Introdução
A popularização da ciência, assim como a sua relação com a prosperidade económica, é uma prática que os ingleses souberam explorar plenamente no decurso da Revolução Industrial (Bassala, 2001), nas exposições universais (Plum, 1979; Souto, 2011), e mais tarde, em finais do século xx, no apelo ao dever ético dos cientistas e dos investigadores na divulgação do seu trabalho, numa perspetiva de interação e proximidade com a sociedade.1
A relação entre ciência, tecnologia e desenvolvimento económico, que tem atraído a atenção dos historiadores nas últimas décadas, está documentada nos meios de comunicação científica (revistas e boletins) publicados por escolas de ensino superior e sociedades científicas nos séculos xix e xx.
Trata-se de publicações que descrevem os movimentos académicos, científicos e cívicos que antecederam a ligação entre as dimensões científica, tecnológica e económica, que hoje damos como inevitável. Constituem, por isso, fonte obrigatória quando nos propomos analisar os contributos da ciência e da tecnologia para o desenvolvimento industrial em Portugal.
Diferentes abordagens ao papel das revistas científicas contemplam aspetos como o incentivo à investigação científica (Ferreira, 2011), a criação de ambientes culturalmente favoráveis à incorporação de novos conhecimentos e o fomento da ligação entre cientistas e industriais (Nunes, 2004; Matos, 2000), convergindo todas elas para o desenvolvimento económico das regiões ou dos países.
A imprensa periódica científica expandiu-se em Portugal no período da Regeneração, após 1851, como resultado de uma vaga de novas instituições científicas que encaravam a divulgação científica e a popularização da ciência como indispensáveis a uma intervenção social (Nunes, 2004). Os temas da ciência e da tecnologia, deixaram de estar restritos aos círculos académicos e começaram a espalhar-se pela esfera pública (Nunes, 2004a), influenciando a sociedade, sobretudo os homens da indústria e da política (Matos, 2000).
Já era esse o sentido estratégico da Sociedade Promotora da Indústria Nacional (spin), fundada em 1822, em Lisboa, por um grupo de liberais. A spin integrava portugueses ligados, entre outros, à indústria e ao comércio, mas também estrangeiros com negócios em Lisboa, como Diogo Ratton ou André Durrieu (Matos, 1996; Martinho, 2006). Aproximar diferentes grupos sociais e promover o desenvolvimento económico português ao fundir conhecimentos de uns e de outros foi um dos propósitos desta sociedade que, para tal, dispôs de uma publicação periódica dedicada a temas tecnológicos e científicos (Matos, 2000).
A reforma da instrução primária de 18702 promoveu a instalação de bibliotecas populares e desafiou a constituição de sociedades protectoras de instrucção primaria. Estas propunham-se assumir um papel dinamizador de leituras que incluíam textos que abordavam temas técnicos e profissionais. O público interessado ganhou expressão na década seguinte em resultado da dinâmica da expansão de sociedades científicas e das publicações de divulgação de ciência (Matos, 2000).
Portugal assistiu, na segunda metade do século xix, ao estabelecimento de uma rede de instituições, sociedades e associações de natureza científica, industrial e filantrópica, que teve expressão num conjunto de periódicos culturais e científicos, cuja publicação regular contribuiu para a sociabilidade científica, isto é, para a transmissão de conhecimentos e para a popularização da ciência (Nunes, 2004).
Inscrevem-se nesse espírito publicações como O Instituto, da instituição com o mesmo nome, fundada em 1852 na Universidade de Coimbra, e que contribuíram para a afirmação da comunidade científica portuguesa e para o incremento de relações internacionais (Leonardo et al., 2013). A retórica científica também ajudou à legitimação das políticas republicanas que vingaram em 1910 (Leonardo et al., 2012; 2013; Nunes, 2004a; 2014).
Em Guimarães, a constituição da Sociedade Martins Sarmento (sms) não está dissociada desse movimento intelectual, cultural e científico. A instituição nasce por iniciativa de um grupo de homens formados na Universidade de Coimbra, contemporâneos dos fundadores e colaboradores de O Instituto, e cujos círculos intelectuais e culturais frequentaram estabelecendo laços de afinidade e proximidade ideológica e política. À fundação da sms relacionaram as missões de homenagem do arqueólogo Martins Sarmento, patrono e financiador da instituição, a promoção da instrução popular3 (Neves 2009; Santos, 2006), e a criação da Biblioteca Municipal de Guimarães4 (Figura 1), que funcionou nas instalações da instituição e cujo fundo geral foi distribuído pela biblioteca pública5 e pela biblioteca popular6 (Santos, 2006).
A Revista de Guimarães (rg)7 surgiu nesse contexto, em 1884, por iniciativa da sms, num cenário transformador da cidade. Será particularmente efetiva a ação da Sociedade até ao ano de 1913, altura em que a publicação da rg é suspensa.
O primeiro número da rg antecedeu a chegada do comboio e a realização da Exposição Industrial Concelhia de Guimarães. Estes eventos serviram para pressionar o governo e reclamar a instalação da escola industrial prometida desde 1864, mas ainda por concretizar naquela altura. A economia local, baseada em processos artesanais e rudimentares, enfrentava então sérias dificuldades. O analfabetismo da população, em linha com a realidade nacional (Mónica, 1977), constituía um entrave ao desenvolvimento industrial e ao progresso social (Reis, 1984).
Preparado durante o ano de 18838, o primeiro número da rg foi lançado em1884.9 Veio conceder dimensão nacional e internacional à Sociedade, afirmar-se como âncora do seu prestígio e dos fundadores, acrescentando-lhes reputação e disponibilizar à comunidade conhecimentos de diferentes áreas. Embora se trate de uma das mais antigas publicações periódicas portuguesas em atividade e uma referência na cultura nacional, em nenhum dos estudos sobre periodismo científico português encontramos alusão à rg. Assumindo--se editorialmente como órgão de uma sociedade filantrópica de província, a rg declara a sua autonomia dos circuitos científicos e culturais da época, centrados em Coimbra, Lisboa e Porto, procurando afirmar Guimarães através de estudos económicos10, históricos11 e culturais, documentando esse capital de conhecimento nas suas páginas.
A rg acompanhava editorialmente a dinâmica de transformação social e económica que se vivia na Europa e também se reclamava para Guimarães. Para além da permuta com revistas, boletins e jornais científicos de instituições europeias, muitos dos seus artigos foram partilhados pela imprensa local, sobretudo aqueles que respeitavam às indústrias e à instrução popular. Os artigos submetidos para publicação eram sujeitos a revisão por pares. O corpo editorial privilegiava estudos sobre Guimarães, embora procurando impacto nacional e internacional, o que explica muitas colaborações de estudiosos, académicos e investigadores sobretudo nacionais, mas também estrangeiros.
Entre 1913 e 1921 a sms atravessou um período de dificuldade, que resultou na suspensão desta publicação.12 A Revista de Guimarães foi retomada, mas evidenciando uma preocupação temática mais centrada em assuntos da história, da arqueologia e da etnografia. Procurando compreender a influência da rg na fase de industrialização de Guimarães, a defesa da instrução popular, e o empenho dos fundadores da sms em concederem projeção nacional e internacional à instituição e ao seu órgão científico, procedemos à análise das edições publicadas entre 1884 e 1913. Centramos a análise na primeira fase editorial da Revista porque coincide com uma estratégia de envolvimento dos industriais de Guimarães em torno do progresso tecnológico, ainda por realizar localmente, mas que já era prática implementada nas indústrias de regiões concorrentes como o Porto.
Uma revista científica local à conquista de relevância nacional e internacional
Foi o Congresso de Antropologia e de Arqueologia Pré-Histórica, realizado em Lisboa em 1880 e a visita que a comitiva de congressistas estrangeiros fez ao Minho, com passagem pela estação arqueológica de Briteiros (Citânia de Briteiros), em Guimarães, que inspirou a constituição da sms.
Francisco Martins Sarmento, o arqueólogo de Guimarães13 que surpreendeu os congressistas pelas suas descobertas e pela sua abordagem exploratória à citânia, espantou particularmente Henri Martin14 pela qualidade e riqueza da estação e pela envergadura cultural e científica do “sábio profundo”.15 Pouco depois (1880), ele seria distinguido pelo governo francês com a ordem de Cavaleiro da Legião de Honra.16
Em Guimarães, os amigos mais próximos entendiam que a melhor maneira de homenagear Sarmento seria através da criação de uma instituição filantrópica. Avelino Germano, José Bento Agra, Avelino da Silva Guimarães e Manoel Freitas de Aguiar refletiram sobre o modelo a adotar e envolveram--se na criação de uma sociedade vocacionada para a instrução em Guimarães. Deixaram-se inspirar pelos compatrícios brasileiros que, naquela época, eram os principais financiadores da instalação de escolas primárias no Minho, e também nos exemplos que chegavam de fora: “Pensou-se em que como nos Estados-Unidos, como na Inglaterra, como na França, como na Allemanha, como n’outras terras do paiz, se tinham fundado instituições d’instrucção devidas unicamente ao duplo sentimento de patriotismo e philantropia dos fundadores” (Guimarães, 1884, p. 3). Nascia assim a Sociedade, apadrinhada por Martins Sarmento, e à qual a cidade correspondeu totalmente.17
Na origem da sms e na sua direção estão homens de Guimarães, de envergadura intelectual e científica reconhecida, muitos deles com negócios familiares na agricultura e também na indústria local, interessados no progresso e no desenvolvimento económico assente na instrução popular. Aplicavam o conhecimento e o saber adquiridos ao serviço de uma estratégia de cidade, pelo que a revista surgiu como “o desenho ambicioso de suas vastas esperanças”.18
Eram, na sua maioria, jovens burgueses que se formaram bacharéis ou doutores em Direito, Filosofia e Teologia, e que tinham em comum a sua passagem pela Universidade de Coimbra. Martins Sarmento e Alberto Sampaio, as duas figuras de referência, eram amigos íntimos de Camilo Castelo Branco e de Antero de Quental, e mantinham laços de amizade com Bernardino Machado, Sousa Viterbo19 e Teófilo Braga.
Alimentavam uma proveitosa rede de contactos que se expandia de Guimarães ao Porto, a Coimbra e a Lisboa, envolvendo homens da cultura, da ciência e da política, que contribuíram para a notoriedade da rg (na qual muitos colaboraram), e que, no caso daqueles com responsabilidades governativas, foram muito úteis às causas de Guimarães e às suas representações.
Uma revista centrada na instrução popular e nos temas industriais
A rg surgiu com o objetivo de “(…) e estudar a fundo as condições da vida local”20 porque “(…) para conhecer um povo é necessario estudá-lo nas manifestações da sua vida material e moral e no seu meio physico”21, defender “[os] interesses legitimos do professorado” e chamar à atenção para os problemas da instrução popular.22
A direção assumiu, desde o início, que a rg não seria “(…) uma publicação destinada a tratar das grandes questões da philosophia, de sciencia ou arte, feita em Guimarães”, mas teria espaço para “(…) apresentar trabalhos de primeira mão d’algum dos nossos homens mais distinctos”.23
Quando se retomou a publicação da rg, após um interregno forçado entre 1913 e 1921, o espírito editorial foi reafirmado: “É realmente uma revista de Guimarães, que nós fazemos, é pela sua prosperidade que nos dedicamos, são as suas condições de vitalidade que vamos estudar e documentar, é Guimarães que procuraremos fazer conhecida e estimada pelo resto do paiz” (Meira, 1921, pp. 5-12).
O Inquérito Industrial de 1881 não fora rigoroso a apresentar as indústrias de Guimarães.24 O sentimento de preocupação pairava sobre a dinâmica económica local, ameaçada pelo desprezo de Lisboa e pela leitura enviesada que, na capital, se persistia fazer da realidade da província. Daí a insistência quanto às prioridades temáticas da revista:
[…] serão, por ventura, differentes das nossas as condições economicas do resto do paiz, de fórma que o estudal-as em Guimarães não tenha prestimo senão aqui? o regimen industrial e as condições technicas de progresso de cada industria, o regimen legal da propriedade não estão ahi reclamando a attenção de todos os interessados? e os interessados não somos nós todos? (…) “Na vida social d’um povo todas as cousas se ligam umas a outras por fórma indissoluvel. A sorte da instrucção popular do municipio está intimamente ligada á da sua administração e da sua política. Por isso estes importantes factores da prosperidade ou decadencia publica merecerão todo o nosso desvelo [In “Introdução”, Revista de Guimarães, p. vii, 1884].
No primeiro número da rg (Figura 2), Alberto Sampaio assinou o artigo que questionava a pertinência da promoção de uma Exposição Industrial concelhia.25 Esta realizar-se-ia em junho de 1884 e seria um sucesso, não só por reunir mais de 170 industriais e dar origem a um relatório industrial (concelhio) minucioso, mas porque a instalação da tão ambicionada escola industrial foi, finalmente, decidida.
Até ao final daquele ano publicaram-se mais três números da rg, destacando-se a crónica de Avelino Germano sobre a questão da escola industrial, as indústrias locais, a inauguração do caminho de ferro e a exposição industrial, dois artigos de Francisco Martins Sarmento sobre mitologia dos lusitanos e prospeções arqueológicas, um artigo sobre ciência de Adolfo Salazar e um outro artigo de Alberto Sampaio que abordava os seus estudos económicos (que seriam mais tarde reunidos em livro como testemunho científico da realidade económica regional).
Foi ainda publicada a lista dos primeiros alunos premiados pela Sociedade Martins Sarmento - prémio que ainda hoje é atribuído pela instituição a 9 de março e que tem como objetivo distinguir o mérito escolar individual nos diferentes graus de ensino.
Na sua primeira fase editorial, a Revista de Guimarães foi publicada em fascículos trimestrais, compondo uma edição anual, que incluía o Boletim, balancetes e listas atualizadas de sócios admitidos, onde se apresentavam, entre outros, o movimento da biblioteca e ainda uma relação anual das doações, permutas e ofertas. Entre 1894 e 1895 publicou-se, mensalmente, o Boletim, suspendendo-se até 1990, ano em que foi retomada a publicação com periodicidade trimestral e em regime de complementaridade com a revista.26
O detalhe colocado no Boletim permite identificar as publicações estrangeiras que chegavam a Guimarães e os exemplares que partiam de Guimarães com destino, entre outros, a instituições científicas, culturais e filantrópicas de França, Alemanha e Espanha. Quando a sms retomou a publicação da rg em 1921, João de Meira assinou um artigo introdutório no qual afirmou ter-se cumprido a missão da revista27, “dando conta minuciosa” da vida social, cultural, escolar e económica de Guimarães, nunca perdendo a “feição local que sempre se procurou salientar na publicação”, nem “a qualidade das pessoas que foram os seus principais e mais assíduos colaboradores durante os trinta anos da sua existência”.28
Fases editoriais e temas dominantes
Embora a rg não se enquadre no estrito quadro do periodismo científico é, contudo, inegável o seu valor e o interesse histórico, sobretudo no campo da arqueologia e da história.
Podemos distinguir quatro fases editoriais da rg: “implementação” (1884--1913), em que se destacam os temas da indústria, exposições, mecanização e instrução popular; “reativação” (1921-1926) mais dedicada à história, política, administração e à literatura; “normalização” (1926-1974), mantendo em destaque a história, a arqueologia e a linguística; e “pluralismo” (1974 até ao presente), com predomínio da arqueologia e história, mas reforçada por estudos diversos em ciências sociais e humanidades (Quadro 1).
Estudiosos locais, autores nacionais e investigadores estrangeiros colaboraram com a rg que rapidamente alcançou notoriedade e estatuto no país e além fronteiras. São particularmente relevantes os contributos do núcleo fundador nas primeiras décadas - Martins Sarmento, Alberto Sampaio e o irmão José Sampaio, Domingos Leite de Castro, Avelino da Silva Guimarães, Abade de Tagilde, Avelino Germano, José de Freitas Costa e João de Meira.29 Entre 1899 e 1912 as mortes de Martins Sarmento, José Sampaio, Avelino Guimarães e Abade Tagilde conduziram a uma crise diretiva da SMS, descontinuada por Eduardo Almeida, que assumiu a direção da Sociedade em 1921 e retomou a publicação da rg no mesmo ano.
Juntaram-se aos sábios de Guimarães vultos das artes, ciências e letras nacionais como Raul Brandão, Teófilo Braga, Trindade Coelho, Sousa Viterbo, Bernardino Machado e Francisco Adolfo Coelho. Estes homens, muito próximos do movimento ideológico que procurava fazer vingar na Europa o interesse pelas ciências sociais, o progresso baseado na ciência, o republicanismo, a liberdade, a democracia e o socialismo, promoveram as Conferências do Casino (1871) e defenderam no Manifesto que lhes deu origem a necessidade de colocar Portugal no caminho da modernidade, agitar consciências e refletir sobre a mudança política e social que defendiam como indispensável. Muitos dos autores eram destacados militantes republicanos, outros estavam ligados às atividades industriais ou exerciam funções de elevada importância no poder central.30
Dois presidentes da República - Bernardino Machado31 e Teófilo Braga32 -, amigos próximos de Martins Sarmento, colaboraram com a Sociedade e com a rg.33
A lista de colaboradores da rg também inclui notáveis da ciência alemã, francesa e espanhola, médicos, arqueólogos, historiadores e políticos (liberais, socialistas ou republicanos) como Emil Hübner, Rudolf Virchow34, Adolf Schulten35, Gordon Childe36, Émile Cartaillac37, Pere Bosch i Gimpera38, Fermín Bouza Brey39, Florentino López Cuevillas e Julio Caro Baroja.
Temas e artigos que marcam a Revista e transformaram a cidade
Em 1890, a taxa de analfabetismo local ultrapassava os 85% (Quadro 2) e a instrução popular era um dos objetivos cimeiros para a sms, que colocava a instalação da escola industrial como prioridade na sua agenda. A rg destinava-se à leitura das elites locais e disseminava-se, estrategicamente e em regime de permuta, por instituições e bibliotecas do país e estrangeiro.
Entre 1884 e 1911 publicaram-se na rg numerosos artigos que, estrategicamente, discutiram as políticas de instrução popular (ou a sua ausência e ineficácia) e a necessidade de combater o analfabetismo nacional fundamentados com dados estatísticos da realidade local. Destacam-se as “crónicas” de Avelino Germano (1884), que aludem ao sinuoso processo de adiamento por 20 anos da instalação da escola industrial em Guimarães40 e a série “Instrução popular, legislação portuguesa”, escrita por Avelino da Silva Guimarães41 (1890), publicada no seguimento da criação do ministério de instrução com o intuito de “avivar o interesse” dos leitores da rg pelo tema. Assina ainda os artigos “Caridade social e cristã pela instrução popular” (1885) e “O ensino público e popular. A reforma alemã. Método intuitivo” (1900 e 1901), nos quais defendeu a mobilização das classes privilegiadas no combate à ignorância dos mais pobres e a valorização do método de ensino de João de Deus e a “revolução no ensino de línguas” iniciado na Alemanha.42
Seguiram-se outros trabalhos43, “Instrução primária” (1903), de António Hermano, e “A Instrução popular no concelho de Guimarães” (1908) de Eduardo de Almeida que arrasa o poder político da época com um “estudo synthetico do atraso e desordem da instrucção do paiz, manifestando a evidencia do mais poderoso factor intellectual e moral e também physico da anormalidade portuguesa”.44 Analisando as 80 freguesias do concelho de Guimarães denunciou que em 38 daquelas não funcionava qualquer escola oficial e que “entre serviçais, domesticas, lavradeiras e operarias, sobretudo nas freguesias não urbanas, 90 por cento não sabem ler”.45
Apesar do empenho da sms a favor da instrução pública o analfabetismo não reduzia. A instalação do instituto, do curso de desenho, da escola militar, de cursos em regime noturno, da escola industrial, o financiamento de estudos aos alunos pobres, a instituição dos prémios de desempenho escolar, a escola móvel, as conferências, a publicação da rg e do boletim, resultaram num esforço que se esboroava nas estatísticas. Na questão do analfabetismo, Guimarães saía mal na comparação com o país, com o Norte, com o Minho, com os concelhos vizinhos e até com as pequenas vilas de Fafe e Vieira do Minho. Perdia também na comparação com Braga, algo demolidor para o orgulho da cidade industrial.46
O défice de instrução penalizava gravemente a indústria local. Alberto Sampaio, que estudou o Inquérito Industrial de 1881, concluiu que era impossível competir com os ingleses e franceses47 baseando a economia numa indústria têxtil rudimentar e sem mecanização. Desenvolveu esta ideia em “Resposta a uma pergunta: convirá promover uma exposição em Guimarães?” onde denuncia a adoção de hábitos “dos povos ricos e industriaes” (Sampaio, 1884, p. 30) e critica o país por manter-se cativo do défice e do consumo e não procurar uma mudança que o enriquecesse verdadeiramente.
Sampaio - que tinha visitado a Exposição Universal de Paris em 1867 na companhia do seu amigo Antero de Quental -, defendeu nas páginas da rg a realização de uma exposição industrial (da qual foi diretor executivo) para conceder visibilidade e expressão às indústrias de Guimarães, mais promissoras e numerosas do que o indicado pelo inquérito industrial. Partilhou ainda a “idéa nova” da “necessidade da creação d’uma industria nacional” e de uma dinâmica que implicaria instrução popular e técnica, mecanização e desenvolvimento.48
[…] forçoso é reconhecer que na sua máxima parte se tratou ali do que mais interessava à cidade e concelho de Guimarães. Da sua arqueologia, da sua história, dos problemas da sua agricultura, das suas instituições e monumentos, da sua instrução, das suas indústrias, da sua higiene, de tudo isso houve quem particularmente se ocupasse. [Meira, Revista de Guimarães, 1921, p. 7]
Editorialmente, a rg insistirá, por três décadas, numa linha temática que privilegiará a ciência, a tecnologia, a indústria e o ensino. Adolfo Salazar assina dois desses artigos - “A ciência e a arte” (1884), “As artes mecânicas” (1885) -, João Gomes Guimarães (1886) escreve “Tinturaria”. Matos Chaves dedicará três artigos à “Química industrial, Galvanoplastia” (1890 e 1891).
Avelino da Silva Guimarães é o autor com mais artigos publicados na rg alusivos à indústria, 21 no total. Os seus estudos intitulados “Subsídios para a história das indústrias vimaranenses. Excesso de reforma liberal em detrimento da agrícola e industrial” relatam a história de alguns mesteres e indústrias tradicionais e neles analisa, criticamente, o que se passa em Portugal e Guimarães:
Nos paizes, onde houve maior descuido, onde se deixou a população trabalhadora emancipada e livre sem o amparo que demandava o seu novo estado, a industria declinou, desordenadas as classes e impotentes para luctar contra os progressos previdentemente consolidados pelos povos que viram na instrucção geral e desenvolvida o único segredo da sua supremacia. Assim succedeu com Portugal. O estado decadente das classes industriaes de Guimarães é um exemplo, serve de prova viva d’esse facto de imprevidencia censuravel a governos, a parlamentos, a camaras, aos cidadãos mais responsaveis na sustentação da prosperidade nacional, da nossa opulencia fabril. O estado de ignorancia crassa, litteraria e technica, em que o inquerito de 1881 (…) encontrou algumas classes industriaes do districto do Porto (facto que pode affirmar-se de todo o paiz), evidencia a obnoxia incuria com que se tem tratado d’este assumpto, e a loucura com que saudamos, com hymnos e foguetes, as apparencias de progresso constituidas pelas estradas e corrupções eleitoraes! [Avelino da Silva Guimarães, Revista de Guimarães, 1892, pp. 20-50]
No último artigo que publica na rg (1899) alertou para a necessidade de “salvar do esquecimento” a informação sobre a evolução histórica das indústrias, trabalho ao qual se dedicou, censura a inércia do poder central, que responsabiliza pelo atraso português, referindo como exemplo disso a Escola Industrial de Guimarães, que, 15 anos após a sua instalação, permanecia incompleta, sem oficinas a funcionar e com edifícios e maquinaria desaproveitadas e deterioradas.
As preocupações do autor eram as justas preocupações de um sócio da Companhia de Fiação e Tecidos de Guimarães. A regularidade da sua colaboração com a Revista de Guimarães e a persistência que colocou na abordagem aos temas industriais vem confirmar a estratégia industrialista que envolvia os fundadores e a própria Sociedade Martins Sarmento. Avelino da Silva Guimarães integrou o elenco fundador da sociedade anónima (inicialmente composta por 167 acionistas), mas também exerceu funções diretivas naquela fábrica.49
Convocamos, para completar esta reflexão, o artigo “Guimarães nas exposições nacionais e internacionais”, publicado no período de restabelecimento da rg (1926 até 1974), da série Curiosidades de Guimarães, por Alberto Vieira Braga (1953), porque nesse estudo documentam-se as participações das indústrias de Guimarães nas exposições portuguesas (1844-1953) e nas exposições universais e internacionais (1855-1929), que não só evidenciavam a vitalidade económica e cultural do concelho, mas também a expansão industrial que se foi verificando ao longo de décadas.50
Um exemplo histórico da relação entre cultura científica e indústria
A longevidade e o alcance da sms e da rg devem-se, sobretudo, à imponência cultural, científica e política do seu núcleo fundador e à conjugação feliz de intenções e objetivos que reunia, numa única missão, homens formados em Coimbra e industriais reconhecidos em Guimarães.
A Revista de Guimarães surgiu em boa hora e nos melhores fastos do tempo, apareceu numa ocasião excepcional de ventura, em que nesta terra brilhavam os mais fulgurantes talentos, presos do romantismo da época, mas superiores no culto duma educação forte de princípios, feita a par do melhor estudo das várias modalidades da Ciência [Alberto Vieira Braga, Revista de Guimarães, 1950, p. 10].
Um aspeto determinante nesta sintonia é o envolvimento dos industriais na vida da Sociedade e dos seus diretores na vida das indústrias. Na constituição dos órgãos sociais da sms encontram-se muitos nomes ligados às indústrias, assim como na lista de sócios. António da Costa Guimarães, fundador da Fábrica do Castanheiro, a primeira fábrica têxtil mecânica de Guimarães, contribuiu financeiramente para a Sociedade, durante muitos anos. Os seus filhos, Álvaro Costa, José Miguel e Simão Costa, integraram os corpos sociais, assinaram artigos no Boletim, elaboraram pequenos relatórios e balancetes. Simão Costa chegou a apadrinhar e financiar um prémio escolar. Bernardino Jordão, que no início do século xx adquiriu a massa falida da companhia inglesa de eletricidade, e passou a explorar o serviço em Guimarães - sendo por isso apelidado de “senhor eletricidade” - foi admitido como sócio da sms em 1896. Outro exemplo é Francisco Inácio da Cunha Guimarães, fundador da Fábrica do Moinho do Buraco, admitido como sócio em 1900 por recomendação de Francisco Jacome, um fotógrafo de origem francesa instalado em Guimarães que também contribuía para a sms.
Também Alberto Sampaio, ligado à fundação da sms e ao lançamento da RG, foi um elemento imprescindível, quer à instituição, quer às indústrias. Desempenhou funções de diretor da Exposição Industrial de Guimarães, foi guarda livros do Banco de Guimarães e exerceu funções como consultor jurídico na Companhia de Fiação e Tecidos de Guimarães.
Garantido o apoio e influência dos principais industriais da cidade, cujo financiamento assegurava, por exemplo, a publicação ininterrupta da rg e sem qualquer benefício do Estado, estava facilitada a propagação dos ideais do progresso industrial. Politicamente, a dinâmica ideológica do movimento pró-republicano penetrava nas indústrias, na Sociedade e nos textos publicados na rg.
Conseguiu que se melhorassem as condições técnicas e industriais dos nossos primeiros estabelecimentos de ensino, propagou a primeira e maior exposição industrial de 1884, colaborou eloquentemente na segunda exposição de 1923 e reclamou todas as iniciativas e progressos dos nossos principais factores de prosperidade [Alberto Vieira Braga, Revista de Guimarães, 1950, p. 15]
Os novos sócios eram estrategicamente incorporados na Sociedade e as recomendações cuidadosamente aprovadas. António José Arroyo (engenheiro e inspetor das Escolas Industriais da Circunscrição do Norte) foi indicado sócio da sms numa altura em que a Sociedade lutava pela instalação das oficinas. Bernardino Machado, ainda professor na Universidade de Coimbra e antes de assumir a pasta de ministro das Obras Públicas, Comércio e Indústria, colaborou com a sms e com a rg, tendo representado a Sociedade em congressos internacionais - Paris, Madrid e em Lisboa -, onde se debateram as questões da instrução popular e do ensino. Tornou-se sócio honorário da sms antes de assumir a presidência da República.
Estes e outros exemplos contribuem para clarificar o papel da rg, sobretudo na primeira fase editorial, efetivamente voltada para questões relacionadas com o progresso tecnológico da indústria e a instrução. Explica, ainda, a longevidade da rg, à qual não faltou apoio financeiro, a diversidade e pluralismo temático, sempre em sintonia com as causas da cidade e do concelho (a mecanização para as indústrias, o ensino industrial, a República, a liberdade e a democracia).
Consequentemente, seria uma publicação influente e determinante para a mudança de paradigma de Guimarães: “Dentro do campo social [a Revista] teve uma desenvolvida capacidade de acção no agitar de grandes problemas, que trouxeram, pela sua realização, proveitos muitos à colectividade vimaranense” (Braga, 1940, p. 15).
Notas sobre a relação entre a revista de Guimarães e o Instituto de Coimbra
A publicação de uma revista com características científicas fora da geografia de poder académico representada pelo eixo Lisboa, Coimbra e Porto, radica na proximidade dos fundadores da Sociedade à Universidade de Coimbra. Essa confinidade com a universidade e os seus vultos intelectuais atingiu O Instituto, a revista científica e literária51 que lhes terá servido de inspiração (Leonardo, 2011). Reconhecemos o modelo, o alinhamento e a intercolaboração regular que se estabeleceu entre as duas publicações (Revista de Guimarães e O Instituto), analisando as edições trimestrais do Boletim e os artigos publicados na rg.
Aliás, no discurso de homenagem a Martins Sarmento, por ocasião das celebrações do centenário do seu nascimento, o então diretor do Observatório Astronómico da Universidade de Coimbra e presidente de O Instituto, Francisco Costa Lobo, alude a essa relação mútua e recorda o “sábio incansável” de Guimarães e colaborador da revista: “[O Instituto] teve a distinção de possuir entre os seus membros honorários o sábio Martins Sarmento, que enriqueceu a Revista do Instituto com preciosos artigos” (Lobo, 1933, p. 79).
Enquanto a rg nasce com o propósito de estudar a realidade local numa perspetiva científica, a sua economia, indústrias e instrução popular, procurando conhecer o movimento social da cidade e do concelho, O Instituto surge para fomentar o diálogo, debater ideias entre intelectuais de diferentes áreas do saber e publicar trabalho científico e literário, assumindo-se como órgão de divulgação da atividade científica da universidade (Ferreira, 2011; Leonardo et al., 2013).
Estamos perante duas publicações longevas (Quadro 3), com vantagem para a continuidade da rg, que têm em comum alguns colaboradores notáveis (Sousa Viterbo, Teófilo Braga, Bernardino Machado, Martins Sarmento), que alinharam com o espírito de uma nova geração liberal, mas que representaram, nas suas cidades de origem, objetivos muito distintos. Estas revistas também se diferenciam no impacto das publicações: em Guimarães produz-se uma mudança industrial e social na região, em Coimbra a publicação circunscreve--se à disseminação científica de conteúdos.
Fontes: O Instituto de Coimbra e a Ciência na Universidade de Coimbra (Leonardo et al. (2013), e Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento (Guimarães)
Seguindo a prática da época, as duas revistas permutavam edições entre si e com outras publicações - na biblioteca da sms existe uma coleção d’O Instituto - e ambas publicavam um Boletim - destinado a atas, notícias e informações. O Instituto valorizava artigos científicos de diferentes áreas do saber, das artes e letras, enquanto a rg privilegiava temas da história, arqueologia, economia e educação, que refletiam a realidade local e nacional.
Considerações finais
Os iniciadores da Sociedade Martins Sarmento (sms) constituíram-se como grupo de excelência intelectual, cujo talento e eloquência, associados a uma consciência crítica e mundividência, permitiram a consolidação de uma instituição vocacionada para a defesa da instrução popular, firmemente apoiada na defesa dos interesses da economia local e das suas indústrias.
A Revista de Guimarães (rg), órgão científico da Sociedade, distinguiu-se pela sua longevidade e pela capacidade de gerar mudança. Ancorados em estudos estatísticos e demonstrações factuais os artigos publicados na rg depressa conquistaram o respeito de notáveis académicos e também a preocupação dos políticos. Os estudos sobre Guimarães não só concediam visibilidade e dimensão à cidade e ao concelho, como, não raras vezes, desmentiam a narrativa dos governos. Indiretamente, a revista conseguiu mudanças e decisões ambicionadas - a instalação da escola industrial por exemplo -, impulsionou a mecanização e expansão das indústrias têxteis locais, propagou e divulgou a primeira exposição industrial concelhia realizada em Portugal, contribuiu para o progresso de Guimarães.
Não foi alheia a esta dinâmica a relação dos fundadores da sms com a Universidade de Coimbra, onde se formaram, nem com O Instituto, no qual se inspiraram e com o qual estabeleceram colaboração.
A rede de contactos privilegiados entre os sábios de Guimarães e as figuras de relevo nas artes, cultura, ciência e política também contribuiu para os resultados obtidos, uma vez que muita da estratégia de cidade passava pelo recurso, e apoio, a essas personalidades, sobretudo junto de homens que assumiram responsabilidades governativas ou funções no Estado e que pertenciam ao círculo de amizades de Martins Sarmento e Alberto Sampaio.
Localmente também contaram com o apoio dos industriais e capitalistas, ávidos de progresso, desenvolvimento e riqueza, que procuravam, tal como a sms, uma instrução popular e técnica que impulsionasse as suas fábricas e os seus negócios. Esses industriais, na sua maioria com instrução, não só dispunham do capital necessário para auxiliar e financiar a instituição e as suas atividades, como do poder político, pois dirigiam associações ou tinham assento na Câmara Municipal. Todos eles foram sócios e alguns integraram os corpos sociais da sms.
A rg ganhou notoriedade e rapidamente tornou-se numa referência científica e cultural, em Portugal e no estrangeiro, beneficiando, por um lado, da projeção de Martins Sarmento e dos seus pares, e, por outro lado, pela cooperação que estabeleceu com a investigação científica portuguesa da época. Contribuiu, assim, para a expansão cultural e para o intercâmbio profícuo com instituições similares estrangeiras, ganhando presença e citação em inúmeras obras.
No entanto, o destaque mais importante que se pode fazer ao trabalho empreendido em 1883, e lançado em 1884, quer com a instituição da sms, quer com a publicação da rg, é que estamos perante uma estratégia bem definida para a cidade e para o concelho de Guimarães, que assenta naquilo que hoje designamos por interface ciência-indústria.