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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.235 Lisboa jun. 2020

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2020235.07 

ARTIGOS

Territórios da espera e tempos da política no contexto das políticas de habitação. Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil

Waiting territories and times of politics in the context of housing policy. Campos dos Goytacazes/RJ, Brazil.

Teresa de Jesus Peixoto Faria1
https://orcid.org/0000-0002-8935-2373

Quésia de Souza Francisco2
https://orcid.org/0000-0002-2783-8626

1 Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro » Avenida Alberto Lamego, 2000 Parque Califórnia - CEP 28013-602, Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil. teresa.uenf@gmail.com

2 Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro » Avenida Alberto Lamego, 2000 Parque Califórnia - CEP 28013-602, Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil. quesiaf@yahoo.com.br


 

RESUMO

O trabalho discute as noções de “territórios da espera” e de “tempos da política” a partir do cotidiano de ex-moradores da favela Inferno Verde, em Campos dos Goytacazes, município situado ao norte do estado do Rio de Janeiro, Brasil. Em 2012, todos os seus moradores foram removidos e a favela Inferno Verde inteiramente demolida. Enquanto aguardavam a construção das novas moradias do programa municipal de habitação social, esses moradores foram inseridos no programa “aluguel social”. Alguns arrendaram casas próximas umas às outras, construindo o que designamos “território da espera”. Considerando-se que a política possui temporalidades vivenciadas cotidianamente - a “época de política”, o período entre duas eleições, os tempos dos mandatos - procuramos entender como as concepções e as práticas decorridas dos “tempos da política” se expressam no “território da espera”.

Palavras-chave: territórios da espera; tempos da política; política social; política habitacional.


 

ABSTRACT

This work discusses the notions of “waiting territories” and “times of politics” from the daily experiences of ex-residents of the favela Inferno Verde (Green Hell slum), in Campos dos Goytacazes, a municipality located in the north of the state of Rio de Janeiro, Brazil. In 2012 all of the residents were removed and the favela Inferno Verde was completely demolished. While awaiting the construction of housing carried out by the municipal social housing program, these residents were placed in the “aluguel social” (social rent)” program Some rented houses near each other, thus creating what we refer to as “waiting territories”. Considering that the policy possesses temporalities experienced daily - the “times of politics”, i.e. the period between two elections - we seek to understand how conceptions and practices stemming from the “times of politics” are expressed in the “waiting territory.”

Keywords: waiting territories, times of politics, social policies, housing policy.


 

Introdução

Neste artigo articulamos as noções de “territórios da espera”, formulada por Vidal, Musset e Vidal, (2011) e de “tempos da política”, utilizada por Heredia e Palmeira (2009). Procuramos explicitar como tais noções nos ajudaram a compreender modos de interação entre a administração municipal de Campos dos Goytacazes (prefeitos e funcionários), políticos locais (vereadores) e a população removida da extinta favela Inferno Verde[1], que se encontrava à espera das moradias prometidas pela prefeita do município de Campos dos Goytacazes, Rosinha Garotinho.[2] Essa articulação ajudou-nos, ainda, a identificar e conhecer as perceções que os sujeitos sociais envolvidos constroem acerca da “política”.

As nossas considerações sobre as ações dos sujeitos sociais e sobre os seus modos de compreender e de vivenciar os fenómenos políticos como ocorrem, “na prática”, foram elaboradas para além daquelas categorias analíticas ou normativas de explicação da realidade social que, partindo de noções pré-concebidas, não levam em consideração as perceções e práticas quotidianas dos sujeitos implicados no estudo. Do ponto de vista antropológico, o qual orienta este trabalho, as categorias analíticas criam-se a partir da interlocução que temos com o “ponto de vista nativo[3]”, portanto, não são categorias projetadas de cima​.

Assim, para que tivéssemos acesso ao ponto de vista dos sujeitos sociais que vivenciam diretamente as experiências com a política local, utilizámos técnicas de pesquisa provenientes dos métodos qualitativos das Ciências Sociais, mais especificamente da pesquisa etnográfica, mormente utilizada pela antropologia.

Como estratégia para a coleta de dados, utilizámos a “observação participante” da “vida quotidiana” das populações envolvidas. Outra técnica da qual também lançámos mão, foi a realização de entrevistas abertas, as quais consideramos complementares à observação participante.

Deste modo, as análises apresentadas neste artigo foram desenvolvidas tendo por base o material empírico produzido a partir da leitura sistematizada das anotações das observações do quotidiano da população estudada e das transcrições das entrevistas gravadas durante o desenvolvimento das atividades do projeto de extensão “Políticas públicas e espera: ações para garantia e preservação de direitos”, no âmbito do Leea/UENF.[4] A pesquisa realizada por Falcão entre 2013 e 2015, durante o período de mestrado no programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais da UENF, foi fundamental para a identificação da área de estudos como um território da espera (Falcão, 2015).[5]

 

 

 

As pesquisas de campo iniciadas por Falcão foram retomadas em 2016, e intensificadas a partir de 2017, com as ações do projeto de extensão e com o início da pesquisa de pós-doutoramento de uma das autoras. A área definida para o desenvolvimento das atividades de pesquisa e extensão situa-se no entorno da extinta favela Inferno Verde, onde a maioria dos moradores removidos se instalou enquanto esperavam pela construção das novas moradias. Deste modo, deram continuidade às relações de vizinhança, originando o que designamos “território da espera”.

Consideramos importante situarmos o município de Campos dos Goytacazes no cenário económico e político brasileiro. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010), ele possui, aproximadamente, meio milhão de habitantes. Historicamente, a sua principal atividade económica foi a cultura canavieira (séculos XVIII-XX). A partir dos anos 1990, tornou-se o principal produtor de petróleo da Bacia de Campos, passando a receber e a depender das rendas petrolíferas, royalties e participações especiais. Desde 2007, assistiu-se à implementação de Grandes Projetos de Investimento (GPI) na região: plantio de eucaliptos da Aracruz Celulose; produção de etanol; Complexo Barra do Furado e o Complexo Logístico e Industrial do Porto do Açu (Cruz, 2009), provocando novos impactos económicos, sociais, territoriais e ambientais e ampliando as desigualdades socioespaciais, no âmbito regional e local.

No que se refere à área urbana de Campos dos Goytacazes, a especulação imobiliária, favorecida pelas intervenções urbanas do poder público, é notória. O processo de verticalização das áreas centrais e de construção de condomínios horizontais fechados nas áreas periféricas e periurbanas acentuam-se (Faria, Zacch, Mothé, 2013; Zacch, Caetano, Faria, 2013). Ao mesmo tempo, o processo de favelização intensifica-se, tornando-se alvo de programas sociais e urbanos da prefeitura municipal.

O seu destacado papel na economia do país, desde o período colonial, favoreceu a sua inserção no cenário político, em particular no século XIX. Dos senhores de engenho e grandes proprietários de terra - a nobreza rural - que formavam a elite agrária, aos industriais, grandes comerciantes e profissionais liberais, que constituíam a elite urbana, investiam em projetos para ascenderem ao poder e participarem na vida política e na administração pública local, regional e nacional. Inclusive, tentativas frustradas, no século XIX e XX, de tornar Campos em capital da Província, e mais tarde do estado do Rio de Janeiro (Alves, 2007; 2011). Neste processo, o campista Nilo Pessanha chega à presidência do país, em 1909. Anthony Garotinho, que ascendeu à vida política com um discurso de oposição à oligarquia do município, foi eleito, em 1989, prefeito do município de Campos dos Goytacazes, em 1999, governador do Estado do Rio e, em 2002, concorre à presidência do Brasil.

O interesse em estudar Campos dos Goytacazes deve-se também ao fato da UENF ter sido instalada no município com a missão definida pelo seu idealizador Darcy Ribeiro, de integrar-se às cidades, cultivar e ensinar a ciência e as tecnologias ao serviço da modernização, do progresso económico e social da região e do Brasil. Hoje, mesmo dedicando-se a diversas áreas do conhecimento e desenvolvendo estudos e pesquisas em temas de interesse nacionais e internacionais, a UENF preserva seu foco regional.

De modo a fazer dialogar as noções de “territórios da espera” e “tempos da política”, estruturámos o artigo em três partes.

Na primeira parte, introduzimos o tempo entre a promessa de implantação de um projeto social e a sua realização. Na segunda parte, apresentamos como os moradores da favela Inferno Verde vivenciaram o processo de remoção e a longa espera pela entrega das suas novas casas. São foco desta secção as seguintes discussões: como se originou o território da espera, porque o chamamos assim, quais os modos de vida dos moradores deste território, dentre outras. Na terceira parte, discutimos de que maneiras os tempos da política influenciaram a construção das obras públicas e o quotidiano desta população que vivenciava uma relação de dependência com o aluguel social.

Embora o artigo tenha sido organizado em três partes para facilitar a explicação das noções aqui abordadas - “territórios da espera” e “tempos da política” - ressaltamos que ambas as noções são utilizadas em conjunto para explicar fenómenos vivenciados pelos ex-moradores da favela e as relações destes com a política e os políticos locais. Os “tempos da política”, isto é, tempos que possuem as suas próprias lógicas, fazem com que a população tenha que lidar com uma espera que não possui necessariamente relação com o tempo cronológico, ou o “tempo da construção civil”, por assim dizer.

Enquanto toma curso esta temporalidade, dotada de lógicas próprias, as pessoas constroem um território da espera. Ali, elas não se limitam a aguardar, mas desenvolvem novas referências, novos arranjos de vizinhança e de amizade, e também protestam quanto à demora, enquanto se organizam de modo a pressionar o governo municipal para que conclua as obras e entregue os imóveis.

Feitas essas observações, apresentamos as nossas considerações sobre as interferências conjuntas do que entendemos por “território da espera” e “tempos da política” nas vidas dos ex-moradores da favela Inferno Verde, e sobre as estratégias que estes sujeitos sociais, que passaram pelo processo de remoção e aguardavam a entrega dos imóveis, utilizavam em seu cotidiano para sobreviverem nesta longa espera.

“O tempo da política”: da promessa dos projetos sociais à sua execução

A favela Inferno Verde era composta por moradias autoconstruídas: havia casas com dois ou três pavimentos; casas térreas e também “barracos”. Como descrito por uma das moradoras da antiga favela, os “barracos” consistiam em um “quadrado com uma única porta de entrada e saída”. Os materiais utilizados eram diversificados: alvenaria, tábuas de madeira para construção, chapas de metal, folhas de compensado, entre outros materiais improvisados. Não havia rede de esgoto nem água canalizada nessas casas. Os moradores utilizavam fossas sanitárias para o esgoto e o abastecimento de água potável de toda a comunidade ocorria por meio de uma única torneira que havia sido instalada pela companhia responsável pelo abastecimento de água na cidade. Salvo algumas exceções, as habitações dessa favela eram consideradas pelos moradores do entorno e pelo governo local como “moradias insalubres”.

Em 2012, a Inferno Verde recebeu a visita da então prefeita do Município de Campos dos Goytacazes, Rosinha Garotinho. Era ano das eleições municipais e Rosinha Garotinho, visando um segundo mandato, candidatava-se à reeleição. Acompanhada pelo vice-presidente da associação de moradores e pela Secretária de Família e Assistência Social[6], a prefeita apresentou um projeto de remoção das famílias e demolição das casas da favela Inferno Verde e posterior construção de novas moradias, no mesmo local. Além da construção das moradias, o principal objetivo da prefeitura municipal era promover obras de saneamento básico no bairro.

O projeto de remoção da favela articulava-se com três programas da prefeitura municipal: o programa Bairro Legal; o programa SOS Habitação-Aluguel Social e o programa Morar Feliz.[7] O programa Bairro Legal consistia na realização de obras de saneamento básico, infraestrutura e melhoramentos na pavimentação de ruas, calçadas e praças. O programa S. O. S. Habitação, mais conhecido como “aluguel social”, política de assistência social que tem por objetivo custear o aluguel daquelas pessoas que não possuem casas e que se enquadrem nos perfis de “famílias vulneráveis” ou “famílias em áreas de risco”. Uma quantia em dinheiro, de valor pré-fixado do aluguel social, é depositada diretamente na conta dos proprietários dos imóveis escolhidos pelos próprios usuários. O programa Morar Feliz, por sua vez, visava construir e doar gratuitamente casas populares às pessoas que moravam em áreas classificadas pelo órgão municipal da Defesa Civil e pela Secretaria Municipal de Família e Assistência Social como “insalubres” ou “de risco”.

 

 

 

 

 

Os moradores da favela estavam divididos entre aqueles que queriam sair e os que queriam ficar. Apesar dos conflitos e da resistência de muitas famílias em não quererem ser removidos e que suas casas fossem demolidas, todos tiveram que sair. A prefeitura municipal pôs mais uma vez em prática a política remocionista que acompanha o programa Morar Feliz. O resultado foi a demolição das casas e dos barracos, culminando na total extinção da favela.

No mesmo local, a prefeitura iniciou a construção de um conjunto habitacional constituído de três prédios (blocos) de 4 pavimentos, cujos 78 apartamentos seriam entregues aos moradores da extinta favela Inferno Verde. Passados cerca de cinco anos, as obras do conjunto habitacional ainda não haviam sido concluídas. Faltavam o prédio que abrigaria o comércio e seis unidades residenciais para que todas as famílias que possuíam moradias na antiga favela fossem contempladas. Em janeiro de 2017, assume o cargo o novo prefeito eleito em 2016, Rafael Diniz.[8] Porém, os ex-moradores da favela Inferno Verde ainda continuavam nas casas alugadas com o auxílio do programa de assistência social “aluguel social”.

A longa espera pela conclusão da obra do conjunto habitacional e entrega dos apartamentos pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Humano e Social (SMDHS) da Prefeitura Municipal de Campos dos Goytacazes, relaciona-se com o modo como os políticos profissionais, os agentes do Estado e a população concebem as temporalidades da política. Assim, a construção de uma vivência no território da espera e a maneira como os tempos da política influenciam nessa vivência e na execução de projetos e políticas sociais, neste caso no ritmo de andamento das obras públicas, são objetos de estudo neste artigo.

A espera no “território da espera”

A espera é normalmente vista como um interstício de tempo morto, um tempo em suspensão, onde nada acontece e nem é passível de acontecer. Assim, não é considerada na elaboração ou implantação de políticas sociais.

Em 2013, iniciamos o estudo do caso da favela Inferno Verde baseado na noção de territórios da espera construída por Vidal et al (2011)[9], que consideram que a espera e o tempo de espera, originados dos movimentos de mobilidade e deslocamentos de indivíduos ou grupos sociais, por razões técnicas, administrativas ou políticas, encontram quase sempre uma expressão espacial que raramente é considerada pelas ciências sociais, a qual designaram por “territórios da espera”.

A pesquisa ANR-TERRIAT resultou no livro Les territoires de l’attente. Migrations et mobilités dans les Amériques (XIX e XXe siècle), onde Vidal e Musset esclarecem que “os territórios da espera designam especificamente os espaços destinados voluntariamente ou servindo involuntariamente para colocar em espera populações deslocadas ou em deslocamento” (Vidal e Musset, 2015, p. 11).

Desse modo, Falcão (2015), Faria (2015) e Falcão; Faria (2016) consideram que a espera dos moradores da favela Inferno Verde pelo conjunto habitacional prometido pela prefeita Rosinha Garotinho, em 2011, conformou um território da espera segundo definido por Gomes e Musset (2015, p. 62). A expressão “territórios da espera” descreve um espaço (ou um lugar qualquer) dominado inteiramente pelas questões decorrentes das ações relacionadas com a espera.[10]

Foi na ocasião do evento de lançamento do programa Bairro Legal da Lapa, que a então prefeita do município de Campos dos Goytacazes, Rosinha Garotinho, “anunciou a construção de um conjunto habitacional para a comunidade carente na Lapa, ressaltando que seria colocada a infraestrutura também nas vilas para dar mais conforto aos moradores da comunidade Inferninho Verde” e prometeu que “depois do conjunto habitacional pronto, todos voltam ao mesmo bairro, mas para viver com suas famílias em moradias dignas, com mais qualidade de vida” (Jornal Urural online do dia 28-05-2011).[11]

Efetivamente, as obras do Bairro Legal foram concluídas e entregues à população no dia 07-06-2013 (pavimentação de ruas, tratamento de água e esgoto, construção de calçadas, e sinalização de trânsito). Porém, as obras do conjunto habitacional encontravam-se na sua fase inicial.

Concretamente, o prazo para a entrega das moradias não fora ainda fixado nem assegurado que os moradores seriam realocados no conjunto habitacional que estava a ser construído no lugar da favela. Nesse sentido, o tempo de duração desta espera e o local de destino são desconhecidos pela população, conforme depoimento de uma ex-moradora.

Acho que não necessariamente eles vão nos colocar no mesmo local de onde a gente saiu. Não temos nenhuma garantia de que voltaremos. Eles podem nos colocar onde quiserem, em qualquer conjunto onde tiver casa sobrando. [Daniela, 24 anos. Ex-moradora da favela Inferno Verde, 2014]

Para a dona de casa Selma, de 73 anos, depois de terem saído da favela os vizinhos foram-se afastando, apesar de muitos estarem a morar nas áreas adjacentes. Ela gostava de encontrar os amigos para conversar e jogar víspora aos domingos em frente à sua casa ou no bar de Seu Giovani (que ficava na favela, e também fora demolido), mas teve a sua rotina modificada. Embora tenha perdido o contacto quase diário com muitos ex-moradores da favela, ainda mantém ligação com alguns ex-vizinhos; enquanto uns apenas passam em frente à sua casa, outros param para conversar. Mas, para ela, a relação com a vizinhança mudou. A sua filha, que morava no andar de cima da sua casa, mudou-se para um local mais distante. Ela, que tanto a ajudava com os afazeres da casa, agora tem contribuído menos, devido ao distanciamento. Selma espera que com a reintegração da comunidade, após a entrega do conjunto habitacional, essa situação se modifique, e todos possam voltar a ter a relação de antes, todos morando próximos, podendo contar uns com os outros.

A casa que Selma alugou, com o benefício do Aluguel Social, situava-se no cruzamento da Avenida Adão Pereira Nunes com a Rua Miguel Herédia, em posição diagonal ao terreno onde ficava a antiga favela Inferno Verde, onde o conjunto habitacional estava a ser construído. Segundo o seu relato, em 2015 foi “para ficar vigiando a obra e garantir que vai receber a casa” que optou por alugar um imóvel ali. Ela acrescenta: “daqui eu posso ouvir o barulho do bate-estaca, assim eu sei que a obra está andando”.

A posição estratégica da casa de Dona Selma aliada à sua atitude ativa, atraía a população para aquele local; ali se encontravam para verem como estava o andamento da construção do conjunto, para conversarem e discutirem sobre os problemas pelos quais estavam passando nessa longa espera.

Dona Selma, que ficou viúva em 2016, não perdeu a esperança. A calçada da sua casa permanecera, como um lugar de encontro, de ativismo e de interação entre os moradores, que juntos dividem angústias, incertezas e alimentam a esperança de logo se poderem instalar na nova moradia, confirmando esse lugar como um verdadeiro território da espera.

Em meados de 2017, adoentada, Dona Selma foi morar na casa de sua filha, na vizinhança. Entre sentimentos de desânimo e esperança, esta senhora que completava 75 anos, continuava à espera do momento de se mudar para o apartamento ao qual teria direito no novo conjunto habitacional.

Apesar da maior parte da obra ter sido concluída, constatámos em entrevista realizada em agosto de 2017 à secretária de Desenvolvimento Humano e Social (SMDHS), Sana Gimenes, que o prédio que abrigaria o comércio e mais seis apartamentos não seria mais construído. Em reunião com os moradores realizada em julho de 2017, a gestão do executivo municipal (2017-2019) já havia feito, por meio de sorteio, a distribuição dos apartamentos, mas as chaves não lhes foram entregues, pois ainda faltava a instalação definitiva da energia elétrica e dos serviços de água e esgoto.

Em reunião realizada em 29 de setembro de 2017, no Clube Social Flamenguinho da Lapa[12], com a secretária Sana Gimenes e com a equipa técnica da SMDHS, com os ex-moradores da Inferno Verde, para se discutir soluções para o problema das instalações elétrica e hidráulica e a criação e forma de gestão do sistema de condomínio, foi dada a informação de que dificilmente o conjunto habitacional, então nomeado de João Batista (nome de antigo comerciante do bairro), seria entregue antes do mês novembro desse ano.

No dia 4 de outubro, em nova reunião, no Clube Social Flamenguinho, com representantes da SMDHS, os moradores organizaram-se e elegeram o síndico geral e os três subsíndicos (um para cada prédio), condição necessária para criar o condomínio, dar início à documentação legal para, então, se realizar as instalações pendentes e a entrega do conjunto habitacional. No entanto, a prefeitura municipal ainda não havia definido uma data para a entrega das chaves aos moradores. Importa destacar que os síndicos eleitos integravam a associação de moradores da favela Inferno Verde, e que constituíam, junto com outros moradores, um grupo ativo, na busca de soluções, ora em acordo, ora em conflito, para que o conjunto habitacional fosse concluído e entregue o mais rápido possível, e para resolver problemas, como por exemplo, o atraso da prefeitura no pagamento do Aluguel Social.

Em conversas com diversos moradores, estes demonstravam invariavelmente o sentimento de descrença de que se mudariam para os apartamentos ainda no ano de 2017. Deste modo, sofrem com a longa espera, vivenciando um misto de sentimentos entre incertezas, desânimo, ânimo, revolta, resignação, no território da espera.

 

 

Os “tempos da política” e a longa espera

A análise acerca dos “tempos da política” empreendida neste artigo parte da ideia defendida por Beatriz Heredia e Moacir Palmeira (2009) de que há uma temporalidade na política. Esta noção foi concebida a partir de observações do “ponto de vista do nativo”. Segundo os autores, os interlocutores de suas pesquisas, quando falam sobre política, costumam diferenciar o tempo entre duas categorias principais: a “época de política” e o período fora da época de política.

A época de política, também chamada de época de eleição, é vivenciada no período eleitoral e caracterizada por uma série de atividades que se manifestam somente, ou com mais intensidade, durante as eleições representativas: propagandas políticas nos canais de radio e TV no horário gratuito de propaganda eleitoral; distribuição de panfletos, também chamados de “santinhos” em alguns lugares; realização de comícios; “visitas” dos candidatos aos bairros; “reuniões” dos candidatos com moradores dos bairros; exposição de cartazes e faixas nas casas, nos canteiros e nas calçadas da cidade, entre outras inúmeras atividades que caracterizam o período eleitoral.

Por sua vez, terminado o período das eleições, há o decorrer do mandato do político eleito. O período “entre duas eleições”, o qual Heredia (2002) tratou num dos seus trabalhos, seria um período marcado por atividades diferenciadas das que ocorrem em época de eleição. Deixa de haver o horário eleitoral gratuito, o contacto dos políticos com a população diminui de intensidade, as “visitas” aos bairros, as “reuniões” cessam ou acontecem mais raramente.

A população que vivencia a política no quotidiano percebe o tempo da política como equivalente ao tempo das eleições. Após as eleições, ou seja, durante o mandato, não seria mais considerado “um tempo da política”.

É no período das eleições municipais que, segundo os moradores, os políticos “aparecem mais”, isto é, são vistos com mais frequência caminhando pelas ruas dos seus bairros. Nas eleições para os membros do legislativo, “quando os vereadores aparecem”, e na época das eleições do executivo, “quando o prefeito aparece”.

Quando perguntamos se algum político ou funcionário da prefeitura havia ido explicar sobre o processo de remoção dos moradores da favela Inferno Verde, ocorrido em 2012, Ivana respondeu:

Na época o que foi, que eu me lembro, primeiro começou em época de eleição. A primeira vez que Rosinha foi candidata. Candidato nenhum nunca entrou aí dentro. Ela foi a única que entrou. Foi até um vizinho nosso que levou ela. Ela entrou, viu tudo e tal. Aí passou um tempo, aí veio com um projeto[13] [Ivana, 09-02-2017].

Em outro momento da conversa com as interlocutoras, perguntámos se algum político havia ido ao bairro falar com os moradores. A resposta, dada por Selma, também chamou atenção para a época de eleição:

Selma - Não. Só em época de eleição vem. Em época de eleição vem muito vereador aqui. Vem vereador, veio Chicão [candidato pelo PR a prefeito do município de Campos em 2016]. Seu Chicão também veio. Agora nessa eleição que saiu agora ele veio, sabe? Ele veio. E cada dia passava um vereador aí na rua fazendo passeata. Mas aí… esse mesmo que veio agora [prefeito eleito em 2016], que está na prefeitura agora, ele mesmo de vez em quando vinha aí.

Pesquisadora - O prefeito?

Selma - É, o senhor prefeito.

Pesquisadora - Passava aqui na rua?

Selma - Passava.

Pesquisadora - Conversava com vocês?

Selma - Conversava com o pessoal aí. Pedia voto. Que era para o pessoal votar nele. Que se ele fosse prefeito, eleito, que ele seria um bom prefeito, que era… essas coisas que ele falava [09-02-2017].

Partindo das abordagens sobre o “sistema de dádivas”[14] elaboradas por Marcel Mauss (2003), em Ensaio sobre a Dádiva, e, posteriormente, por Alain Caillé (2002), em Antropologia do Dom, podemos estudar a política sob a perspetiva das trocas simbólicas.

Cabe destacar que nossa proposta de análise da realidade social recortada neste artigo parte do pressuposto de que a eleição de um político, pela parcela da população que nele vota, se encontra mediada pelas relações de reciprocidade.

Considerando o voto como um objeto de troca, em termos destas relações e não como uma mera troca por “bens materiais” ou “interesses particulares”, destacam-se as contribuições de Marcel Mauss sobre o “sistema de dádivas”. Sobre a sua discussão em torno da afirmação de que há nas coisas trocadas uma virtude que força as dádivas a circularem, a serem dadas e retribuídas, Lévi-Strauss[15] questiona se esta “virtude” mencionada por Mauss existia “objetivamente, como uma propriedade física dos bens trocados”. A sua resposta, então, foi: “Evidentemente, não; aliás, isso seria impossível, pois os bens em questão não são apenas objetos físicos, mas também dignidades, cargos, privilégios, cujo papel sociológico é, no entanto, o mesmo que o dos bens materiais” (Mauss, 2003, p. 34).

Alain Caillé (2002, p.15) observa que, “na ação social, certamente entra cálculo e interesse, material ou imaterial, mas não há somente isso: encontra-se também obrigação, espontaneidade, amizade e solidariedade, em suma, dom”. Ressalta o sociólogo, ainda, que “o laço [que se forma mediante as trocas] é mais importante que o próprio bem [trocado]” (Caillé, 2002, p. 8). O “dom” - que pode ser desde um objeto material, ou um favor, ou um simples gesto de demonstração de afeto, dentre outros muitos elementos “doados” - institui, assim, uma “aliança”.

Neste sentido, o que vale para esta discussão diz menos respeito à natureza dos bens e favores trocados, do que aos “laços de reciprocidade” constituídos entre políticos e entre a população da qual são representantes. Assim, estes laços não são “eternos”, e o “contrato” firmado exige que haja uma continuidade entre as trocas, pois pode ser rompido, caso doadores e donatários parem de cumprir as suas “obrigações morais”. O dom é o meio pelo qual se estabelece o pacto associativo no qual “cada um se compromete a dar incondicionalmente a cada um, mas se mostra igualmente disposto a sair do jogo, a qualquer momento, se os outros não o jogam” (Caillé, 2002, p. 153).

Por isso, as “práticas políticas” empreendidas pelos políticos que pretendem manter-se no “poder” têm de ser exercitadas constantemente. Não se trata apenas de atos em épocas de eleição; tem de haver uma continuidade para além deste período. Assim, os políticos profissionais continuam a promover as suas atividades (de prestação de favores, atendimento aos eleitores em potencial, realização de “projetos sociais”, promoção de eventos festivos etc.) também após o período da eleição, isto é, ao longo da execução do mandato.

Defendemos, então, com base nas observações que temos feito no decorrer dos trabalhos de campo, que a interação entre políticos e candidatos continua também no período “entre duas eleições”. Algumas atividades deixam de existir, outras surgem, outras perdem intensidade, mas continuam.

Acreditamos que isto ocorre porque um dos objetivos do político é conquistar a aprovação e o apoio da população - um político sem aprovação/aceitação pública não terá muito sucesso na sua carreira política. Em segundo lugar, que decorre da preocupação para com a “carreira política”, é o facto de que um político dificilmente irá “entrar para a política” visando apenas executar um único mandato e, em seguida, “deixar a política”. O mais comum é que os indivíduos que “entram para a política” almejem permanecer nesta atividade tanto quanto seja possível. E é por isso que, mesmo depois de ter sido eleito, ou seja, de ter a garantia de que irá desempenhar o seu mandato por um período de quatro anos, este buscará meios para obter aprovação e apoio da população visando futuras eleições e, portanto, futuras inserções na política.

Inspirados nas temporalidades na política, marcada pela fronteira entre as eleições e o período entre duas eleições, destacada por Heredia e Palmeira (2009), exploramos neste artigo uma temporalidade resultante das trocas de mandato.

No período entre uma eleição e outra ocorre o mandato do político eleito. No nível municipal, esfera que tratamos neste artigo, os políticos eleitos são os vereadores e o prefeito. Um político ocupa o cargo para o qual foi eleito por um período de quatro anos podendo candidatar-se à reeleição.

E como ficam as políticas públicas no decorrer destas trocas de mandato? Que interferências podem ser percebidas na mudança de um governo para outro? Vejamos o caso da favela Inferno Verde.

Como mencionado anteriormente, os moradores dessa extinta favela foram removidos de suas casas, no ano de 2012, com a promessa de que receberiam novas moradias que seriam construídas no mesmo local onde estavam assentes as suas casas que foram demolidas.

Ocorre que, em 2012, era ano de eleição para prefeito de Campos dos Goytacazes. Rosinha Garotinho, prefeita de 2009 a 2012, foi reeleita com 77% dos votos válidos. Entretanto, nas eleições para prefeito, em 2016, o candidato apoiado por Rosinha Garotinho perdeu as eleições para o candidato Rafael Diniz. Assim, em 2017, houve a troca de mandato do governo municipal. Como havia uma transição, muitas atividades do executivo ficaram paradas ou com as suas funções reduzidas em vista das auditorias realizadas nos primeiros meses do ano de 2017 e muitas obras ficaram paradas. Conforme nos contou Ivana:

Agora a obra ali [do conjunto habitacional que aguardavam] está parada. Todas as obras em Campos estão paradas. Mas isso é em tudo. Você vê, o camelô. Uma coisa a pessoa poderia ir lá cobrar se fosse só aqui. Mas não é só aqui, é em tudo, é no camelô, é em vários lugares em Campos. A obra do mercado municipal também [está parada]. Têm várias obras em Campos que estão paradas [Ivana, 22-02-2017].

Durante os primeiros meses do mandato do novo prefeito, além das obras públicas, algumas políticas sociais haviam sido suspensas. Outras aguardavam recadastramento dos beneficiários, como o “Cheque Cidadão”[16], por exemplo. O programa de transferência de renda chamado de Cheque Cidadão pela população (e também pelos políticos locais, vereadores e prefeito), consistia numa política social do governo municipal de Campos dos Goytacazes, que pagava uma quantia de 200 reais para famílias consideradas de “baixa renda”. As famílias candidatadas eram avaliadas de acordo com uma série de critérios estabelecidos pela Secretaria Municipal de Família e Assistência Social da prefeitura municipal e, a partir desta avaliação, eram classificadas como aptas ou não aptas a receberem tal benefício. A verba para a execução desta política social provinha dos recursos dos royalties do petróleo arrecadados pelo município.

Os ex-moradores da favela Inferno Verde que alugavam casas com os recursos do “aluguel social” contam que houve atraso no pagamento deste benefício. Até o momento em que o trabalho de campo foi realizado, fevereiro de 2017, os alugueres dos meses de novembro e de dezembro de 2016, e janeiro de 2018, não haviam sido pagos pela prefeitura municipal.

Com o atraso dos depósitos do aluguel social, os proprietários ameaçavam os inquilinos de despejo. Os beneficiários do aluguel social organizaram protestos e manifestações nas ruas. Para “acalmar o povo”, conforme disse uma moradora, a prefeitura pagou os alugueres dos meses de janeiro e fevereiro de 2017, mas ainda permaneciam atrasados os alugueres de novembro e dezembro do ano anterior.

Por sua vez, no que diz respeito às moradias prometidas aos antigos moradores da extinta favela Inferno Verde, cujas obras haviam sido iniciadas no ano de 2013, não havia nenhuma previsão de quando seriam concluídas e entregues à população que as aguardavam.

Mas por que motivo as temporalidades da política, considerando as reeleições e as trocas de mandato, influenciam no andamento das políticas sociais? Não queremos restringir as explicações aos motivos relacionados a seguir, mas destacamos duas características que podem modificar a dinâmica das políticas sociais.

Primeiramente, porque na troca de um mandato para outro, costuma haver mudanças nos “agentes do Estado” envolvidos no planeamento e execução das políticas públicas. Assim, com a entrada do novo staff, há que reorganizar os setores da administração pública ao seu modo.

Em segundo lugar, há uma ideia de que as políticas públicas são obras dos políticos que as implementam. Deste modo, as políticas sociais e as obras realizadas pelo município são atribuídas ao prefeito.

Se, por um lado, há as noções de “prefeitura” e “câmara legislativa”, pensadas de forma abstrata, por outro lado há os grupos de poder - “fações” ou “quase-grupos”, termos mais apropriados, segundo Palmeira (1996) - formados por pessoas “de carne, ossos e sentimentos” atreladas às mais diversas formas de relações sociais e interesses.

Lembra Palmeira (2000) que, fora do tempo da política, a política se confunde com a atividade política da fação dominante - “política de fulano de tal” - e só em condições excecionais (uma transição mal feita do tempo da política ao quotidiano ou paralelismo de poderes) o termo se refere à luta entre fações rivais.

Deste modo,

Onde a prática política confunde-se com favores e obras, a ideia de política como “ação de Estado” ou como ação impessoal dos poderes públicos para atingir um determinado fim, associado ao bem-estar da comunidade, é algo de difícil equacionamento, quase impensável. Uma prefeitura ou um prefeito não implementa a “política” a ou b, mas simplesmente - e é isso que se espera dele - “faz política”. [Palmeira, 2000, p. 12].

Se a população identifica as políticas públicas como sendo feitos deste ou daquele político em particular, de que modo as práticas políticas colaboram para que estas conceções sejam construídas? Quais os papéis que desempenham as propagandas acerca da construção dos imóveis feitas pelos políticos (difundidas em blogs, redes sociais, TVs, em jornais impressos e online, durantes os comícios e festas etc.); as “visitas” aos bairros; as “reuniões” com a população; o recebimento de pessoas nos gabinetes dos políticos; os rituais de entrega das casas nos quais os políticos estão presentes, entre outras manifestações?

A noção de uma política que é concebida como sendo exercício do governo de um político específico e não do Estado remete-nos, ainda, para outra discussão. Como fica a continuidade daquelas políticas sociais que deveriam ser entendidas como “obrigação permanente do Estado”?

Neste sentido, Antonádia Borges (2006) lembrou que no Governo Garotinho (1999-2002) foi executada uma modalidade de assistência social que ficou conhecida pelos programas de R$ 1,00 (um real)[17]. Ressalta a autora que, considerando que no Brasil a cada eleição a troca de governantes pode acarretar uma mudança das formas de cumprimento das atribuições do Estado em relação à população - visto que estas últimas referem-se a decisões e a compromissos de governos - a saída de Garotinho, que se afastava do cargo de governador do Estado do Rio de Janeiro para se candidatar a presidente da República em 2002, poderia implicar em “algumas alterações nos planos e projetos assistenciais em curso”. Ainda que a promulgação da Lei Orgânica da Assistência Social, em 1993, tivesse estabelecido que “a assistência social é tanto um direito do cidadão quanto um dever do Estado”, Borges (2006) questiona-se como fazer cumprir um “dever do Estado”, considerando as trocas de governo?

Este modo de conceber a política como sendo uma atividade muito mais ligada aos políticos, enquanto sujeitos de carne e osso, do que às categorias abstratas como “Estado” e “governo” pode ser percebida na fala de alguns dos interlocutores quando discutiam a respeito do não pagamento dos alugueres sociais nos últimos meses de 2016 pelo governo de Rosinha Garotinho. Para um dos interlocutores que aguardava a casa do programa Morar Feliz, e, enquanto isso, vivia numa casa alugada com recursos do aluguel social, o novo prefeito “não teria a obrigação de pagar os aluguéis atrasados”, visto que, “a dívida havia sido feita pela Rosinha e não por ele”:

Pesquisadora - E a prefeitura está pagando [o aluguel social] direitinho?

Ivana - A prefeitura pagou. Mas o mês de novembro e dezembro a gente não recebeu até agora.

Shaiene -Porque está [atrasado] desde dezembro. Rosinha [a ex-prefeita] deixou dois pagamentos atrasados, o de novembro e o de dezembro [de 2016]. Porque Rafael Diniz [prefeito em exercício no momento da pesquisa], na verdade, ele não é obrigado a pagar. Quem deixou a dívida foi Rosinha e não ele [21-02-2017].

Esta forma de perceber a política como sendo obra de indivíduos também apareceu no depoimento da secretária da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social e Humano. Quando ela disse, em uma das reuniões com os futuros moradores do conjunto habitacional, que foi a prefeita anterior que atrasou os alugueres e a construção dos prédios, que fez promessas de entregar casas e não cumpriu, que fez promessas de pagamento de salários aos síndicos dos prédios do conjunto habitacional, que havia dito que pagaria os três primeiros meses de conta de água e de luz elétrica aos moradores. E continuou dizendo que a gestão atual não havia feito aquelas promessas todas, e que, portanto, não poderia ser cobrada por algo que não havia prometido, ou por tarefas que a gestão anterior deixou de fazer.

Assim, a percepção sobre os atos que poderiam ser considerados de autoria institucional, como sendo responsabilidades ou feitos de entidades impessoais como “governo municipal”, “prefeitura”, “Secretaria Municipal de Desenvolvimento Humano e Social”, opera também com conotações de pessoalidade, como sendo feitos de agentes do Estado identificados como indivíduos, nas figuras do prefeito, da secretária, e demais funcionários da prefeitura.

Como as políticas sociais estão associadas aos nomes dos prefeitos que exerciam mandato no momento da sua execução, os sucessores costumam rejeitar as políticas sociais elaboradas pelos políticos anteriores. No caso do programa Morar Feliz, por exemplo, relacionado com o nome da ex-prefeita Rosinha, tendo sido uma das maiores políticas sociais implementadas por esta prefeita, continuar a execução desta política significaria reforçar e dar continuidade a uma política criada por ela e, portanto, vinculada ao nome dela.

É a partir desta interpretação acerca da política, ou seja, a de que as pessoas costumam atribuir os créditos das obras e das políticas sociais aos políticos em exercício no momento em que são implementadas, e pensando a política a partir de um sistema de reciprocidade, que procuramos compreender o “atraso” na entrega das casas populares e a longa espera por parte da população.

Eis o impasse. Em determinados momentos, as obras públicas enquanto promessas atrasam-se para que as novas eleições tenham moeda de troca. Cria-se uma continuidade no vínculo entre o político que “doa” e o beneficiário que aguarda o cumprimento da promessa.

E, por sua vez, quando há troca de mandato, deverá haver uma auditoria. Pois o novo político irá querer entender os gastos e os planeamentos das obras e políticas do governo anterior.

Muitas das políticas sociais implementadas por um determinado governo não possuem continuidade nos governos seguintes. Isto não significa dizer que o prefeito detém o poder de escolha a respeito de executar ou não as políticas sociais. No caso das políticas públicas de assistência social - entre as quais se inclui a política de habitação social, foco deste trabalho - desde a Constituição de 1988, são deveres permanentes do Estado e direitos dos cidadãos. Portanto, planear e implantar políticas sociais na área de habitação, antes de ser uma escolha do prefeito eleito, trata-se de uma obrigação do Estado no seu sentido amplo.

Então, o que se torna política de governo será a maneira pela qual as pessoas que ocupam cargos dos mandatos vigentes irão conduzir a administração das políticas sociais. Que tipo de política social habitacional será implementada? Como será esta chamada? Ou seja, há a necessidade e mesmo a obrigação de que se executem políticas de assistência voltadas para a habitação de interesse social, mas não existe a prerrogativa de que esta deverá chamar-se “Morar Feliz” e tampouco que deverá doar à população “cerca de dez mil casas”.

O programa habitacional Morar Feliz e o programa de obras de melhorias na cidade chamado Bairro Legal são políticas sociais criadas durante o mandato de Rosinha Garotinho. As moradias do “Morar Feliz” ficaram relacionadas com o nome da ex-prefeita, sendo popularmente conhecidas como “casinhas da Rosinha”.

Antes, porém, houve outros programas habitacionais implantados por outros ex-prefeitos, como “Pode Entrar que a Casa é sua (1989)”; “Vale-construção (1991)”; “Cada Família tem um Lote (1991)”; “Comunidade Legal (2000)”; “Casa Nova (2007)”; para citar alguns exemplos.

Deste modo, o governo do atual prefeito deverá desenvolver políticas de assistência social habitacional, mas provavelmente não haverá a continuidade do programa Morar Feliz.[18]

Primeiramente porque as arrecadações do município diminuíram se comparadas aos ganhos municipais no momento em que foi criado o programa Morar Feliz. Havia o recebimento dos royalties e esta arrecadação decaiu acentuadamente nos últimos anos.[19] Foi considerada a maior política social na área de habitação executada por um município com verbas municipais. Em Brasília, ganhou o prémio Selo de Mérito, de 2013, da Associação Brasileira das COHAB e agentes públicos de habitação. Poucos municípios possuíam verba para a realização de tal feito: mais de 10 mil casas para serem doadas sem que a população beneficiária pagasse pelos imóveis.

Além da espera que decorreu de todo o segundo mandato da ex-prefeita Rosinha e da sua tentativa de eleger o político a que daria apoio, há na transição do governo municipal mais um reforço nesta longa espera, pois os moradores não sabem como a nova administração irá lidar com o que o programa Morar Feliz deixou inacabado.[20]

Quando comentamos com duas ex-moradoras da extinta favela Inferno Verde que havíamos ouvido que a previsão para entrega era o mês de abril, elas disseram:

O povo fala, não é? Como estava previsto de entregarem em dezembro. Como estava com previsão de entregar há dois anos. Agora é em abril. Eu acho que pelo visto não vão construir prédio. Se construir depois talvez possa até ser o [prédio do setor de] comércio. (…) Pelo que Rafael Diniz [o prefeito eleito] disse, a auditoria vai terminar em março [de 2017] [21-02-2017].

A população que aguarda as casas que iriam substituir suas moradias demolidas em 2012 experimenta o sentimento da espera. Angustia-se diante de “uma situação de estresse total”. Conforme nos contou Cíntia, “muita gente já faleceu também. Pelo que estou te falando, pelo estresse, pelo tempo de espera também. Tem muitos que já estão até perdendo as esperanças de ver aquilo dali pronto”.

Pela tensão causada com a demora da entrega dos imóveis; pelas promessas que não são cumpridas; pelo medo de que fiquem sem o aluguel social e tenham que arcar com o aluguel “do próprio bolso” ou que sejam despejados pelos proprietários; pela desconfiança de que nunca mais tenham suas moradias restituídas, os ex-moradores da favela Inferno Verde vivenciam dia após dia uma longa espera pelos imóveis, sem nenhuma previsão de até quando terão que esperar.

Considerações finais

Desde 2012, quando tiveram as suas casas demolidas com a promessa de serem restituídos com novos imóveis do programa habitacional “Morar Feliz”, os antigos moradores da extinta favela Inferno Verde viviam uma situação de espera que durava cerca de seis anos.

Inicialmente, essa espera tornou possível a interação entre os moradores, o compartilhar dos sentimentos de angústia, de incerteza, de medo, mas também de esperança, permitindo-lhes enfrentar as dificuldades quotidianas, movendo-os a transformar esse interstício, que poderia ser considerado um tempo “perdido”, num tempo oportuno, a passarem de meros espetadores a atores.

Mas, ao longo do tempo, os laços afetivos e sociais entre os moradores no interior do território da espera têm sido alterados, de acordo com a localização de cada um deles. As relações são mais intensas entre aqueles moradores que estão mais perto entre si e enfraquecem à medida que vão se afastando e estão separados por uma distância maior, independente da convivência ou da vizinhança que tinham no passado, na extinta Inferno Verde.

Além da longa espera e promessas que não se cumprem e do enfraquecimento dos antigos laços, há toda a tensão de corte dos alugueres sociais e o medo da ameaça de despejo pelos proprietários, os quais muitas vezes também dependem deste dinheiro.

Considerando a verba dos royalties que a Prefeitura Municipal recebia na época em que começaram as obras da prefeitura, considerando a mão de obra disponível no município de Campos RJ, perguntamo-nos por que motivo esta obra, cerca de seis anos (de 2012 a 2017) volvidos sobre o seu início ainda não foi concluída e entregue à população a que se destina.

Se este tempo não pode ser entendido do ponto de vista técnico, ou seja, considerando o tempo que uma obra como esta necessita para ser executada, talvez possamos entendê-lo do ponto de vista da política, que possui temporalidades de acordo com seus próprios critérios. Em suma, nesta longa espera, além do tempo cronológico, ou de um tempo que poderíamos chamar de “tempo da construção civil”, esta população encontra-se sujeitada também aos “tempos da política”.

É deste modo que compreendemos, a partir do caso da Inferno Verde, como os territórios da espera podem também ser construídos a partir das configurações inerentes a uma dinâmica política engendrada por sujeitos, neste caso políticos, cujas ações podem estar a ser orientadas por uma lógica divergente da lógica dos interesses da população que seria beneficiada com a política social, executando-a não como um direito, mas como dádiva.

 

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Recebido a 20-03-2018. Aceite para publicação a 04-10-2019.

 

[1] A favela Inferno Verde assentava-se na esquina da Rua Miguel Herédia com a Avenida Adão Pereira Nunes, no bairro Lapa, situado às margens do rio Paraíba do Sul, contíguo à área central da cidade de Campos dos Goytacazes-RJ. Certamente foi batizado Lapa, por conta da referência geográfica: lugar alto, na curva do rio, que sobressai na paisagem da planície, onde foi erguida, em 1748, a igreja de Nossa Senhora da Lapa. Em 1855, a Companhia de Fiação e Tecelagem Campista foi instalada no bairro, construindo ali, sua vila operária. A Inferno Verde integrava o conjunto de favelas da Lapa: Risca-Faca, Tira-Gosto, Siqueira e Silva, que juntamente com a favela Matadouro e Goiabal (parcialmente demolida, em 2011), situadas no bairro Parque Califórnia, conformavam o que designamos “complexo de favelas Lapa-Parque Califórnia”. Esses assentamentos estendem-se linearmente na margem direita do rio Paraíba do Sul, próximas à Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF).

[2] Rosângela Barros Assed Matheus de Oliveira, esposa do ex-governador do Estado do Rio de Janeiro, Antony William Matheus de Oliveira, mais conhecido como Anthony “Garotinho” ou simplesmente “Garotinho”, assumiu o nome Rosinha Garotinho quando se candidatou, em 2002, ao cargo de governadora do Estado do Rio de Janeiro, sendo eleita, para o mandato 2003-2006. Em 2008, Rosinha Garotinho foi eleita prefeita do município de Campos dos → → Goytacazes para o seu primeiro mandato (2009-2012). Nesse período criou o programa municipal de habitação popular “Morar Feliz”.

[3] O “ponto de vista do nativo” é uma noção primordial nos estudos das ciências sociais que utiliza metodologias qualitativas, tendo sido, portanto, discutida por diversos autores. A nossa referência, neste artigo, é a de Clifford Geertz (1997). Para Geertz, entender (verstehen) algo do “ponto de vista do nativo” é entender como o nativo pensa, sente e se percebe a si próprio, aos outros e ao mundo (Geertz, 1997).

[4] LEEA (Laboratório de Estudos do Espaço Antrópico) da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, onde no Grupo de Pesquisa e Estudos da Cidade e do Espaço Urbano (CEU) realizamos desde 2004 pesquisas nas favelas vizinhas à UENF, inicialmente com o projeto de extensão da “integração socioespacial, qualidade de vida e cidadania”; em seguida, participando da “Rede de Pesquisa Inforio/Infosolo”, coordenada por Pedro Abramo (IPPUR-UFRJ). Em 2016, retornámos com o projeto de extensão “Integração socioespacial, questão ambiental e cidadania” e iniciámos o programa de extensão “Direito à cidade de moradores de conjuntos habitacionais e favelas de Campos dos Goytacazes”, que abriga o projeto de extensão Políticas públicas e espera: ações para garantia e preservação de direitos.

[5] Dissertação de mestrado, onde Daiana Falcão (2015) discute e apresenta todo o processo de conformação do território da espera, a partir do estudo da remoção dos moradores da favela Inferno Verde e da sua erradicação.

[6] Em junho de 2015, a Secretaria da Família e Assistência Social tornou-se Secretaria Municipal de Desenvolvimento Humano e Social.

[7] Os programas eram inteiramente financiados com recursos próprios do município, que naquele período recebia altas rendas petrolíferas em royalties e participação especial. Conferir https://royaltiesdopetroleo.ucam-campos.br/.

[8] Neto do industrial José Carlos Vieira Barbosa, ex-prefeito de Campos por vários mandatos (1967-1970; 1973-1976; 1983-1988), logo que assume a prefeitura, Rafael Diniz publica o DECRETO Nº 25/2017 que instaura auditoria, sob a competência da Secretaria Municipal da Transparência e Controle para análise da legalidade das contratações vigentes e gastos incorridos no âmbito do programa denominado “Morar Feliz”.

[9] Os autores associados a um grupo de pesquisadores de diferentes áreas das ciências humanas e sociais aprovaram o projeto internacional de pesquisa “Sociedades, mobilidades, deslocamentos: os territórios da espera. O caso dos Mundos Americanos (de ontem a hoje)”, o ANR TERRIAT financiado pela Agência Nacional de Pesquisa da França e desenvolvido de 2011 a 2014.

[10] Tradução livre das autoras.

[11] Disponível em: http://ururau.com.br/cidades846_Rosinha_autoriza_obras_no_Bairro_Legal_da_lapa Segundo o Censo IBGE (2010), havia 149 residências ocupadas.

[12] A sede social do Flamenguinho, equipa de futebol antigo no bairro, é o local onde se realizam reuniões, festas, bingos, e serestas, tanto comunitárias como para o público em geral. Alguns dos ex-moradores da Inferno Verde fazem parte da diretoria do clube, confirmando a interação com a vida social do bairro e com a cidade.

[13] Projeto de construção do novo conjunto habitacional e para as obras de saneamento básico da extinta Favela Inferno Verde que faziam parte do programa Bairro Legal.

[14] Em Ensaio sobre a Dádiva, Marcel Mauss (2003) disserta sobre o “sistema de dádivas” que consiste em três obrigações (temas): dar, receber e retribuir. A este “sistema”, Mauss chamou “contrato”, correspondente ao “direito jurídico”, pois, segundo o sociólogo, haveria uma série de direitos e deveres envolvendo os atos de “dar” e “receber”.

[15] Na introdução à obra de Marcel Mauss, Sociologia e Antropologia, Lévi-Strauss comenta sobre esta questão que pode confundir os leitores sobre a natureza dos bens trocados no sistema de dádiva e que faz toda a diferença para a compreensão das relações sociais (de reciprocidade) que são intermediadas pelo sistema de dádivas (Mauss, 2003).

[16] Sobre o cheque cidadão especificamente, além da mudança de governo, havia repercutido fraudes no cadastro de beneficiários desta política social. Alguns vereadores campistas foram afastados dos seus cargos pelo Tribunal Regional Eleitoral. Conhecida como “Operação Chequinho”, a investigação averiguou casos em que o benefício foi atribuído “a pessoas que não precisavam” em troca de votos. Cf. matéria intitulada “TRE determina afastamento de cinco vereadores em Campos, RJ, pela Operação Chequinho” publicada no dia 18-04-2017 08h11, em http://g1.globo.com/rj/norte-fluminense/noticia/tre-determina-afastamento-de-cinco-vereadores-em-campos-rj-pela-operacao-chequinho.ghtml.

[17] Os programas sociais que ficaram conhecidos como “programas de 1 real” (um real, sendo real a moeda oficial do Brasil), consistiam em serviços oferecidos à população considerada carente pelo preço de R$ 1,00. São exemplos os restaurantes e hotéis populares que ofereciam refeições e hospedagem por este preço.

[18] E de facto, numa entrevista realizada com uma representante da Secretaria de Desenvolvimento Social e Humano, esta apontou para a extinção do Programa Morar Feliz. As obras que haviam sido iniciadas seriam concluídas e os imóveis entregues à população, mas não haveria a construção de novas unidades e a continuidade do Programa Morar Feliz. Mas a prefeitura continuaria prestando assistência social na área habitacional, conforme seu dever, embora de outras maneiras, via outros programas.

[19] Ainda que tenham diminuído, em decorrência da queda do preço do barril do petróleo no mercado mundial, as arrecadações continuaram proporcionando à Campos-RJ uma receita municipal alta, quando comparada com as arrecadações de outros municípios brasileiros. Segundo o website InfoRoyalties, da Universidade Cândido Mendes, no ano de 2015, o montante recebido, incluindo royalties + Participações Especiais, em valores correntes foi de R$ 618.403.172,23 (no ano anterior, 2014, havia sido R$ 1.208.366.996,05). E, em 2016, foi de R$ 292.729.492,45. Cf. http://inforoyalties.ucam-campos.br/informativo.php.

[20] Vale ressaltar que o conjunto habitacional em tela não se insere integramente no programa Morar Feliz, que tem outra tipologia de construção e de organização. Mas é igualmente coordenado pelo setor de políticas habitacionais da SMDHS.

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