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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.229 Lisboa dez. 2018

https://doi.org/10.31447/as00032573.2018229.07 

ARTIGOS

Por uma sociologia pública: repensar a deficiência na ótica dos direitos humanos

For a public sociology: rethinking disability from the point of view of human rights.

Paula Campos Pinto*

* Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, Rua Almerindo Lessa - 1300-663 Lisboa, Portugal, ppinto@iscsp.ulisboa.pt.


 

RESUMO

Neste artigo recupera-se a proposta de Michael Burawoy sobre o lugar da sociologia pública no quadro das sociologias contemporâneas, aplicando-a aos estudos da deficiência. Caracteriza-se este novo campo científico e apresentam-se os resultados de um estudo qualitativo que examina violações de direitos humanos, vividas em Portugal por pessoas com deficiência, e os fatores sociopolíticos que lhe estão subjacentes. Conclui-se pela pertinência de uma sociologia pública da deficiência que dando voz às pessoas com deficiência conceda espaço para um ponto de vista da e sobre a deficiência na sociologia contemporânea, numa perspetiva simultânea de construção de conhecimento e intervenção social.

Palavras-chave: deficiência; direitos humanos; sociologia pública.


 

ABSTRACT

In this article we recover the proposal of Michael Burawoy on the place of Public Sociology in the framework of contemporary Sociologies, applying it to the Studies of Disability. This new scientific field is characterized and the results of a qualitative study examining violations of human rights of persons with disabilities in Portugal and the socio-political factors that underlie it are discussed. It concludes with the pertinence of a Public Disability Sociology that gives voice to the disabled, giving space for a viewpoint of and about the issue of deficiency in contemporary Sociology, while also considering knowledge construction and social intervention.

Keywords: disability; human rights; Public Sociology.


 

Introdução

Quando em 2004, na reunião anual da ASA, Michael Burawoy reclamou um lugar para as sociologias públicas, abriu um debate que permanece aceso nos nossos dias, criando um lastro de seguidores e críticos (Calhoum, 2005; Kalleberg, 2005). Mas o que distingue afinal a sociologia pública de outras formas de fazer sociologia? Que novidade encerra a proposta de Burawoy? Qual a sua pertinência na produção sociológica contemporânea?

Burawoy (2005) propõe um modelo quadripartido de divisão do trabalho sociológico que se desdobra em sociologia das políticas (policy sociology), focalizada na procura de soluções para problemas concretos; sociologia profissional (professional sociology), que fornece os métodos, o conhecimento acumulado, as questões e os quadros conceptuais que orientam a atividade científica sociológica; uma sociologia crítica (critical sociology), que examina os fundamentos explícitos e implícitos, normativos ou descritivos da investigação, alertando para potenciais enviesamentos e propondo vias alternativas; e uma sociologia pública (public sociology), que promove o diálogo recíproco com públicos diversos - movimentos sindicais, associações comunitárias, organizações de direitos humanos ou outros. No desenvolvimento da Sociologia Pública os sociólogos trabalham “em estreita ligação com um público visível, denso, ativo e frequentemente contra-corrente” (Burawoy, 2005, p. 7; tradução da autora) com o qual desenvolvem um processo de “educação mútua” (Burawoy, 2005, p. 8). O projeto comum que os une é o de “tornar visível o invisível, público o privado, e validar estas ligações orgânicas como parte integrante da vida sociológica” (Burawoy, 2005, p. 8; tradução da autora). Deste modo, o conhecimento gerado pela sociologia pública distingue-se pela sua pertinência social e a responsabilidade primordial (accountability) do sociólogo público joga-se perante o seu público específico. Tal não dispensa, no entanto, a aplicação de métodos rigorosos, nem a fundamentação do trabalho científico em sólidas e elaboradas teorias já que, sem estes elementos não poderá existir uma sociologia pública de qualidade (Burawoy, 2015). Promover e apoiar o florescimento da sociologia pública no quadro das sociologias contemporâneas constitui hoje uma tarefa urgente e necessária para revitalizar a produção sociológica e, particularmente, para “defender a humanidade” face à atual conjuntura de expansão do projeto neoliberal (Burawoy, 2015).

O desafio que Burawoy lança afigura-se muito relevante quando aplicado ao campo dos Estudos da Deficiência (Disability Studies). Área multidisciplinar e recente do conhecimento científico, os Estudos da Deficiência emergiram na década de 1980 no Reino Unido e na América do Norte, profundamente marcados por uma ligação simbiótica entre a academia e o movimento das pessoas com deficiência. Tendo conhecido uma rápida expansão em todo o globo ao longo das últimas duas décadas, os Estudos da Deficiência têm por objetivo examinar o sentido, a natureza e as consequências da deficiência enquanto construto social, convocando nessa análise áreas disciplinares das humanidades, das ciências e das ciências sociais, mas com predominância da sociologia (Barnes, Oliver e Barton, 2002). Desafiando uma visão da deficiência que a reduz a um defeito ou anomalia individual, só possível de ser corrigido ou minimizado por intervenção médica ou de reabilitação, os Estudos da Deficiência exploram modelos e teorias que examinam os fatores sociais, económicos, políticos e culturais que definem socialmente a deficiência e contribuem para determinar as respostas individuais e coletivas à diferença. Neste sentido, analisam as dinâmicas sociais subjacentes à construção das desigualdades que as pessoas com deficiência enfrentam no seu quotidiano e ajudam a quebrar o estigma que rodeia a deficiência e a incapacidade.

Desde a primeira hora, a pesquisa neste domínio caracterizou-se também pela rejeição de modelos tradicionais e positivistas de investigação, que objetificavam as pessoas com deficiência tomando-as como sujeitos passivos de análise, e deste modo reproduziam relações assimétricas entre investigadores e investigados no quadro do processo de investigação. Em alternativa às relações convencionais de produção do conhecimento, consideradas “parasitárias” (Hunt, 1981), a disciplina adotava modelos emancipatórios, inclusivos e participados de investigação (Traustadóttir, 2009) abrangendo um conjunto de elementos distintivos: (1) um envolvimento pleno das pessoas com deficiência e das suas organizações em todos os aspetos da investigação, assegurando que o controlo e propriedade do processo de pesquisa pertencem simultaneamente ao investigador e aos sujeitos da investigação; (2) uma fundamentação ontológica de toda a pesquisa no modelo social da deficiência, que abandona a conceção essencialista e médica da deficiência enquanto condição inerente ao indivíduo, reequacionando-a como a consequência de barreiras sociais, físicas e atitudinais, o produto da opressão social; e (3) uma rejeição do mito da objetividade e neutralidade científicas, ao qual se contrapõe o imperativo do investigador explicitar a sua posição ontológica e epistemológica e assegurar que as suas escolhas metodológicas são rigorosas e transparentes (Abberly, 1987; Oliver 1992; Stone e Priestley, 1996; Barnes, Mercer e Shakespeare, 1999; Barnes, 2008; Priestley, Waddington e Bessozi, 2010).

O compromisso com o diálogo que os modelos emancipatórios de pesquisa advogam expressa-se na disponibilização dos saberes e competências do investigador, colocando-os ao serviço das pessoas com deficiência e das suas organizações. Neste sentido, o processo e o produto da investigação assumem-se, em si mesmos, como instrumentos para o empoderamento das pessoas com deficiência, e elementos de transformação social, visando a plena participação e cidadania deste grupo (French e Swain, 2004).

Estes princípios orientadores dos Estudos da Deficiência - estreitas parcerias entre investigadores e sujeitos de investigação com vista à análise das dimensões social e cultural da deficiência e à denúncia dos aspetos económicos e políticos da exclusão e discriminação a ela associados - configura, no nosso entender, um quadro típico para o desenvolvimento de uma sociologia pública. Com efeito, o propósito fundacional dos Estudos da Deficiência enquanto área científica - conferir visibilidade à problemática da deficiência, tornando-a uma questão pública e política, em lugar de a manter privada, marginal e essencializada nos indivíduos que vivem com incapacidades - revela uma singular sintonia com o projeto das sociologias públicas, tal como Burawoy (2005) o descreveu. Afinidade e articulação que se reforçou de forma muito significativa com a adoção pelas Nações Unidas (2006) da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência[1], que ao colocar indelevelmente a deficiência na agenda política e social como uma questão de direitos humanos, abriu novas possibilidades de investigação e intervenção social.

Em Portugal, a área dos Estudos da Deficiência começa a dar os seus primeiros passos, com alguns trabalhos científicos já publicados a nível nacional e internacional (Martins e Fontes, 2016; Pinto, 2011a; 2011b, 2016; Fontes, 2009; Martins, 2006, 2010; Veiga 2006). No entanto, no amplo espectro da produção científica das ciências sociais, e particularmente da sociologia, este campo de estudos permanece incipiente e marginal. Neste artigo, abordam-se as oportunidades de desenvolvimento de uma sociologia pública no contexto dos Estudos da Deficiência em Portugal, particularmente em torno da monitorização da Convenção da Deficiência. O objetivo é demonstrar a viabilidade e pertinência deste trabalho, “como parte integrante da vida sociológica” portuguesa. Os dados e a discussão apresentados emergem de um projeto de parceria entre investigadores, organizações de pessoas com deficiência, entidades privadas e públicas, que mais à frente descrevemos. Importa, porém, antes de mais apresentar brevemente a Convenção e caracterizar as mudanças fundamentais que ela introduz, no plano político e sobretudo no da investigação nacional e internacional.

A Convenção da Deficiência como mudança de paradigma: implicações para a investigação

Adotada a 13 de dezembro de 2006 pela Assembleia Geral da ONU, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPC) é um instrumento de direito internacional que reafirma que todas as pessoas com todos os tipos de deficiência devem gozar de todos os direitos humanos e liberdades, em igualdade com os demais cidadãos. Portugal subscreveu a Convenção a 30 de março de 2007 e ratificou-a em julho de 2009, integrando-a assim no edifício jurídico nacional.

A CDPC vem esclarecer e qualificar de que modo as diversas categorias de direitos - económicos, civis, culturais, políticos e sociais - se aplicam às pessoas com deficiência, identificando áreas onde se deverão reforçar proteções e introduzir adaptações, de forma a permitir que as pessoas com deficiência possam exercer os seus direitos. Nesta medida, a CDPC reafirma a indivisibilidade, interdependência e inter-relação de todos os direitos humanos, e a necessidade de as pessoas com deficiência verem assegurado o pleno exercício de todos os direitos, em condições de igualdade com as/os demais cidadãos.

Um aspeto fundamental do novo Tratado é o modo como aborda a noção de deficiência. Reconhecendo logo no preâmbulo que a deficiência é “um conceito em evolução”, a CDPC apresenta uma definição ampla que “inclui as pessoas que têm incapacidades duradouras, físicas, mentais, intelectuais ou sensoriais que em interação com várias barreiras podem impedir a sua plena e efetiva participação na sociedade”. Esta conceção radica no designado modelo social da deficiência (Oliver, 1990) ao reconhecer que a deficiência não é o resultado de incapacidades individuais, mas um produto da interação entre o indivíduo e o seu meio ambiente.

Para orientar os Estados e outros atores na execução das obrigações impostas pela Convenção, o texto do Tratado explicita oito princípios gerais que estão subjacentes à abordagem da deficiência na ótica dos direitos humanos (ONU, 2006). Estes princípios são, de seguida, brevemente apresentados e discutidos.

Dignidade humana, autonomia e independência - Historicamente as pessoas com deficiência não foram encaradas como sujeitos de direito, porque não se lhes reconhecia a capacidade de os exercer (Rioux, 2002). O princípio da dignidade humana contrapõe-se a esta premissa ao afirmar que todos os seres humanos são intrinsecamente dignos, facto que simplesmente decorre da sua natureza humana e é independente de qualquer consideração sobre o valor económico ou social de cada pessoa. Vincular a noção de autonomia à dignidade permite ainda lembrar que, como “sujeitos” e atores, as pessoas com deficiência têm direito à autodeterminação e a escolher livremente onde, como e com quem querem viver as suas vidas.

Não-discriminação - A discriminação com base na deficiência é definida na Convenção como

[…] qualquer distinção, exclusão ou restrição … que tenha como objetivo ou efeito impedir ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício em condições de igualdade com os outros, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais no campo político, económico, social, cultural, civil ou de qualquer outra natureza. [art.º 2.º]

A discriminação é proibida pela Convenção (art.º 5.º) que requer ainda que os Estados tomem medidas para garantir que “adaptações razoáveis”, quando necessárias, são realizadas, para garantir que as pessoas com incapacidades gozam ou exercem, em condições de igualdade com as demais, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais (art.º 2.º).

Igualdade entre mulheres e homens - A CDPC reconhece que nem todos os grupos são igualmente vulneráveis à discriminação. As raparigas e as mulheres com deficiência enfrentam “discriminações múltiplas”, e, neste sentido medidas específicas podem ser necessárias para lhes garantir o gozo pleno dos direitos humanos e liberdades fundamentais (art.º 6.º).

Participação e inclusão - A CDPC reconhece explicitamente que a deficiência resulta das restrições à atividade socialmente impostas às pessoas com incapacidades. Deste modo, procura reverter processos históricos de exclusão das pessoas com incapacidades, e garantir a sua participação na vida política e pública (art.º 29.º), no trabalho (art.º 27.º), na educação (art.º 24.º) nos sistemas de saúde (art.º 25.º), na família (art.º 23.º), na vida cultural, recreação, lazer e desporto (art.º 30.º) e na comunidade (art.º 19.º).

Acessibilidade - A participação e inclusão das pessoas com deficiência exige condições de acessibilidade. O artigo 9.º da CDPC reconhece esta interdependência e estabelece que os Estados devem adotar normas mínimas em matéria de acessibilidade, e assegurar que as entidades que disponibilizam instalações e serviços públicos tomam em conta os aspetos de acessibilidade para as pessoas com incapacidades.

Respeito pela diferença - Uma participação plena e eficaz exige ainda o respeito pela diferença e o reconhecimento da incapacidade como parte da diversidade humana. À luz da CDPC, a igualdade não sugere homogeneização, antes reconhece que a diferença tem de ser acomodada (Minow, 1990), já que “habitar um corpo com incapacidades físicas, sensoriais ou intelectuais é [apenas] uma das muitas formas de estar no mundo” (Diniz, Barbosa e Santos, 2009, p. 65). Assim, a CDPC protege o direito das pessoas com deficiência à vida (art.º 10.º), à liberdade e à segurança (art.º 14.º), e exige que os Estados tomem medidas que as protejam contra a exploração, abuso e violência, incluindo nos aspetos relacionados com o género (art.º 16.º).

Igualdade de oportunidades - Para autores como Quinn e Degener (2002), o princípio da igualdade de oportunidades no contexto da deficiência implica um entendimento amplo do conceito que engloba a eliminação da exclusão estrutural das pessoas com deficiência em todos os setores da vida (p. ex. através do reforço das oportunidades de educação e formação), e o combate às atitudes discriminatórias que no passado têm dificultado a sua inclusão na sociedade. No entanto, foi o conceito de “igualdade de oportunidades”, e não de igualdade de resultados, que a CDPC integrou como princípio orientador, impondo assim a necessidade de uma monitorização sistemática deste tema.

O conjunto de princípios acima descritos deve orientar os Estados e a sociedade civil na implementação dos direitos que a CDPC contém. Mais do que garantir direitos, por exemplo, à educação, à saúde ou ao trabalho, importa pois assegurar que a forma como esses direitos são providos respeita princípios humanos básicos de igualdade, inclusão, acessibilidade, não-discriminação, dignidade, autonomia e respeito pela diferença (Rioux, Pinto e Parekh, 2015).

O discurso dos direitos humanos no contexto da deficiência abre um espaço de novas possibilidades analíticas para a investigação sociológica. Desde logo, ao reconhecer a deficiência como parte integrante da experiência humana, coloca em evidência a sua relevância como objeto de estudo da sociologia. Em segundo lugar, ao afirmar princípios como a dignidade humana e o respeito pela diferença, rompe definitivamente com anteriores conceções que confinavam os quadros explicativos da deficiência às esferas da religião (a deficiência como castigo ou bênção divina) ou da biomedicina (a deficiência como defeito ou anomalia) para os situar no plano ético das relações sociais. Também por esta via, o tema da deficiência ganha novo interesse sociológico. Por último, ao reconhecer que as pessoas com deficiência têm sido vítimas de discriminação e de desigualdade em consequência não das suas incapacidades, mas de barreiras físicas, simbólicas e comportamentais que lhes são erguidas por sociedades não inclusivas, a CDPC muda “a causalidade da deficiência, deslocando a desigualdade do corpo para as estruturas sociais” (Diniz, Barbosa e Santos, 2007, p. 69). Neste sentido, a deficiência emerge como uma questão de justiça social. Caberá, pois, à sociologia analisar e desconstruir os processos e estruturas opressivas que criam as desigualdades na vida das pessoas com incapacidades, de modo a contribuir para a sua transformação.

Ao colocar o foco na participação das pessoas com deficiência em todas as esferas da vida social, e muito particularmente no acompanhamento e monitorização da própria Convenção, a CDPC abre ainda um espaço para o desenvolvimento de modelos emancipatórios de pesquisa sociológica. É neste contexto que surge o projeto DRPI-Portugal. Propondo-se avaliar as condições de exercício de direitos humanos das pessoas com deficiência em Portugal, este projeto vai além da análise científica para prosseguir uma “política de transformação social” (Devlin e Pothier, 2006, p. 12), que o aproxima dos princípios que animam a sociologia pública. Com efeito, o objetivo final do trabalho desenvolvido, e que seguidamente se apresenta, é o de promover o conhecimento sobre as formas de violação da dignidade humana e discriminação com base na deficiência contribuindo assim também para ampliar a teoria e prática sociológica.

Metodologia

O presente estudo recorre à metodologia desenvolvida pelo projeto Disability Rights Promotion Internacional (DRPI). O DRPI é uma iniciativa de âmbito internacional e de natureza colaborativa, sediada na Universidade de York, Toronto, Canadá, que concebeu e testou um conjunto de instrumentos de monitorização (guião de entrevista, grelha de análise de leis e políticas, grelha de análise de media), com o objetivo de documentar formas de discriminação com base na deficiência, tendo por referência instrumentos de direitos humanos internacionais, e em particular os normativos da CDPC. Desde o seu arranque em 2002 até aos dias de hoje, o DRPI já promoveu projetos em mais de 20 países em todo o mundo.[2] O modelo do DRPI radica numa abordagem à deficiência baseada em direitos humanos, que afirma os direitos de cidadania das pessoas com deficiência e investiga de que modo a discriminação pela deficiência acentua a vulnerabilidade das pessoas com incapacidades à pobreza, ao abuso e a outras situações de injustiça social. O DRPI adota a definição de deficiência proposta pela CDPC, reconhecendo a interação entre incapacidades e barreiras sociais na produção da deficiência. Neste sentido, a deficiência é entendida como uma experiência de desigualdade e discriminação, que é partilhada por pessoas com diferentes tipos de incapacidades, independentemente das suas particularidades corporais. Foi também esta a definição adotada no presente estudo.

Os projetos DRPI inscrevem-se numa dinâmica de investigação participada e emancipatória (Mercer, 2002). Assim, uma dimensão essencial destas pesquisas consiste na capacitação e empoderamento das pessoas com deficiência, enquanto atores individuais e coletivos, para a participação em processos de monitorização. Este objetivo é alcançado pelo envolvimento de organizações de pessoas com deficiência em todas as etapas do projeto, da seleção de entrevistadores/as ao recrutamento de entrevistados/as, bem como nas fases de análise e disseminação dos resultados. Esta dinâmica emancipatória encerra também o objetivo final da pesquisa, que passa pela denúncia das barreiras sociais, simbólicas e políticas que se colocam às pessoas com incapacidades numa sociedade que as deficientiza (Fontes, 2016) e pelas possibilidades de ação política que emergem dos resultados da investigação (Mercer, 2002).[3]

Para a realização do estudo nacional, os instrumentos DRPI foram traduzidos, revistos e adaptados à realidade portuguesa, de forma a garantir a sua adequação ao contexto cultural local. O guião das entrevistas, inicialmente concebido apenas para aplicação em adultos, foi ainda ajustado para ser utilizado com adolescentes, com idades compreendidas entre os 12 e os 17 anos.

Neste projeto foram recrutados 12 entrevistadores/as, todos/as pessoas com deficiência, e realizada uma ação de formação que abordou temáticas relacionadas com a deficiência na ótica dos direitos humanos e o processo de monitorização, e onde a utilização do guião de entrevista DRPI foi treinada. O facto dos/as entrevistadores/as serem pessoas com deficiência constitui um ponto forte da abordagem do DRPI, contribuindo para criar uma atmosfera de confiança recíproca, empoderamento e empatia entre entrevistadores/as e entrevistados/as, que facilita a partilha de experiências num contexto de rigor metodológico.

O estudo incluiu a realização de 60 entrevistas aprofundadas a adolescentes e adultos com diversos tipos de incapacidades, em três regiões do país: Lisboa, Região Norte e Região Sul. Esta dimensão de amostra foi considerada adequada tendo em conta a natureza da investigação, que se focaliza essencialmente na compreensão do sentido, contexto e processos envolvidos nas experiências de deficiência de pessoas com incapacidades. À luz desta perspetiva, uma abordagem qualitativa com recurso a entrevistas semiestruturadas, aplicadas a amostras relativamente reduzidas, tem sido preferida nos projetos DRPI à utilização da abordagem quantitativa, com amostras de grande dimensão. Assim, ainda que a amostra utilizada não seja estatisticamente representativa da população portuguesa com deficiência, o cuidado que foi colocado no desenho do plano de amostragem e no recrutamento de participantes, e a rigorosa metodologia qualitativa seguida para a recolha e análise dos dados, permitem extrair deste estudo um conjunto de informações aprofundadas que ilustram de um modo muito detalhado os obstáculos que se colocam às pessoas com deficiência no exercício dos seus direitos humanos.

As/os participantes deste estudo foram recrutadas/os através das organizações parceiras, utilizando uma abordagem mista que combinou a técnica bola de neve, uma estratégia de amostragem reconhecida pela sua capacidade de alcançar grupos marginais e isolados (Lopes, Rodrigues e Sichieri, 1996) com a amostragem estratificada não-representativa (Trost, 1986). Esta técnica proposta por Trost (1986) garante a máxima diversidade num conjunto de variáveis independentes consideradas relevantes para os objetivos do estudo, assegurando assim o controlo de potenciais enviesamentos da amostragem bola de neve. Nesta pesquisa foram identificadas quatro variáveis independentes - o tipo de incapacidade, o sexo, o grupo etário e as habilitações literárias. Foi assim construída uma grelha combinando o tipo de incapacidade com cada uma das outras variáveis. Utilizando as estatísticas disponíveis sobre pessoas com deficiência em Portugal, nomeadamente os resultados dos Censos 2011, das Estatísticas sobre o Emprego - Modulo ad hoc, 2012, e do Estudo de Caracterização da População com Deficiência (Sousa et al., 2007), as diversas células resultantes da grelha foram preenchidas com o número desejável de sujeitos a entrevistar. De acordo com a técnica bola de neve, as/os participantes foram recrutados a partir das organizações parceiras, tendo em conta os critérios definidos nas grelhas. As entrevistas só se realizaram após confirmar a disponibilidade e obter o consentimento informado de potenciais entrevistados/as.

A entrevista semiestruturada inicia-se com duas perguntas abrangentes: “O que lhe trouxe mais satisfação na vida ao longo dos últimos cinco anos? E quais os principais obstáculos ou barreiras que enfrentou?” Habitualmente os entrevistados nomeiam duas ou três situações que os inquiridores depois aprofundam para compreender as suas interligações com princípios dos direitos humanos. Este formato tem a vantagem de permitir aos entrevistados/as selecionarem os temas que pretendem abordar. Em lugar de impor uma bateria de questões e condicionar as/os respondentes a focalizarem-se sobre instâncias específicas de violação dos direitos humanos, a flexibilidade do guião de entrevista do DRPI permite às/aos investigadores compreender o sentido que os direitos humanos adquirem na vida das pessoas com deficiência e as principais barreiras que se colocam ao seu exercício. Nesta pesquisa, entendemos por barreiras, os obstáculos, restrições ou impedimentos que limitam ou indeferem, a pessoas com incapacidades, o acesso a direitos específicos, tal como estes se encontram definidos na CDPC. As barreiras reportadas traduzem-se pois na negação ou violação de princípios de direitos humanos, que as pessoas com incapacidades enfrentam no seu quotidiano.

Com a duração média de uma hora, as entrevistas gravadas foram integralmente transcritas e depois codificadas e analisadas com o apoio do software de análise qualitativa nvivo 10. Uma grelha de codificação, também desenvolvida no âmbito do projeto internacional, guiou a codificação e análise dos dados. A grelha compõe-se de vários temas e subtemas, que por seu turno se subdividem em múltiplos códigos. O principal tema intitula-se “Implicações em Direitos Humanos”. Este tema é utilizado para enquadrar os relatos recolhidos nas entrevistas numa ótica de direitos humanos. Os subtemas permitem categorizar os relatos de experiências de vida em oito domínios: Acesso à Justiça, Educação, Vida Íntima e Familiar, Segurança Económica e Apoios Sociais, Informação e Comunicação, Participação Social, Saúde Habilitação e Reabilitação, e Trabalho. Em cada um destes domínios, os códigos captam a realização ou negação de cinco princípios de direitos humanos: autonomia, dignidade, participação inclusão e acessibilidade, não-discriminação e igualdade, e respeito pela diferença. A grelha de codificação fornece uma definição detalhada do significado de cada um destes códigos, tanto no seu polo positivo (afirmação do princípio em causa) como no negativo (respetiva violação ou negação). Na contabilização das incidências de violação/negação e/ou de afirmação dos princípios, a unidade de análise é o sujeito e não o número de experiências relatadas. Assim, nos dados que iremos apresentar, um/a participante que tenha relatado duas experiências de negação do princípio da dignidade é apenas contabilizado/a uma vez relativamente a esse princípio.

De seguida apresentam-se alguns dos resultados obtidos com este estudo. As entrevistas decorreram entre setembro de 2013 e maio de 2014.

Descrição da amostra

As 60 entrevistas realizadas a pessoas com deficiência com idades superiores a 12 anos, tiveram lugar em três regiões do país: Lisboa (36 entrevistas ou 60 %), região Norte (20 entrevistas ou 33,3 %) e região Sul (4 entrevistas ou 6,7 %). Todos os tipos de incapacidade estão representados nesta amostra, havendo, à semelhança da distribuição demonstrada pela informação estatística, maior predominância das tipologias de incapacidade motora (15 pessoas), cegueira ou baixa visão (12 pessoas) e incapacidade intelectual (10 pessoas).

 

 

A amostra apresenta também uma distribuição por todos os escalões de habilitação literária, apresentando uma maior incidência de entrevistados nos escalões com menores níveis de qualificações académicas (36 pessoas ou 56,7 %), incluindo uma pessoa que não sabe ler nem escrever.

Em termos de ocupação, a amostra inclui também uma diversidade de situações: estudantes/em formação, pessoas com atividade remunerada, com atividade não remunerada, reformados e pessoas sem ocupação.

Em síntese, considerando a caracterização da amostra aqui descrita pode-se concluir que o presente estudo incide sobre um conjunto de pessoas cuja variedade de situações socioeconómicas se traduz numa multiplicidade de quadros de vida que, por seu turno, refletem a diversidade de experiências de exercício de direitos humanos pelas pessoas com deficiência em Portugal.

Resultados

Para as/os participantes, todos os domínios analisados neste estudo surgem marcados por barreiras ao exercício dos seus direitos humanos, com destaque para as esferas da Participação Social, do acesso à Segurança Económica e Apoios Sociais e do Trabalho. Nas figuras 1 a 3, quantificam-se os resultados.

 

 

 

 

Como indicam as figuras 1-3, os relatos recolhidos denotam a ocorrência de violações em todos os princípios de direitos humanos considerados, embora com diferentes incidências. Assim, para as mulheres com deficiência entrevistadas, o desrespeito pela diferença, a violação da dignidade e a exclusão surgem como as formas mais frequentes de violação de direitos humanos, sendo-o também para os homens, mas no caso deles, a par ainda com situações de discriminação. Já a negação de autonomia emerge como a violação menos referenciada por ambos os sexos, mas ainda assim referida por mais de metade das mulheres entrevistadas (e apenas cerca de 1/3 dos homens). Embora se verifique nesta amostra uma ligeira tendência para maior incidência de relatos de negação ou violação de princípios de direitos humanos por parte das mulheres, esta relação só é significativa no que diz respeito à incidência de experiências de negação de autonomia e violação da dignidade[4] (p ≤ 0,1). Já no que se refere à idade, não foram encontradas relações significativas. Por seu turno, o nível de escolaridade revela uma relação significativa com a incidência de experiências de violação da dignidade (p ≤ 0,1) e de desrespeito pela diferença (p ≤ 0,01). De seguida analisam-se em maior detalhe estes dados, desenvolvendo-se uma análise bivariada apenas nos casos em que se identificaram relações significativas.

Desrespeito pela diferença

“Há os dois polos: há aquele [em] que a pessoa é ajudada porque é coitadinha (…) Ou então é ignorada, é passada ao lado e acabou”. [Homem, 68 anos]

“A pessoa que tem deficiência é vista como coitadinho e essa palavra para mim não existe no meu dicionário”. [Mulher, 44 anos]

No quadro da presente investigação, o respeito pela diferença envolve o reconhecimento e aceitação das pessoas com deficiência como parte integrante da diversidade humana. Neste sentido, considera-se desrespeito pela diferença a esteriotipagem ou rotulagem da pessoa com base na deficiência e a ausência de atenção adequada às necessidades relacionadas com as incapacidades físicas, intelectuais e sensoriais dos sujeitos entrevistados.

De acordo com os relatos recolhidos, a existência de preconceitos e estereótipos face às pessoas com deficiência ocorre em todos os domínios analisados sendo, no entanto, mais premente nos domínios da Participação Social, do acesso à Segurança Económica e Apoios Sociais e do Trabalho. Imagens negativas e derrogatórias da deficiência surgem assim como uma causa limitadora de oportunidades de inclusão e participação social, como um participante relatava:

Eu preciso de ajuda para me levantar, para fazer a higiene pessoal e etc., e acho que as pessoas, nesse aspeto, pensam que uma pessoa que está nessa situação (…) não pensa como uma pessoa que faz tudo sozinha (…) Acho que o modo [como] tratam as pessoas [com incapacidades], [como se fossem] um bocado imaturas, como crianças e, pronto, [como] pessoas que só precisam de comer e dormir e mais nada (…). É o rótulo do coitadinho. [Homem, 29 anos]

Atitudes negativas, preconceitos e crenças face à deficiência têm sido apontados como uma das barreiras que restringem a participação das pessoas com deficiência na sociedade (Fontes, 2016; WHO & World Bank, 2011). A prevalência de imagens estereotipadas e negativas da deficiência faz-se sentir de forma particularmente aguda no mercado de trabalho, onde muitas pessoas com deficiência são desvalorizadas nas suas competências e rejeitadas, como explicita o seguinte entrevistado:

O trabalho que eu ia ter era uma espécie de call-center, mas não era para receber chamadas. Era para emitir chamadas, ou seja, eu ia vender o telefone fixo, e para isto eu tinha que andar com o telefone e com o microfone e com o computador à frente. E isso de certeza que os levou a não me seleccionarem. (…) Eu disse: não há problema nenhum com a minha visão, tenho um computador portátil, a minha vida sempre foi trabalhar com o computador e eu adapto o computador a mim, ponho tudo, o rato com a seta maior, com a seta amarela, ponho tudo maior e não há problema nenhum. Mas acho que isso foi um ponto. (…) E eu acredito que se fosse uma pessoa toda bonitinha, e que visse bem e tal, era diferente. [Homem, 50 anos]

Sendo certo que quase todos os trabalhos podem ser executados por pessoas com incapacidades quando os ambientes de trabalho lhes são acessíveis (WHO & World Bank, 2011), relatos como este demonstram a persistência de equívocos face à deficiência e ignorância do papel que, nos dias de hoje, as tecnologias de apoio têm na facilitação da funcionalidade de pessoas com incapacidades, nomeadamente em contexto laboral (Butler et al., 2002). Estes resultados, que são corroborados pela literatura internacional (Darcy, Taylor e Green, 2016; Jones, Latreille, Sloane, 2006), podem ajudar a explicar por que foi nos grupos etários dos 18-25, e sobretudo dos 25-55 anos - os anos de vida adulta e ativa por excelência - que identificámos maior prevalência de relatos de desrespeito pela diferença.

Em oposição a esta perspetiva, o respeito pela diferença implicaria a acomodação das incapacidades e das necessidades específicas que delas decorrem, através da disponibilização de políticas e apoios. Na ausência destas medidas, as pessoas com incapacidades vêm-se impedidas de participar em condições de igualdade com os demais. A sua desigual participação, no entanto, é naturalizada e atribuída às características dessas incapacidades e assim se reforçam os estereótipos de dependência e incompetência que permanecem associados à deficiência.

Discriminação e desigualdade

“Trabalhava de noite e de dia, aos fins-de-semana, sem descanso semanal (…) Eu senti que estava a ser usado (…) a ser explorado.” [Homem, 41 anos]

A discriminação ocorre quando as pessoas com deficiência experienciam qualquer distinção ou restrição, com base nas suas incapacidades, negando-lhes o reconhecimento dos seus direitos humanos e liberdades. As atitudes preconceituosas face à deficiência estão frequentemente na base dos comportamentos discriminatórios de que são alvo as pessoas com incapacidades na sociedade portuguesa (Fontes, 2016). Mais uma vez, é no mercado de trabalho que a discriminação frequentemente se faz sentir. Empregadores e chefias, subestimando as competências e potenciais contributos das pessoas com deficiência, olham-nas apenas pelo prisma das suas incapacidades.

Os relatos que expressam a desigualdade de tratamento no emprego são inúmeros neste estudo e incluem situações de diferenças salariais por trabalho igual, como se evidencia no seguinte relato:

Porque nós [pessoas com deficiência] temos sempre que dar mais do que os outros, isso é garantido, temos sempre que dar mais. E aí estamos em desvantagem logo à partida. Por exemplo, quando eu estive a trabalhar em publicidade, estive dois meses sem receber. Os meus colegas receberam e eu [não]… As pessoas não são estúpidas, sabem que eu estava ali, dificilmente conseguiria ir para outro sítio. Portanto, estava garantido. Pagaram aos meus colegas e a mim não me pagaram. Talvez seja o exemplo maior, o estágio. [Homem, 30 anos]

A pesquisa tem mostrado que as pessoas com deficiência sofrem discriminação no mercado de trabalho, permanecendo numa situação de desfavorecimento face a trabalhadores/as sem deficiência no que diz respeito a aspetos como o número de horas de trabalho realizadas, as remunerações, as taxas de emprego e desemprego (Krause e Reed, 2010; Edwards e Boxall, 2010; Fabian, Ethridge e Beveridge, 2009). Também em Portugal se registam diferenças entre a população com e sem deficiência, relativamente aos níveis de empregabilidade: segundo dados do Eurostat, em 2014 as taxas de emprego de mulheres e homens com deficiência situavam-se cerca de 20 p.p. abaixo das de mulheres e homens sem deficiência, ao passo que as taxas de desemprego se elevavam cerca de 15 p.p acima da média da população sem deficiência (Pinto, Kuznetsova e Neca, 2017). Estes dados revelam a necessidade de políticas públicas que promovam o combate à discriminação, e mais ainda da sua eficaz monitorização e fiscalização (WHO e World Bank, 2011), estratégias que se revelam ainda débeis no contexto nacional (Fontes, 2016; Pinto, Kuznetsova e Neca, 2017).

A discriminação expressa por atitudes e comportamentos individuais, ou por políticas e práticas institucionais, é uma violação grave de direitos humanos, com impactos muito negativos na qualidade de vida, nas oportunidades e no exercício da cidadania. A CDPC proíbe expressamente todas as formas de discriminação com base na deficiência; na sociedade portuguesa, contudo, este objetivo afigura-se ainda uma meta distante.

Exclusão e inacessibilidade

Aí, também senti que não tinha lugar… porque era deficiente. [Mulher, 66 anos]

Na análise da negação do princípio da participação são consideradas as experiências de segregação e isolamento com base na deficiência, incluindo a falta de acessibilidade. Com efeito, para participar na vida social, económica e cultural, as pessoas com incapacidades precisam de ambientes acessíveis. Mas este é um princípio que lhes é frequentemente negado, porque o meio edificado, os sistemas de transportes, de informação e comunicação foram concebidos sem ter em conta as suas necessidades e surgem assim como espaços inacessíveis, tal como o seguinte relato atesta:

Dentro da cidade de Lisboa é os passeios que são muito altos, ou os obstáculos nos passeios. Porque muitas vezes as pessoas não podem circular no passeio, têm de circular na estrada, porque ou tem sinais a bloquear o caminho, ou tem caixotes do lixo, ou mesmo os passeios não têm nenhuma zona baixa onde se possa subir e descer com segurança (…) E, depois, tem alguns monumentos (…) que não têm rampas, que não têm acessibilidades para pessoas com deficiência. (…) As pessoas não podem usufruir, digamos, desses espaços. [Homem, 29 anos]

As experiências individuais de negação do princípio da Participação não se restringem ao uso de espaços físicos. De acordo com os relatos recolhidos, resultam ainda da insuficiência de serviços de apoio como transportes adaptados ou interpretação em Língua Gestual Portuguesa ou, ainda, da inexistência de serviços de assistência pessoal que facilitem a participação na vida em comunidade. A lacuna em termos de Serviço de Intérprete de Língua Gestual Portuguesa aqui apresentada é exemplificativa:

Eu preciso de ajuda, não é, e no futuro se houvesse intérprete era um alívio para nós. Se não houver ninguém para me ajudar, nem pai nem mãe nem família, como é que é? Num hospital ou no tribunal ou na polícia ou na segurança social, variadíssimas coisas, num banco - deveriam ter intérprete todas as instituições. É um direito! Os surdos necessitam de intérprete, isso seria bom. Sem ser a família, um intérprete! [Mulher, 26 anos]

No âmbito dos apoios à deficiência, a disponibilização de serviços de assistência pessoal tem sido evidenciada como um contributo particularmente decisivo para a qualidade de vida, inclusão e participação social das pessoas com diferentes tipos de incapacidades (Askheim et al., 2012; Misra, Orslene e Walls, 2010; Verdonschot et al., 2009). Este tipo de resposta social só agora dá os primeiros passos em Portugal e era inexistente no momento de realização deste estudo. A CDPC aborda de forma muito direta esta questão no artigo 19.º, interligando-a com o direito à vida independente. As pessoas com deficiência desejam, e têm o direito, de participar como iguais na vida social, económica e cultural das suas comunidades. Negar-lhes as condições para uma efetiva participação constitui uma violação dos seus direitos de cidadania.

Violação da Dignidade

Na altura saí da entrevista e chorei. Escondi-me para que ninguém me visse chorar. Porque acho que foi humilhante demais. [Homem, 50 anos]

A violação da dignidade humana das pessoas com deficiência ocorre quando elas se sentem depreciadas nas suas experiências e opiniões e sofrem danos físicos, psicológicos e/ou emocionais pelo tratamento que recebem de terceiros. Neste estudo, os relatos de violações ao princípio da dignidade humana surgem com mais frequência nos domínios do Trabalho e da Participação Social, bem como no contexto da Vida Íntima e Familiar.

As situações de rejeição sistemática no mercado de trabalho por causa das suas incapacidades (reportadas por um terço das/os entrevistadas/os neste estudo) levam as pessoas a sentirem-se humilhadas e frustradas, conforme ilustram os seguintes testemunhos:

Frustrado (suspiro). Frustrado, eu acho que é o adjetivo que melhor pode qualificar. A frustração de querer fazer mais e não conseguir. É querer resolver a vida e estamos sempre a levar pontapés e é mesmo muito difícil de levantar (…) Já são 6 anos de inatividade em 14 anos. E isto deixa-nos um bocado em baixo, não é? Vamos sempre aos solavancos, nunca nos dão a possibilidade de poder assentar, poder fazer projetos para a nossa vida… Por isso acho que sim, a frustração, acho que é o adjetivo que melhor qualifica. [Homem, 45 anos]

Mesmo aqueles que já estão inseridos no mercado de trabalho não ficam imunes a situações de desrespeito pela diferença e até assédio e abuso por parte de colegas ou chefias. Uma entrevistada relatava o seguinte episódio:

Foi uma situação em que se pode dizer que as pessoas não estão mesmo preparadas para a diferença. Vindo eu a caminho do meu lugar num open space, e sentindo uns passos pesados atrás de mim, pensei: é alguém que quer passar; paro e viro-me para trás para dar passagem à pessoa. Quando me viro, deparo-me com o meu chefe que vinha atrás de mim a imitar a forma como eu ando (…) Senti-me gozada (…) aliás, penso que qualquer pessoa que é ridicularizada assim sente-se inferiorizada. [Mulher, 43 anos]

Se os preconceitos e as conceções sociais dominantes negativas sobre as pessoas com deficiência, por um lado, estão na base da sua exclusão e marginalização sistemática, por outro lado, fazem emergir nestas sentimentos de inferiorização e desvalorização que afetam a sua dignidade pessoal, como um outro participante relatava:

Sentia que não me davam muito valor (…) Sinto que são pessoas que têm os seus amigos, têm pessoas que têm mais estatuto que eu e são pessoas normais (…). Eu tentei conviver com eles, estar nos sítios com eles, só que nunca me convidavam. Muitas vezes fazem anos, pronto, fazem programas, é raríssimo convidarem-me para alguma coisa, e isso faz-me sentir triste, desanimado, faz-me sentir inferior. [Homem, 58 anos]

Tem sido largamente reconhecido (Pestka e Wendt, 2014; Thiara, Hague e Mullender 2011; Nixon 2009), e as experiências recolhidas neste estudo também o revelam, que muitas pessoas com deficiência (particularmente mulheres) são vítimas de danos físicos, psicológicos e/ou emocionais. A incapacidade física e/ou intelectual e a dependência no que se refere aos cuidados colocam as pessoas com incapacidades em situação de grande vulnerabilidade e expõem-nas a situações de violência física e verbal no quadro da vida íntima e familiar (Pinto, 2016). O testemunho que se segue, ilustrativo de uma situação de violência de género, revela as dificuldades específicas com que raparigas e mulheres com deficiência se defrontam, pelo grande isolamento em que muitas vivem:

O meu marido faz-me companhia mas é um bocadinho malcriado, eu vou-lhe já dizer, não é? Tenho que dizer, tenho que desabafar! É um bocadinho malcriado, chega a casa trata-me mal até com uma faca já me ofereceu. Ele trata-me muito mal desde que chego a casa, começa-me a chamar nomes [choro] chama-me tudo e eu sinto-me já cansada de ouvir a voz dele, [choro] já (ele) com o álcool trata-me muito mal, [choro] manda-me com as coisas para o chão, pisa-me as coisas, e eu… já estou farta! Não tenho ninguém que me ajude!”. [Mulher, 56 anos]

Também a relação com os progenitores nem sempre é de apoio e suporte. Uma outra mulher, mais jovem, recordava desta forma uma interação com o pai:

A coisa que me dói mesmo é o meu pai. Ele virou-se uma vez para mim e disse-me “você é deficiente”, disse mesmo assim na minha cara! Eu olhei para ele e a minha camisola molhou-se toda de lágrimas. Ele disse-me “tu és deficiente, tu nunca vais conseguir nada na vida! Vais depender sempre das pessoas para te ajudarem! Nunca vais conseguir nada por ti! Vais ser sempre um peso para os outros!”. [Mulher, 20 anos]

Neste estudo, encontramos maior incidência de relatos de violação da dignidade nas/os participantes mais velhos (p ≤ 0,1) e nas mulheres (p ≤ 0,1). Estes dados são coincidentes com resultados de pesquisa internacional que sublinham a acrescida vulnerabilidade de muitas raparigas e mulheres com deficiência a situações de violação da dignidade. Em sociedades onde a ordem de género impõe como arquétipo universal de beleza feminina apresentar um corpo saudável e esbelto, a realidade vivida por muitas mulheres com incapacidades colide com o modelo socialmente valorizado (Monedero et al., 2014; WHO e World Bank, 2011). A distância que as separa desse padrão ideal torna-se o fundamento para a discriminação de que são alvo, e que à força de tanto ouvirem repetir, também elas interiorizam e reproduzem, não sem que isso lhes cause um enorme sofrimento pessoal. Uma outra entrevistada confidenciava:

Há uma outra situação que também me faz sentir deveras diferente e diminuída. Vocês vêm que eu não sou muito bonita, mas também não sou feia; e o facto de não ser bonita, ou de ter ou não ter uma perna comprida e outra curta, e ser diferente, seja o que for, não devia ser impeditivo de ter relações sexuais. Visto que, se há amor, e tudo isso se mantém, tudo isso se deveria manter. Eu desde que tive o acidente (…), há 14 anos que o meu marido não me toca. Porque eu tenho o pescoço ao lado porque eu não ando como andava antigamente… De resto é só, porque de resto eu tento manter-me arranjada e tão bem quanto possível para ele, não é?”. [Mulher, 43 anos]

A vulnerabilidade a situações de erosão da dignidade acentua-se com a idade, sobretudo quando esta se faz acompanhar de acrescida fragilidade física e dependência, compelindo as pessoas com incapacidades e necessidades elevadas de apoio a lutar pela sua dignidade e integridade no contexto de relações quotidianas de cuidados (Wadensten e Ahlström, 2009). Este dado suscita uma reflexão sobre a importância da formação ética dos cuidadores formais e informais, de modo a que os cuidados prestados a pessoas com incapacidades respeitem a sua dignidade humana e promovam o seu empoderamento e cidadania ativa.

Negação de Autonomia

“Eu não quero que decidam o que eu tenho que vestir”. [Mulher, 19 anos]

A autonomia corresponde ao direito que assiste a todo o ser humano de exercer escolhas livres e esclarecidas em assuntos que dizem respeito à sua vida. No passado, como nos dias de hoje, a deficiência tem servido de justificação para cercear este direito, no pressuposto de que as pessoas com incapacidades não sabem, não podem, ou não querem, tomar decisões por si mesmas.

A incidência de experiências de negação de autonomia apresenta uma diferença significativa no que diz respeito ao sexo (p ≤ 0,1), com as raparigas e mulheres com incapacidades a expressarem maior frequência desta forma de abuso. Tais relatos ganham particular dimensão na esfera familiar, evidenciando a imposição de limitações à expressão individual e à tomada de decisão, resultantes de atitudes de sobreproteção familiar. Exercida sobretudo sobre as raparigas, a sobreproteção parental revela-se pois opressiva como ilustra o seguinte excerto de uma mulher com 24 anos de idade e uma incapacidade na mobilidade, entrevistada para este estudo:

Lá está, é o tal cuidado que eles têm. Eles próprios necessitam de ter esse cuidado para comigo porque estão sempre com medo que me aconteça alguma coisa. Claro que estou sozinha em casa, que faço… pronto essas coisas. Mas sair sozinha, não saio. Porque, lá está, é o medo. [Mulher, 24 anos]

A capacidade de autodeterminação é o produto de fatores socio-ambientais (Deci e Ryan, 2008; Wehmeyer e Palmer, 2003). Os investigadores que têm estudado este tema sublinham a importância de aspetos como a comunicação positiva e o feedback no desenvolvimento de sentimentos de autoconfiança e competência, chamando a atenção para o papel que as famílias podem desempenhar junto das/os jovens ao proporcionar ambientes de autonomia com apoio (Wehmeyer e Palmer, 2003). Os resultados deste estudo, no entanto, apontam em sentido contrário àquele que estes teóricos sugerem. Uma vez mais prevalece a imagem da pessoa com deficiência como alguém incapaz de se governar a si mesmo/a, criando situações de desigualdade e injustiça, que configuram violações dos seus direitos humanos.

Conclusão

Os dados empíricos acima apresentados revelam um padrão de discriminação, desigualdade e desvalorização social que marca a experiência da deficiência na sociedade portuguesa. Estes resultados permitem-nos concluir que a deficiência emerge no confronto com ambientes físicos e sociais não inclusivos, que impõem restrições ao que as pessoas com incapacidades podem ser e fazer. Deste modo, a exclusão que as pessoas com deficiência experienciam não é o produto inevitável das suas incapacidades, é antes a consequência previsível do limitado acesso que lhes é dado a oportunidades de educação e de emprego, mobilidade, informação e utilização dos espaços públicos, numa sociedade concebida para responder apenas às necessidades de pessoas sem deficiência. A marginalização social e económica das pessoas com deficiência resulta, ainda, da insuficiência de apoios de assistência pessoal que lhes permitam concretizar projetos de vida independente, e da prevalência de representações sociais negativas sobre a deficiência. Todos estes fatores, que configuram formas insidiosas, sistemáticas e persistentes de violação de direitos humanos, comprometem fortemente as possibilidades de participação social e remetem as pessoas com deficiência para uma condição de “cidadãos invisíveis” (Quinn e Degener, 2002).

No discurso dominante, a “invisibilidade” das pessoas com deficiência tem sido entendida e aceite como natural, e encarada como decorrente das suas incapacidades. O que este estudo, no entanto, demonstra é que a deficiência se constrói socialmente e, nesta medida, para explicar o que ela significa, importa identificar e desconstruir as estruturas que produzem as experiências de desigualdade e a discriminação no quotidiano destas pessoas.

Do reconhecimento de que a sociedade é responsável pela criação da deficiência decorre a noção de que as pessoas que a sociedade constrói como deficientes devem afinal ser tratadas como iguais e devem ter as suas necessidades atendidas por uma questão de direitos, e não por um ato de beneficência pública (Gostin, 2001). E é neste ponto que uma vez mais os Estudos da Deficiência encontram a sociologia pública. Ao contribuir para explicitar, tornando “visíveis” e “públicas”, as faces sociais, económicas e culturais da opressão que tem mantido as pessoas com deficiência isoladas, inferiorizadas e ignoradas na sociedade portuguesa (Young, 1990), a presente investigação aprofunda o diálogo com o movimento social das pessoas com deficiência. Mais ainda, coloca-se ao seu serviço na defesa de políticas públicas que promovam direitos de cidadania, em particular o direito à participação e aos suportes para alcançar uma vida com dignidade e autonomia.

A ratificação da CDPC pelo Estado português exprime o reconhecimento político da deficiência como uma questão de direitos humanos, de justiça social e de promoção da igualdade. Repensar a deficiência nesta ótica é um enorme desafio para toda a sociedade. Aos sociólogos competirá monitorizar e analisar os avanços conseguidos, e bem assim os desafios que persistem. Um tal projeto, que diríamos de uma sociologia pública da deficiência em ação, mais do que dar voz às pessoas com deficiência, faz delas parte integrante da sociedade, e assim concede espaço para um ponto de vista da e sobre a deficiência na sociologia contemporânea, numa perspetiva simultânea de construção de conhecimento e intervenção social, pela “defesa da humanidade”.[5]

 

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Recebido a 17-01-2017.

Aceite para publicação a 06-11-2017.

 

[1] Ao longo do texto referiremos este documento utilizando a sua designação completa, sigla (CDPC) ou apenas os termos Convenção da Deficiência, Convenção ou Tratado.

[2] Para mais informação sobre o projeto DRPI consultar a página web em http://drpi.research.yorku.ca/

[3] A este propósito é pertinente referir que os resultados deste estudo serviram de base à elaboração do Relatório Paralelo de Monitorização dos Direitos das Pessoas com Deficiência, submetido pela sociedade civil portuguesa ao Comité das Nações Unidas relativo à CDPC, no âmbito do processo de avaliação do Estado português que decorreu entre agosto de 2015 e abril de 2016. Para mais informação consultar http://oddh.iscsp.ulisboa.pt/index.php/pt/2013-04-24-18-50-23/publicacoes-dos-investigadores-oddh?start=3.

[4] Foram realizados testes exatos de Fisher, segundo a extensão proposta por Freeman e Halton (1951), para todos os Princípios de Direitos Humanos, cruzando-os com as seguintes variáveis independentes: sexo, grupo etário e nível de escolaridade.

[5] Este artigo resulta do projeto “Indicadores Sociais para a Monitorização dos Direitos Humanos da Deficiência” financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (Projeto ptdc/ivc-soc/4708/2012). A autora agradece o apoio da FCT, a colaboração prestada pelas assistentes de investigação Diana Teixeira e Ofélia Sá, e os contributos muito úteis dos/as revisores/as, sobre uma versão anterior deste artigo.

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