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Análise Social
versão impressa ISSN 0003-2573
Anál. Social no.233 Lisboa dez. 2019
https://doi.org/10.31447/AS00032573.2019233.01
ARTIGOS
Visões de Marracuene. Propaganda, cultura popular, turismo e o terreno colonial em Moçambique[1]
Visions of Marracuene. Propaganda, popular culture, tourism and the colonial terrain in Mozambique
Nuno Domingos*
https://orcid.org/0000-0003-1616-6710
* Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa. Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9 - 1600-189 Lisboa, Portugal. nuno.domingos@ics.ul.pt
RESUMO
Este artigo examina o processo de criação de uma representação propagandística de Marracuene, território colonial no sul de Moçambique, a partir do projeto de realização de um filme, em meados do século XX. Resultando de um conjunto de condições institucionais diverso, que revela inúmeras mediações, os materiais cinematográficos tinham o poder de construir uma imagética do território colonial utilizando temas selecionados, narrados por dispositivos reconhecidos. Neste artigo, o acesso a outras fontes históricas sobre o quotidiano de Marracuene durante o mesmo período permite identificar características fundamentais deste território excluídas pela propaganda. Um relatório laboral produzido pelo Estado e um testemunho oral sugerem uma outra narrativa histórica.
Palavras-chave: Moçambique; colonialismo; propaganda; narrativa histórica.
ABSTRACT
This article examines how an official film project aimed to create a propagandistic representation of Marracuene, a colonial territory in southern Mozambique, in the mid - 20th century. Resulting from a diverse set of institutional conditions, which reveal a large number of mediations, the cinematographic materials had the power to construct an imagery of this colonial territory, while using selected themes recounted by standard narrative devices. In this article, access to other historical evidence on Marracuene’s social life during the same period allows us to identify chief characteristics of this territory excluded by the propaganda film project. A state-produced labour report and an oral witness suggest a distinct historical narrative.
Keywords: Mozambique; colonialismo; propaganda; historical narration.
Introdução
Durante o século XX, os meios da cultura popular urbana foram utilizados pela propaganda colonial portuguesa para criar uma representação do espaço africano. Em meados do século, o projeto de realização de um filme sobre o distrito de Lourenço Marques, no sul da então colónia portuguesa de Moçambique, inseria-se nesta tentativa de disseminar uma determinada imagem do império português.[2] A circunscrição de Marracuene, lugar de uma celebrada vitória militar portuguesa sobre a resistência africana no final do século XIX, era um dos espaços incluídos nos planos de filmagem. Este artigo procura confrontar a constituição de uma representação visual e propagandística desta região moçambicana com fontes que sugerem outra representação do mesmo território. A interpretação destas outras fontes, arquivísticas e orais, contribuindo para a produção de uma história incorporada do colonialismo[3], redefinem os termos de construção deste território específico, reconstituindo-o à luz do processo de transformação radical da sociedade local durante o período colonial e do modo como este se manifestou no quotidiano das populações.
Apesar de não haver notícias da concretização do filme, a sua lógica de produção insere-se em modelos hegemónicos de representação do espaço colonial, existentes tanto no império português como noutros espaços coloniais, traduzidos, nesse período, pela película.[4] As representações oficiais em filme, na medida de outras modalidades de controlo (Cohn, 1997), do censo ao mapa, realizavam uma objetivação da sociedade colonial, produzindo uma imagética em movimento da visão do poder. Não sendo estáticos, estes modelos de classificação da vida colonial ajustaram-se à evolução da linguagem cinematográfica e às solicitações da propaganda. Dependiam, também, da colaboração política de instituições e indivíduos no terreno e de mediações técnicas e criativas realizadas por diversos profissionais. Os altos objetivos do Estado, que justificavam a produção dos filmes e são mais visíveis nas fontes historiográficas, proporcionaram o desenvolvimento de interesses específicos, muitas vezes sobrepostos - corporativos, profissionais, comerciais ou pessoais - que movimentam este campo de produção cultural.[5]
A carência de registos fílmicos dos territórios coloniais confere a muitas das imagens criadas sob o controlo da administração portuguesa a autoridade de falar pelo passado e de o construir (Cardão, 2018). Uma das características do projeto de filme sobre Marracuene é a ausência de referências às populações que habitavam o território, desde logo as africanas, esmagadoramente maioritárias na demografia local, mas também a grande parte das populações colonas. A condição destes indivíduos conta uma outra história de Marracuene, produzindo uma objetivação distinta dos espaços e das relações sociais. Neste artigo, a narração destas outras visões de Marracuene assenta no cruzamento de diferentes fontes, das quais se destacam duas: um relatório sobre o trabalho indígena produzido por uma instituição do Estado colonial moçambicano em 1953, a Curadoria dos Negócios Indígenas, e um testemunho de uma mulher, com estatuto de indígena, que viveu a infância e primeira juventude na região durante a década de 50.
Um projeto de documentário
Em 27 de julho de 1949, José Mendes da Fonseca[6], diretor da Casa da Metrópole em Lourenço Marques, apresentou ao governador de Moçambique a proposta de um filme sobre a colónia.[7] O subscritor integrou a iniciativa na moderna propaganda prosseguida por esta instituição criada em 1934: “é indiscutível que os três pilares da propaganda são a imprensa, rádio e cinema. Nesta ordem de ideias este organismo tem procurado servir-se daqueles poderosos meios para desenvolver as suas funções de propaganda”.[8] Sob a tutela do Ministério das Colónias e da Agência Geral das Colónias, as Casas da Metrópole possuíam atribuições fundamentalmente económicas: facilitar o acesso aos mercados coloniais de atores económicos portugueses - corporações, empresas públicas e privadas, comerciantes e industriais (DL n.º 23 445, 5/1/34). Essa vocação passou a ser complementada desde 1948 por uma dimensão de intervenção cultural, que implicava a extensão deste acesso aos mercados africanos a um conjunto de agentes culturais (Port. n.º 12 304, 10/03/48). Entre as novas funções incluía-se a exibição periódica de filmes portugueses nos cinemas das colónias e a exploração de cinemas ambulantes.[9]
Neste caso, porém, a Casa da Metrópole limitava-se a intermediar a proposta de uma empresa privada sul-africana, a African Film Productions, criada em 1915 por I. W. Schlesinger. Mantendo ligações à indústria de cinema britânica, Schlesinger, um imigrante norte-americano que geria também a distribuidora African Consolidated Theaters, dominou a produção e distribuição de cinema na África do Sul até ao final da década de 40.[10] Um dos seus mais conhecidos produtos foram os jornais de atualidades African Mirror. Exibidos entre 1913 e 1948, estes jornais, como refere Emma Sandon (2013, pp. 662 e 664), ofereceram a um público branco uma narrativa do progresso da colonização na África do Sul que modelava a identidade do colonizador, designada pela literatura académica por South Africanism.[11]
Antes desta proposta, a African Film Productions já tentara filmar em Moçambique. Logo no início dos anos 20, a empresa sul-africana enviara uma proposta ao governo moçambicano por intermédio do vice-cônsul português em Joanesburgo.[12] O secretário do Governo Geral considerou, nessa altura, ser conveniente que a administração portuguesa tomasse “directamente conta da propaganda” e que formasse técnicos para iniciar esse trabalho no território moçambicano.[13] A produtora sul-africana acabou mesmo por realizar um filme sobre o sul do território, no ano de 1947. Focado nas relações entre a colónia portuguesa e a África do Sul, o Elo Permanente foi encomendado pelo Serviço de Informações do Governo da África do Sul, com o patrocínio da Administração dos Portos, Caminhos de Ferro e Transportes de Moçambique e dos Caminhos de Ferro Sul-africanos.[14] O filme conta a história dos descobrimentos marítimos portugueses e da chegada a Moçambique, foca a modernidade urbana em Lourenço Marques e Joanesburgo, discorre sobre a linha de caminho de ferro que as unia, mostra igrejas e catedrais e assegura, pela voz do narrador, que “Portugal protege firmemente a liberdade pessoal e nacional dos indígenas moçambicanos”; “os pioneiros exploradores de outrora foram substituídos por cientistas” que “trazem aos indígenas incivilizados os benefícios da medicina e higiene moderna”.[15] Dois temas principais destacam-se na película: a modernização económica, com inúmeras imagens do cultivo e transformação dos principais produtos locais (sisal, tabaco, algodão, açúcar, chá) pela tecnologia e pelo trabalho africano, e o potencial turístico das duas cidades, Joanesburgo e Lourenço Marques. As imagens da capital de Moçambique, “uma instância de férias e de distrações”, repleta de “hotéis luxuosos”, “casinos”, bairros de arquitetura moderna “especialmente planeada para as condições tropicais”, com “ruas largas e arejadas”, com “um ar europeu”, e de praias como a da Polana, cheia de banhistas brancos, dirigiam-se à imaginação do turista sul-africano. Sob inúmeros aspetos, a proposta apresentada à Casa da Metrópole assemelhava-se à estrutura deste filme de 1947.
A entrega da produção de um filme de propaganda colonial a uma empresa privada estrangeira que tivera a iniciativa de o propor constituía um justo indício da insipiência da propaganda local. Com experiência vasta, a empresa sul-africana explorava um mercado da representação do espaço colonial africano que o poder português não ocupara, ou ocupara deficientemente com os filmes produzidos desde 1929 pela Brigada Cine-Portuguesa, em Moçambique e também em São Tomé, pela Missão Cinematográfica a Angola no mesmo período e, mais tarde, a partir de 1937, pela Missão Cinegráfica às Colónias (Piçarra, 2015, pp. 65-66 e 68), organizada sob a tutela da Agência Geral das Colónias, e por algumas iniciativas de empresas públicas e privadas, que procuravam divulgar a sua atividade.
Mostrando, como nas obras do final dos anos 20 e dos anos 30, a superioridade do colonizador, o filme de 1947, o projeto de 1949 e os filmes que iriam ser realizados na década de 50 em Moçambique ofereciam uma representação da modernização do pós-guerra. Esta encontrava-se sustentada numa utopia desenvolvimentista, tendencialmente industrial, e na promoção turística, dimensão não separável da exibição do modo vida dos europeus nos trópicos. Esta proximidade entre propaganda e turismo será consagrada oficialmente pela criação, em 1959, por iniciativa do Ministério do Ultramar, dos Centros de Informação e Turismo em Angola e Moçambique. Nos filmes focados nos espaços urbanos, onde estavam concentradas as populações colonas, mas igualmente no jornal cinematográfico Actualidades de Moçambique, produzido desde 1956 por António Melo Pereira, depois de um encomenda dos Serviços de Estatística do Governo da Província, a propaganda da modernização ligava-se a um sentimento de moçambicanidade do colono branco, em certos aspetos, próximo do South-africanism do país vizinho.[16]
Os detalhes do projeto sul-africano de 1949 estão discriminados na carta enviada pela Casa da Metrópole ao governador-geral de Moçambique. A African Film Productions requereu um orçamento para a realização de um documentário sobre cada uma das províncias de Moçambique, com locução em português, inglês e francês: “Cada um destes filmes terá 600 metros e destina-se a fixar aspectos paisagísticos, turísticos, industriais, comerciais, agrícolas, obras de fomento, etc. (…) Além deste primeiro filme, pediram um orçamento para um filme de 250 a 300 metros, em cópias trilingues, dedicado exclusivamente à caça”. A carta da Casa da Metrópole esboça um guião temático genérico, baseado na identificação de assuntos, correspondentes a tipologias de representação reconhecidas neste tipo de documentário, a que os poderes públicos coloniais portugueses acrescentariam substância. Foi solicitado “um esboço geográfico-histórico de cada província”, a identificação das “suas organizações agrícolas e industriais dignas de serem filmadas” e “bem assim aspetos turísticos, obras públicas, paisagens ou quaisquer outros de interesse”, a “elaboração de um roteiro ou itinerário que a equipa cinematográfica deveria seguir dentro de cada Província” e a “indicação de existência de regiões de caça nessa província”. A carta reclamava ainda das autoridades locais “transporte, alojamento e alimentação para a equipas”.[17]
Recebida a missiva de José Mendes da Fonseca, o governador-geral remeteu o pedido às duas circunscrições do distrito de Lourenço Marques, Maputo e Marracuene. Se a empresa sul-africana destacara um conjunto de temas, em consonância com os interesses portugueses, a designação dos locais a registar dependia das escolhas dos responsáveis locais, nomeadamente dos administradores. Da circunscrição de Maputo chegou uma resposta desanimadora. Cristóvão Júlio traçou uma imagem pouco propagandística da sua circunscrição: “Tenho a honra de comunicar a V. Exa que esta circunscrição não possue organizações agrícolas e industriais dignas de serem filmadas e bem assim aspectos turísticos, obras públicas, paisagens ou quaisquer outros de interesse”.[18] No meio deste cenário impróprio para ser captado por uma câmara de filmar e partilhado pelo mundo havia, porém, uma exceção: “o aviário do Umbelúzi … talvez mereça ser filmado”. Por fim, apesar de haver na área uma reserva de caça, “não sei se valerá a pena lá ir, pois eu já lá andei um dia inteiro a corta-mato acompanhado do fiscal de caça, não tendo visto elefantes nem qualquer outra espécie cinegética”.[19]
Já em Marracuene, pelo contrário, a proposta suscitou interesse. Pela mão do administrador, José Marques da Cunha, seguiu uma lista de locais a filmar, em resposta aos temas enunciados.[20] Marracuene, cujo principal centro, Vila Luíza, ficava a 30 quilómetros de Lourenço Marques, não era, em todo o caso, um lugar estranho à propaganda portuguesa.
A paisagem militar da heroica Marracuene
A historiografia colonial e a sua tradução propagandística assinalaram com insistência a importância de Marracuene na narrativa heroica da conquista portuguesa de Moçambique. A vitória sobre o império de Gaza e o aprisionamento do seu líder, Gungunhana, pelo exército de Mouzinho de Albuquerque, em dezembro de 1895, foi cantada enquanto etapa decisiva do estabelecimento da soberania efetiva no sul de Moçambique, mas também, em sequência do Ultimato de 1890 e da cobiça inglesa por estes territórios, como uma derrota do imperialismo britânico. Lourenço Marques era um eixo fundamental do complexo económico erguido pelos ingleses na África do Sul, meio de escoamento de matérias-primas por via marítima e reservatório de mão-de-obra para a indústria mineira O primeiro triunfo português sobre o reino de Gaza ocorreu na madrugada do dia 2 de fevereiro desse mesmo ano. Sob as ordens do comissário régio António Enes, 800 soldados, comandados por Caldas Xavier e munidos de canhões e metralhadoras, bateram as tropas dos chefes rongas que se acercavam de Lourenço Marques,
António Enes relatou estas vitórias militares no livro Guerra D’África de 1895, editado em 1897, mas já antes outras narrativas históricas, caso de Victorias D’Africa de António de Campos Júnior (1896), celebraram o feito.[21] Muito festejada na imprensa metropolitana (Martins, 2012), a batalha de Marracuene foi objeto de propaganda sistemática, sobretudo após a criação da Agência Geral das Colónias, em 1924. Em 1934, por ocasião do aniversário da peleja, a publicação Padrões do Império, editada pela Agência e dirigida a um público amplo, transcreve uma parte do texto original de António Enes. Na capa, a imagem de um soldado africano alinhado, com a legenda: “Rebelde de Hontem, soldado de hoje”. O relato historiográfico surgia carregado de imagens sugestivas: “O fragor do combate punha medo… e apesar dos estampidos dos canhões e das descargas cerradas e continuas de fuzilaria atordoarem como trovões ribombando dentro do ouvido, ainda lhes sobrelevava a gritaria infernal dos landins, tão medonha que fazia crer estar ali toda a selvagaria d’Africa a estracinhar ululante a minguada hoste portuguesa” (Padrões do Império, 1934, p. 5).
O tom épico releva a bravura de diversos heróis nacionais, ainda hoje assinalados na toponímia portuguesa: Caldas Xavier, Paiva Couceiro, Eduardo Costa, Raul Costa, Aires de Ornellas, Freire de Andrade, entre outros. Um ano depois desta publicação, o primeiro número da coleção Pelo Império, também editada pela Agência Geral das Colónias, regressa à batalha de Marracuene (1935). O autor, Lourenço Cayolla, integrou esta periferia de Lourenço Marques na nomenclatura da geografia militar da história nacional, ao lado de Ourique, Aljubarrota, Calicute, Ormuz, Diu, Ameixial, Montes Claros e Bussaco (Cayolla 1935, p. 5). Foi assim, continuou, que um lugar até aí sem história (“um desolado e árido local, a pouco mais de 30 quilómetros de Lourenço Marques… e só conhecido até aí por ser ponto de passagem obrigada do Incomati”) se “tornou imortal, porque o sítio que ele designa foi teatro de uma proeza de guerra”. O sucesso militar desmentiu ainda quem acusava Portugal de estar “comprometendo o prestígio da raça branca” (Cayolla, 1935 p. 7).
A representação de Marracuene com um espaço da glória militar portuguesa foi retomada em 1953, quase 20 anos após a publicação desta evocação da batalha, pelo realizador Jorge do Brum do Canto, que descreveu as lutas contra os vátuas no filme Chaimite, nome da aldeia do distrito de Chibuto onde se refugiou Gungunhana antes de ser capturado por Mouzinho de Albuquerque.[22] Alternando o relato da história militar portuguesa com a narrativa da vida simples mas notável das famílias de colonos em Moçambique, o filme também representou com detalhe a batalha de Marracuene e a excelência da estratégia portuguesa. É esta façanha que o comissário António Enes conta didaticamente, no filme, a um soldado ferido que visitou no hospital depois da batalha: “em Marracuene ocorreu um fenómeno a bem dizer único no mundo, pela primeira vez na história colonial um quadrado já desmantelado conseguiu reorganizar-se sobre a pressão do inimigo.”[23]
Sustentáculo de uma narrativa nacionalista, as conquistas militares converteram Marracuene num campo de batalha, habitado por líderes corajosos e astutos e exércitos voluntariosos. Do lado do poder colonial português, no entanto, não coube apenas à narrativa da glória militar o monopólio da construção imagética desta região moçambicana. Na década de 50 do século XX, a conquista parecia assegurada, e importava agora provar com imagens o sucesso da colonização efetiva.
A moderna Marracuene do administrador-produtor
Sobejamente conhecida, a história heroica de Marracuene não ocupou o administrador José Marques da Cunha, que preferiu sugerir à equipa de filmagem da African Film Productions um quadro contemporâneo do lugar, igualmente centrado na ação do colonizador, mas menos histórico e comemorativo e mais atento às dinâmicas de modernização no território que superintendia. A circunscrição possuía diversas instalações agrícolas, das quais importava selecionar as grandes plantações de bananeiras da Marracuene Agrícola e Comercial, empresa criada em 1928.[24] Os depósitos de gasolina da The Shell Company of Portugueses East Africa no posto da Matola e todo o seu bairro industrial, e a fábrica de cimentos da Matola, pertencente à Companhia de Cimentos de Moçambique, possuíam enorme relevância, considerou Marques da Cunha. Outros empreendimentos, acrescentou o administrador, mereciam a atenção da equipa de rodagem, como as pedreiras de Munguene e a fábrica de gaseificados da Sociedade Civil da Quinta de Montemor.
Filmar obras públicas era imperativo: proporcionavam a celebração do investimento do Estado colonial, central e local. A lista de Marques da Cunha incluía a ponte sobre o Incomati, o bairro ferroviário das Mahotas, o instituto Mouzinho de Albuquerque, as estradas 1 e 2, nomeadamente os seus troços arborizados, a captação de água do Umbelúzi e a quinta experimental da mesma localidade. A Igreja Católica não seria esquecida: filmar-se-ia a Igreja de Nossa Senhora de Fátima, na Namaacha e a Capela da guarnição Militar de Boane. A presença militar revelava-se nas obras de engenheiros e na atividade da escola de quadros de Boane. Quanto aos edifícios particulares, as residências do empresário Paulino dos Santos Gil, na Namaacha, e de Francisco Vicente Coelho, na Matola, representavam o que de melhor fora construído. Faltava filmar as instalações do Rádio Clube de Moçambique na Matola, projeto de iniciativa privada com sucesso comercial no território e noutras regiões africanas, nomeadamente na África do Sul (Barbosa, 2000). Por fim, quanto aos aspetos turísticos, o administrador destacou o rio Incomáti e os Montes Libombos, as paisagens da Namaacha e as suas periferias. Nenhuma referência fez à possibilidade de exploração dos recursos balneares de Marracuene, região costeira com praias.
A seleção de espaços a filmar salientava o progresso trazido a Marracuene pela grande empresa agrícola, pela atividade industrial portuguesa e estrangeira e pela construção de infra-estruturas promovidas pelo Estado. José Marques da Cunha não esqueceu a Igreja católica nem os militares, assinalou as residências dos representantes da burguesia colonial, ofereceu uma visão turística, mas com dificuldade em nomear espaços dignos de visitar, sobretudo no que respeitava à caça, atividade turística dominante em Moçambique: “regiões de caça não há, só ao jacaré”.[25] Assegurando apoio à equipa sul-africana, propôs um itinerário de filmagens: de Lourenço Marques para Vila Luíza, capital da região, num passeio pelo rio Incomáti. De Vila Luíza para o Bairro Ferroviário. Depois, em sequência: Lingamo, Matola, Umbelúzi, Boane, Namaacha e, por fim, o regresso a Lourenço Marques.
Neste percurso pelas paisagens, localidades, infraestruturas, empresas e instituições de Marracuene nenhuma referência foi feita às populações africanas locais nem à população de agricultores colonos, temas já desconsiderados pelo guião temático sul-africano.[26] E, no entanto, o censo de 1950 assinalara a existência de 55849 indígenas em Marracuene (26245 homens e 29604 mulheres), quase a totalidade da população da circunscrição, que incluía 58326 indivíduos (Anuário Estatístico de Moçambique 1951-52, pp. 28-29). A chamada população civilizada compunha-se apenas de 1767 brancos (1165 homens), 17 amarelos, 147 indianos, 493 mistos, e 53 negros (ibidem).
Africanos na paisagem
Ausentes dos grandes temas do projeto da African Film Productions em Marracuene, as populações africanas acabariam certamente por ser filmadas. Quando as películas oficiais deste período mostravam fábricas ou modernas explorações agrícolas, os trabalhadores africanos eram captados em tarefas laborais, eventualmente a manipular uma máquina.[27] No filme idealizado pela produtora sul-africana e pelo administrador de Marracuene seria expectável encontrá-los, por exemplo, nas instalações da Shell ou na fábrica da Companhia de Cimentos. De outra forma, podiam surgir como elementos integrantes de uma paisagem natural africana.
A representação dos africanos enquanto subordinados, sujeitos passivos da ação das políticas coloniais, é habitual nos filmes de propaganda realizados na década de 50 em Moçambique, preocupados em assinalar o progresso e a estabilidade e desenvolvimento trazidos a África pelas comunidades colonas brancas. Um bom exemplo desta prática cinematográfica são os filmes realizados neste período pela produtora EuroAfrica, propriedade de Filipe de Solms e Ricardo Malheiro.[28] Na década de 50, foi esta produtora que mais filmes produziu sobre os territórios angolano e moçambicano, o que atendendo ao interesse de outras empresas em filmar com o apoio do Estado, revela as boas relações de Solms e Malheiro com o poder.
Só em 1950, Solms realizou Lourenço Marques, Beira, Benfica em África[29], Madeira, Sisal, Chá, e produziu um filme de Carlos Marques (Algodão em Moçambique).[30] Em 1951 produziu um filme sobre a Ilha de Moçambique e a sua produtora assinou contratos com o governo da colónia de Moçambique que incluíam a realização de um filme sobre a reserva de caça da Gorongosa, três filmes sobre as belezas turísticas das províncias do Niassa, Sul do Save, Manica e Sofala e Zambézia, e outro sobre a ação desenvolvida pelo Estado Novo em Moçambique.[31] Em carta enviada ao diretor da Administração Civil da Colónia de Moçambique, com quem já havia conversado, Solms escreve sobre esta última série de filmes, designada “As belezas de Moçambique”[32]: “Creo interessante y de grand utilidade l dar a conocer a los naturales y a la Metrópole - por no citar el extranjero, las belezas naturales, el interes turístico y el desarrollo de esta maravillosa Colonia, que apesar de extranjero empiezo a conocer mejor que muchos”.[33] Na mesma missiva, Solms sugere que a Administração Civil ordene aos administradores do território a angariação de verbas junto do comércio, indústrias, câmaras, juntas e particulares. Pede a colaboração de Henrique Galvão, consultor técnico, literário e artístico que escrevera já os textos de filmes como Beira e Chá, e do tenente Caetano Montez, responsável pela análise histórica.[34] A “orientação” dos filmes, como expresso num destes contratos, cabia ao governador de cada Província.[35] Em 1952, Solms continuou a apresentar os seus filmes sobre Moçambique: Aspectos duma Capital. Lourenço Marques, Niassa, Zambézia, Reserva de Caça da Gorongosa, O Comércio na Beira, O Estado Novo em Moçambique.
Nestes filmes da década de 50 a paisagem é um elemento predominante. O espaço rural é concebido, por um lado, como um lugar natural, interessante pela sua beleza fascinante ou enquanto zona cinegética, e, por outro, como um espaço produtivo transformado pela perseverança e o conhecimento europeus. Era a transformação industrial de produtos agrícolas, como o sisal, o chá ou as oleaginosas, que melhor demonstrava a ação do colonizador. A paisagem industrial no meio de África revelava a transformação racional de um continente tido como “selvagem” e das suas populações em trabalhadores modernos. Quando observados fora do espaço de trabalho, os africanos são quase sempre apresentados nos seus usos e costumes, com um evidente interesse pelas danças e exibições musicais: elementos que se integraram numa conceção mais larga de paisagem natural. Nos filmes ocupados com as grandes cidades a paisagem moderna impõe-se pela visão dos edifícios e das ruas, muitas vezes em tomadas de plano aéreas, dos automóveis, do comércio e das atividades de lazer dos colonos.[36]
Em filmes como Lourenço Marques e Beira, subsidiados pelas respetivas edilidades, as representações da modernidade urbana sustêm-se na autorrepresentação de um certo indivíduo europeu que se apropriou do espaço africano, no qual vive confortavelmente, em contraste com relatos do degredo e da miséria branca. Como se narra a certa altura no filme sobre a cidade da Beira, cujo texto foi escrito por Henrique Galvão: “a Europa está a banhos na Beira, e ninguém dirá que esta é uma praia africana. As raparigas e os rapazes da Beira vivem num ambiente de alegria saudável”; e, pouco depois, “No Savoy dança-se como em qualquer casino europeu”. Em Lourenço Marques, apenas no fim da película, por breves segundos, são mostrados indígenas, em atividades religiosas e no bairro para eles construído pelo Estado (o bairro da Munhuana, finalizado em 1942), mas separados do resto da população (diz o locutor: “a população indígena marcha firmemente para a civilização sob os cuidados da orientação portuguesa, inspirada num sentimento cristão de fraternidade humana”). Nestes filmes, a separação racial é um princípio constituinte do usufruto do território urbano pelo colono e o turista, para quem o acesso fácil e barato à mão de obra africana era condição do prazer que sentiam. Das praias às piscinas, às inevitáveis cenas de caça, Lourenço Marques e a Beira expõem o mundo europeu para efeitos de consumo interno e de atração de novos colonos, dois anos depois de o Partido Nacional sul-africano ter legislado o apartheid e do sul-africanismo, ideologia do branco africano, se ter radicalizado.
Depois do início da guerra em Angola em 1961, a propaganda portuguesa preocupou-se em realizar filmes nos quais os negros surgem integrados na sociedade colonial num contexto de maior igualdade e proximidade com as populações colonas e os funcionários coloniais - com imagens interraciais dos locais de trabalho, das escolas, dos locais de lazer, de interações com governantes - relativizando a reprodução simbólica de uma identidade branca, modernizadora e civilizadora e de um Estado explorador.[37] Mas nas películas e projetos criados da década de 50, como aquele sobre Marracuene, os africanos ocupam um papel de enorme subalternidade, orientados pelo progresso português, e ainda separados. As suas vidas, por detrás destas fachadas imagéticas, permanecem um mistério.
Tomando em consideração o projeto da African Film Productions sobre Marracuene, e a sua inserção num dispositivo mais amplo de construção imagética do território colonial pela propaganda fílmica, como recuperar o quotidiano destas populações africanas, maioritárias na região, e a partir dele criar outras representações deste território? E como tornar mais visível a existência dos agricultores colonos neste terreno, para lá da fachada idealizada do agricultor modelo, cuja representação perpassa pela propaganda e é muito visível em filmes como Chaimite?
Um relatório colonial: um outro mapa de Marracuene
A leitura de um relatório de 1954 sobre a mão de obra indígena em Marracuene produzido pela Curadoria dos Negócios Indígenas ajuda a responder a estas questões. Se o guião do filme para a African Film Productions celebrava a beleza natural e a produtividade moderna da circunscrição, o relatório preocupava-se em oferecer um retrato mais amplo das relações produtivas. Neste sentido, o trabalhador indígena, núcleo produtivo da região e origem de parte substancial da receita fiscal portuguesa, ocupa o centro deste mundo social. Em documentos que circulavam entre instituições estatais, os trabalhadores africanos, que não apenas aqueles que surgiam nas encenações de propaganda, são devolvidos à paisagem. Mas para além da população indígena, o relatório identifica outros habitantes da circunscrição, nomeadamente os empregadores, alguns deles europeus. Já identificados nas estatísticas censitárias, estes patrões não eram, na sua maioria, os industriais e os técnicos modernizadores, nem os membros das classes brancas afluentes e cosmopolitas que abundavam nos filmes sobre as cidades.
Em 19 de outubro de 1954, o funcionário colonial Fausto Leite Marques concluiu o relatório da Inspecção da Curadoria dos Negócios Indígenas da Circunscrição de Marracuene, preparado em 1953 para a Repartição Central dos Negócios Indígenas.[38] Não se referindo, com duas exceções, aos espaços selecionados por José Marques da Cunha para as filmagens do filme de propaganda, o relatório descreve uma região rural, habitada por trabalhadores indígenas, pequenos e médios agricultores, portugueses e estrangeiros, alguns proprietários com terrenos de maior dimensão e uns poucos industriais. Ao inspetor cabia fiscalizar as condições de emprego da mão-de-obra indígena, de acordo com o estipulado no Código de Trabalho Indígena de 1928 (DL n.º 16 199)[39]: o cumprimento dos tipos de recrutamento, dos horários de trabalho e a sua periodicidade, a adequação da alimentação oferecida aos indígenas, a qualidade das instalações em que habitavam e da assistência médica e social. Da condição física dos indígenas, decorrente da sua alimentação, saúde e habitação, dependia também a reprodução da mão-de-obra e o incremento da capacidade produtiva, fundamental em regiões onde escasseavam trabalhadores.
O inspetor descrevia também as condições de trabalho e as modalidades de recrutamento: se eram trabalhadores “voluntários”, que se apresentavam por sua iniciativa, ou se “contratados” pelo Estado ou por privados. As inspeções às explorações económicas produziam fichas individuais com informação básica, anexas ao relatório. Para o Estado português, as fiscalizações ao trabalho indígena deviam confirmar que nada do que se passava no terreno era ilegal à luz da legislação colonial, nomeadamente no que respeita à utilização de trabalho forçado. Este período, em especial, tornou-se crítico, pelo compromisso de Portugal fornecer informações sobre práticas laborais ao Comité Especial do Trabalho Forçado, que funcionou em parceria com o Conselho Económico e Social da ONU entre 1951 e 1953 (Monteiro, 2018, pp. 141-171).
Portugal tinha já uma longa história de acusações de utilização do trabalho forçado nos seus terrenos coloniais, que incluía o boicote à importação de cacau de São Tomé pelas firmas Cadbury, Fry e Rowntree em 1909, em protesto contra o sistema de tipo escravocrata em vigor nas roças, o relatório redigido para a Sociedade das Nações pelo sociólogo Edward Ross em 1925 sobre as condições do trabalho indígena nas colónias portuguesas, e todas as discussões existentes entre Portugal e as Nações Unidas, e mais especificamente a Organização Internacional do Trabalho, acerca da necessidade de Portugal ratificar convenções internacionais sobre práticas laborais (Jerónimo, 2009; Monteiro, 2018). Os trabalhadores cedidos pelas autoridades, trabalhadores contratados, eram aqueles cuja relação laboral se encontrava sob suspeita de trabalho forçado. Mas, se teoricamente os voluntários se empregavam por sua iniciativa, muitas vezes o contexto deste voluntariado, gerido pelos próprios patrões, era coercivo. No terreno, a captura do trabalho indígena respondia a um conjunto de situações que o exercício de fiscalização procurava acomodar às categorias da lei. As próprias fiscalizações tinham um poder limitado.
Por “falta de tempo”, o inspetor apenas fiscalizou parte das explorações da circunscrição de Marracuene.[40] Mas apesar destas condicionantes, a informação presente nestas fichas é ainda assim suficiente para colocar a descoberto as linhas que desenham um outro mapa de Marracuene, distinto da representação agradável que a propaganda procurava criar.
O agricultor Alexandre Revez Duarte, empresário agrícola com 80 hectares de hortas, citrinos, bananeiras e criação de gado, foi notificado para suprir imediatamente as deficiências verificadas na alimentação dos seus trabalhadores indígenas: faltava a papa prescrita na lei e o fornecimento de pão e peixe. Duarte tinha 52 contratados, 30 fornecidos pelas autoridades e 22 recrutados diretamente. Nesta exploração, onde havia um trator avariado e duas charruas de tração animal, os indígenas cumpririam as nove horas de trabalho diário, correspondentes ao limite permitido. Igualmente notificado, o empresário agrícola João Papucides, que possuía 60 hectares de milho, hortaliça e banana, devia corrigir de imediato as deficiências verificadas na alimentação indígena. A somar ao problema da alimentação, os alojamentos dos seus trabalhadores eram “sofríveis”: palhotas construídas “por eles próprios”. O agricultor Alves da Costa não cumpria integralmente a tabela que definia o regime da alimentação: não fornecia papas nem fruta aos seus quatro voluntários, apenas vegetais. Também não facultava sabão para os trabalhadores se lavarem, como era obrigatório. A Empresa Agrícola e Pecuária de Impamputo possuía oito contratados provenientes de Zavala, que não recebiam papas nem fruta, somente farinha, amendoins e vegetais, carne e peixe só de vez em quando. Os contratados da empresa agrícola e pecuária Leão e Irmão (26) e do agricultor Manuel Antunes (37) habitavam em palhotas, sem acesso a sanitários. Nesta última exploração foi aconselhado, como nos casos de outras explorações, a administração aos indígenas de sulfato ferroso. Na exploração de 270 hectares António Rama Marçal, dedicados à criação de 600 bovinos, a situação não era boa: os indígenas queixaram-se ao inspetor de excesso de trabalho.
Além dos portugueses, havia em Marracuene agricultores de origem indiana e chinesa. Pela insuficiência dos alimentos fornecidos aos seus 40 indígenas voluntários, pela condição da habitabilidade e a ausência de assistência médica, o agricultor Jin Hung Cheng, produtor de hortícolas e bananas, recebeu uma notificação. Morarjee Jivangee e Comp.ª operava em duas explorações. A propósito de uma delas, onde cultivava 180 hectares de hortas e bananeiras, foi notificado para reduzir as tarefas “excessivamente grandes” dos 50 contratados cedidos pelas autoridades. Na outra propriedade - de 204 hectares de banana, milho e hortaliça lavrados por dois tratores e quatro charruas, duas de tração animal - laboravam à tarefa 110 contratados e 10 voluntários: alguns queixaram-se da papa da manhã, porque tinha pouco açúcar. A empresa Jagabhai, com 182 hectares de produção de banana, milho, papaia, empregava 60 voluntários (40 homens e 20 rapazes, teoricamente com mais 14 anos), tinha uma assistência médica deficiente (“limitando-se apenas a mandar apresentar no posto sanitário de Vila Luíza os doentes em estado grave”) e um débil fornecimento alimentar (não dava papa com açúcar “antes dos trabalhadores pegarem no trabalho”); não fornecia ainda vestuário e colocava os trabalhadores em palhotas. Todos os 14 contratados do agricultor Daya Rama foram trazidos da circunscrição vizinha dos Muchopes pela administração. Rama contratava a 12 meses e os indígenas laboravam todos os dias da semana, 9 horas úteis, com um descanso das 11h30 às 13h00 horas. Comiam uma refeição às 6 horas da manhã, outra às 12h00 e uma última às 18h00 e pernoitavam em palhotas onde cabiam 12 indivíduos. Na exploração não existiam sanitários.
Na região havia explorações maiores. Ho Kam e Com (Bobol) ocupava 500 hectares e empregava 460 trabalhadores, 350 dos quais contratados pela administração. O inspetor intimou à desparasitação imediata dos acampamentos dos trabalhadores, cheios de pulgas. Empregava “rapazes”, a quem pagava de 15 a 20 escudos por semana, contra os 50 recebidos pelos “homens”. A Revez e Companhia Limitada, embora possuísse 3500 hectares, cultivava apenas 100 (milho, mapira, tabaco e amendoim) pastando no terreno 600 cabeças de gado. Possuía 32 trabalhadores voluntários e 78 contratados. Bem apetrechada de máquinas agrícolas, esta propriedade não suscitou reparos. A empresa Leão e Irmão administrava 1470 hectares concessionados, ocupados com pecuária (500 bovinos) e a agricultura. Não fornecia a papa açucarada, nem carne e peixe, nem fardamentos aos seus 30 contratados. Algumas das maiores explorações pertenciam a serviços estatais, caso dos Serviços Florestais (dos 1000 hectares, 15 voluntários e 19 contratados), da Direção dos Serviços dos Portos, Caminhos de Ferro e Transportes, que explorava aterros na margem do rio para instalação das estâncias comerciais (41 voluntários e 486 contratados), a Estação Experimental do Umbeluzi, com 700 hectares de milho, leguminosas, sorgos e pomares, com 213 bovinos, onde trabalhavam 15 aprendizes, 31 voluntários, incluindo cinco menores, 11 contratados e 52 condenados.
Marracuene possuía poucas indústrias de grande dimensão. Na área industrial de Lingamo destacava-se a Trans-Africa Industrial que fabricava sabões e óleos e contava com 105 voluntários; a Companhia Industrial da Matola, de moagem de trigo, com 65 voluntários; e a Vaccum Oil, com 170 trabalhadores voluntários.
As duas empresas privadas mais importantes da região receberam também a visita de Fausto Leite Marques: a Companhia de Cimentos de Moçambique e a The Shell Company. Estas instalações fabris são os únicos espaços que surgem tanto no relatório do trabalho indígena como no projeto de produção do filme da African Film Productions, selecionados pelo administrador José Marques da Cunha para celebrar a modernidade da circunscrição. Nestas empresas, a fiscalização não detetou os problemas comuns nas explorações agrícolas da região, em especial nas de menor dimensão, embora os métodos de recrutamento não fossem distintos. A Companhia de Cimentos de Moçambique, com sede na Matola, empregava 306 trabalhadores indígenas, dos quais 102 contratados cedidos pelas autoridades. Possuía um compound com 30 palhotas de alvenaria para os indígenas e 24 edifícios para residências de europeus. António Champalimaud, o proprietário, comprara em 1945 esta fábrica de cimentos ao Banco Nacional Ultramarino. Quanto à The Shell Company, a ficha produzida pelo inspetor não correspondia à informação incorporada na redação do relatório final[41]: se neste último se afirmava ter a Shell uma grande maioria de trabalhadores voluntários, a ficha registou 220 contratados, a totalidade da força de trabalho, oriundos das circunscrições vizinhas, sobretudo dos Muchopes.[42] Em Moçambique, a Shell surgira com esta denominação em 1930 e os armazéns e tanques na Matola datavam de 1931 (A Shell em Moçambique, 1954, p. 5). Na década de 50, beneficiou dos investimentos na colónia e das necessidades de transporte marítimo, terrestre e aéreo. Em 1954 empregava 170 europeus distribuídos por Lourenço Marques e pela Beira e cerca de 600 indígenas (ibidem, p. 13). Os indígenas usufruíam de 15 dias de férias e os europeus de 30 (ibidem). Como a Companhia de Cimentos, o aumento da atividade da Shell indicava o crescimento do investimento público e privado. Apesar do seu carácter moderno, estas empresas recorriam a modalidades de recrutamento laboral tradicionais, muitas vezes associadas a práticas de trabalho forçado, mantendo ainda os trabalhadores em palhotas e não oferecendo sanitários.[43]
Nas conclusões do relatório, Fausto Leite Marques reconhece os problemas da utilização do trabalho indígena em Marracuene: as deficiências nos alojamentos dos trabalhadores (“poucos”, “quase todos provisórios”, de “construção bastante deficiente”) e as carências alimentares diversas que violavam o que constava na tabela oficial. Mas estas questões, incomparáveis com as descritas em relatórios laborais anteriores[44], não beliscavam a fachada de legalidade preconizada na legislação portuguesa. Por essa razão, das inspeções realizadas resultaram apenas quatro processos por transgressão ao regulamento do trabalho indígena. Numa região agrícola, todos os 69 processos relativos por acidentes de trabalho referenciados pelo relatório encontravam-se na pequena zona industrial.[45] Outros dados demonstravam a invisibilidade do espaço rural. Na estatística oficial, que contava os óbitos por circunscrição segundo a origem nacional, étnica e racial, não se registavam mortes de indígenas em Marracuene (por ex., Anuário de Moçambique 1950, p. 40). Por outras razões a fiscalização não era transparente: por incapacidade dos serviços, por sabotagem desse esforço, por desinteresse ou mesmo pela cooptação do Estado por quem continuava a beneficiar do incumprimento da lei. Fausto Leite Marques confessou a dificuldade em identificar com rigor quem na região empregava indígenas.
Apesar da sua imperfeição enquanto instrumento de inspeção ao trabalho indígena em Marracuene, o relatório deixava uma imagem de subdesenvolvimento económico e em muitos casos de penúria e miséria. Facultava indícios suficientes sobre como o colonialismo em Marracuene subsistia pelo recrutamento sistemático de mão-de-obra africana. Longe da representação propagandística, o relatório traça os contornos do mapa de uma região agrícola povoada por colonos portugueses e agricultores de outras nacionalidades em explorações económicas precárias compostas por agregados de edifícios débeis e terrenos explorados com pouco tecnologia e o recurso à exploração intensiva de mão-de-obra forçada, entregue pelo Estado. O relatório sugere ainda que sobretudo nas explorações agrícolas mais pequenas existiriam práticas que violavam mais extensivamente as leis do trabalho indígena.
Estas situações de incumprimento mais graves relacionavam-se com as explorações de “pequenos agricultores pobres”, carentes de mão-de-obra para suprir as suas explorações. O relato da condição destes colonos, também excluídos das imagens de propaganda, era desolador: “alguns destes agricultores europeus não sabem sequer assinar, quanto mais conhecer todas as disposições que regulam e protegem a vida dos nativos e se por vezes não as cumprem cabalmente, é porque ignoram em parte os seus deveres e porque lutam com uma situação financeira muito má”.[46] Para o relator, a situação era tão má, que os agricultores colonos, em relação aos quais devia haver alguma complacência, já faziam o trabalho manual usualmente reservado aos indígenas: “Já por algumas vezes tive ocasião de ver o europeu agarrado a uma charrua, rasgando a terra e nela lançando a semente que vai regando com o seu suor; trabalho árduo, duro e ingrato, pois a sua produção está bem subordinada à irregularidade do tempo e quando este corre mal o ano agrícola pode trazer consequências funestas e agravar ainda mais a situação do pobre agricultor. Para este, julgo que além da existência do equilíbrio entre a Justiça e a Tolerância, se deve usar duma bondade que, não prejudicando a administração nem diminuindo o que é devido ao indígena, o proteja e ampare na labuta honesta com que procura arrancar da terra o seu pão e o da família” (ibidem).
As práticas destes agricultores eram indissociáveis do quotidiano laboral dos indígenas em Marracuene. O relatório, no entanto, debruça-se pouco sobre as condições concretas de exercício do trabalho. Refere a escassez de trabalhadores na região: muitos emigravam, legal e clandestinamente, para os territórios vizinhos; outros preferiam procurar trabalho em Lourenço Marques: “onde auferem melhores salário em serviços menos pesados”. Os que ficavam desejavam escapar ao trabalho agrícola: “o nativo gosta (mais) de trabalhar na indústria porque o salário é mais elevado”. Pagando melhor, as indústrias eram procuradas por trabalhadores voluntários. Ocasionalmente, o relatório foca alguns excessos, mas mesmo que houvesse cuidado em verificar situações de abuso, faltavam condições à inspeção: as visitas parciais e esporádicas, muitas vezes anunciadas, evitavam que o inspetor surpreendesse situações perturbadoras. A inquirição dos indígenas, fundamental para averiguar as condições laborais, era superficial, e o inspetor desvalorizava as suas reclamações. Quando dois indígenas se queixaram, alegando que o empregador não lhes fornecia farinha, o inspetor desdenhou, concluindo que os indígenas “são falsos e malvados” (ibidem), procurando colocar em “cheque a má situação o patrão que lhes dava a ração conveniente mas à qual era subtraída a farinha que necessitavam para o fabrico da bebida cafreal”. O ónus das situações ilegais encontrava-se do lado da população indígena: “só uma fiscalização aturada e permanente é que permitirá corrigir os inúmeros defeitos dos indígenas desta região e evitar que alguns patrões usem de subterfúgios para não darem aos seus serviçais o que a lei impõe” (ibidem).
A gramática espacial de Fátima
Distintamente da imaginação turística e desenvolvimentista de Marracuene proposta pelo filme de propaganda, o relatório laboral sugere uma representação do subdesenvolvimento económico e da miséria social, onde se vislumbram pequenos e médios agricultores precários, trabalhadores indígenas e umas poucas indústrias. Ainda que brevemente, a voz dominante do inspetor descreve a indigência dos pequenos agricultores. Apesar da posição de poder que mantinham sobre a mão-de-obra recrutada, muitos destes agricultores, se questionados, lamentariam a sua condição. Já em relação aos trabalhadores indígenas, o que viviam e sentiam é quase inacessível. Os sentimentos dos indígenas em relação às condições de trabalho em Marracuene são percetíveis pelas suas estratégias de fuga rumo aos mercados laborais da África do Sul e de Lourenço Marques. Esta reação ao garrote do sistema fiscal e os regimes laborais era um repertório antigo, mas ainda em plena operacionalidade neste período do colonialismo tardio.[47]
Esta realidade contrariava, por um lado, os projetos modernizadores, que contavam com a estabilização da força de trabalho para aumentar a produtividade, e, por outro, as argumentações legais portuguesas, que propunham uma representação do terreno colonial plasmada da legislação oficial. A experiência dos habitantes locais, propondo uma nova representação do espaço e das relações sociais, desafiava os dispositivos de representação coloniais. O que as categorias laborais do Código de 1928 definiam como um contrato lícito, realizado pelo Estado, por agências privadas e por particulares com licença para recrutar, as populações chamavam de chibalo, palavra que definia genericamente as práticas de trabalho forçado, suscitadas por um recrutamento violento a que a legislação portuguesa oferecia uma fachada de legalidade.[48] No contexto colonial português em Moçambique os recrutamentos forçados, depois da aprovação do documento de 1928, onde a obrigação do indígena trabalhar foi eliminada da lei, constituíram-se como uma regra (Penvenne, 1995; Isaacman, 1997; Zamparoni, 1998; O’Laughlin, 2002; Allina, 2012).
O depoimento de Fátima, indígena que viveu a infância nesse período em Marracuene, proporciona outra descrição desta paisagem social, no qual a categoria que define o trabalho forçado, o chibalo, se impõe como o grande estruturador do quotidiano das populações locais. As suas palavras devem ser interpretadas na sequência das informações presentes no relatório sobre mão-de-obra indígena, o que lhe confere um quadro de verosimilhança. Não sendo uma trabalhadora indígena com o mesmo estatuto daqueles que preenchem o relatório, o seu depoimento, assente numa experiência de lugar, comunitária e familiar, e na sujeição a outras formas de trabalho compelido, constrói outra representação deste lugar colonial, das suas fronteiras, dos significados de espaços, relações e práticas.[49] Não representando a voz esquecida do coletivo de trabalhadores indígenas, objetivo que exigiria outro programa de pesquisa, esta descrição de um espaço de relações oferece indicações sobre como o sistema colonial transformou o quotidiano dos indivíduos. Da experiência prática desses indivíduos, sujeita a um processo de incorporação, emerge um sistema de classificação deste território, um terceiro mapa de Marracuene. Mas este breve relato não oferece apenas uma visão mais rica e pormenorizada da paisagem social descrita pelo relatório sobre o trabalho indígena. Ele acrescenta dimensões ao diagnóstico da situação laboral do indígena, nomeadamente sobre o papel tentacular do Estado enquanto recrutador laboral e grande usufrutuário desse mesmo trabalho, dimensão ausente do relatório laboral e, de modo mais genérico, insuficientemente presente no arquivo colonial.
Encontrei Fátima em Maputo, no bairro da Mafalala em março de 2017, no contexto de uma investigação sobre cultura popular no império. Nascida em 1949, esta moçambicana cresceu em Marracuene. Quando a encontrei falou-me dos seus consumos culturais, de como assistia a filmes americanos nos cinemas segregados dos subúrbios da capital de Moçambique, de como ouvia música sul-africana em discos que circulavam pelo bairro, de como o contacto com a leitura se fez quase exclusivamente pelo livro único da escola portuguesa. O contacto com formas de cultura popular moderna acompanhou a sua mudança para a cidade de Lourenço Marques, onde casou e constituiu família. Mas antes de me contar a sua relação com a cultura popular moderna, Fátima falou das suas origens em Marracuene, onde viveu com a família na década de 50 antes de rumar a Lourenço Marques, como muitos outros indígenas que procuravam fugir das provações da vida local. O seu relato oferece uma outra narração deste lugar celebrado pela história colonial portuguesa.
Sobre o período da sua vida em Marracuene foi isto que Fátima me disse:
Meu pai, minha mãe, são naturais de Marracuene. Eu devia ter uns 10 anos. As minhas avós eram naturais dali, nasceram ali, em Marracuene. Eu nasci numa família pobre, o meu pai tinha muitos filhos, nove mulheres, quatro rapazes, tudo seguido. O meu pai, dizia ele que ganhava 60 escudos, naquele tempo, trabalhava na serração mecânica, para dar de comer a oito ou nove filhos, mais ou menos. Então, nós, quando crescemos, tínhamos que ir sempre na praia, procurarmos ameijoa, camarão, para podermos vender. Saímos das nossas casas, entrava na praia. Era ali de quem vai para a Matola, onde os carros descem, ali, onde eliminaram a praia. Era ali que íamos buscar amêijoa para vender, para ajudar a minha mãe e o meu pai. Eu devia ter os meus 9 anos. A minha mãe fazia aquela bebida tradicional para vender, sábado e domingo e meu pai tocava viola para chamar cliente para beber. Arranjava uma garrafazinha para vender, um escudo, uma quinhenta, um garrafão de 5 litros, cinco escudos. A minha mãe fritava camarão, para os clientes comprar para lhe poder vender bebida. A bebida era o uputo[50]. Era uma bebida proibida.
Em Marracuene quase toda a população foi para o chibalo. Tudo mesmo, mulher e tudo. Mesmo crianças. Não é porque uma pessoa que me contou, eu vivia lá, eu vi mesmo, os meus avós viviam lá. Você não podia fazer nada, não podia falar, não podia dizer nada. Às vezes, de manhã, quando a gente fosse para a machamba da casa da minha avó para ir na praia buscar água, porque na (torneira da) Administração não saía água, saía pó, estávamos sujeitos a ser atacados por hipopótamo, crocodilo. Tínhamos que descer as escadas, tirar água para pôr na lata, depois carregar a lata, subir as escadas para ir para casa… muitas vezes muita gente era atacada… e morriam porque tinham que tirar água, não havia outro sítio, não havia poço, só havia aquela torneira, única, na Administração.
Naquele tempo já se tinha ultrapassado aquela fase dos portugueses prenderem e mandarem para São Tomé. Já tinha ultrapassado, quem viveu esse tipo de problema foi minha sogra, mãe do meu marido. Nessa altura, era proibido andar de noite, viam o que fazem, o que não fazem, se entornavam, até que carregavam essas pessoas para São Tomé. Mas minha mãe já não apanhou, só a mãe dela, a mãe da minha mãe. Mas depois já tinha acalmado um pouco, já não existia muito. O que existia, mais ou menos, naquele tempo, era que as minhas avós tinham machamba de arroz, em Marracuene, e, quando produzissem alguma coisa, eles tinham que dar algum saco na Administração. Como não tinha dinheiro para pagar imposto, então tinha que pagar por arroz que produzia - um, dois sacos - e dar na administração.
Naquele tempo, naquela zona de Marracuene, quem embelezou aquilo tudo, aquela vila, foram os presos. Os presos que eram presos por causa de impostos, porque ele bebeu, andou na cidade, caiu, cantar não podia. Então, outros vinham pedir que fizeram crime noutros distritos, como Xai-Xai e, não sei onde, então eram acorrentados. Ali, onde passa a via férrea, Maputo, Marracuene, Magude. Então ali, aquela linha férrea foram os presos que fizeram. Eram acorrentados. Eu vi. Então, quando nós vínhamos na machamba com nossos avós, olhava para aquela gente a levar chicotadas, umas vezes porque caiu, então eles cavavam. Eles é que construíram aquele hospital dos malucos, então, eu nem sei explicar.[51] Ali, naquela vila, você não podia, por exemplo, sair numa loja, beber um copo, você cantar. Você ia preso, ia levar palmatoada. Até a minha avó uma vez entrou, parece que bebeu, saiu da loja não sei se cantou, se fez o quê. Teve o meu pai que ir pagar para ela sair. Nesse tempo, mais ou menos em 1959, talvez.
Esses do chibalo é que fizeram aquela estrada, entre Maputo, Inhambane e a Beira. Eles é que deitavam areia, aqueles presos, e batiam para ficar liso, para depois poderem passar os carros. Aqueles é que eram chibalos. Ali no redor da administração tínhamos casas, palhotas, feito de bloco e por cima metiam aquele capim onde viviam os cipaios, os que trabalhavam para a Administração. Então, aquele cipaio, de manhã tirava aqueles presos, ia com eles para trabalhar, outros capinar. Quando você não pagava imposto, ia para ali. Mas por causa, às vezes, de imposto, de não pagar imposto, ou você não ter respeitado alguma pessoa, ou como aquele cipaio não ter batido continência, ou qualquer coisa, você era sujeito a ir no chibalo. Você ia cumprir quase 6 meses para não sei onde, sei lá. Esses presos só trabalhavam para a Administração, limpar jardins, cavar, fazer obras, não por troca de alguma coisa para receber não, mas porque errou, bateu em alguém, matou alguém, não pagou imposto, porque uma filha tinha lobolo.[52]
Naquele tempo tinha que se pagar o lobolo. Se eu saísse daquela casa, já não aguentar mais, o meu pai tinha que tornar devolver o valor de novo para lá. Se o meu pai não tivesse esse valor, seja um homem seja uma mulher, tinha de ir cumprir a pena lá, por não ter dinheiro para devolver, seja a mãe seja o pai, porque a sua filha saiu do lar, tinha que devolver dinheiro. Se não devolvesse ia no chibalo também, era a mesma coisa. Não tinha dinheiro para pagar imposto? Ia acabar, dois meses, quatro meses, seis meses. Até o meu pai já ficou preso. Por causa da mãe, porque não tinha dinheiro para pagar aquela coisa da machamba. Tinha uma coisa que tinha que se pagar, um imposto, como nós pagamos agora a contribuição predial, eles também naquela machamba. Eles tinham que pagar licença daquela machamba. Ou você paga para trabalhar na machamba, porque havia machamba do Estado, de banana, machamba de arroz. Não para você ganhar alguma coisa, qualquer pena você ia trabalhar. Até eu com a minha avó já fomos trabalhar. A cortar banana, aqueles cachos de banana. Mais ou menos, eu com a minha avó, com outra minha irmã mais velha, a cortar banana uma semana. Ficavam mais tempo os homens, para senhoras davam coisa mais leve. Mas na machamba, semear arroz e acabar e quando acabar ainda tinha que produzir dois, três sacos e deixar na Administração.
Representar a transformação colonial
O projeto de representação de Marracuene proposto pela African Film Productions e engendrado pelo administrador local juntamente com as forças vivas da circunscrição reproduzia, a uma pequena escala, a ocupação cultural e imagética deste território. Este projeto, como os filmes de propaganda realizados na década de 50, encomendas do Estado, foram pensados para oferecer uma perspetiva agradável, para usar uma expressão de Raymond Williams, quando descreveu como os pintores ingleses e setecentistas criaram uma pastoral rural do campo britânico, onde predominava a contemplação idílica, faltando a violência das relações de trabalho e as transformações radicais porque passava o mundo rural britânico (“a working country is hardly ever a landscape”) (Williams, 1973 p. 121). Nas cidades, onde se compravam quadros e reproduções dos mesmos, a representação do campo desejava-se idílica. Como noutros lugares coloniais, em Marracuene o filme de propaganda permitia a construção de uma perspetiva agradável, ajustando-se às estruturas de sentimento de quem governava, às necessidades diplomáticas e turísticas do Estado português e aos interesses das forças da modernização, aquelas que ocuparam e transformaram o terreno moçambicano com a tecnologia e o trabalho africano, que importava mostrar na sua versão higienizada. Esta narrativa oficial sobre o colonialismo português articulava-se com uma representação do terreno colonial como um espaço onde a organização humana correspondia a princípios de legalidade, como se as leis definissem a ação do Estado e a própria realidade. Procuraram estas representações conformar-se tendencialmente com o olhar curioso do turista, na sua procura por uma paisagem exótica, selvagem, mas controlada e cosmopolita. Esta representação da modernidade colonial, que sucede à representação deste lugar enquanto espaço da heroicidade militar portuguesa depois das vitórias de final de Oitocentos, ilude o processo de transformação de Marracuene, resultado de uma ocupação para a qual a organização do trabalho africano e o sistema fiscal foram as dimensões fundamentais.
Um outro terreno colonial ganha forma pela leitura de um relatório sobre o trabalho indígena em Marracuene produzido em 1954. Desta perspetiva oficial, a ocupação portuguesa parecia pouco moderna, e mesmo nos seus eixos de modernidade se recorria a métodos de recrutamento laboral condenados por organizações internacionais. Mas se o trabalho e os trabalhadores, quase todos forçados, são devolvidos ao desenho de Marracuene pelas descrições presentes no relatório, se o subdesenvolvimento económico modela uma paisagem preenchida por explorações precárias e agricultores miseráveis, a descrição do espaço é ainda assim filtrada pelo patriotismo burocrático, expresso pela necessidade do inspetor demonstrar que, apesar das dificuldades, Portugal continuava a perseguir o seu esforço colonizador e, no cumprimento do direito internacional, a civilizar o indígena, recorrentemente um objeto do olhar dos outros. Neste sentido, o arquivo colonial tem capacidades limitadas para recuperar esta experiência.
A paisagem descrita pela indígena Fátima expõe, a partir de outra escala, um processo de transformação da sociedade local. As dinâmicas produzidas pela imposição, desde o final do século XIX, de um sistema de recrutamento laboral compulsivo, servido por um sistema penal arbitrário, por uma tentacular máquina fiscal e por um controlo severo das mobilidades das populações, resultou na transformação radical das rotinas quotidianas das populações. Esta experiência não é hoje recuperável pelo confronto com memórias e descrições produzidas por um discurso pessoal. Mas este discurso enuncia a produção de um outro sistema de classificação sobre um território em determinada época, cujas bases constituintes se encontram na vida quotidiana de grande parte da população desse território.
Esta mudança social tem uma expressão individual difícil de captar. Ela manifestou-se por uma reação dinâmica, pela fuga, pela tentativa de reconstrução das formas de vida fora do território moçambicano ou pelo reassentamento nos maiores centros urbanos. Ela revelou-se também pela incorporação de processos de desagregação violenta das comunidades tradicionais, resultado do rompimento com laços de pertença, quadros sociais, culturais e familiares, e pela transformação de uma experiência de tempo e de espaço, e da relação simbólica e material existente com os lugares, com as aldeias, com os caminhos, com a natureza em geral e com os seus ritmos. A incapacidade de antecipar o futuro próximo manifestava-se em sentimentos como a insegurança, a incerteza e o medo. Base de uma experiência partilhada por muitos, estes sentimentos constroem diversamente a paisagem local, criando um mapa sensível de Marracuene assente noutras estruturas de sentimento, distintas das expressas pela propaganda. Não por acaso, nesta gramática espacial de Marracuene construída pela experiência de Fátima, as paisagens potencialmente turísticas do guião do filme de propaganda, como as do rio Incomáti e das grandes plantações de bananas, são reinterpretadas por itinerários laborais e quotidianos, oferecendo-lhes novos significados. A representação contemplativa, realizada para o usufruto de um espetador privilegiado, dá lugar a uma representação que, mediada pela memória, invoca uma experiência prática. E é assim que um rio paisagístico, simultaneamente fonte única de água, se transforma num lugar perigoso e inúmeras vezes fatal, que a paisagem luxuriante dos grandes bananais é sentida como um cárcere de trabalhadores forçados e que a moderna e eficaz administração portuguesa se converte num dispositivo de controlo e de arbitrariedade.
Esta paisagem, que as populações locais perderam a capacidade de compreender, de onde desejavam fugir rumo aos destinos de emigração ou aos centros urbanos, desenhava-se ativamente no final da década de 50. É este mapa sensível do mundo rural moçambicano, quase invisível, escondido por representações de modernidade, que importa confrontar com as outras visões de Marracuene.
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Recebido a 27-06-2018.
Aceite para publicação a 13-03-2019.
[1] Este texto faz parte do projeto PTDC/CPC-CMP/2661/2014.
[2] As obras de Edward Said (1978 e 1994) tornaram-se clássicos da análise crítica das representações criadas pelo centros imperiais europeus em relação às suas periferias coloniais. O volume editado por John Mackenzie (1986) procurou prosseguir uma linha de investigação sobre o tema, focada numa dispersão de formas de cultura popular moderna. Mais recentemente, investindo em análises mais focados em estudos de caso, alguns deles desde o terreno colonial, o estudo destes processos tem-se diversificado. No que respeita especificamente ao cinema, no contexto internacional, importa realçar os estudos já clássicos de Robert Stam e Louise Spence (1983) e Diawara (1992). Mais recentemente, ver Cowans (2015).
[3] História incorporada no sentido que lhe é conferido por Bourdieu (1989a).
[4] Em Portugal, os estudos sobre cinema colonial e propaganda são recentes. Ver Pimentel (2002), Convents (2011) Piçarra (2015) e Matos (2016).
[5] Sobre o conceito de campo ver Bourdieu (1989b).
[6] José Mendes da Fonseca foi ainda diretor da revista mensal ilustrada Império, publicada em Lourenço Marques entre 1952 e 1956.
[7] Carta do diretor da Casa da Metrópole ao chefe de gabinete do governador-geral, remetida a 27-07-1949. Arquivo Histórico de Moçambique (AHM). Fundo do Governo do Distrito de Lourenço Marques. Administração. Caixa 342.
[8] Idem.
[9] Em 1944, o agente geral das colónias, Júlio Cayolla (1944, p. 22) , num artigo em que procurava definir os grandes eixos de atuação do órgão de propaganda que liderava já havia reforçado a importância do cinema, mais especificamente pela intenção de produzir “filmes de fundo evocando grandes figuras da nossa história colonial, quer com pequenos documentários em que se veja o atual desenvolvimento das colónias”.
[10] O que só cessou quando a Twentieth Century Fox comprou as suas companhias em 1956 (Kindem, 2000, p. 141).
[11] Sobre a noção de South-Africanism ver S. Dubow (1997) citado no artigo por Sandon.
[12] Carta do administrador do concelho de Lourenço Marques ao governador-geral de Moçambique a 01-06-1920, AHM. Fundo da Administração Civil. Caixa 1402.
[13] Carta do administrador do concelho de Lourenço Marques ao governador-geral de Moçambique a 01-06-1920, AHM. Fundo da Administração Civil. Caixa 1402.
[14] Elo Permanente. Arquivo Nacional de Imagem em Movimento (ANIM). Toda a equipa era sul-africana, com a exceção do narrador da versão portuguesa. Fotografia, Albert Carrick, redator, Emil Nofal, comentário Herbert Kretzner, narrador, R. de Oliveira.
[15] Elo Permanente, Serviço de Informações do Governo da África do Sul, 1947, min, 1-2.
[16] Como é visível pelo visionamento das Actualidades de Moçambique, disponíveis no ANIM.
[17] Carta do diretor da Casa da Metrópole ao chefe de gabinete do governador-geral, remetida a de 27-07-1949. Arquivo Histórico de Moçambique (AHM). Fundo do governo do distrito de Lourenço Marques. Administração. Caixa 342.
[18] Carta do administrador da circunscrição de Maputo ao governador do distrito de Lourenço Marques Circunscrição de Maputo, remetida a 24-10-1949, AHM, Fundo do governo do distrito de Lourenço Marques. Administração. Caixa 342.
[19] Ibidem.
[20] Carta do administrador da circunscrição de Marracuene ao governador do distrito de Lourenço Marques, remetida a 24-08-1949, AHM, Fundo do governo do distrito de Lourenço Marques. Administração. Caixa 342.
[21] O autor citará como inspiração para a sua obra o livro Campagne du Dahomey - 1892-1894 de Henri Lavertujon, o que revelava como a campanha militar se destacava como meio privilegiado de uma história nacionalista.
[22] Sobre o filme Chaimite v. Seabra (2000). Nomeado pelo Secretariado Nacional de Informação, Júlio Cayolla supervisionou a produção de Chaimite (1953), como mais tarde das três séries do jornal de Actualidades Imagens de Portugal. Ver Piçarra (2015, pp. 69-70).
[23] Chaimite, realização de Jorge Brum do Canto, 1953, minuto 49.
[24] Mudaria de nome em 1964, passando a designar-se então Maragra - Marracuene Agrícola Açucareira.
[25] Carta do administrador da circunscrição de Marracuene ao governador do distrito de Lourenço Marques, remetida a 24-08-1949, AHM, Fundo do governo do distrito de Lourenço Marques. Administração. Caixa 342.
[26] Carlos Marques irá fazer outro filme sobre Lourenço Marques em 1952 “Aspectos de uma cidade”, mas não é evidente a entidade financiadora.
[27] Visível, por exemplo, em muitos episódios das Actualidades de Moçambique, mas também em filmes que tratavam da transformação de produtos agrícolas, como Agricultura de Moçambique ou Chá, e depois ainda nos filmes Lourenço Marques, o de Solms (1950), o de Armando Miranda (1951) e o de Carlos Marques e Solms (1952).
[28] Solms já produzira e realizara filmes em Portugal, como Jardins Particulares e Parques Municipais, ambos de 1949, e produzira no mesmo ano a película de Carlos Marques, Vinhos de Portugal, continuando a realizar novos filmes sobre Portugal na década de 50. Já em 1948 tinha co-realizado, com António Lopes Ribeiro e Carlos Filipe Ribeiro, o filme de propaganda Quinze Anos de Obras Públicas.
[29] Solms produziria e realizaria vários filmes em Angola: Luanda. Cidade Feiticeira (1950); Benfica em Angola (1950). Ação Missionária em Angola (1951, de Lemos Pereira e João Silva), Sisal em Angola (1951), Angola em Marcha (1952), Pecuária em Angola (1953).
[30] Carlos Marques, com experiência em filmes de propaganda turística na metrópole, fez vários filmes em Moçambique.
[31] Ofício interno da Direcção dos Serviços da Administração Civil a 25-09-1950. AHM. Fundo da Administração Civil, Secção A, caixa 1420.
[32] Os filmes seriam semelhantes ao filme As Riquezas de Moçambique, pago pela Junta de Exportação.
[33] Ibidem.
[34] Caetano Montez escreveu diversos livros sobre a história de Moçambique e nomeadamente sobre a história da capital, Lourenço Marques, caso do Descobrimento e Fundação de Lourenço Marques, Lourenço Marques (Minerva Central, 1948).
[35] Informação da Direcção dos Serviços da Administração Civil de 28-01-1952, sobre o contrato entre Filipe de Solms e a Direcção de Fazenda do Niassa AHM. Fundo da Administração Civil, Secção A, a Caixa 1420. Neste caso, o custo do filme, de 150 mil escudos, era comparticipado em 130 mil escudos por entidades comerciais e industriais e corpos administrativos do Niassa.
[36] Os já citados filmes sobre Lourenço Marques, a que se acrescenta Férias em Lourenço Marques de Miguel Spiguel (1960) ou o filme sobre a Beira, utilizavam imagens aéreas para retratar a modernidade urbana colonial.
[37] Esta mudança é visível, por exemplo, na evolução da estrutura dos jornais de Actualidades em Angola e Moçambique patrocinados pelos Estado português, ou nos conteúdos dos filmes encomendados ao produtor e realizador francês Pascal Angot. ANIM.
[38] Relatório da Agência da Curadoria da Circunscrição de Marracuene de 1953, publicado a 19-10-1954. AHM. Fundo do governo do distrito de Lourenço Marques. Administração. Caixa 391. Este mesmo relatório está presente noutro fundo do AHM, o Fundo da Direção dos Serviços dos Negócios Indígenas, Curadoria dos Negócios Indígenas, Caixa 1123.
[39] Revogado depois da aprovação do Código do Trabalho em 1962 (DL 44309 de 27 de abril).
[40] Relatório da Agência da Curadoria da Circunscrição de Marracuene de 1953, publicado a 19-10-1954. AHM. Fundo do governo do distrito de Lourenço Marques. Administração. Caixa 391. Este mesmo relatório está presente noutro fundo do AHM, o Fundo da Direção dos Serviços dos Negócios Indígenas, Curadoria dos Negócios Indígenas, Caixa 1123.
[41] AHM. Fundo da Direção dos Serviços dos Negócios Indígenas, Curadoria dos Negócios Indígenas, Caixa 1123.
[42] Podemos apenas especular se esta diferença se relaciona de alguma forma com a aprovação, ainda antes da publicação do relatório, do novo código de trabalho indígena.
[43] Ibidem.
[44] Dos quais os mais conhecidos produzidos por Henrique Galvão em 1947. Ver Monteiro (2017, pp. 102-104).
[45] Relatório da Agência da Curadoria da Circunscrição de Marracuene, 1953. AHM - Caixa 391. Administração. Trabalho e Desemprego de Europeus e Assimilados. Horário de trabalho, 1957-1958. Assina Fausto Leite Marques, 19-10-54.
[46] Relatório da Agência da Curadoria da Circunscrição de Marracuene de 1953, publicado a 19-10-1954. AHM. Fundo do Governo do Distrito de Lourenço Marques. Administração. Caixa 391.
[47] Como cedo provou Marvin Harris (1959).
[48] Juristas com Joaquim Silva Cunha (1953), futuro ministro do Ultramar (1961-1973), procuraram precisar os termos da aplicação deste código, usando uma retórica benévola (Cunha, 1953, p. ex, pp. 254-255 e 257).
[49] Sobre a importância testemunhos orais na constituição de uma história de Moçambique ver Isaacman e Isaacman (2013). Sobre os usos dos testemunhos orais na narração da história de Moçambique é fundamental destacar também o trabalho da Oficina de História do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane, fundada em Maputo em 1980. As investigações produzidas no âmbito deste grupo foram publicada na revista Não Vamos Esquecer.
[50] Uputo é uma bebida alcoólica feita à base de milho fermentado.
[51] Refere-se ao Manicómio de Vila Luísa.
[52] Segundo o costume, o lobolo é a compensação matrimonial que a família do noivo paga à família da noiva.