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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.232 Lisboa out. 2019

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2019232.10 

RECENSÃO

Brasão, Inês

Dons e Disciplinas do Corpo Feminino,

Porto, Deriva, 2017, 232 pp.

ISBN 9789898701275

Rita Ávila Cachado*
https://orcid.org/0000-0003-4715-5686

* Ccies-iul, iscte. Edifício ISCTE, Avenida das Forças Armadas - 1649-026 Lisboa, Portugal. rita.cachado@iscte-iul.pt


 

Podemos incluir este livro de Inês Brasão em três campos da produção académica sobre o Estado Novo: nos contributos para perceber melhor como operou o fascismo à portuguesa relativamente às mulheres; no seio da produção histórica sobre o Estado Novo em geral; no nicho disciplinar dos estudos feministas em Portugal. Um quarto campo emerge da leitura de Dons e Disciplinas do Corpo Feminino, o da divulgação científica.

Recebi este livro na mesma altura em que li dois romances, que, partindo de corpos femininos que vivem na atualidade e que refletem frequentemente sobre a vida das suas mães e avós, nos ajudam a perceber o que terá sido crescer mulher no Estado Novo e chegar ao tempo pós-revolucionário com liberdade no papel e limitações na educação feminina: os livros A Gorda, de Isabela Figueiredo, e Eliete, de Dulce Maria Cardoso. Trazer estas referências literárias a uma recensão serve também para localizar o livro de Inês Brasão num conjunto de obras que, cumprindo os requisitos académicos, prestam-se a ser lidas “como um romance”, tomando de empréstimo a expressão (e título de obra) de Daniel Pennac. O livro de Inês Brasão não tem ambições literárias, nem os romances referidos pretendem constar nos repositórios académicos, mas tendo em conta que a literatura científica em Portugal raramente tem em vista ser lida por um público alargado, Dons e Disciplinas do Corpo Feminino contribui para alargar o leque de leitores não académicos.

Recentemente, Diogo Ramada Curto na crónica “O Estado Novo e o mundo da edição” (Revista E, Expresso 11-05-2019), elencou um conjunto de estudos sobre o Estado Novo onde refere em primeiro lugar o livro Portugal e os Fascismos, de Fernando Rosas (2019), e na qual o nome de Inês Brasão surge entre outros autores, num parêntesis. Não desvirtuando o artigo de Ramada Curto, nem os autores em boa hora elencados, diria que o trabalho de Inês Brasão tanto neste livro agora recenseado, como n’O Tempo das Criadas (2012), merece devida inscrição na história da literatura sobre o Estado Novo, sobretudo por contribuir para a discussão sobre os limites do fascismo português, ou, dito de outra forma, para a compreensão da dimensão fascista deste regime político.

Inês Brasão balança entre avançar ou pedir licença à literatura de que se socorreu, para designar o Estado Novo como fascista, talvez porque a primeira versão deste livro, um trabalho académico não publicado, tenha 20 anos. Mas a posição fica clara quando se refere ao Estado Novo comparando-o a “outros regimes fascistas”. O carácter conservador que a autora destaca no regime salazarista, mais do que revolucionário, como aconteceu com “outros regimes fascistas”, e a especificidade identitária que contrariou o espaço de liberdade conquistado durante a Primeira República, através por exemplo de uma singularidade no ser católico (almejando a santidade), determinam que o fascismo português não tenha sido tão exuberante e impulsivo como outros. No entanto, ao longo dos anos, impôs a incorporação, na população portuguesa, e sobretudo nas mulheres, de uma forma de estar que bloqueou severamente às mulheres o acesso ao espaço público (urbano) nas suas várias vertentes (formação, trabalho assalariado, lazer).

De resto, o livro tem citações de sobra para lembrar como era antes do 25 de Abril, e sobretudo nos anos de consolidação da ditadura, mas há uma que reflete o peso incrível que recaía sobre as mulheres portuguesas e não deixa dúvidas sobre o que é, e como se formou em Portugal durante a ditadura, uma “ideologia de género” (p.53), bem diferente do atual julgamento heteronoemativo sobre os avanços nos direitos sexuais: “O que desejamos é que se imponham pelo seu modo de vestir e pela pureza dos seus costumes, sendo as mais elegantes, mas também as mais corretas; sendo as mais sérias, mas também as mais alegres; sendo as mais virtuosas, mas também as mais atraentes e simpáticas” (Boletim da Mocidade Portuguesa Feminina de 02-06-1939, p. 1, citado por Brasão, 2017, p. 65).

O livro traz-nos assim (i) informação aprofundada sobre o passado recente do país; (ii) análise não hermética; e (iii) fundamentos para as discussões atuais. Parte, sobretudo, do trabalho de análise das publicações da secção feminina da Mocidade Portuguesa, que contêm amplas informações sobre a forma como o Estado Novo construiu uma imagem na qual as mulheres portuguesas que cresceram nesse tempo, facilmente se refletem: refreios relativamente a comportamentos em geral e relativamente ao corpo em particular pautaram os objetivos, bem-sucedidos, da moral propagada. Dirigida especificamente às raparigas crescidas, mas ainda não adultas, é vasta a produção analisada por Inês Brasão sobre comportamentos, posturas, atitudes idealizadas e impostas através de um discurso, narrativa mesmo, com astúcia, para modelar a mulher.

Para quem começa por ler o índice e a bibliografia, não se deixe enganar, há uma gralha importante no elenco bibliográfico, Jorge Crespo e a sua História do Corpo, mas este é bem recuperado na análise, embora não constitua referência central. O que faria falta na bibliografia e no texto, seria um maior número de referências a trabalhos escritos por mulheres, que permanecem nos repositórios académicos (nem sempre online). Contudo, a bibliografia usada no livro é relevante para quem hoje se dedica ao estudo do estigma associado ao corpo e às construções sociais, históricas, económicas e políticas da imagem do corpo.

Tentámos aqui uma recensão, mas a melhor está precisamente na nota da autora, “Vinte anos depois” (pp. 7-11). E o que nos diz? Que este livro não trata só de género, mas também de classe. Que não foi só o Estado Novo em si, mas outras instâncias da sociedade que formaram os dons e disciplinas do corpo feminino. Que este processo não se fez só de adaptação, de “conformidade” (p. 89), mas também de resistência. E mostra a relação com o presente, e como os debates atuais podem beneficiar desta história.

Será útil começar a leitura pela página 100, onde surge um quadro síntese sobre as mulheres e os seus tipos, “legítimos” e “não legítimos”. Nele, por exemplo, temos a “noiva” de um lado e a “flirteadora” do outro, mas é preciso mergulhar nos capítulos para perceber os contornos deste longo processo de categorização.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARDOSO, D. M. (2018), Eliete, Lisboa, Tinta-da-China.         [ Links ]

CRESPO, J. (1991), A História do Corpo, Lisboa, Difel.         [ Links ]

CURTO, D. R. (2019), “O Estado Novo e o mundo da edição”. Revista E, Jornal Expresso, 11-05-2019, pp. 66-67.

FIGUEIREDO, I. (2017), A Gorda, Lisboa, Caminho.         [ Links ]

PENNAC, D. (1998 [1992]), Como um Romance, Lisboa, Asa.         [ Links ]

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