. Diversas coleções de divulgação histórica - caso da “Biblioteca da Infância”, dirigida por Victor Ribeiro - e romances históricos acentuaram o interesse por estes e outros heróis nacionais. Foi o caso de Nun'Álvares, beatificado em 1918, modelo de herói e santo muito ao agrado dos setores tradicionalistas e conservadores, incluindo alguns republicanos (por essa altura deu um nome ao grupo de pressão nacionalista significativamente chamado Cruzada Nun'Álvares). E D. Sebastião estaria no centro de uma aguerrida e muito personalizada polémica entre António Sérgio e Carlos Malheiro Dias, já no final do regime (1925) (Macedo, 1983, pp. 504-512). Centremo-nos agora num outro tópico.

O 1.º DE DEZEMBRO DE 1640: O QUE FOI?

Ao invés do que poderia pensar-se, a memória dos acontecimentos de 1640 esteve longe de reunir consenso entre os historiadores portugueses, em contraste com a quase unanimidade em relação aos sucessos de 1383-1385. Costa Lobo notou esse contraste, atribuindo-o, na sua interpretação organicista, ao facto de no século XVII Portugal ter continuado a “deperecer em anémico langor” (Lobo, 1979 [1909], pp. 9-10). No entanto, a data refundadora do 1.º de Dezembro que durante séculos fora evocada em celebrações religiosas e a partir de 1861 em comemorações também de carácter profano, foi em 1910 associada a um símbolo nacional de grande visibilidade - a nova bandeira nacional. Logo em 12 de outubro desse ano, o governo republicano aprovava um decreto que instituía o 1.º de Dezembro como dia de autonomia da pátria (Andrade e Torgal, 2012, p. 67) e a 22 de novembro seguinte acrescentava-lhe o atributo de dia de Festa da Bandeira e instituindo um cortejo para saudar este símbolo nacional (Teixeira, 2015, pp. 34-35). Fazia-se assim coincidir esta festa cívica da nova bandeira republicana com a data do 1.º de Dezembro, agora consagrada como feriado nacional. Associava-se, pois, um dos emblemas mais significativos da nação com uma data histórica relevante - a recuperação da independência nacional em 1640.

A mudança da bandeira nacional - do azul e branco da Monarquia Constitucional para o verde e rubro da bandeira da República, embora controversa (Medina, 1993, pp. 143-193), acentuava a relevância simbólica desse dia de festa. Por outro lado, convidavam-se figuras de proa do Estado, caso do presidente da República e do chefe do governo, para as cerimónias de deposição de flores no Monumento dos Restauradores e para sessões solenes, com conferências públicas no Palácio Almada (sede da Comissão 1.º de Dezembro) e, mais tarde, na Sociedade de Geografia ou na Câmara Municipal de Lisboa. Procurava-se ainda mobilizar as camadas populares com lançamento de foguetes, flores, iluminações noturnas de edifícios, cortejos, etc. Mas teve esta festa sucesso popular? É certo que diversas associações, entre elas não poucos centros republicanos, participavam nas comemorações: o Grémio Recreativo 1.º de Dezembro, o Centro Republicano Liberdade e Progresso (ambos em 1913), o Centro Dr. Magalhães Lima, o Centro Dr. António José de Almeida ou o Centro Solidariedade Republicana (em 1914).[12] Mas como veremos, os testemunhos dividem-se a este respeito. Seja como for, intentava-se assim republicanizar o 1º de Dezembro (Andrade, 2001) e instituir uma grande festa cívica do novo regime visto a si próprio como refundação, tal como 1640 teria sido refundação de Portugal.

Outros indícios de republicanização do 1.º de Dezembro nos primeiros anos do novo regime foram, por exemplo, a escolha deste dia para a saída do primeiro número da revista A Águia, ainda em 1910, então dirigida por Teixeira de Pascoaes (e em que colaboraram alguns dos mais dotados intelectuais portugueses da época). Ou a participação nas comemorações anuais de figuras gradas do regime republicano: presidentes da República como Manuel de Arriaga, António José de Almeida ou Teixeira Gomes; chefes de governo como Afonso Costa ou António Maria da Silva e intelectuais republicanos de diversos campos ideológicos como Jaime Cortesão, Teixeira de Pascoaes, Agostinho de Campos, António Ferrão, Queirós Veloso e Agostinho Fortes (ambos professores da Faculdade de Letras de Lisboa e historiadores). A imprensa periódica da época e uma foto do cortejo da festa da bandeira no 1.º de Dezembro de 1910 (Teixeira, 2015, p. 40) podem transmitir a ideia de uma participação massiva da população. É de admitir que, com o correr dos anos, a participação popular tenha diminuído. Alguns testemunhos da época dão-nos a ideia da ineficácia social destas comemorações: caso do insuspeito intelectual republicano João de Barros, que se referiu à “quase absoluta indiferença do povo” perante os festejos (Barros, 1923, p. 87). Podia a Restauração de 1640 constituir modelo inspirador e legitimador para a Revolução de 1910?

À primeira vista, dir-se-á que sim, se lembrarmos que o acontecimento foi justificado em termos jurídico-políticos invocando-se a teoria da origem popular do poder real. Na verdade, a chamada Restauração foi interpretada em sentidos muito divergentes pela historiografia portuguesa do século XIX. Os historiadores liberais e republicanos retomaram a teoria da origem popular do poder real inspirada em São Tomás e na Segunda Escolástica. Portugal teria uma longa tradição de uma monarquia temperada - atestada pela vitalidade das suas cortes até finais do século XVII. E alguns autores contra-revolucionários e tradicionalistas viram na Restauração uma aspiração do povo no sentido da reposição da monarquia tradicional legitimada pelas Atas das Cortes de Lamego (Torgal, 1976, pp. 24-25) - uma tradição mítica forjada no século XVII.

Mas o 1.º de Dezembro de 1640 traduziu-se também na promoção e na propaganda política da Casa de Bragança - a dinastia que seria mais execrada pelo republicanismo. Para além disso, na historiografia sobre a Restauração sempre se exprimiram divergências conceptuais. Fora uma revolução? Um movimento? Ou tão-só uma conspiração de um grupo de aristocratas? Qual a figura mais proeminente no sucesso? Muitos autores usaram todavia o conceito de revolução (que, de resto, tinha dado título a uma obra do francês Vertot, História das Revoluções em Portugal, 1815, 1.a ed. francesa 1711[13]). E no século XIX, para além deste vocabulário político, usara-se também o termo mais neutro de Restauração, referido aliás nos primeiros estatutos da Comissão 1.º de Dezembro, em 1870.

Bem diversa foi a interpretação de Oliveira Martins em 1879. O 1.º de Dezembro não fora uma revolução, mas uma “conjuração”, como então se lhe chamara. A ideia coadunava-se, de resto, com a leitura negativa que fazia do Portugal restaurado em palavras drásticas: uma sociedade pobre e decadente, dependente da Inglaterra e que se arrastava numa apagada existência (Martins, s.d. [1879], p. 126). Não surpreende, pois, que Oliveira Martins fosse muito crítico em relação às práticas comemorativas e à retórica nacionalista da Comissão 1.º de Dezembro. A seu ver, não fazia sentido comemorar essa data. Mas a sua posição crítica só encontrou eco num pequeno grupo de amigos (Eça de Queiroz ou Ramalho Ortigão), e poucos mais, mas deixaria um rastro no século XX, nomeadamente entre os seareiros. E foi seguida por dois historiadores republicanos: José de Arriaga (1886) e Agostinho Fortes (1932). Para o primeiro, 1640 não fora uma revolução mas “uma simples conspiração contra o estrangeiro” (Arriaga, 1886, vol. I, p. 145). Portugal manteve o sistema dos últimos reis portugueses de Avis (de D. João III a D. Sebastião). A Restauração não era de modo algum comparável à Revolução de 1383-85. Poucos anos depois de José de Arriaga (1886) publicar a sua História da Revolução Portuguesa de 1820, em finais de 1890, na sequência do ultimatum britânico (1890), jovens republicanos radicais pronunciaram-se publicamente contra as comemorações do 1.º de Dezembro.[14] Vivia-se um momento de reação nacionalista contra a Inglaterra, reafirmava-se o federalismo ibérico e, nesta conjuntura, festejar a Restauração de 1640 era visto como um ato de hostilidade em relação à Espanha, que devia ser aliada próxima de Portugal.

Muito mais tarde, um outro republicano (simpatizante, aliás, dos ideais socialistas), e professor de História na Faculdade de Letras de Lisboa, Agostinho Fortes, que por diversas vezes proferiu palestras públicas aquando das comemorações anuais do 1.º de Dezembro, o movimento de 1640 pouco mais teria sido do que “a mudança dum senhor para outro”, ou seja, a substituição de monarcas e dinastias, ambas despóticas e dissolventes (Fortes, 1930, p. 107), subalternizando o povo desde o início da conjuração. Num campo ideológico bem diverso, e num registo prudente, Fortunato de Almeida, na sua História de Portugal (1926), adota o conceito de “movimento” para a restauração em Lisboa, que ocorreu sem grandes sobressaltos. Mas ao contrário dos historiadores republicanos, enaltece a figura “veneranda e sagrada” de D. João IV, que considera ter sido, com as suas qualidades políticas de “bom senso”, “prudência e firmeza” o “centro da ação que salvou a independência nacional” (Almeida, 1926, p. 201). Fortunato de Almeida e, de uma maneira geral os historiadores tradicionalistas, procediam assim à revisão de um retrato negativo do duque de Bragança, que se sedimentara no século XIX também no romance histórico - com destaque para algumas obras de Camilo Castelo Branco. Estas divergências (tais como as respeitantes ao papel de D. João IV nos acontecimentos de 1640 e o seu perfil) não eram despiciendas: prendiam-se com leituras divergentes do século XVII em Portugal, da dinastia de Bragança, da “decadência” e da relação com a Inglaterra. Mas a corrente crítica em relação a D. João IV (e à dinastia de Bragança em geral) não exprimiu necessariamente uma interpretação negativa da restauração de 1640. Nas periodizações tradicionais do percurso histórico nacional, então dominantes nos programas e livros escolares do ensino primário e secundário, 1640 constituía uma baliza relevante - tanto mais que se traduzira numa mudança de dinastia. No entanto, não era consensual (lembre-se de novo o caso de Oliveira Martins, que subalternizava esta data).

Ora este debate prolonga-se e alarga-se no século XX com a revisão historiográfica do século XVII a que procedeu o Integralismo Lusitano e, depois, os historiadores adeptos do Estado Novo: entre outros, Alfredo Pimenta, António Mattoso e João Ameal. Nos anos 20, o passado tornava-se um campo decisivo de conflito em que se empenhavam os historiadores. Estava em causa a hegemonia doutrinária no campo da república das letras. O seiscentismo foi visto pelos tradicionalistas Manuel Múrias e António Sardinha como época de ouro da cultura e da língua portuguesa, de afirmação da obra de missionação da Companhia de Jesus e da orientação do Concílio de Trento (Múrias, 1923 e Sardinha, 1924) (compreende-se a sua visão muito crítica do pombalismo e da interpretação liberal e laica da história de Portugal). Era a época em que estava em voga a segunda escolástica, que fundamentara histórica e juridicamente a Restauração de 1640, retomada agora pelos Integralistas como fundamento do seu nacionalismo tradicionalista e contra-revolucionário. Por outro lado, viam na Inquisição um instrumento necessário da unidade religiosa católica. E a defesa do mito do sebastianismo e da sua função política era um tópico comum na cultura histórica da época. Luís Cabral Moncada chegaria a considerar 1640 uma vera “revolução intelectual”, uma “restauração da mentalidade portuguesa” que teria marcado o ressurgir do pensamento tradicional português, caracterizado pela teoria neotomista da soberania originária do povo. Ora, para este professor de Direito, 1640 encerrava uma mensagem de grande atualidade em 1926 pois a situação do país seria então comparável à de 1580: donde era necessário libertar o país da hegemonia cultural estrangeira [leia-se do democratismo francês] (Moncada, 1926-1928, pp. 471-473).[15] Esta revisão da narrativa liberal suscitou polémicas - as travadas com António Sérgio foram as mais conhecidas (Ferreira, 1983, pp. 427-469). A leitura que estes intelectuais procediam de 1640 não coincidia com a dos historiadores liberais: para eles a Restauração não se inscrevia num tempo de decadência - era antes um momento alto de refundação nacional num século que fora de esplendor cultural.

Mas, como vimos atrás, a I República já procedera a uma valorização do 1.º de Dezembro de 1640 - ainda que inscrevendo-o numa outra narrativa, uma narrativa crítica da decadência que viria do reinado de D. Manuel, associada à perda da independência em 1580 - que se prolongava ainda no decénio de 1930 no próprio seio da Sociedade Histórica da Independência (Ferrão, 1931, pp. 9-51).

PORQUÊ O 1.º DE DEZEMBRO?

Numa primeira leitura, pode parecer contraditória a relevância que a I República concedeu ao 1.º de Dezembro na memória de nação, tendo em conta o olhar muito crítico que os historiadores republicanos desenvolveram sobre o Portugal restaurado. Na narrativa construída por estes, a restauração de 1640 não constituía um modelo legitimador para a Revolução de 1910. Como explicar então a centralidade que acabou por adquirir o simbolismo de 1640 na I República? Opções pragmáticas terão estado na origem da republicanização desta data que, ao invés de outras não menos significativas, tiveram grande relevância histórica. Na verdade, ao longo do século XIX, outros acontecimentos marcantes no percurso histórico nacional como a batalha de Aljubarrota (14 de agosto de 1385) não foram objeto de atenção continuada e muito menos de um culto público persistente, como sucedeu com o 1.º de Dezembro. A evocação do 14 de agosto, objeto de discretas comemorações do V centenário (1885), viria a ser reativada em contextos específicos, designadamente, no da II República espanhola em 1934-1935. A maior pregnância e exemplaridade no presente de outros factos e figuras (1.º de Dezembro, Infante D. Henrique, Camões, etc.) explicarão a subalternização de Aljubarrota, talvez demasiado associada ao culto de Nuno Álvares, incómodo para algum republicanismo.[16]

O culto instalado do 1.º de Dezembro e a própria existência de uma sociedade que o dinamizava - a Comissão 1.º de Dezembro - já implantada no terreno desde os anos 60 do século XIX, e não apenas em Lisboa, bem como o carácter unitário do regime instaurado em 1910 terão pesado decisivamente na escolha desta data para Festa da Bandeira. Por outro lado, as exigências da circunstância histórica - os receios da ameaça iberista, bem real ainda nos anos 30, como revelaram os estudos de Hipólito de la Torre Gómez (1983) - tornavam a evocação daquele acontecimento de extrema conveniência. Sublinhava-se assim a coesão nacional em torno de um momento simbólico de refundação. Não se via a República a si mesma como refundação da própria nação (Ramos, 1993), do Estado e das virtudes nacionais, inscritas na sua história? A republicanização do 1.º de Dezembro tinha pois um propósito unanimista e de enraizamento histórico do novo regime. Intentava transformar-se a sua evocação em festa num momento marcante de nacionalização dos Portugueses. Era também uma resposta nacionalista às acusações e suspeitas de que o republicanismo maquinava a integração de Portugal numa federação ibérica. Para além disso, em torno de 1640 era plausível a convergência entre nacionalismo republicano e nacionalismo conservador.

Revela-se assim que a memória crítica que os historiadores republicanos tinham construído de 1640 não pesou nas ritualizações comemorativas desta data. O comemorativismo histórico obedece a uma política memorial e a uma lógica instrumental de temporalização social bem diversa das exigências do conhecimento histórico. E confirma uma ideia que defendo há anos: a de que os historiadores têm por vezes um papel reduzido na construção da memória das nações. Para além da historiografia, outros imperativos pragmáticos, ideológicos e políticos se impõem. Não raro, as representações do passado são comandadas pela política. Por exemplo, em 1915, num discurso pronunciado no parlamento, enquanto presidente da República, Teófilo Braga estabeleceu uma relação de continuidade entre 1640, 1820, 1836 e 1910, lembrando que em todas estas revoluções se teria reivindicado o princípio da soberania nacional, embora logo a seguir àquelas três primeiras datas tivesse sido desvirtuado (Diário da Câmara dos Senhores Deputados, n.º 15, 29-05-1915, p. 7). E, em 1917, o historiador António Ferrão pronunciou um discurso em que destacou diversas outras datas em que o povo português teria tido protagonismo histórico (1640, 1808-1810, 1847 e 1910). Em 1640 o povo é que teria salvo a independência de Portugal, tal como em 1910 teria sido o povo a implantar a República (Ferrão, 1919, p. 16). Recuperava-se assim a Restauração de 1640, inscrevendo-a numa teoria da história marcada por um sentido de progresso ascensional: o protagonismo do povo e do seu direito na defesa da independência nacional. A historiografia era - como não raro sucede - comandada pelos problemas do presente.

Não surpreende, pois, que ainda durante a I República e depois no Estado Novo o culto cívico do 1.º de Dezembro se tenha desenvolvido mais do que na Monarquia Constitucional e com uma projeção política oficial bem mais destacada. É certo que republicanos conservadores aderiram à Comissão 1.º de Dezembro/Sociedade Histórica da Independência, a par de antigos titulares da nobreza e de homens ligados a este último regime e depois do Estado Novo. E foi no seio da Comissão Central 1.º de Dezembro que em 1922 foi apresentada, pela primeira vez, a proposta de se comemorar conjuntamente a independência de Portugal e a Restauração de 1640 no duplo centenário que viria a ocorrer já em pleno Estado Novo, em 1940 (Costa, 1940, pp. 141-143, 175-177, 210, 223). Viria a ser o tão celebrado dia da Raça (10 de Junho, suposta data da morte de Camões) inaugurado aquando dos festejos camonianos de 1924, ainda durante a I República, uma réplica do dia da Raça que havia sido instituído em Espanha (1918) e nas repúblicas hispano-americanas para celebrar a viagem de Colombo (Marcilhacy, 2010, pp. 326-341). Não surpreende pois que, a par do 10 de junho, o Estado Novo viesse, logo em 1934, a valorizar a Restauração de 1640 como “festa da Independência Nacional”, também institucionalizado como dia da Mocidade Portuguesa (Andrade e Torgal, 2012, p. 106). A memória pública precisava de grandes consensos. Que melhor sentido unitário de coesão nacional poderia ser forjado senão em torno de um historicismo cujo referente maior era a personagem nação?

Se a republicanização do 1.º de Dezembro partiu do poder político, as elites intelectuais e as suas formas associativas tiveram papel destacado na dinamização de um nacionalismo conservador e historicista, que contribuiria para legitimar o Estado Novo. Entre o historicismo liberal e republicano e o historicismo tradicionalista estabelecia-se assim uma linha de continuidade que, no plano dos projetos políticos em confronto durante a I República e a Ditadura Militar, não se verificou, haja em vista a rutura na tradição política liberal que se opera durante este último regime. O que mostra bem que, embora sempre em relação com a problemática política, a escrita da história tem uma dinâmica própria, independente.[17] A republicanização da memória nacional foi em larga medida anterior a 1910, vem da historiografia liberal e republicana e não terá contribuído pouco para a hegemonia cultural desta última, pelo menos até aos anos 20.

Historiadores universitários participaram nos debates históricos a que nos referimos, incluindo o movimento de 1640. Mas a relevância que adquiriu a Restauração nas políticas de memória não deve compreender-se tanto por aí. Muitos outros agentes culturais contribuíram para a construção e a difusão da memória nacional. E no caso da memória de 1640, é bem evidente que a atmosfera anti-iberista em que se viveu nos primeiros anos da I República, marcados pelo receio da perda da independência, contribuiu não pouco para o culto dos Restauradores. O problema da legitimação do regime relativamente isolado numa Europa ainda dominada por impérios e monarquias tradicionais exigia a evocação de um evento que, apesar de todas os debates anteriores, pudesse ser tomado como refundação da independência. E que há muito já fosse objeto de ritualizações públicas. Ora a Revolução de 1383-85, embora tivesse constituído um momento solar no passado nacional, ou as revoluções liberais de 1820 e 1834 enquanto datas relevantes na memória nacional liberal e republicana estavam longe de ocupar o mesmo lugar no espaço público. Não surpreende pois que, muito para além das divergências interpretativas no campo historiográfico e da diversidade de tendências políticas, o 1.º de Dezembro fosse tomado pelos republicanos como data emblemática a comemorar - uma memória em torno da qual quase todos podiam convergir.[18]

Se durante a I República dominou ainda uma narrativa liberal e laica do passado nacional, certo é que, desde a afirmação do Integralismo Lusitano e sobretudo dos anos 20, no contexto de crise do pós-guerra, esse cânone dominante teve de enfrentar a concorrência de um tradicionalismo historicista que, no que respeita a tópicos-chave como progresso, decadência ou revolução, propunha uma conceção do passado nacional em larga medida oposta: os períodos que os liberais e democratas viam como de decadência (de meados de Quinhentos à emergência de Pombal) eram considerados pelos tradicionalistas tempos de esplendor. E os tempos de progresso dos primeiros (despotismo pombalino, revoluções liberais e 5 de Outubro) eram para os integralistas e católicos conservadores momentos de declínio, sob o alegado efeito desnacionalizante e dissolvente da maçonaria, do liberalismo e das revoluções democráticas. Estas tendências alimentavam nacionalismos historicistas de sinal bem diverso que também podem ser observados noutras culturas históricas europeias como a espanhola, a francesa ou a belga (Berger e Lorenz, 2008). Mas em todas estas culturas, na época em causa - as primeiras décadas do século XX - estão bem presentes a herança judaico-cristã (por exemplo nos ciclos de ascensão-queda-redenção ou no caráter messiânico que assumem heróis-símbolo) e intenções de (re)nacionalização dos respetivas populações. O culto do passado promovido sistematicamente pelo Estado Novo em múltiplas frentes seria em larga medida herdeiro do tradicionalismo integralista. Ainda assim, nele poderiam detetar-se continuidades em relação à memória da nação promovida pela I República - caso do 1.º de Dezembro de 1640, aqui considerado.

 

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Recebido a 12-12-2016.

Aceite para publicação a 289-12-2017.

 

[1]       Em 1955, em Portugal o número de professores universitários de história não ultrapassava os 10, quando em Espanha já alcançava o número de 62. Para Espanha cf. Esteban de Vega e Castro-Ibaseta (2010, p. 129).

[2]       Foi vereador e Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, deputado nas Constituintes de 1911 e presidente do Senado da República.

[3]       Ou até da diferenciação étnica e cultural entre o Norte e o Sul de Portugal: caso de Alberto Sampaio ou de Basílio Teles. Veja-se a este respeito Sobral (2004).

[4]       Lembre-se, a título de exemplo, o emblemático monumento à memória da Maria da Fonte (1921), erigido no Jardim da Parada (Praça Teófilo Braga), em Campo de Ourique, em Lisboa.

[5]       Por exemplo, as séries dedicadas à travessia do Atlântico 1500-1922 (1923, alusiva à primeira viagem aérea de Gago Coutinho e Sacadura Cabral Lisboa-Rio de Janeiro), “Camões”, comemorando o centenário do nascimento do poeta (1924) e a série “Independência” (1926-1927), com representações iconográficas de figuras históricas como Afonso Henriques, Gonçalo Mendes da Maia, D. João IV, incluindo uma figura mítica como a Padeira de Aljubarrota (D. Brites de Almeida), monumentos (castelo de Guimarães e monumento à memória dos Restauradores, em Lisboa) e batalhas (Aljubarrota e Montijo). Veja-se http://www.stampsportugal.com/index.php?main_page=index&cPath=5 ) (consultado a 10-12-2016).

[6]       Vejam-se, por exemplo, os periódicos A Águia e A Vida Portuguesa. Sobre o ensino da história cf. Matos (1990).

[7]       Um exemplo é a sua posição crítica sobre D. Miguel, defendendo a legitimidade de D. Pedro e de D. Maria. O que lhe valeria uma dura crítica de Caetano Beirão em “O problema da sucessão do rei D. João VI na “História de Portugal do Sr. Fortunato de Almeida”, Nação Portuguesa, VII, fasc. II, 1932, 81 e ss.

[8]       A História de España de Ballesteros teve também uma receção muito favorável na Revista de História dirigida por Fidelino de Figueiredo: cf. n.º 15, 1916, pp. 311-312. Mas viria a ser muito criticada na sua visão sobre Portugal por Alfredo Pimenta (1930, pp. 200-203).

[9]       Veja-se a este respeito a crítica de Enzo Traverso (2005, pp.108-119).

[10]      Para um ponto de vista crítico a este respeito, veja-se Jorge Borges de Macedo “Estrangeirados, um conceito a rever”, Braga, Sep. de Bracara Augusta, 1974.

[11]      Veja-se Matos (1998, pp. 384-471) e Cardoso (2017).

[12]      “1.º de Dezembro”. O Século, 1-12-1914, p. 4; “1.º de Dezembro. A festa da bandeira”. O Século, 3-12-1914, p. 2.

[13]      Note-se, contudo, que o Abade Vertot alterara o título da 1.ª edição que era Histoire de la conjuration du Portugal para Histoire dês revolutions du Portugal, por pensar que o termo conjuração não era adequado - remetia apenas para a restituição do trono a um príncipe (Vertot, 1815).

[14]      “Manifestação académica”. A Pátria, Lisboa, 12-11-1890.

[15]      Vd. também Torgal (1980, pp. 31-34). De grande interesse é também um controverso artigo de Marcelo Caetano (reproduz um discurso pronunciado a 1 de Dezembro de 1927 na Juventude Católica de Lisboa): nele o jovem Marcelo, muito marcado pelo ideário de António Sardinha, caracterizava o reinado de Filipe II - que considerava a “única solução legítima e (…) consentânea com os interesses nacionais” - como uma monarquia dualista e também valorizava o papel da doutrina política pactista neo-escolástica e a função social de mitos como o de Ourique e o sebastianismo na restauração de 1640 (Caetano, 1927).

[16]      Catroga (1996, p.578) e Andrade e Torgal (2012, pp. 76 e 103-104).

[17]      Exemplo disso, entre outros, é a obra de João Lúcio de Azevedo. Veja-se Macedo (1990).

[18]      Excetuando os críticos de um patriotismo retórico e os adeptos de um certo iberismo cultural.

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