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Análise Social
versão impressa ISSN 0003-2573
Anál. Social no.231 Lisboa jun. 2019
https://doi.org/10.31447/AS00032573.2019231.09
RECENSÃO
Gaspar, Marisa C.
No Tempo do Bambu - Identidade e Ambivalência entre Macaenses
Lisboa, Instituto do Oriente, 2015, 290 pp.
ISBN 9789896461089
Filomena Silvano*
https://orcid.org/0000-0002-7756-9292
*CRIA, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa. Avenida de Berna, 26-C - 1069-061 Lisboa, Portugal. fsilvano@fcsh.unl.pt
A reintegração de Macau na China aconteceu em dezembro de 1999. A partir dessa altura, o território passou a fazer parte, com um estatuto especial - Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) - da República Popular da China (RPC). Depois desse retorno político ao território da China, Macau viveu um processo de transformação demográfica, económica e territorial fulgurante. Estendeu a superfície de terra habitável, manteve um elevadíssimo índice de ocupação por metro quadrado e atingiu uma das maiores taxas de crescimento económico do mundo. Os lucros do jogo, principal atividade económica, há vários anos que ultrapassaram os de Las Vegas. Tim Simpson (2008) fala de uma “utopia turística” e identifica algumas das suas componentes: uma morfologia de justaposição (água/terra); um regímen de exceção jurídica e política, associado à relação com um Estado poderoso; o consumo de lazer como fator económico determinante; e a possibilidade de deslocamento de pessoas (trabalhadores e turistas) em grande escala.
Esta introdução, embora sucinta e parcial, dá-nos acesso à escala das transformações que Macau sofreu nas últimas décadas. De facto, a transformação política, social e cultural de Macau foi de grande envergadura, obrigando à construção, por parte do poder, de um discurso identitário que se adaptasse à nova situação (Clayton, 2009; Lam, 2010; Silvano, 2015; Zamdonai, 2009). O livro de Marisa C. Gaspar No Tempo do Bambu - Identidade e Ambivalência entre Macaenses, na medida em que nos permite aceder às relações que se estabeleceram entre os processos de construção das identidades respetivas de Macau e da comunidade de macaenses, ajuda-nos a compreender as peculiaridades dessa mutação cultural.
Após a integração na RPC, os três grupos étnicos que habitavam Macau - Chineses de Macau, Macaenses e Portugueses - mantiveram-se aí presentes, embora em proporções diferentes daquelas que organizavam a população antes de 1999. A questão da construção de um discurso identitário para o território dizia por isso respeito a todos, conquanto de formas diferentes. Visto que os chineses de Macau correspondiam à maioria da população, a inclusão da história do território na narrativa mais vasta da história da China poderia então ter sido considerada como a opção mais evidente - segundo Wai-man Lam (2010, p. 661), num inquérito de 1999, 74,1% dos interrogados afirmavam-se orgulhosos de ser chineses e a maioria identificava-se com a história chinesa, a sua cultura e a sua ética. Apesar disso, foi à identidade macaense que o governo de Macau foi buscar os elementos culturais que assumiram uma posição significativa no discurso identitário do Território: “However, what is intriguing is that the new Macao government consciously strengthens the coloniality inherent in the original identity, and encourages people to take pride in their colonial past. The colonial legacy in the old identity has not been repressed as in other postcolonial regimes and Hong Kong but rather is boosted in the name of the internationalization of Macao. In addition, the new government not only endorses the existing local identity, but has also actively remolded an originally weak local identity to make it a strong one” (Lam, 2010, p. 657).
Numa situação política que corresponde a uma reintegração num estado pré-existente, a questão que se colocou não foi a da criação de um discurso identitário que desse existência a um novo Estado-nação - como aconteceu com os novos estados nascidos das descolonizações -, mas antes a de um discurso que sustentasse, no interior de um antigo Estado, a singularidade de uma região. Segundo Lam, o hibridismo, que havia sido estrategicamente convocado pelas autoridades portuguesas, foi, nestas circunstâncias estratégicas, também convocado pelas novas autoridades políticas: “(…) the Macao promoted by the colonial administration was a cultural hybrid, which has been further elaborated by the new government. Interestingly, while in colonial Hong Kong Britain had sought to continue its influence by consolidating the popular beliefs of the legitimacy of free trade, the rule of law, freedom and democracy, in colonial Macao Portugal aimed to achieve the same objective by propagating the narrative of Macao’s identity as constituted by both Portuguese and Chinese culture” (Lam, 2010, p. 662).
A dupla referência da identidade de partida serviu, por um lado, para sustentar a reintegração no território da grande China, e, por outro, para afirmar a sua especificidade - Macau quer-se aberto a outras culturas. Conforma-se também com a lógica de “um país, dois sistemas”.
Em No Tempo do Bambu, Gaspar estuda, com base numa etnografia refletida, as interações entre a construção da identidade étnica macaense e a história recente de Macau, revelando a complexidade das dimensões envolvidas. Tendo como ponto de partida o acompanhamento de alguns dos membros do “Partido dos Comes e Bebes”, uma associação de macaenses, a antropóloga vai discutindo, solidamente apoiada em descrições etnográficas e em convocações de ferramentas conceptuais apropriadas, a própria ideia de “ser macaense”. Face à real diversidade do grupo de pessoas que se autorrepresentam enquanto tal, acaba por optar por uma definição abrangente de comunidade étnica: “(…) um conjunto de pessoas cujos membros têm em comum um nome, elementos de uma cultura, um mito de origem e uma memória histórica (Bloch, 1998), que estão associados a um determinado território e que possuem entre eles um sentimento de solidariedade” (p. 95).
Essa mesma definição permitir-lhe-á seguir de forma coerente o seu percurso interpretativo, acompanhando a vitalidade das dinâmicas identitárias, seguindo os seus fluxos, os seus avanços, os seus recuos e até as suas contradições.“(…) existiu por parte dos atores sociais um modo constante de manipulação dos seus atributos étnicos e culturais, assim como das ações e discursos partilhados entre si, que lhes permitiu produzir, continuamente, identificação e diferenciação em relação à circunstância com que se deparavam e, sistematicamente, reavaliar todo esse processo fluído. É esse dinamismo (…) que, em último caso, define e caracteriza a identidade macaense” (p. 183).
É na parte final do livro que as zonas de sobreposição entre a identidade macaense e o discurso identitário produzido pelo poder político de Macau são abordadas, tornando-se clara a existência de uma convergência de interesses que foi sustentada por práticas concretas: “De facto, a partir dos anos 90 com os apoios substanciais do governo de Macau injetados no associativismo macaense local e além-fronteiras, foi possível revitalizar, estimular e intensificar toda uma nova série de iniciativas e atividades de divulgação de Macau, da cultura e da comunidade macaenses (…)” (p. 192).
A ativação dessa convergência de interesses dá uma existência performativa à opção, feita pelo poder, de convocar fragmentos do discurso identitário macaense para construir um discurso identitário que sustente, ao mesmo tempo, o branding de cidade necessário ao desenvolvimento do turismo (ao qual se associa a eficácia da classificação, enquanto património da Unesco, de uma parte do Centro Histórico), a diferenciação social e política do território face ao resto da RPC e a sua unicidade face à população residente: “Por outras palavras, a definição do macaense confunde-se com a de Macau, e a de Macau com a do macaense. É a partir desta interpretação particular da história de Macau e do produto da mesma, o qual os macaenses podem representar, que se ficciona uma identidade única de Macau’, por meio da fidelização de todos os seus cidadãos a este lugar único (…)” (p. 198).
O livro revela ainda que, pelo seu lado, alguns macaenses ativaram essa mesma convergência, por forma a recolocarem-se, no interior da estratificação social contemporânea da Região Administrativa Especial de Macau, em posições mais conformes com a representação que fazem de si próprios e das suas histórias familiares. “A defesa do Património Cultural de Macau por parte da atual elite macaense revela a sua busca por uma nova lógica de regalias através de práticas legitimadoras da comunidade em Macau que, uma vez destituída dos seus poderes de elite administrativa, procura um protagonismo razoável na contribuição histórica, ideológica e simbólica que Macau representa para a China” (p. 219).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CLAYTON, C. (2009), Sovereignty at the Edge: Macau and the Question of Chineseness, Cambridge MA, Harvard University Press. [ Links ]
LAM, W. (2010), “Promoting hybridity: the politics of the new Macau identity”. The China Quarterly, 203, pp. 656-674.
SILVANO, F. (2015), “Musées et casinos dans une ville “patrimoine mondial”: authenticité et hyperréalité, deux forms culturelles de l’espace urbain de Macao”. In E. Fagnoni e M. Gravari-Barbas (dirs.) Nouveaux musées, nouvelles ères urbaines, nouvelles pratiques touristiques, Presses de l’Université Laval.
SIMPSON, T. (2012), “Tourist utopias: Las Vegas, Dubai, Macau”. Asia Rechearch Institute, Working Paper series, n.º 177.
ZANDONAI, S. (2009), “Global diversity, local identity: multicultural practice in Macau”. Intercultural Communication Studies, XVIII, p. 10.