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Análise Social
versão impressa ISSN 0003-2573
Anál. Social no.231 Lisboa jun. 2019
https://doi.org/10.31447/AS00032573.2019231.06
ARTIGOS
Regulação profissional no campo do ordenamento do território em Portugal - o caso SAR
Professional regulation in the field of spatial planning in Portugal - the case of SAR
Raquel Rego*
https://orcid.org/0000-0002-7342-8695
João Mourato**
https://orcid.org/0000-0003-0891-4897
*Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Av. Prof. Aníbal de Bettencourt, 9 - 1600-189 Lisboa, Portugal. raquel.rego@ics.ulisboa.pt
**Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Av. Prof. Aníbal de Bettencourt, 9 - 1600-189 Lisboa, Portugal. joao.mourato@ics.ulisboa.pt
RESUMO
O campo do ordenamento do território sofreu um impulso nas últimas décadas em Portugal. Ao longo dos anos, diversas ocupações têm competido pelo controlo deste mercado, tirando proveito da falta de regulação. Em 2006, o secretário de Estado da tutela deu início a um sistema de registo dos coordenadores dos instrumentos de gestão territorial, o SAR, envolvendo todos estes grupos de interesse. A mudança de governante, em 2009, levou à suspensão do processo de concertação, deixando novamente espaço livre para a disputa. Este artigo apresenta este caso de tentativa de regulação profissional, realçando o papel do Estado e os desafios da profissionalização de um saber multidisciplinar.
Palavras-chave: ordenamento do território; associações profissionais; Estado; regulação; profissionalização.
ABSTRACT
The field of spatial planning has seen a significant boost in recent decades in Portugal. Different occupations had earlier competed for the control of this market, exploiting a lack of regulation. In 2006, the then Planning Junior minister introduced a registration system for the coordinators of territorial management instruments, the SAR, bringing together all interested professional groups. However, a ministerial reshuffling in 2009 led to the halting of the concertation process, leaving once again room for professional dispute. This paper presents this case of professional regulation, highlighting the role of the state and the challenges of the professionalization of multidisciplinary knowledge.
Keywords: spatial planning; professional associations; State; regulation; professionalization.
INTRODUÇÃO
Em 2006, a Secretaria de Estado do Ordenamento do Território e das Cidades do XVII Governo Constitucional da República Portuguesa (2005-2009) lançou a constituição do Sistema de Acreditação e Registo de Profissionais de Planeamento e Gestão Territorial com Funções de Coordenação de Equipas Multidisciplinares (SAR). O objetivo do SAR, conforme se lê na ata de uma das suas primeiras reuniões, era trazer mais transparência e responsabilização ao processo de coordenação de instrumentos de gestão territorial, uma vez que estes são uma missão das Câmaras Municipais mas os autores dos planos são “especialistas de ordenamento do território”, subcontratados e provenientes de diversas disciplinas.[1]
O SAR é, assim, uma iniciativa de “regulação mínima”, por parte do Estado, de uma função do ordenamento do território numa altura em que proliferavam os Planos Diretores Municipais (PDM) em Portugal. A metodologia do SAR era inclusiva e conferia idêntico poder participativo aos vários grupos ocupacionais e profissionais que ocupavam e disputavam este mercado de trabalho. Envolvendo Ordens profissionais, associações profissionais de direito privado e especialistas a título individual, o SAR não atendeu a estatutos legais nem a quaisquer outros critérios de representatividade, optando por convocar todos os atores. Apesar da boa adesão dos vários atores sociais, o processo de concertação ficou suspenso e continua desde então por concretizar.
A literatura tem dedicado a sua atenção a vários atores intervenientes no processo de profissionalização, como as associações profissionais (Rego, 2013), ou, nesta revista, as universidades (Freire et al., 2015), mas são raros os trabalhos sobre o papel do Estado. O Estado pode surgir adotando uma posição ativa ou apenas dando um enquadramento formal à iniciativa de outros atores (Brante, 2010). Muitas vezes, o Estado é referido apenas como uma etapa da profissionalização, possivelmente por a literatura anglo-saxónica ser predominante e nesse contexto o Estado ter um papel menos saliente (Brante, 2010).
Como diz Carlos Gonçalves (2007), as profissões são, em todo o caso, “constructos históricos e impossíveis de serem lidas atomizadas sociologicamente dos espaços sociais onde se inserem” e o padrão de desenvolvimento das profissões na Europa continental “assente numa interdependência de profissões e Estado, em que as primeiras participam na organização burocrática estatal e têm uma autonomia delegada e condicionada pelos objetivos políticos e ideológicos do Estado” (Gonçalves, 2007, p.192). Nas sociedades modernas, as profissões constituem entre 15% e 20% da força de trabalho, valor que tende a aumentar, mas a compreensão deste incremento não pode ser feita per se, antes deve ter em conta as “condições de possibilidade”, entre as quais a relação das profissões com o poder político (Brante, 2010).
Ora, a função que o SAR procurou regular, de coordenação dos instrumentos de gestão territorial, pode configurar-se como uma “pré-profissão” no sentido defendido por Brante, quando sustenta que uma das possibilidades das novas profissões são “Developers of expertise in order to solve new social problems, such as those of the environment and migration” (Brante, 2010, p. 104), ou seja, ocupações que convocam competências para a resolução de problemas de interesse público, que são multidimensionais. E o SAR evidencia justamente que a profissionalização não resulta apenas de uma necessidade suscitada pelo saber ou inovação, mas conjuga-se também com as políticas públicas, a capacidade de auto-organização e mobilização dos grupos.
Este texto pretende descrever as origens, objetivos e etapas do processo SAR até à atualidade, salientando a relevância sociológica desta tentativa de regulação profissional por parte do Estado. Com base em análise documental, nomeadamente a partir de documentos de trabalho do SAR e das associações envolvidas, alguns reservados (como atas e pareceres), e em entrevistas não diretivas de carácter exploratório, realizadas em 2017, aos atores envolvidos no processo de criação do SAR (governantes e representantes dos grupos profissionais)[2] , mostramos como a intervenção do Estado pode assumir um papel conciliatório num campo de fronteiras porosas onde grupos ocupacionais estão em tensão.
A análise do caso SAR permite, por um lado, compreender melhor o status quo do campo do ordenamento do território em Portugal, na medida em que revela as dinâmicas cruzadas dos diversos grupos de interesse que disputam o campo; por outro, refletir sobre os desafios que se colocam à regulação profissional num campo de identidade ambígua, porque baseada num saber multidisciplinar (Dubar, 1991).
Deste modo, começamos por dar conta do ordenamento do território como um campo profissional complexo, que convoca diversos saberes, onde coabitam ocupações e profissões e se cruzam idiossincrasias linguísticas. Depois introduzimos o leitor ao campo do ordenamento do território em Portugal, chamando a atenção para o impulso recente ao seu desenvolvimento, designadamente através da ineficaz tentativa de afirmação do “planeador do território” ou da ação fundamental de alguns governantes. Finalmente, apresentamos e discutimos o processo SAR e as razões da sua suspensão.
A AMBIGUIDADE INERENTE AO CAMPO DO ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO
O primeiro desafio que se impõe na aproximação ao campo[3] do ordenamento do território é a clarificação do vocabulário usado. Ordenamento do território ou urbanismo? Os próprios atores sociais parecem oscilar no uso dos termos.
As origens do campo do ordenamento do território remontam quer ao contexto anglo-saxónico, onde encontramos o chartered town planner como ocupação regulada pelo Royal Town Planning Institute-RTPI desde 1914[4] , quer ao contexto francófono, onde se opta pelo conceito de urbanista, com uma evolução cada vez mais abrangente do espaço. A importância desta dualidade linguística assume tal proporção que a associação europeia destes “praticantes” reflete-a no seu nome: European Council of Spatial Planners - ECTP/Conseil Européen des Urbanistes-CEU.[5] A diferenciação linguística reproduz-se em vários discursos: associativos, políticos e da própria comunidade de praticantes.[6]
O facto de o ordenamento do território, como atividade interativa que é (Knieling e Othengrafen, 2015), ser variável conforme o tempo e o espaço, cobrindo tradições diferentes e vários domínios de políticas públicas, confere uma ambiguidade ao campo do ordenamento do território que se tem traduzido em oportunidades de apropriação por profissionais provenientes de diversas disciplinas, como a engenharia e a arquitetura. Não só em Portugal, como em vários países europeus (Alemanha, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo e inclusive o Reino Unido), cabe geralmente aos arquitetos a responsabilidade pelo ordenamento do território. Ora estes profissionais, com uma história mais antiga de “fechamento social” e um “ato profissional” delimitado, contribuem por sua vez para impedir que o campo do ordenamento do território seja ocupado por outras ocupações e profissões.
A composição multidisciplinar do campo do ordenamento do território contribui para a sua ambiguidade e a diversidade disciplinar de quem o integra é cada vez maior, pois entende-se que são necessárias competências várias para uma abordagem sistémica do espaço. Considerando a lista das competências que o especialista de ordenamento do território deve ter segundo o RTPI[7] , o espectro vai de hard skills, ou seja, competências mais técnicas e específicas, como elaboração de mapas, a soft skills, que convocam competências pessoais e sociais, transversais, como mobilizar uma comunidade.[8] O especialista de ordenamento do território deve ser capaz de interpretar legislação e mapas, tanto quanto negociar com entidades diversas e coordenar equipas de trabalho.
Neste sentido, profissionais do direito, economistas e sociólogos tendem hoje a juntar-se a equipas multidisciplinares, que desde cedo surgiram no ordenamento do território, compostas por arquitetos e engenheiros, mas depois também por arquitetos paisagistas e geógrafos. O presidente da associação europeia de escolas de planeamento, a AESOP, observava justamente que as margens do campo são frágeis e que isso se deve à própria natureza do ordenamento do território (Geppert e Verhage, 2008). Também a este propósito, Mazza e Bianconi (2014) perguntam se o ordenamento do território é uma disciplina de pleno direito.
Podemos, portanto, dizer que a ambiguidade inerente ao campo do ordenamento do território relaciona-se em grande parte com as características do conhecimento que implica, que se reflete de forma diversa sobre a formação académica e consequente credenciação. Neste conhecimento, a aprendizagem informal e a experiência assumem uma parte importante. Com efeito, o campo do ordenamento do território requer conhecimentos teóricos mas também práticos e, por isso, é ocupado por praticantes com trajetórias diversas: arquitetos e engenheiros que se dedicam na prática às questões do espaço, urbanistas e “planeadores com formação própria”, etc.
Quando nos deparamos com uma formação superior em ordenamento do território, os indivíduos que obtêm este diploma são especialistas de ordenamento do território tanto quanto os licenciados em outras disciplinas que pela experiência ou especialização se habilitam a intervir neste campo. Os licenciados em ordenamento do território estarão até porventura em desvantagem face a outros que são reconhecidos como “profissão estabelecida”, arquitetos e engenheiros, estes enquadrados em associações de direito público, como Ordens Profissionais. A composição multidisciplinar do curso de ordenamento do território afasta os licenciados de uma “profissão”, na medida em que esta se define na sociologia das profissões por uma especialização, uma “exclusividade cognitiva” (Freidson, 1986). Davoudi e Pendlebury (2010) discutem justamente a questão de como a ambiguidade inerente ao saber do especialista de ordenamento do território pode conduzir ao seu enfraquecimento enquanto disciplina académica.
Não obstante, a dimensão prática da formação académica do especialista de ordenamento do território aproxima-o de uma “profissão”, pois qualquer profissional testa o seu conhecimento, socializa entre pares, aprofundando o seu “saber discricionário” e “interpretativo”. Note-se que as primeiras “profissões estabelecidas”, desde os médicos aos advogados, integram na sua formação superior uma componente prática importante (internato, estágio, etc.).
Por conseguinte, a formação do planeador não pode ser padronizada. Nas palavras do presidente da AESOP, Peter Ache:
Planning, understood as a practice which is to achieve spatial quality, and planners, understood as having the capacity to situate and contextualise, develop and manage planning projects in an appropriate way and to achieve and realise satisfactory solutions in participative processes (…), cannot be achieved by an overly harmonized education [Geppert e Verhage, 2008, p. 2].
Autores como Campbell e Marshall (2005) sustentam que o especialista de ordenamento do território corresponde a uma “ocupação” que se baseia essencialmente numa aprendizagem pela experiência, embora ela nem sempre seja requerida no currículo. Mas reconhecem ao mesmo tempo que essa ocupação tem procurado “a distinctive and definable core of specialised expertise” (2005, p.207).
Campbell e Marshall (2005) consideram que o especialista de ordenamento do território presta um serviço público, tratando-se portanto de uma “public service bureaucratic occupation” (2005, p. 198). Uma característica distintiva do especialista de ordenamento do território é, com efeito, a sua associação ao serviço público. A preocupação que prevalece no ordenamento do território é aumentar a integração de ações no espaço (edificação, transportes, indústria, etc.), sem esquecer o ambiente. Podemos, pois, dizer que o especialista de ordenamento do território é uma ocupação de “interesse público”.
A atestar a relevância do ordenamento do território como serviço público, a Organização das Nações Unidas (ONU) afirma que o ordenamento do território é iminentemente uma atividade do setor público. Tendo em conta que o ordenamento do território diz respeito a todos os atores sociais implicados num dado espaço, a ONU defende que cabe ao Estado a função de planear e gerir o espaço. E, neste sentido, estabeleceu elementos-chave para o desenvolvimento e a governança efetiva do espaço, admitindo que existe uma diversidade política, económica e cultural que inviabiliza uma abordagem única e universal (UNECE, 2008).
Daqui decorre que o campo do ordenamento do território se articula com o campo político pois, em última instância, as escolhas sobre o ordenamento do território cabem ao decisor político. A permeabilidade entre ambos os lados sempre terá existido, apesar das reivindicações de neutralidade profissional (Campbell e Marshall, 2005). Vários autores assumem de resto uma perspetiva pessimista sobre esta relação, pois, como dizem, as fronteiras entre o especialista de ordenamento do território e o político são ténues: “planning is an activity embedded within a state bureaucracy, the boundaries between the ‘political’ and ‘professional’ are porous” (Campbell e Marshall, 2005, p. 2010).
Para Laffin e Entwistle (2000) é a influência da política que se impõe ao ordenamento do território e não parece haver forma de reverter essa assimetria. Nas suas palavras: “it seems unlikely that the professions will recapture their privileged place in the policy process” (Laffin e Entwistle, 2000, p. 218). Mais recentemente, Grange (2016) considera que a política se impõe ao ordenamento do território mas que é preciso resistir. Debruçando-se sobre o caso sueco, esta autora critica a relação entre especialista de ordenamento do território e político, chegando a defender que os governos têm introduzido reformas ao nível do planeamento com o intuito de mudar a cultura de ordenamento do território e silenciando os especialistas. Embora reconheça que cabe aos políticos a última palavra nos processos de planeamento, a autora considera que o ordenamento do território é “a ‘demoralised’ profession with an outdated ideological attitude” (Grange, 2016, p. 2) e sustenta que os especialistas de ordenamento do território têm de admitir que o ordenamento do território é político e têm de resistir aos avanços da política sobre a sua autonomia através de uma associação representativa forte.
Em suma, a ambiguidade é inerente ao campo do ordenamento do território e o especialista de ordenamento do território de formação é apenas um dos seus praticantes. O especialista de ordenamento do território, efetivamente, tanto pode ser um indivíduo com formação própria, como proveniente de outra disciplina com uma especialização ou experiência em ordenamento do território. As diversas profissões e ocupações que configuram o especialista de ordenamento do território não têm, no entanto, o mesmo poder relativo.
O DESENVOLVIMENTO RECENTE DO CAMPO EM PORTUGAL
O campo do ordenamento do território foi particularmente desenvolvido em Portugal com as políticas de ordenamento do território que criaram instrumentos como o Plano Diretor Municipal (PDM). [9] Note-se que o PDM surge em 1982, ainda que só mais tarde outra legislação permita a sua operacionalização e generalização.[10] A importância destas políticas pode ser atestada pela cobertura nacional atual de PDM, ou seja, mais de 300 concelhos têm hoje um PDM.
Se o enquadramento europeu e as orientações internacionais (Mourato e Pires, 2007; Mourato, 2011; Knieling e Othengrafen, 2015) contribuíram, por certo, para imprimir um novo impulso ao desenvolvimento do ordenamento do território em Portugal, a ação de responsáveis políticos com expertise no campo do ordenamento do território também o terá facilitado.
Em meados dos anos 80, Valente de Oliveira, ministro do Plano e da Administração do Território, especialista em planeamento regional e engenheiro civil de formação, contribui para que os PDM se tornem um requisito para a obtenção de fundos europeus. Este facto leva a uma expansão significativa dos PDM, ao que se chama com frequência “a primeira geração de PDM”.
Em 1998, com João Cravinho, ministro do Equipamento, Planeamento e Administração do Território e também engenheiro civil de formação, é publicada a Lei de Bases (Lei n.º 48/98, de 11 de agosto).[11] O ordenamento do território ganha então particular importância, tendo em conta que se torna uma política pública autónoma. Esta lei vem estabelecer que os PDM requerem trabalho de equipa de diversas disciplinas. A coordenação do PDM implica, portanto, gerir o trabalho em equipa e visões por vezes incompatíveis, nomeadamente aquando da acomodação do PDM a outros instrumentos de planeamento, como o PROT - Programa Regional de Ordenamento do Território.
Sabendo que a profissionalização de uma ocupação atravessa várias etapas (Wilensky, 1964) que podemos resumir em três principais (jurisdição própria, formação de nível superior e autorregulação por meio de uma associação de pares), o especialista de ordenamento do território em Portugal está longe de seguir um percurso padronizado. Para tal contribuem, por certo, as especificidades do campo vistas atrás, mas também as particularidades do caso português, como procuraremos mostrar.
Relativamente ao especialista de ordenamento do território de formação própria, importa dizer que os primeiros licenciados ter-se-ão formado em finais dos anos 1980. Encorajada pelas políticas de ordenamento do território e pela influência de alguns estrangeirados, a primeira licenciatura em “planeamento e gestão do território” surge em 1983 na Universidade de Aveiro.[12] A oferta da Universidade de Aveiro vai estar de resto ligada ao surgimento da APPLA - Associação Portuguesa de Planeadores do Território, associação de direito privado que virá a ser envolvida no SAR. No entanto, o curso deixa de ter inscritos em 2009. E, em 2017, a associação sofre uma fusão, desaparecendo a terminologia “planeadores” em favor de “urbanismo”[13] com a nova Associação Portuguesa de Urbanismo.[14]
Desde a primeira licenciatura em ordenamento do território, várias outras surgiram especificamente sobre ou com a vertente de ordenamento do território em várias universidades, conforme nos revelam os dados da DGEEC-DEES. O auge desta oferta educativa ocorreu entre meados dos anos 1990 e o início da década de 2000, quando pelo menos 8 licenciaturas são contabilizadas em torno do ordenamento do território. No entanto, em 2011 só a Universidade de Lisboa tinha inscritos em três licenciaturas em ordenamento do território, sendo que apenas uma delas era estritamente sobre ordenamento do território, as outras associavam-se à disciplina de geografia. A diversificação da oferta faz-se, no entanto, notar de forma crescente em outros ciclos do ensino superior, com o aparecimento de mestrados e doutoramentos em Faculdades de arquitetura e engenharia, impulsionada pelo Processo de Bolonha.
Se considerarmos o especialista de ordenamento do território como o licenciado em ordenamento do território, verificamos que, em Portugal, esta categoria nunca entrou na Classificação Nacional de Profissões, ao contrário do urbanista, como que confirmando que Portugal “may be considered the Southern country most closely emulating the French planning approach” (Rivolin e Faludi, 2005, p. 209). A etapa da profissionalização em que o Estado confere um reconhecimento aos licenciados como os únicos habilitados para exercer determinadas tarefas nunca se verificou.
Os arquitetos parecem ter assumido um papel preponderante na liderança de projetos de ordenamento do território. Como diz um dos nossos entrevistados:
Durante o período em que isto andou tudo aí a fazer casas, este crescimento urbano, foram-se metendo aí muitos arquitetos, em vez de se meterem urbanistas, foram-se metendo muitos arquitetos no setor de planeamento das câmaras municipais [E2]
Perante este panorama, a regulação profissional dificilmente será feita por uma associação profissional sem que haja contestação por parte de outras. Apesar disso, a autorregulação tem sido perseguida por diversos grupos.
A este facto não são alheias, por certo, as idiossincrasias das ordens profissionais em Portugal e de um modo geral do modelo de autorregulação do país em que se insere, que alguma literatura tem testemunhado (Freire, 2004; Rego, 2013). O prestígio e poder de que as Ordens profissionais gozam, a par da invisibilidade social de muitas associações profissionais de direito privado, têm motivado grupos de interesses a pressionar os decisores políticos independentemente do grau de risco público efetivamente existente num dado campo profissional.
A criação de uma Ordem dos Urbanistas é, de facto, uma pretensão antiga da AUP - Associação dos Urbanistas Portugueses, criada em 1983, fundada por nomes notáveis como Manuel Costa Lobo e composta por urbanistas, arquitetos, engenheiros, etc. Mais recentemente, a esta luta juntaram-se em 2006 a APPLA - Associação Portuguesa de Planeadores de Território, cujas primeiras eleições ocorreram em 1993 e que, como já foi observado, surge no quadro da oferta formativa própria em Aveiro; e ainda a APROURB - Associação Profissional dos Urbanistas Portugueses, que tendo antecedentes desde 1994, surge efetivamente em 2002, enquadrada pela Universidade Lusófona.
As diferentes tradições educativas, origens sociais dos seus membros, institucionais, etc. destas três associações, AUP, APPLA e APROURB, explicarão a sua fragmentação. Mas, como enunciado atrás, recentemente iniciou-se a sua fusão e o objetivo de ver criada uma Ordem dos Urbanistas parece ser a sua principal motivação. De notar que a fusão parece ter sido sugerida durante o SAR, uma vez que assim se reduzia o número de interlocutores. O contacto entre as associações nesse período potenciou a sua cooperação mas, como diz um dos nossos entrevistados, uma Ordem dos Urbanistas tinha à partida um problema: “Não se consegue fazer uma Ordem porque não é exclusivo de um curso, não há um ato próprio” (E3).
Apesar da pretensão à Ordem daquelas três associações de direito privado, a Ordem dos Arquitetos criara o Colégio do Urbanismo ou dos Arquitetos Urbanistas formalmente em 2004, como que inviabilizando a luta daqueles grupos[15] , mas aparentemente não os demovendo. O Colégio dos Arquitetos Urbanistas foi instituído cerca de 16 anos após a criação da Ordem dos Arquitetos, o que parece dar a entender que resulta de um processo de apropriação tardia de um mercado. Além disso, vale a pena observar que o Colégio dos Arquitetos Urbanistas só se tornou ativo em 2008 e que as suas primeiras eleições ocorrem apenas 4 anos depois, em 2012.
Os grupos ocupacionais e profissionais que intervêm no campo do ordenamento do território são, com efeito, múltiplos, têm diversos estatutos legais e alguns estão em luta entre si. Veja-se ainda a APAP - Associação de Arquitetos Paisagistas, criada em 1976, que busca há anos a criação de uma Ordem profissional. E ainda, porventura, o caso mais visível, o conflito do “73/73”, que opõe arquitetos a engenheiros. Com efeito, o Decreto n.º 73/73 opôs estas duas profissões ao longo de mais de 30 anos numa disputa pelo direito a fazer projetos de arquitetura. A responsabilidade pelos projetos de construção foi partilhada por ambas as profissões de 1973 a 2009, quando os arquitetos conseguem, enfim, a exclusividade.[16] Importará notar que se estamos a falar de associações com o mesmo estatuto legal, a sua longevidade é distinta, pois a Ordem dos Engenheiros foi criada em 1936, e é por isso uma das mais antigas associações públicas profissionais portuguesas, enquanto a Ordem dos Arquitetos foi criada em 1998, sendo de admitir que a pressão que exerceu junto dos decisores políticos foi fundamental para o sucesso desta reivindicação.
Em suma, o campo do ordenamento do território em Portugal foi particularmente estimulado pelo lançamento de instrumentos de gestão territorial como o PDM. Arquitetos e engenheiros, capacitados pela experiência e independentemente de conflitos bilaterais, assumem rapidamente uma posição de autoridade no campo. O estatuto legal das suas associações contribuiu para a manutenção do status quo, obstaculizando a que, por exemplo, os licenciados em ordenamento do território, que surgem animados pelo dinamismo do campo nos anos 1980, consigam alcançar visibilidade e reconhecimento institucional. Com este retrato podemos pois dizer que o campo do ordenamento do território, por inerência ambíguo e complexo (Knieling e Othengrafen, 2015), revela-se em Portugal de forma particularmente fragmentado, com tensões cruzadas perante a existência de grupos de interesses conflituantes. O SAR surgirá pois, não para regular um grupo ocupacional em particular, mas uma função associada à resolução de problemas multidisciplinares num campo povoado por diversos grupos.
O SAR COMO REGULAÇÃO PROFISSIONAL
Uma aproximação ao que poderia ser o perfil do coordenador dos Planos Diretores Municipais (PDM) é feita pela primeira vez em 1995 através do Decreto-lei n.º 292/95, de 14 de novembro, mas não de uma forma perentória, antes deixando às equipas a decisão de quem deve ser o coordenador técnico: “As equipas multidisciplinares de planos de urbanização ou de planos de pormenor dispõem de um coordenador técnico, designado de entre os seus membros” (Ponto 6 do artigo 2.º). Segundo esta legislação, a equipa tem de ser composta por um arquiteto, um engenheiro civil, um arquiteto paisagista, um técnico urbanista e um jurista, em qualquer dos casos com pelo menos 3 anos de experiência. O coordenador deverá então ser nomeado entre aqueles cinco profissionais. Vale a pena recordar que não é feita qualquer referência ao especialista de ordenamento do território de formação própria (por exemplo ao “planeador do território” segundo a licenciatura da Universidade de Aveiro), vedando-se assim o acesso do mesmo a uma participação nos PDM.
A indeterminação de um responsável técnico afigura-se importante quando se tem presente que um PDM leva vários anos a ser elaborado e envolve também entidades pertencentes a diferentes níveis da administração que sobre ele se devem pronunciar. O risco de uma equipa não chegar ao fim sem alterações na sua composição, por exemplo, existe.[17] Como explica um dos nossos entrevistados:
Os planos são tão demorados e são processos complicadíssimos, que a dada altura o que se passa com as equipas é que… A determinada a altura é como sr. Presidente [da Câmara] quer… (…) Ao fim de 10 anos a fazer um plano, já ninguém tem capacidade… Quer dizer, os honorários já acabaram há 5, quando se faz um plano está-se a contar com os honorários de 2 anos, mas os planos arrastam-se 6, 8, 10… para se conseguirem fechar [E3].
Os PDM pressupõem diferentes volumes com: estudos em demografia, redes de comunicação, atividades económicas, entre outros, assim como pareceres de várias entidades públicas ao longo da sua elaboração, pelo que o processo de elaboração de um PDM leva anos. Segundo alguns dos intervenientes, a avaliação do PDM parece não estar implementada, mas é vista como importante. Perante a não identificação clara do especialista de ordenamento do território coordenador, a responsabilização técnica torna-se inviável.
Se tivermos presente que se subcontrataram mais de 300 PDM e estes foram associados a financiamento europeu, compreende-se que em pouco tempo terá sido preparado um grande volume destes estudos e nem sempre nas melhores condições. Com efeito, daqui terão resultado algumas incongruências, como a reprodução em distintas localidades do mesmo conteúdo ou a assinatura de planos por parte de empresas com uma atividade comercial estranha ao campo do ordenamento do território, conforme nos relataram alguns entrevistados. O risco de um mau desempenho profissional parece, por conseguinte, poder existir e isso será condição necessária para se proceder à regulação. Um dos nossos entrevistados dá um exemplo:
[um recém licenciado em arquitetura] na situação atual, se ele decide avançar e do outro lado não se percebe que ele não tem currículo suficiente, se lhe foi adjudicado, não há nada que o impeça [E5]
Terá sido neste quadro que, em 2006, um urbanista com elevada notoriedade no meio académico, Manuel Costa Lobo, terá desafiado o então secretário de Estado do Ordenamento do Território e das Cidades a clarificar a autoria dos instrumentos de gestão territorial, e dos PDM em particular. Surge assim pela iniciativa deste político, um geógrafo de formação e académico com obra no campo do ordenamento do território, João Ferrão, o processo de criação de um “sistema de acreditação e registo de profissionais de planeamento e gestão territorial com funções de coordenação de equipas multidisciplinares”, abreviadamente SAR. O objetivo a que se propôs foi concertar com todos os atores envolvidos no campo do ordenamento do território um sistema que definisse o perfil que o coordenador das equipas deveria ter, assumindo a multidisciplinariedade do campo.
O secretário de Estado começa por solicitar um estudo (fevereiro de 2006) com o intuito de “… criar um sistema de garantia da qualidade e de responsabilização no planeamento territorial” (Cabral et al, 2006, p. 65). Este estudo deveria centrar-se sobre o tratamento metodológico do tema da qualificação e responsabilidade dos autores dos planos de urbanização ou de pormenor.
O estudo é, então, desenvolvido por uma associação científica de base pluridisciplinar denominada Ad-Urbem - Associação para o Desenvolvimento do Urbanismo e da Construção. Este estudo, que dá conta dos antecedentes, da experiência de outros países europeus e do perfil do autor do instrumento de gestão territorial, defende que a função de coordenador deve ser assegurada por um urbanista ou “planeador do território”.
O secretário de Estado dá início então ao processo de diálogo com os grupos intervenientes no campo do ordenamento do território, essencialmente representados por 7 associações: 5 associações de direito privado e 2 Ordens profissionais. De notar que são envolvidos ainda 3 especialistas a título individual, que têm, não obstante, uma filiação associativa naquelas associações. Segue-se assim a apresentação do estudo da Ad-Urbem (setembro 2006), primeira emissão de pareceres das associações envolvidas (setembro 2006-março 2007), reuniões de trabalho para discussão das alterações sugeridas (julho-dezembro 2007), nova fase de reuniões de trabalho já descentralizadas, isto é, sob tutela da Direção-Geral do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Urbano (2008), mas onde o representante da Ordem dos Engenheiros terá assumido a coordenação e função de relator. Este novo papel assumido pelo representante dos engenheiros não foi bem visto por todos. Para um dos nossos entrevistados foi “… uma machadada” (E1). Perante a falta de consenso, o processo fica suspenso (abril 2009) concomitantemente com a mudança do Secretário de Estado, sem que este tenha tido acesso a uma proposta acabada.
O SAR recorreu a uma estrutura a que chamou de Plataforma Colaborativa. Ela parece inspirar-se diretamente no estudo da Ad-Urbem, que defendia que o Governo, em estreita cooperação com as associações ocupacionais e profissionais, deveria legislar no sentido de responsabilizar os autores dos instrumentos de gestão territorial:
A responsabilização profissional constitui, aparentemente, um terreno mais seguro para equacionar a questão da responsabilidade do autor do plano. Porém, a inexistência de uma plataforma institucional capaz de congregar a pluralidade de formações que convergem no planeamento urbanístico tem contribuído para a falta de afirmação desta instância, já de si enfraquecida pelas diversas tentativas de reservar, para determinados títulos profissionais, existentes ou a criar, privilégios corporativos dificilmente justificáveis à luz da atualidade [Cabral et al, 2006, p. 11]
Apesar de o estudo da Ad-Urbem estabelecer um faseamento de concretização da proposta metodológica para um período de sete anos, ela fica suspensa em 2009 com a saída do secretário de Estado do Governo. O diretor-geral do Ordenamento do Território e Desenvolvimento Urbano, arquiteto de formação, mantém-se, contudo, em funções por mais um mandato. As reuniões deixam de acontecer e a iniciativa acaba suspensa de forma inconclusiva sob a sua tutela.
O facto de não ser uma matéria urgente na agenda política (uma vez que não se resolveriam deste modo todos os problemas associados aos planos), mas sobretudo a estratégia adotada pelas Ordens (de criar dificuldades ao processo) são os principais fatores atribuídos pelos entrevistados à suspensão do SAR. Segundo alguns dos intervenientes, não haveria interesse da parte dos representantes das Ordens em regular quando os membros destas Ordens profissionais já exerciam na prática a função de coordenação dos PDM. Por isso, imprimiu-se uma morosidade nas respostas quando desagradados com o rumo dado ao debate. Vários entrevistados dão conta disto mesmo:
O funcionamento do grupo de trabalho começou a ser irregular… [mais do que os atrasos de uma hora] Digamos que a o envolvimento e a proatividade foram variando, o que para mim significou que havia… reservas, que havia… certamente algum julgamento sobre a oportunidade. [E5]
A primeira coisa que fizemos foi pedir o adiamento da [primeira] reunião (…) para termos tempo de digerir… a informação e de levarmos alguma coisa em concreto para a reunião. E depois… - não sei se posso dizer isto assim - mas acabamos por atrasar todo o processo, porque havia uma expectativa de fechar um documento no fim de 2007 e acabou por ser quase um recomeço. [E3]
Com efeito, se o processo começou por obter participação e consenso por parte de todos os grupos, uma divergência inconciliável emergiu aquando da definição do perfil do coordenador. Se uns valorizavam a formação académica, outros davam prioridade à experiência. Alguns excertos das entrevistas revelam as várias posições encontradas. Assim, por um lado há quem sustente: “queríamos uma garantia de que se tirou uma licenciatura em urbanismo e se conseguia praticar urbanismo. (…) não temos qualquer tipo de problema em reconhecer que [outros] pela sua experiência chegaram lá, o que queremos é pôr um ponto final.” (E2) E por outro: “…as universidades não dão títulos profissionais, dão títulos académicos. São licenciados 5 anos em urbanismo, para serem urbanistas têm de ter prática profissional (…) Há pessoas interessadas em ajudar (…) sabem muito dos problemas, e preocupam-se com eles e gostavam muito de ajudar (…) mas sabem pouco das soluções” (E4). E ainda quem preveja a conciliação das duas posturas anteriores: “tentámos sempre defender um equilíbrio entre por um lado o conhecimento da formação académica mas por outro lado a experiência. No fundo, o que se tratava era de quem podia coordenar equipas que eram necessariamente multidisciplinares (…) É uma coisa que pode ter a ver com formação académica de base, mas quase que tem mais a ver com a experiência profissional ou a formação complementar que se vai fazendo ao longo da vida. (…) Um recém-licenciado a coordenar uma equipa [pode não estar preparado].” (E3)
Os representantes dos especialistas de ordenamento do território com formação própria, designadamente APPLA e APROURBE, estavam numa posição fragilizada, mas valorizavam a oferta educativa e davam por isso preferência a quem tivesse qualificações académicas. Por outro, os especialistas de ordenamento do território pela experiência, representados pelas duas Ordens profissionais, queriam assegurar-se de que a experiência prevaleceria.
Para a compreensão cabal deste processo importará referir também que estávamos perante diferenças sociológicas a outros níveis. Com efeito, existiam diferenças mais difíceis de objetivar, mas que podem reforçar o desacordo e que devem por isso também ser tidas em conta. Com efeito, estavam-se a reunir à mesma mesa, dando igual poder de intervenção, especialistas com notoriedade pública e jovens especialistas de formação, indivíduos com formação em instituições públicas de renome e indivíduos de instituições privadas. Alguns dos nossos entrevistados exemplificam: “As Ordens não consideram que as outras associações sejam suas pares.” (E4); “há uma questão institucional mas também (…) tem a ver com a idade e o género. Eu na altura tinha 30 anos (…) era uma catraia no meio deles (…) Havia um certo paternalismo” (E1).
Após a suspensão do SAR, já com um novo Governo de um espectro político distinto, o representante da Ordem dos Engenheiros no SAR assume funções como diretor-geral do Ordenamento do Território e Desenvolvimento Urbano e ultima uma nova versão da proposta conjuntamente com o representante da Ordem dos Arquitetos no SAR. Este segundo documento já não resulta da mesma Plataforma Colaborativa do SAR, porque, como nos disseram os representantes dos engenheiros e dos arquitetos, já se conheciam as posições das outras associações. Esta proposta é agora da responsabilidade apenas de engenheiros e arquitetos e incluía, na comissão de avaliação dos candidatos a coordenadores das equipas dos PDM, a participação das duas referidas Ordens, a nova associação de direito privado (resultante da fusão) e os serviços da Direção-Geral, sendo que os candidatos inscritos numa Ordem seriam registados por ela, a comissão tripartida seria necessária para as outras situações. Tal como na primeira edição do SAR, a proposta não chega a ser apresentada aos decisores políticos superiores porque mudaram os bastonário e presidente das Ordens e o próprio diretor-geral é entretanto substituído.
Em suma, o processo SAR foi uma tentativa de regulação pelo Estado sob uma forma nova, pois pretendia promover o consenso entre os diversos praticantes do campo do ordenamento do território como condição prévia, assumindo que se trata de um campo assente na multidisciplinariedade e onde a cooperação é fundamental. Sucede que estes praticantes têm poderes distintos conforme o estatuto legal das suas organizações representativas, que os posicionam no campo em lugares de estatuto assimétrico.[18] Muito embora seja de admitir que as Ordens profissionais possam experienciar alguma perda de influência nas políticas nacionais por meio de estratégias de afirmação da sua exclusividade cognitiva em campos de conhecimento “fluído”, como dizem Laffin e Entwistle (2000), em Portugal o seu poder é ainda notório quer pela captura do mercado (patente na composição das equipas e na criação de Colégios da especialidade a despeito das pretensões de planeadores e urbanistas), quer pela obstaculização do processo de concertação inclusivo que foi o SAR. Com efeito, o projeto de criação de uma Ordem dos Urbanistas terá estado latente, dificultando a convergência de posições entre todos os grupos envolvidos.
CONCLUSÃO
O caso SAR pode ser integrado numa tendência mais ampla de pressão dos grupos ocupacionais junto do poder político no sentido de alcançarem o estatuto de profissão (Rego, 2013). Como recorda Carlos Gonçalves:
De modo imbricado com a tendência pesada do aumento da importância dos profissionais na estrutura ocupacional subsiste, na sociedade portuguesa, desde os anos oitenta do século passado, um movimento amplo de construção e sedimentação da profissionalização de alguns grupos ocupacionais e de difusão do modelo profissional no mundo do trabalho. [Gonçalves, 2007, p. 213]
No entanto, o caso SAR revela contornos inéditos. O caso SAR revela-nos o papel fundamental que o Estado pode desempenhar na regulação profissional mínima, não por via das habituais certificações de competências de um ato profissional, atestadas em Certificados de Aptidão Profissional, por exemplo, mas através de um registo que garanta maior transparência e responsabilização a uma função particular. Além disso, ilustra a implementação de uma metodologia de concertação que assegura uma efetiva cooperação das partes.
O processo político em causa ficou suspenso há mais de uma década, mas poderá vir a ser retomado se houver entendimento entre entidades governamentais e os principais grupos de interesses. A premência da regulação no campo do ordenamento do território mantém-se, porque a longevidade significativa dos PDM e a multiplicação dos instrumentos de gestão territorial parecem indicar que o risco de desresponsabilização do autor persiste, se é que não aumentou.
A análise do caso SAR revela-se virtuosa na medida em que nos permite apreender diversos fenómenos sociais: a ambiguidade da identidade do especialista de ordenamento do território, a luta entre profissões estabelecidas e emergentes, os desafios à gestão da relação público/privado. Ainda que com um carácter exploratório, estamos em crer que ao analisar o caso SAR contribuímos para o conhecimento dos desafios suscitados pelos interesses profissionais entrecruzados no campo do ordenamento do território em Portugal.
Também julgamos que deste modo proporcionamos elementos para se refletir sobre os desafios colocados à identidade de ocupações que se baseiam num saber multidisciplinar. O saber está em constante evolução e uma das tendências da atualidade é a da junção de disciplinas diversas num percurso académico de vários níveis educativos, de resto estimulado pelo Processo de Bolonha. Mas como garantir que as “profissões estabelecidas” não se apropriem do mercado destas ocupações de saber multidisciplinar? A multidisciplinariedade está a colocar problemas aos decisores políticos no momento de regular. Como dizem Laffin e Entwistle: “Policy makers now see professional definitions and inter-disciplinary boundaries as obstacles to their search for new solutions and successful delivery” (Laffin e Entwistle, 2000, p. 218).[19]
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Recebido a 24-10-2017.
Aceite para publicação a 31-10-2018.
[1] Este texto é dedicado ao João Ferrão.
[2] No primeiro trimestre de 2017, realizámos 9 entrevistas (8 homens e 2 mulheres) sobre o SAR a representantes das seguintes organizações: ADURBEM - Associação para o Desenvolvimento do Direito do Urbanismo e da Construção; APAP - Associação Portuguesa de Arquitetos Paisagistas; APG - Associação Portuguesa de Geógrafos; APPLA - Associação Portuguesa de Planeadores do Território; APROURB - Associação Profissional dos Urbanistas Portugueses; Ordem dos Arquitetos/Colégio dos Arquitetos Urbanistas; Ordem dos Engenheiros; ex-secretário de Estado e ex-diretor-geral. As entrevistas foram codificadas e os seus excertos identificados de E1 a E9. A AUP - Associação dos Urbanistas Portugueses foi contactada, mas devido a incompatibilidades de agenda não foi possível realizar a entrevista até à submissão deste texto, embora tenhamos entrevistado membros de outras organizações que eram simultaneamente membros da AUP. A Ordem dos Advogados, embora participante no SAR, não foi contactada por se ter concluído que o seu envolvimento não dizia respeito especificamente ao tema da coordenação dos instrumentos de gestão territorial.
[3] O conceito de campo profissional é entendido na aceção que Freire et al (2015) recuperam de Pierre Bourdieu e definem do seguinte modo: “Os campos das profissões, se assim se quiser denominá-los, constituem, precisamente, campos de forças e de concorrência hierarquizados” (Bourdieu, 2015, p. 229).
[4] O RTPI é uma associação reguladora aparentemente mais próxima do padrão europeu continental, que existe em Portugal, por exemplo, do que do padrão de regulação profissional dominante no Reino Unido (Moran e Wood, 1993). Trata-se, com efeito, de uma associação com membros e não de uma agência independente. O RTPI também acredita cursos, exerce funções de uma learned society e de uma associação filantrópica. De acordo com os seus estatutos, a sua missão é: “to advance the science and art of planning (including town and country and spatial planning) for the benefit of the public.” É portanto assumida uma ambiguidade do planeamento: disciplina científica e arte.
[5] Outras associações europeias do campo do ordenamento do território dão conta das diferentes tradições e da ambivalência na sua denominação, nomeadamente: a Association of European Schools of Planning-AESOP, criada tal como a ECTP-CEU nos anos 80 do século XX; a International Federation for Housing and Planning - IFHP, cujo lema é “better cities”, fundada há mais de um século (1913); e ainda a International Society of City and Regional Planners - ISOCARP, que desde 1965 se pauta pelo espaço e ambiente como dimensões do urbanismo.
[6] Do ponto de vista das instituições políticas que desde os anos 80 têm tomado posição sobre o ordenamento do território, a dificuldade em obter uma designação inequívoca parece também presente. Em 1983, o Conselho da Europa (CE, 1983) publica a “Carta de Torremolinos” em francês designada “Charte Européenne de l’Aménagement du Territoire” e aonde se acrescenta “regional” na sua tradução para inglês, “European Regional Spatial Planning Charter”. De notar que este documento deu origem à Resolução 148 do Conselho da Europa, em 1984.
[8] Sobre competências adotámos o glossário do CEDEFOP - European Centre for the Developement of Vocational Training (http://www.cedefop.europa.eu/).
[9] Para uma melhor contextualização veja-se o artigo de Cabral, Fidélis e Mota (2003). Com efeito, importa ter presente que, apesar de a obrigatoriedade do ordenamento do território estar consagrada na legislação desde 1934, a sua eficácia foi reduzida.
[10] Referimo-nos sobretudo à Lei de Bases de Ordenamento do Território e Urbanismo que é publicada em 1998 (Lei n.º 48/98, de 11 de agosto) e regulamentações que daí decorrem e cuja publicação é feita mais tarde.
[11] Sucedem-lhe, quase todos apenas licenciados e poucos a priori com expertise em ordenamento do território: José Sócrates, engenheiro civil (1999-2002); Isaltino Morais, jurista, Amílcar Theias, economista, Arlindo Cunha, economista (2002-2004); Nobre Guedes, jurista (2004-2005); Nunes Correia, engenheiro civil (2005-2009); Dulce Pássaro, engenheira sanitária (2009-2011); Moreira da Silva, engenheiro eletrotécnico (2013-2015).
[12] A Portaria n.º 900/83, de 28 de setembro, Diário da República n.º 224/1983, Série I, pp. 3396-7, cria a licenciatura em Planeamento na Universidade de Aveiro.
[13] A expressão “planeador do território” baseia-se numa tradução literal do inglês de especialista de ordenamento do território e surge como uma estratégia distintiva deste curso.
[14] A constituição da nova associação, que congrega três associações do campo do ordenamento do território, está prevista para 2017, conforme publicita o jornal da Universidade de Aveiro em 2016. In Internet: https://uaonline.ua.pt/pub/detail.asp?c=47735 (acesso 11-10-2017).
[15] E também a Ordem dos Engenheiros criou um Colégio de Ambiente cuja abrangência poderá sobrepor-se parcialmente ao Colégio dos Arquitetos Urbanistas.
[16] O Decreto n.º 73/73, de 28 de fevereiro, determina a qualificação oficial a exigir aos técnicos responsáveis pelos projetos de obras, estabelecendo que os projetos de edifícios são em regra elaborados de colaboração por arquitetos, engenheiros civis e agentes técnicos de engenharia civil e de minas e construtores civis diplomados. O diploma em causa previa ainda uma disposição transitória onde se determina que perante a falta de técnicos com as qualificações previstas poderão as câmaras municipais aceitar projetos subscritos por técnicos de qualificação diferente e por indivíduos não diplomados aos quais já tenha sido reconhecida idoneidade para o efeito. Só em 2009, a Lei n.º 31/2009, de 31 de julho, revoga aquele Decreto, especificando-se agora as várias funções associadas e respetivas qualificações, e tornando-se a norma transitória mais restritiva.
[17] Note-se, por exemplo, que se lançou o processo de elaboração de um PDM para o concelho da Guarda em 1984, e só em 1994 é que ele foi aprovado - conforme consulta do dossiê na Direção Geral do Território.
[18] Note-se que as Ordens têm poder de autorregulação e as associações profissionais de direito privado são simplesmente enquadradas pela lei das associações, nenhum enquadramento legal especial lhes conferindo direitos distintivos, designadamente de consulta por parte dos organismos públicos.
[19] Os autores agradecem a todos os entrevistados a sua preciosa colaboração, assim como os comentários recebidos pelos revisores da revista. Este estudo beneficiou do apoio dado pela Fundação para a Ciência a Tecnologia (referência UID/SOC/50013/2013).